Acordam no Tribunal Constitucional:
CAPÍTULO I
Introdução
1 - Ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (CRP), 37 deputados à Assembleia da República, membros do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, e doravante designados «deputados do PS», vieram requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de diversas normas da Lei 2/88, de 26 de Janeiro.2 - Num primeiro momento, e em síntese preliminar de alta densidade, pedem que tal declaração abranja as normas constantes dos artigos 2.º, n.º 1, 4.º, n.os 3, 5 e 7, 7.º, n.º 2, 15.º, n.º 4, 19.º, 20.º, n.os 2, 3 e 5, 22.º, n.º 1, alínea c), 36.º, n.º 4, do capítulo 51 do Ministério das Finanças, mapa II, e do código 71 «Outras despesas de capital», mapa III, da Lei 2/88, por violação dos artigos 108.º, n.os 1, alínea a), 3, 5 e 6, 164.º, alínea g), em conjugação com os artigos 202.º, alínea b), e 168.º, n.º 2, todos da CRP.
3 - Num segundo momento, e em síntese final de grande desenvolvimento, pedem que a mesma declaração se estenda às seguintes normas da Lei 2/88:
a) Norma do artigo 2.º, n.º 1, por violação do artigo 164.º, alínea g), em conjugação com o artigo 202.º, alínea b), e por violação ainda do artigo 108.º, n.os 3 (no que respeita ao princípio de unidade do Orçamento, desenvolvido no artigo 3.º da Lei 40/83, de 13 de Dezembro) e 5, todos da CRP, argumentando em síntese:
A aprovação de orçamentos de fundos e serviços autónomos por despacho interno dos membros do Executivo que os tutelam não é compatível com as competências atribuídas pela CRP, por um lado, ao Governo [ao qual cabe, nos termos do artigo 202.º, alínea b), fazer executar o Orçamento do Estado] e, por outro lado, à Assembleia da República [à qual cabe, em exclusivo, a aprovação do mesmo Orçamento].
E isto é tanto mais exacto quanto é certo que os princípios da unidade e da universalidade, decorrentes do artigo 108.º, n.os 3 e 5, da CRP e desenvolvidos na Lei 40/83, impõem que as receitas e despesas dos serviços e fundos autónomos integrem o próprio Orçamento.
Por outro lado, ainda que se viesse a entender que no artigo 2.º, n.º 1, da Lei 2/88 se continha uma especial delegação legislativa da Assembleia da República no Governo, ainda assim tal norma sempre seria inconstitucional:
por infracção ao princípio da separação de poderes, afirmado no artigo 114.º, n.º 2, da CRP; por desrespeito dos limites das autorizações legislativas, tal como o artigo 168.º da CRP os define; e, finalmente, por a competência da Assembleia da República, no referente à aprovação do Orçamento, ser constitucionalmente indelegável.
b) Norma do artigo 7.º, n.º 2, por violação do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP, argumentando em síntese:
Foi o Governo autorizado, nos termos do artigo 7.º, a emitir empréstimos até ao montante de 260 milhões de contos, para fazer face a obrigações decorrentes, quer de dívidas assumidas por serviços extintos, quer da descolonização.
Pretendeu-se com o n.º 2 do mesmo artigo 7.º que os encargos com os empréstimos referidos no número anterior, a suportar eventualmente ainda em 1988, fossem incluídos no montante referido no n.º 1. Esta última pretensão autorizaria a correspondente não discriminação da despesa com os encargos desses empréstimos no Orçamento do Estado para 1988, em violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da CRP.
Ora, é ponto assente que os encargos com empréstimos são despesa corrente, não podendo deixar de ser discriminados na lei do Orçamento do Estado como tal. Assim, os encargos a suportar eventualmente ainda em 1988 deveriam estar como tal devidamente discriminados na despesa, sob pena da violação acima configurada.
De outra parte, é de salientar que no n.º 2 do artigo 7.º se admite a possibilidade de financiar despesas não inscritas no Orçamento mediante empréstimos cujo limite, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, acresce aos fixados nos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º c) Normas do artigo 20.º, n.os 2 e 3, por violação do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP, argumentando em síntese:
O n.º 2 do artigo 20.º estabelece que os programas e projectos que figuram no Plano de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central (PIDDAC) - Apoios ao sector produtivo e que tenham assegurados financiamentos de fundos comunitários serão inscritos no capítulo 50 do Orçamento do Estado pelo montante de 8,5 milhões de contos, a título de contrapartidas nacionais, podendo estas, todavia, ser reforçadas mediante operações do Tesouro, regularizáveis no Orçamento do Estado para 1989, até ao dobro daquele montante. Prevendo-se em 1988 um volume de contrapartidas nacionais acima de 8,5 milhões de contos, pretende-se não discriminar a correspondente despesa como, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da CRP, era devido.
Em vez dessa discriminação, prevê-se antes um reforço daquelas contrapartidas, mediante operações de tesouraria, não regularizáveis no Orçamento do Estado de 1988, e até ao dobro do citado montante.
Em justificação da não discriminação de despesa, alega-se a dificuldade de previsão. Esta alegação não tem, porém, qualquer fundamento.
Por seu lado, o n.º 3 do artigo 20.º contempla a possibilidade de virem a existir eventuais contrapartidas nacionais no âmbito do Programa Especial de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa (PEDIP). É sabido que ainda não estão concluídas as negociações referentes ao PEDIP, mas o Governo pôde já informar a Comissão de Economia, Finanças e Plano de que a despesa com essas contrapartidas era estimada entre 5 e 7 milhões de contos. Valem assim as considerações feitas anteriormente e atinentes a este tipo de situações (não discriminação de despesas).
Também aqui, e igualmente, não colhe a justificação apresentada: a dificuldade de previsão. De facto, admitir uma solução de não discriminação de despesa é, em suma, admitir uma solução não constitucional.
d) Norma do artigo 4.º, n.º 3, em conjugação com o n.º 4, normas do artigo 4.º, n.os 5, 6 e 7, e norma do artigo 20.º, n.º 5, em conjugação com os n.os 2, 3 e 4, na medida em que nelas se estabelece a possibilidade de cobrir despesas não discriminadas no Orçamento com receitas nele não inscritas e provenientes de empréstimos que não contam para os limites definidos nos artigos 3.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, por violação do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP, em articulação com o n.º 5 do mesmo artigo 108.º, argumentando em síntese:
Os artigos 3.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, com vista ao financiamento do excesso das despesas sobre as demais receitas do Estado, autorizam o Governo, dentro de certos limites, a contrair empréstimos internos e externos.
Tais limites referem-se directa e explicitamente a necessidades determinadas pela finalidade de financiamento do défice, condição inscrita no Orçamento ao abrigo da alínea h) do artigo 164.º da CRP. Os empréstimos que não contam para os citados limites não foram autorizados em relação com a finalidade de financiamento do défice. Essa condição de finalidade foi imposta, ao abrigo da alínea h) do artigo 164.º, para as operações a incluir nos limites do n.º 1 do artigo 3.º e do n.º 1 do artigo 4.º Assim, e de acordo com tal doutrina, os empréstimos destinados a cobrir despesas adequadamente discriminadas no Orçamento deverão situar-se dentro desses limites, na exacta medida em que se destinam a financiar o défice.
Aparentemente, mas só aparentemente, a condição anterior teria sido acatada pelas normas ora em causa.
De facto, sucede que os empréstimos externos a contrair nos termos do n.º 3 do artigo 4.º não só podem ser utilizados para financiar verdadeiras e próprias despesas orçamentais, a par de outras utilizações que não respeitam a despesas dessa ordem (v. n.º 4 do artigo 4.º), como aquelas utilizações em despesas orçamentais não estão sujeitas ao limite estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo. Ora, na medida em que financiam estas despesas, deveriam estar sujeitas a tal limite.
Por outro lado, é claro que as despesas orçamentais com os projectos referidos no n.º 4 do artigo 4.º deverão ter cobertura de financiamento dentro dos limites do financiamento do défice se se encontrarem adequadamente discriminadas no Orçamento. O recurso para tal efeito a empréstimos fora desses limites só terá sentido para cobrir despesas não adequadamente discriminadas, em violação dos preceitos constitucionais aplicáveis.
Idênticas observações, aliás, valem para o n.º 5 do artigo 4.º Entendeu-se assim no Orçamento que é possível financiar despesas não adequadamente inscritas mediante receitas não inscritas com origem em empréstimos que não contam para os limites dos empréstimos autorizados para financiamento do défice, nos termos da alínea h) do artigo 164.º da Constituição. Só despesa que não se encontra adequadamente discriminada e especificada, em violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º, conjugada com o n.º 5 do mesmo artigo da Constituição, terá de encontrar cobertura em financiamentos fora dos limites autorizados para financiar o défice.
Estarão em idêntica situação as utilizações dos empréstimos já contratados a que se refere o n.º 7 do artigo 4.º, na exacta medida em que financiem despesa orçamental fora dos limites estabelecidos no n.º 1.
De outra banda, é de observar que os n.os 2 e 3 do artigo 20.º se referem a despesas não discriminadas no Orçamento, a financiar, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo 20.º, pelo recurso a autorização para contrair dívida interna, acrescendo ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º E idêntica situação se observa quanto ao n.º 4 do artigo 20.º e) Normas do artigo 19.º, da inscrição do capítulo 51 do Ministério das Finanças, constante do mapa II, a que se refere a alínea a) do artigo 1.º, e da inscrição em «Despesas de capital», código 71 «Outras despesas de capital», no mapa III, a que também se refere a alínea a) do artigo 1.º, por violação dos artigos 108.º, n.os 1, alínea a), 3, 5 e 6, e 164.º, alínea g), da CRP, argumentando em síntese:
A dotação concorrencial não é uma dotação de despesa. Por isso, não poderia nuncar ser inscrita nos mapas de despesas, designadamente no mapa II que, nos termos da norma II da alínea A) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei 40/83, é integrado exclusivamente por despesas. Por isso, a sua inscrição, sob forma de um número negativo (-33000000 de contos), no mapa II, no capítulo 51 do orçamento de despesas do Ministério das Finanças, vem alterar e adulterar o sentido global desse mapa, designadamente quanto ao valor real das despesas inscritas no Orçamento e à sua correspondência com as receitas previstas no mapa I. Daí resulta a violação directa do artigo 108.º da CRP.
A realidade insofismável é que, com a inclusão no mapa II daquele número negativo, procurou-se equilibrar artificialmente o Orçamento. Ora, este modo de dar satisfação ao disposto no n.º 6 do artigo 108.º da CRP é, em absoluto, inadmissível.
A manipulação algébrica representada pela chamada dotação concorrencial é gritantemente óbvia no mapa III, onde a sua inscrição não pode deixar de estar ferida de inconstitucionalidade.
Com efeito, sabe-se que as «Outras despesas de capital», código 71, inscritas no Orçamento para 1988, somam 23182358 contos. Esta inscrição está em linha com a correspondente inscrição feita no mapa III do Orçamento para 1987, a qual atingiu 20200000 contos. Porém, no mapa III do Orçamento para 1988 aparece um total de «Outras despesas de capital» de -10182359 contos.
Esta inscrição é totalmente absurda, no contexto de um orçamento de despesa. O mais longe que se poderia ir, de um ponto de vista meramente lógico, seria anular toda e qualquer despesa, a que corresponderia inscrição igual a zero. A ultrapassagem desse limite é uma pura manipulação sem correspondência com qualquer conceito legítimo de despesa orçamental, destinada a forçar algebricamente a igualdade das receitas e despesas.
Além disto, importa notar que, enquanto no artigo 19.º, n.º 3, se prevê, pelo menos em princípio, a incidência da dotação concorrencial, em partes iguais, sobre o PIDDAC, por um lado, e sobre todas as outras despesas, por outro, segundo o mapa III ela virá a recair integralmente, e em definitivo, sobre «Despesas de capital», código 71 «Outras despesas de capital», até ao absurdo da inscrição do número negativo de - 10182358 contos.
Quanto à real natureza da dotação concorrencial, é de referir que, na terminologia orçamental, consagrada legalmente, ela é, na realidade, uma verdadeira e própria supressão de verbas.
Melhor, a chamada dotação concorrencial é uma suspensão de verbas que, como reza o n.º 1 do artigo 19.º, consagra o princípio de que as despesas do Orçamento do Estado devem concorrer entre si para terem efectivo cabimento orçamental, com a correlativa não execução ou redução de actividades incluídas em despesas de funcionamento ou com prejuízo de programas e projectos do PIDDAC menos competitivos ou de menor prioridade. Isto, necessariamente, consequência a violação de vários normativos constitucionais.
Assim, a possibilidade de o Governo suprimir despesas nos termos anteriores, e segundo o seu livre arbítrio, viola a alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da CRP, na medida em que toda a discriminação de despesas inscritas no Orçamento fica posta em causa.
Por esta via, poderão algumas despesas ser só ligeiramente atingidas, mas quanto a outras poder-se-á ir até à total eliminação, uma vez que inexistem limites à faculdade governamental de supressão. Isto é, a Assembleia da República acabou por não votar o verdadeiro orçamento das despesas. Votou apenas uma base, um projecto inicial, a partir do qual o Governo pode livremente trabalhar, a fim de determinar as verbas que terão «efectivo cabimento orçamental» na significativa expressão do n.º 1 do artigo 19.º Por outras palavras, a competência para aprovação das verbas com efectivo cabimento orçamental ficou a caber em última instância ao Governo, e não à Assembleia da República, em contraste, aliás, com o determinado na CRP.
Deste modo, o sistema que se pretendeu consagrar no n.º 1 do artigo 19.º não só viola a alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º como também a norma atributiva de competências da alínea g) do artigo 164.º, em conjugação com a alínea b) do artigo 202.º da CRP.
A outro nível, o artigo 19.º pretende ainda dar cobertura a alterações orçamentais não admitidas pela CRP.
De facto, a dotação concorrencial consagra o princípio de supressão de verbas por concorrência de dotações da mais variada natureza, dentro ou entre capítulos, sem quaisquer limitações, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo 19.º O n.º 2 do artigo 19.º, por seu lado, estabelece que tal princípio deve ser aplicado, pressupondo uma afectação mais eficiente de recursos e uma selecção criteriosa dos programas, projectos e actividades, dando prioridade às despesas mais essenciais, bem como às despesas com comparticipações asseguradas pelas Comunidades Europeias.
E o n.º 3 do artigo 19.º acrescenta que, para efeitos do n.º 2, a aplicação da dotação concorrencial começará por incidir, em partes iguais, sobre o PIDDAC, por um lado, e sobre todas as outras despesas, por outro.
Estas disposições configuram a possibilidade de o Governo proceder a alterações orçamentais em infracção ao disposto no n.º 3 do artigo 108.º da CRP, na justa medida em que o Orçamento deve ser votado nos termos da lei, lei essa que expressamente inibe o Governo de realizar tais alterações (v.
artigo 20.º, n.º 2, da Lei 40/83).
Alterações do nível permitido pela técnica da dotação concorrencial (com supressão de dotações entre capítulos) só podem ser levadas a cabo por lei da Assembleia da República, como resulta do disposto no artigo 164.º, alínea g), da CRP.
A introdução da figura da dotação concorrencial é, enfim, claramente inconstitucional, e dela resulta um verdadeiro e próprio desapossamento da Assembleia da República de uma competência que lhe é constitucionalmente conferida, a de aprovar o Orçamento do Estado.
Nestes termos, o artigo 19.º não só viola o n.º 3 do artigo 108.º da CRP como também viola a alínea g) do artigo 164.º da CRP, por infracção do n.º 2 do artigo 20.º da Lei 40/83.
f) Norma do artigo 22, n.º 1, alínea c), por violação do artigo 108.º, n.º 5, da CRP, argumentando em síntese:
O artigo 22.º, n.º 1, alínea c), ao estabelecer que o Governo é autorizado a efectuar as transferências de verbas de pessoal justificadas pela mobilidade e reafectação de recursos humanos e seu racional aproveitamento ou pela antecipação de aposentação, independentemente da classificação funcional e orgânica, viola directamente o artigo 108.º, n.º 5, da CRP, que impõe que o Orçamento especifique as despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional, e sendo até por isso que, nos termos do artigo 20.º, n.º 2, da Lei 40/83, é expressamente atribuída à Assembleia da República competência para efectuar alterações daquele nível.
g) Norma do artigo 36.º, n.º 4, por violação do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP.
É doutrina pacífica que o Orçamento do Estado é um orçamento de gerência.
Ora, o n.º 4 do artigo 36.º, ao permitir que receitas do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP) liquidadas em 1988 e 1989 sejam contabilizadas, respectivamente, como receitas de 1987 e 1988, em oposição àquela concepção de Orçamento, viola o artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP.
h) Norma do artigo 15.º, n.º 4, na medida em que remete para resolução do Conselho de Ministros a definição dos termos da autorização de aposentação para certo pessoal da Administração Pública, por violação do artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
O Governo pretende obter autorização para definir, por resolução do Conselho de Ministros, um regime de aposentação por vontade própria, independentemente de apresentação a junta médica, para o pessoal considerado subutilizado e não susceptível de reafectação.
Trata-se de matéria a desenvolver mediante autorização legislativa a conceder nos termos do n.º 2 do artigo 168.º da CRP.
Sendo assim, e face a este preceito, o disposto no n.º 4 do artigo 15.º terá de ser considerado inconstitucional.
4 - Notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio o Presidente da Assembleia da República a oferecer o merecimento dos autos e, do mesmo passo, a fazer juntar parecer da Auditoria Jurídica da Assembleia da República, no qual, e em resumo, se sustenta o seguinte:
Apesar de a primeira revisão constitucional ter operado significativas mudanças na estruturação do Orçamento do Estado, com regresso, designadamente, a uma estrutura monista ou unitária, já vigente de 1821 a 1933, o certo é que se manteve um certo laconismo em matéria de regras orçamentais, em contraste, aliás, com o que sucedia com a Constituição de 1933.
Ora, é muito difícil, para não dizer impossível, demonstrar perante um texto constitucional bastante abstracto, vago e lacónico um qualquer conjunto de violações por via de um instrumento legal concreto, preciso e conciso como é a lei orçamental em questão.
De todo o modo, o que aqui interessa é determinar, numa linha estritamente jurídica, se houve ou não infracção à CRP, considerando, uma a uma, as questões de inconstitucionalidade levantadas pelos deputados do PS:
a) Quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 1:
Dizem tais deputados que esta norma viola os artigos 164.º, alínea g), e 202.º, alínea b), da CRP, na medida em que o primeiro comete à Assembleia da República a competência para aprovar a lei do Plano e do Orçamento do Estado e o segundo defere ao Governo a competência para fazer executar o Orçamento.
Tudo isto envolveria, bem vistas as coisas, infracção aos princípios da unidade e da universalidade do Orçamento.
Ora, sobre esta problemática cabe salientar, em primeiro lugar, que a regra da universalidade não é mencionada no texto constitucional, ao contrário do que se verifica com a regra da unidade, essa, sim, referida no n.º 5 do artigo 108.º da CRP.
Mas, mesmo quanto ao princípio da unidade, a doutrina nota, e bem, que o Orçamento do Estado não é uma figura unitária, pois que abrange duas componentes distintas: o Orçamento do Estado propriamente dito, por um lado, e o orçamento da Segurança Social, por outro (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. 1.º, p.
460).
Outros, como Sousa Franco («Sobre a Constituição financeira de 1976», in Estudos do Centro de Estudos Fiscais, vol. 1.º, pp. 90 e seguintes), preferem notar - quanto às regras da unidade e da universalidade, integrantes do princípio da plenitude orçamental - que só muito limitadamente se poderá dizer que tenham consagração na CRP.
Por outro lado, o texto constitucional não proíbe o Governo de aprovar os orçamentos dos serviços e fundos autónomos, mas apenas a existência de dotações e fundos secretos, o que é coisa inteiramente diferente.
A regra do artigo 2.º, n.º 1, deve-se ao facto de ser extraordinariamente difícil inventariar os orçamentos de todos os fundos e serviços autónomos, sendo certo, ainda, que os referidos orçamentos não poderiam deixar de ter autorização, autorização que só poderia ser a governamental.
Aliás, a própria Lei 40/83, no artigo 24.º, prevê a não integração no Orçamento de alguns orçamentos de institutos ou fundos públicos.
Por estas razões, não se descortina aqui qualquer infracção constitucional.
E, por fim, cabe notar que não se trata de passar ao Governo a competência da Assembleia da República para aprovar o Orçamento do Estado, mas sim de lhe deferir poderes para aprovar os orçamentos dos serviços e fundos autónomos. No artigo 2.º, n.º 1, contém-se, ao cabo e ao resto, uma verdadeira autorização legislativa.
b) Quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 7.º, n.º 2:
Embora o artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP afirme o princípio da discriminação das receitas e despesas do Estado, a verdade é que não se precisa aí o nível de discriminação até onde deve ir forçosamente o Orçamento, o que, desde logo, arreda a inconstitucionalidade invocada.
E em reforço disto pode acrescentar-se que, no caso, a previsão da despesa seria sempre contingente, podendo ainda acontecer vir o Governo a evitar os encargos com a dívida em 1988, o que tornaria inútil a discriminação.
c) Quanto à inconstitucionalidade das normas do artigo 20.º, n.os 2 e 3:
Também aqui, e na perspectiva dos deputados do PS, se verificaria violação do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP. Valem, pois, e a propósito, as considerações anteriormente feitas sobre a questão da discriminação orçamental.
d) Quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º, n.º 3, em conjugação com os n.os 4, 5 e 7, e da norma do artigo 20.º, n.º 5, em conjugação com os n.os 2, 3 e 4:
Neste ponto, e segundo os deputados do PS, ocorreria violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da CRP, em articulação com o n.º 5 do mesmo artigo 108.º, na medida em que naquelas normas se estabeleceria a possibilidade de cobrir despesas não discriminadas no Orçamento com receitas provenientes de empréstimos que não contam para os limites referidos nos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º Novamente se está perante o problema da discriminação orçamental e novamente vale o que atrás se disse.
E referem ainda os mesmos requerentes, a este propósito, que as receitas de empréstimos internos e externos deverão cobrir não só o défice como também as despesas referentes a passivos financeiros decorrentes da amortização da dívida externa e interna.
Ora, basta isto para se ver que tudo se passa no mundo das regras contabilísticas, muito respeitáveis, mas que não podem ser consideradas na averiguação de uma questão de inconstitucionalidade normativa.
e) Quanto à inconstitucionalidade das normas do artigo 19.º, da inscrição do capítulo 51 do Ministério das Finanças, constante do mapa II, e da inscrição em «Despesas de capital», código 71 «Outras despesas de capital»:
Parece certo que a dotação concorrencial não é uma dotação de despesa, nem uma despesa por especificar, nem ainda uma transferência de verba, mas antes uma dotação negativa, uma dotação de não despesa ou uma antidotação.
Perante este novo conceito, o raciocínio de inconstitucionalidade dos deputados do PS é rápido e fácil: não se trata de uma dotação de despesa, nem tão-pouco de receita; por isso, e como no Orçamento só podem caber as receitas e despesas do Estado, não pode nele haver lugar para a expressão de tal conceito.
Este modo de pensar peca pelo seu elementarismo. E, ao mesmo tempo, parte de um conceito clássico e rígido de Orçamento, entendido este como um mero conjunto de receitas e despesas, como envolvendo uma dicotomia absoluta entre aquelas realidades, incompatível com qualquer outra construção, e fazendo assim aplicação do velho aforismo: tertium genus non datur.
No fundo, a dotação concorrencial não passa de um puro instrumento de técnica contabilística, que, no caso, se consubstancia fundamentalmente na distribuição criteriosa da antidespesa de 33 milhões de contos por um sem-número de rubricas orçamentais, daí vindo a resultar para cada uma das rubricas a execução de despesas em montante inferior ao dos valores inscritos no Orçamento.
Por outro lado, e segundo o n.º 1 do artigo 19.º, a verba de dotação concorrencial consagra o princípio de que as despesas do Orçamento devem concorrer entre si para terem efectivo cabimento orçamental com a correlativa não execução ou redução de actividades incluídas em despesas de funcionamento, ou com prejuízo de programas e projectos do PIDDAC menos competitivos ou de menor prioridade.
Parece, assim, que nem se pretendeu acrescentar um terceiro género às receitas e despesas orçamentais, mas apenas introduzir um princípio novo em matéria de gestão de despesas, o que não é vedado nem colide com qualquer norma constitucional em matéria de Orçamento, designadamente com o artigo 108.º, n.os 3, 5 e 6, da CRP.
Aliás, como aqueles requerentes reconhecem, o referido conceito veio contribuir para a obtenção do desejável equilíbrio orçamental.
Também se entende que a dotação concorrencial não é identificável com a mera supressão de verbas.
Aliás, se fosse assim, inexistiria igualmente inconstitucionalidade, porquanto a supressão de verbas só se poderia referir ou às despesas ou às receitas, e, desse modo, não buliria com a apontada dicotomia orçamental.
De todo o modo, não parece correcto avançar-se com a ideia de que a Assembleia da República, neste esquema, não votaria o verdadeiro orçamento das despesas, votando apenas uma base, sobre a qual o Governo trabalharia.
É que quem executa o Orçamento é o Governo, que, nessa tarefa de execução, sempre poderá determinar a eliminação, eliminação à partida imprevisível, de determinadas despesas, as quais, exactamente por isso, não poderiam nunca deixar de ser incluídas no Orçamento. A isto acresce que não há na dotação concorrencial qualquer margem de discricionariedade na medida em que a própria dotação tem um valor limite.
Aduz-se, ainda, que a dotação concorrencial estaria expressamente vedada ao Governo pelo n.º 2 do artigo 20.º da Lei 40/83, na medida em que aí se dispõe que as alterações que impliquem transferência de verbas ou supressão de dotações entre capítulos, ou que sejam de natureza funcional, hão-de ser aprovadas por lei da Assembleia da República.
Este normativo, todavia, em nada concorre para a tese da inconstitucionalidade.
Em primeiro lugar, porque, sendo norma de lei ordinária, nunca poderia impor-se à lei do Orçamento, de igual valor formal. Em segundo lugar, porque, mesmo que houvesse contraditoriedade, esta última prevaleceria sempre, por ser posterior. E em terceiro lugar, porque o referido preceito é pura e simplesmente inócuo quanto à dotação concorrencial: esta, como se viu, nem é uma transferência nem uma supressão de verbas.
Com isto, e ainda que se quisesse integrar a CRP por referência à lei ordinária, ficaria de todo o modo afastada a hipótese de inconstitucionalidade por violação da alínea g) do artigo 164.º da CRP.
Também cabe salientar que foi a própria Assembleia da República que aprovou o conceito e o princípio que ele encerra, pelo que o seu desenvolvimento pelo Governo corresponde, no fundo, a uma delegação de poderes por parte do Parlamento, e perfeitamente legítima.
Para rematar este ponto, convém chamar ainda a atenção para o paralelismo existente entre esta inovação e a nova classificação de despesas orçamentais, que deixou de ser meramente económica e funcional para passar a ser feita por programas ou por projectos, geralmente a médio prazo, tal como as despesas de uma empresa privada, e dessa forma se transformando os recursos estimados em recursos disponíveis.
Ora, daqui resulta que, perante esta metodologia, a simples classificação funcional das despesas não modifica o conteúdo do Orçamento. Trata-se apenas de um mero método de exposição, de uma nova descrição do Orçamento.
f) Quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 22.º, n.º 1, alínea c):
Não se adere à tese de inconstitucionalidade propugnada pelos deputados do PS e, em contraposição a tal tese, observa-se:
Que valem aqui os anteriores considerandos sobre especificação orçamental;
Que no texto constitucional as classificações orgânica e funcional se referem a despesas, e não a transferências de verbas;
E que não releva, de qualquer forma, a injunção extraída do n.º 2 do artigo 20.º da Lei 40/83, pois que este dispositivo não tem natureza constitucional.
g) Quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 36.º, n.º 4:
Esta norma, ao contrariar a natureza de orçamento de gerência que o Orçamento do Estado deve assumir, violaria o artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP.
Sucede, porém, que a CRP não impõe que o Orçamento tenha de ser de gerência, e assim se dilui a inconstitucionalidade invocada.
h) Quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 15.º, n.º 4:
Neste caso, a inconstitucionalidade atingiria apenas o segmento normativo respeitante à definição, por resolução do Conselho de Ministros, de certos aspectos do regime de aposentação ali contemplado. Com efeito, e no dizer dos deputados do PS, tal matéria só seria susceptível de desenvolvimento por meio de autorização legislativa, a conceder nos termos do artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
No entanto, o certo é que tal autorização consta precisamente da norma em causa. Exigir, num caso destes, uma lei autónoma de autorização legislativa seria uma verdadeira redundância.
5 - A coberto do estatuído nos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), da CRP e 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, 25 deputados à Assembleia da República, membros do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português (daqui por diante identificados como «deputados do PCP») - e cujo pedido, nos termos do artigo 64.º, n.º 1, da Lei 28/82, foi ulteriormente incorporado no processo respeitante ao pedido dos deputados do PS -, vieram ainda requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas da Lei 2/88:
a) Norma do artigo 19.º, alegando-se em suma:
Por via de tal norma inscreveu-se, a título de dotação concorrencial, no orçamento do Ministério das Finanças, capítulo 51, a verba negativa de 33 milhões de contos. Trata-se, por direitas contas, de uma dotação negativa, de uma dotação de não despesa, de uma antidotação.
Este mecanismo é, desde logo, contrário ao próprio conceito de Orçamento [artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP], o qual, por definição, abrange receitas e despesas, mas não prevê um tertium genus.
Para além disto, a disposição legal impugnada veio a consagrar o princípio de que as despesas do Orçamento do Estado devem concorrer entre si para terem efectivo cabimento orçamental. Daqui resulta que a Assembleia da República passa a aprovar a inscrição de dois tipos de despesas, umas com cobertura e outras sem cobertura financeira; e mais: ignorando então em que categorias virão a inserir-se as despesas que aprova. Ao preverem-se despesas sem cabimento efectivo, confere-se ao Governo o poder de elaborar o Orçamento real, decidindo sobre o efectivo quadro de despesas em relação com as receitas disponíveis. Ora, o Parlamento é que deve acatar e cumprir, desde logo, o disposto no artigo 108.º, n.º 6, da CRP.
O artigo 19.º é, assim, um expediente contabilístico que falseia a decisão orçamental, instituindo um orçamento aberto (que é a própria negação da ideia de Orçamento) e descaracterizando gravemente a natureza do Orçamento como plano financeiro do Estado. Com ele, conferem-se ao Governo, e inconstitucionalmente face ao disposto no artigo 164.º, alínea g), da CRP, poderes que não se atêm ao domínio da mera execução orçamental, uma vez que é do seu exercício que resulta a conformação do plano financeiro do Estado.
E tudo isto com consequências adicionais graves:
a) Estabelecer uma geral sobredotação, atribuindo ao Governo o poder de a distribuir por um sem-número de rubricas orçamentais, equivale a dar-lhe uma autorização, permanente e inespecífica, para fixar as dotações efectivas onde e quando entender;
b) O expediente em questão conduz ainda a que o défice orçamental, decorrente dos montantes previstos de receitas e despesas (efectivas e não efectivas), surja viciado por subavaliação, o que viola o disposto no n.º 6 do artigo 108.º da CRP.
Com este mecanismo, aliás, atingem-se os mesmos objectivos que se alcançariam com uma autorização geral de transferência de dotações entre capítulos e funções, o que o próprio Governo reconhece ser inconstitucional;
c) Embora o n.º 3 do artigo 19.º preveja que a dotação concorrencial comece por incidir, em partes iguais, sobre o PIDDAC, por um lado, e sobre todas as outras despesas, por outro, a verdade é que o mapa III do Orçamento inscreve-a totalmente em «Outras despesas de capital», sendo certo, ainda, que nada impede, na mesma lógica, que a decisão governamental venha a incidir exclusivamente sobre despesas correntes e de funcionamento, gerando-se por esta via outra forma de distorção decisão orçamental, a qual cabe ao Parlamento.
b) Norma do artigo 20.º, enquanto prevê (n.º 2) a realização em 1988 de despesas a inscrever no Orçamento de 1989 ou (n.os 3, 4 e 6) no próprio Orçamento de 1988, mas sem que esta concretização resulte de revisão da Assembleia da República, alegando em suma:
Optou-se por inscrever montantes provisórios, a título de contrapartidas nacionais, para projectos em relação aos quais há expectativa de co-financiamentos comunitários. Tal técnica é qualificada de solução de compromisso perante o incerto.
É evidente tal incerteza, mas não é menos verdade que a via seguida contraria elementares exigências decorrentes do disposto nos artigos 108.º, n.os 1 e 6, e 164.º da CRP. É que, mesmo nos casos em que o quantum das contrapartidas nacionais é menos incerto (n.º 2 do artigo 20.º), inscreveu-se um montante de apenas 8,5 milhões de contos, autorizando-se o Governo, do mesmo passo, a reforçar as contrapartidas até ao dobro mediante operações do Tesouro, o que ofende duplamente o quadro constitucional aplicável.
Face às incertezas (reais ou supostas), o procedimento a adoptar deveria ser o de uma verdadeira, atempada e própria revisão orçamental, que permitisse inscrever os montantes definitivos. Em caso algum se justificará, porém, inscrever montantes provisórios, conferindo ao Governo o poder de a posteriori inscrever definitivamente essas verbas. Não se vislumbra mesmo como e onde poderá fazê-lo, dado o facto de, no actual quadro constitucional, emergente da revisão de 1982, ter sido suprimida a dualidade orçamental anteriormente vigente: só a Assembleia da República pode hoje inscrever dotações ou alterar o Orçamento, convertendo o provisório em definitivo.
As soluções mencionadas representam ainda um desvirtuamento gravíssimo do sentido, finalidades e limites das operações de tesouraria.
c) Norma do artigo 20.º, na parte em que autoriza (n.º 5) o Governo a contrair dívida interna para financiar operações do Tesouro destinadas a acorrer a contrapartidas cuja existência e montantes são incertos, alegando em suma:
Neste segmento normativo, são pura e simplesmente desrespeitadas regras decorrentes do artigo 164.º, alínea h), da CRP.
d) Normas dos artigos 7.º, n.º 2, e 11.º, na medida em que, pelo abuso de operações de tesouraria, conduzem à existência de uma espécie de orçamento paralelo de tesouraria, subtraído ao normal exercício dos poderes da Assembleia da República e do Tribunal de Contas, alegando em suma:
O artigo 7.º, n.º 2, implica que despesas a suportar em 1988, aliás de montante incerto, com juros de dívidas a assumir nesse ano, não sejam inscritas no Orçamento de 1988.
Esta via representa perversão manifesta do regime das operações activas do Tesouro, pois que envolve a realização de verdadeiras despesas encobertas, com falseamento do défice. Lamentavelmente, a Assembleia da República não deixou de autorizar para o futuro uma situação que em relação ao passado não se coibiu de condenar.
Regista-se, deste modo, violação do artigo 108.º da CRP e, bem assim, das disposições constitucionais que têm a ver com a definição de poderes da Assembleia da República e do Tribunal de Contas.
e) Norma do artigo 16.º, alegando em suma:
Esta norma visa redefinir profundamente o regime da função pública, em domínios tão fulcrais como o provimento, o exercício de funções, o regime de férias, faltas, licenças e duração do trabalho, o estatuto remuneratório, o estatuto do pessoal dirigente e a revisão de carreiras. Todavia, porque omite as regras atinentes ao sentido das alterações a introduzir, viola o artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
6 - Outra vez notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, veio o Presidente da Assembleia da República a oferecer o merecimento dos autos e, simultaneamente, a fazer juntar segundo parecer da Auditoria Jurídica da Assembleia da República, no qual, e em resumo, se sustenta o seguinte:
a) Quanto à norma do artigo 19.º:
A dotação concorrencial, referida no artigo 19.º, não é uma dotação de despesa, nem uma despesa por especificar, nem ainda uma transferência de verbas; é antes uma dotação negativa, uma dotação de não despesa ou uma antidotação.
Desta forma, a dotação concorrencial não passa de pura técnica contabilística, através da qual será possível desenvolver processos tendentes à redução de determinadas despesas.
É certo que pode e deve considerar-se uma novidade, mas isso não afecta a dicotomia entre receitas e despesas prevista no artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP, o que logo afasta qualquer hipótese de inconstitucionalidade.
b) Quanto à norma do artigo 20.º, n.os 2, 3, 4 e 6:
A razão de ser desta norma deriva de uma particular dificuldade de previsão de despesas, e isso mesmo foi explicado pelo Ministro das Finanças, que, a propósito, afirmou ser impossível encharcar o Orçamento para 1988 com hipotéticas verbas de contrapartidas nacionais aos fundos da Comunidade Económica Europeia (CEE).
Poderá, porventura, dizer-se, ainda, que a técnica adoptada não é a exigida por um orçamento de gerência. O certo, porém, é que a CRP não impõe que o Orçamento do Estado seja um orçamento de gerência; daí que, neste domínio, inexista qualquer inconstitucionalidade.
c) Quanto à norma do artigo 20.º, n.º 5:
Este preceito não infringe de qualquer modo a CRP. De facto, pelo artigo 20.º, n.º 5, a Assembleia da República autorizou o Governo a contrair dívida interna, e desde logo estabeleceu as condições gerais da autorização. A sua concordância com o disposto no artigo 164.º, alínea h), da CRP é, por isso, indiscutível.
d) Quanto às normas dos artigos 7.º, n.º 2, e 11.º:
A este respeito, é preciso dizer, antes de mais, que o Orçamento para 1988 não foi concebido em termos estáticos, isto é, em termos tais que qualquer alteração conjuntural houvesse de provocar uma revisão orçamental, com a morosidade e solenidade inerentes ao processo.
Optou-se antes por uma concepção dinâmica de gestão orçamental, e, dentro dessa concepção, cabalmente se explicam preceitos da espécie dos ora impugnados, os quais, precise-se, nada têm de inconstitucional. De facto, tais preceitos de modo algum darão lugar à constituição de um orçamento paralelo, quer pela minúcia com que tudo foi regulado, quer pela exuberância das autorizações concedidas ao Governo.
O que se poderá dizer é que tais preceitos escaparão ao conceito de orçamento de gerência. Mas este conceito, repete-se, não é constitucionalmente imposto ao legislador, que dele, por isso, sempre se poderá afastar.
e) Quanto à norma do artigo 16.º:
Examinando este artigo 16.º, verifica-se ser impossível afirmar que se omitem ali as regras atinentes ao sentido das alterações a introduzir no regime da função pública. Assim sendo, deve-se ter por cumprido o preceituado no artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
CAPÍTULO II
Delimitação das normas sujeitas a juízo de constitucionalidade
7 - Relativamente ao requerimento dos deputados do PS, importa reacentuar que, num primeiro momento, é formulado um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de certas normas jurídicas e que, num segundo momento, é formulado um outro pedido, similar, é certo, ao primeiro, mas não em absoluto coincidente com ele.
No entanto, como qualquer destes pedidos é devidamente especificativo, seja quanto às normas jurídicas que pretende sujeitar a controle de constitucionalidade, seja quanto às normas ou princípios constitucionais violados, não pode o Tribunal Constitucional deixar de conhecer de ambos em toda a sua extensão, a menos que se verifique, sem qualquer dúvida, que houve lapso na referência a determinada norma (artigo 51.º, n.os 1, 2, 3 e 4, da Lei 28/82).
Por outro lado, e para além destes dois pedidos dos deputados do PS, em grande parte sobreponíveis, há que considerar ainda o pedido dos deputados do PCP, que, parcelarmente embora, se situa ainda na área normativa dos dois primeiros.
Considerando, pois, e igualmente, todos os pedidos, há que passar a fazer, e por razões de método, a sua síntese, síntese enunciativa do posterior desenvolvimento do acórdão, e da qual constarão quer a listagem das normas sujeitas a juízo de constitucionalidade quer a indicação dos preceitos ou princípios constitucionais apontados pelos requerentes como violados.
Importa, porém, esclarecer um ponto. Por vezes, embora se peça a declaração de inconstitucionalidade de certas normas sem restrições, verifica-se, pelo teor da argumentação, que apenas se pretende uma declaração de inconstitucionalidade parcial das mesmas (em dado caso, e através da linha argumentativa expendida, observa-se até ter sido feita referência, por lapso, a certa norma cuja declaração de inconstitucionalidade se não pretende realmente).
Dada a grande complexidade e extensão das matérias em apreciação, tem-se por pertinente não fazer desde já uma delimitação em absoluto rigorosa das normas ou segmentos de normas a submeter a juízo de constitucionalidade.
Nesta ordem de ideias, a listagem das normas sujeitas a tal apreciação, e que de seguida irá ser feita, será apenas uma listagem aproximada, e sujeita, por isso, a reduções que, se for caso, terão lugar unicamente dentro de cada capítulo.
Também dentro de cada capítulo se poderá eventualmente conhecer de outras causas de inconstitucionalidade não expressamente invocadas pelos requerentes - isto no uso da faculdade cognitiva que o artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82 atribui ao Tribunal Constitucional.
8 - De tudo isto resulta, e no que respeita ao exame das questões de constitucionalidade propostas, o seguinte quadro, quadro apenas de princípio, correspondente à ulterior exposição de matérias:
Capítulo III: a norma do artigo 2.º, n.º 1, da Lei 2/88, face ao artigo 164.º, alínea g), em conjugação com o artigo 202.º, alínea b), face ao artigo 108.º, n.os 3 (no que respeita ao princípio da unidade e universalidade do Orçamento, desenvolvido no artigo 3.º da Lei 40/83) e 5, e face ainda aos artigos 114.º, n.º 2 (princípio da separação de poderes), e 168.º (limites das autorizações legislativas), todos da CRP;
Capítulo IV: a norma do artigo 7.º, n.º 2, da Lei 2/88, face ao artigo 108.º da CRP [muito em especial no referente à alínea a) do n.º 1 desse artigo 108.º] e face ainda a outras disposições constitucionais atinentes aos poderes da Assembleia da República e do Tribunal de Contas;
Capítulo V: as normas do artigo 20.º, n.os 2, 3, 4, 5 e 6, da Lei 2/88, face aos artigos 108.º, n.os 1 [em especial quanto à alínea a) do n.º 1] e 6, e 164.º, alínea h), ambos da CRP;
Capítulo VI: a norma do artigo 4.º, n.º 3, da Lei 2/88, em conjugação com o n.º 4, as normas do artigo 4.º, n.os 5, 6 e 7, e a norma do artigo 20.º, n.º 5, da Lei 2/88, em conjugação com os n.os 2, 3 e 4 do artigo 20.º, na medida em que nelas se estabelece a possibilidade de cobrir despesas não discriminadas no Orçamento com receitas nele não inscritas e provenientes de empréstimos que não contam para os limites definidos nos artigos 3.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, da Lei 2/88, face ao artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP, em articulação com o n.º 5 do mesmo artigo 108.º;
Capítulo VII: as normas do artigo 19.º, da inscrição do capítulo 51 do Ministério das Finanças, constante do mapa II, a que se refere a alínea a) do artigo 1.º, e da inscrição em «Despesas de capital», código 71 «Outras despesas de capital», no mapa III, a que também se refere a alínea a) do artigo 1.º, todas da Lei 2/88, face aos artigos 108.º, n.os 1, alínea a), 3, 5 e 6, e 164.º, alínea g), da CRP;
Capítulo VIII: a norma do artigo 22.º, n.º 1, alínea c), da Lei 2/88, face ao artigo 108.º, n.º 5, da CRP;
Capítulo IX: a norma do artigo 36.º, n.º 4, da Lei 2/88, face ao artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP;
Capítulo X: a norma do artigo 15.º, n.º 4, da Lei 2/88, face ao artigo 168.º, n.º 2, da CRP;
Capítulo XI: a norma do artigo 11.º da Lei 2/88, face ao artigo 108.º da CRP e face ainda a outras disposições constitucionais atinentes aos poderes da Assembleia da República e do Tribunal de Contas;
Capítulo XII: a norma do artigo 16.º da Lei 2/88, face ao artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
CAPÍTULO III
A norma do artigo 2.º, n.º 1, da Lei 2/88 face ao artigo 164.º, alínea g),
em conjugação com o artigo 202.º, alínea b), face ao artigo 108.º, n.os 3
(no que respeita ao princípio de unidade e universalidade do
Orçamento, desenvolvido no artigo 3.º da Lei 40/83) e 5, e face ainda
aos artigos 114.º, n.º 2 (princípio da separação de poderes), e 168.º
(limites das autorizações legislativas), todos da CRP.
9 - Descrevendo a estrutura interna do sector público e referindo-se em particular ao subsector administrativo, escreve, a propósito, Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, p. 143:
Na administração central deve destacar-se, desde logo, o conjunto constituído pelos serviços integrados ou «simples», subordinados ao Orçamento Geral do Estado e abrangidos pela Conta Geral do Estado.
[...] Na administração central situem-se ainda diversas entidades autónomas relativamente ao Orçamento Geral do Estado. Essas entidades podem ser, na terminologia consagrada, serviços administrativos, quando se trata de «serviços» que prestam toda a gama de utilidades materiais, para tal utilizando os meios financeiros. Designam-se por fundos autónomos quando se trata de serviços cuja actividade consiste exclusiva ou predominantemente na gestão de meios financeiros (monetários ou creditícios).
Estes serviços e fundos autónomos, que financeiramente se têm caracterizado por um certo distanciamento em relação ao Orçamento do Estado, são, de há muito, uma realidade no sector público português.
No entanto, é certo também que de há tempos a esta parte se vem pretendendo acabar com tal situação de desorçamentação, colocando os fundos e serviços autónomos sob a órbita do Orçamento estadual.
Assim, procurando cumprir tal programa, que se veio revelar inçado de dificuldades, e numa altura em que já se caminhava decididamente para a constitucionalização do regime saído da Revolução de Abril, veio o Decreto-Lei 768/75, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 1976, enumerar algumas das tarefas tidas por necessárias para renovar e tornar mais eficaz a programação e condução da actividade financeira do Estado no seu conjunto:
Conta-se lançar, durante o ano de 1976, um conjunto de iniciativas visando a melhoria da gestão financeira do Estado e a boa organização das contas públicas, revendo alguma legislação antiquada e reorganizando alguns serviços. Das tarefas mais importantes a realizar convém salientar as seguintes:
[...] b) Uniformização e revisão dos regimes orçamentais dos fundos autónomos da administração central e de outros departamentos paralelos dotados de autonomia administrativa e financeira. Integração dos orçamentos destas entidades como anexos ao Orçamento Geral do Estado, tornando possível a apresentação de um orçamento consolidado do sector público.
10 - Posteriormente, ao redefinir, ao nível mais elevado da ordem jurídica estadual, as regras por que se havia de passar a reger o Orçamento Geral do Estado, não fez a CRP, texto de 1976, qualquer alusão imediata a fundos e serviços autónomos.
Segundo tal regime - artigos 108.º, 164.º, alínea g), e 202.º, alínea b), da CRP -, o Orçamento veio a ficar dependente de um processo de elaboração algo complexo e faseado, com intervenção de órgãos distintos: o Governo, que apresentava a proposta de lei do Orçamento, a Assembleia da República, que, com alterações ou sem elas, a aprovava, e de novo o Governo, que, em consonância com a lei aprovada, elaborava então o Orçamento Geral do Estado e o fazia executar. Todavia, o facto de na CRP, texto primitivo, inexistirem regras que, de um modo ou de outro, relacionassem directamente os fundos e serviços autónomos com o Orçamento Geral do Estado (v. g.
propugnando a sua integração ou independentização, ou mesmo uma solução intermédia) contribuiu para que em tal domínio se levantassem algumas dúvidas.
11 - Fosse como fosse, o certo é que, ao ser pela primeira vez posto em acto - através da Lei 11/76, de 31 de Dezembro, que aprovou as linhas gerais do Orçamento Geral do Estado para 1977 - o preceituado no artigo 108.º da CRP, se estipulou naquela lei, e neste campo, o seguinte:
Artigo 2.º
Elaboração e revisão do OGE
1 - ....................................................................................................................2 - O Orçamento será revisto até 30 de Junho de 1977, de acordo com uma proposta de lei que o Governo apresentará à Assembleia da República até 31 de Maio, devendo, aquando dessa revisão, salvaguardar-se a sua conformidade com o Plano e dele passarem a constar em anexo os orçamentos de todos os serviços e fundos autónomos.
Artigo 3.º
Orçamentos privativos
Os serviços e fundos autónomos e os que se regem por orçamentos não incluídos no Orçamento Geral do Estado ficam autorizados, ate à revisão prevista no n.º 2 do artigo anterior, a aplicar as receitas próprias na realização das suas despesas, desde que os seus orçamentos sejam aprovados e visados pelo Governo.E em função do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 60/77, de 12 de Agosto - a lei de revisão orçamental pré-anunciada no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 11/76 -, os orçamentos privativos dos serviços e fundos autónomos deveriam passar a constar, em anexo, do Orçamento Geral do Estado, sendo autorizados a aplicar as receitas próprias na realização das suas despesas, desde que os seus orçamentos ordinários ou suplementares tivessem sido aprovados pelo Governo (artigo 3.º). No entanto, através do Decreto-Lei 334-A/77, de 12 de Agosto - que pôs em execução aquela revisão das linhas gerais do Orçamento -, o Governo não veio a dar cabal cumprimento à determinação constante do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 60/77: os quadros XIV e XV, insertos naquele Decreto-Lei 334-A/77, apesar de intitulados, respectivamente, «Orçamentos dos serviços autónomos» e «Orçamentos dos fundos autónomos», não são os orçamentos de tais serviços e fundos, mas apenas ou seus mapas-resumo.
Este esquema legal - que, como se viu, não foi plenamente acatado - veio a ser afastado no ano seguinte. Na realidade, e a este respeito, determinou-se na Lei 20/78, de 26 de Abril, que aprovou as linhas gerais do Orçamento Geral do Estado para 1978, o seguinte:
Artigo 3.º
Orçamentos privativos
1 - Os serviços e fundos autónomos são autorizados a aplicar as receitas próprias na realização das suas despesas, desde que os seus orçamentos ordinários ou suplementares sejam aprovados e visados pelo Governo.2 - O Governo enviará à Assembleia da República até 15 de Junho os orçamentos de todos os serviços e fundos autónomos.
E foi-se então para esta solução orçamental, apesar de, entretanto, haver sido publicada a Lei 64/77, de 26 de Agosto (Lei de Enquadramento do Orçamento Geral do Estado), que, com outro nível de exigência, preceituava:
No seu artigo 3.º, n.º 1, que «o Orçamento Geral do Estado é unitário e compreenderá todas as receitas e despesas da administração central do Estado, incluindo as receitas e despesas dos serviços e fundos autónomos»;
E no seu artigo 25.º, n.º 1, que «o regime financeiro dos serviços e fundos autónomos será regulado por lei especial, com base na presente lei e tendo em conta a necessidade da sua integração num ordenamento consolidado da administração central do Estado, devendo ainda o Governo proceder gradualmente a essa integração».
Regime sensivelmente similar ainda ao do artigo 3.º da Lei 20/78 foi depois adoptado no artigo 3.º da Lei 21-A/79, de 25 de Junho, que aprovou as linhas gerais do Orçamento Geral do Estado para 1979. Todavia, no ano imediato, registou-se neste ponto nova inflexão regulamentativa: o Governo, nos termos do artigo 3.º da Lei 8-A/80, de 26 de Maio, que aprovou as linhas gerais do Orçamento Geral do Estado para 1980, continuou competente para aprová-los, mas - na ausência de norma expressa em tal sentido, isto é, de norma similar à do n.º 2 do artigo 3.º da Lei 20/78 ou à do n.º 3 do artigo 3.º da Lei 21-A/79 - ficou dispensado de enviar à Assembleia da República os orçamentos dos serviços e fundos autónomos.
E foi este último regime - necessidade de aprovação pelo Governo dos orçamentos dos serviços e fundos autónomos e silêncio quanto a qualquer intervenção da Assembleia da República em tal domínio - que veio a ser seguido em anos posteriores (cf. as Leis n.os 4/81, de 24 de Abril, e 40/81, de 31 de Dezembro, que aprovaram as linhas gerais dos Orçamentos Gerais do Estado, respectivamente, para 1981 e 1982, particularmente o artigo 3.º de cada uma delas).
12 - Com a entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, e no plano da Constituição financeira, foi, por completo, alterado o sistema de repartição de competências entre o Governo e a Assembleia da República.
Segundo os actuais artigos 108.º, n.º 3, 164.º, alínea g), e 202.º, alínea b), da CRP, o Governo apresenta a proposta de Orçamento, a Assembleia da República, com modificações ou sem elas, vota-a e o Governo põe em execução o Orçamento do Estado votado. Hoje, na nossa ordem constitucional, é, pois, à Assembleia da República que compete aprovar, sob a forma de lei (artigo 169.º, n.º 2, da CRP), o próprio Orçamento.
Inovatoriamente, passou o artigo 108.º da CRP a referir-se, expressis verbis, a fundos e serviços autónomos, estipulando no seu n.º 4 que «a proposta de Orçamento é acompanhada de relatório justificativo das variações das previsões das receitas e despesas relativamente ao Orçamento anterior e ainda de relatórios sobre a dívida pública e as contas do Tesouro, bem como da situação dos fundos e serviços autónomos».
A Lei 2/83, de 18 de Fevereiro, que aprovou as linhas gerais do Orçamento do Estado para 1983 (provisório) - e numa altura em que, por força do disposto no artigo 239.º da Lei Constitucional 1/82, ainda não eram aplicáveis as novas regras constitucionais de elaboração e aprovação do Orçamento -, manteve, quanto aos fundos e serviços autónomos, o regime constante da Lei 8-A/80: exigência de aprovação, por parte do Governo, dos orçamentos dos serviços e fundos autónomos (cf. artigo 3.º dessa Lei 2/83), a par da ausência de referências, nesse campo, a qualquer acção interventora da Assembleia da República.
Entretanto havia sido publicado o Decreto-Lei 459/82, de 26 de Novembro, que, segundo o preâmbulo, procurou «reformular e resumir num único diploma a legislação geral aplicável à movimentação das receitas próprias, à organização e publicação dos orçamentos privativos e à prestação e publicidade das contas de gerência dos fundos e organismos autónomos» e que, no seu artigo 10.º, n.º 2, veio determinar que os orçamentos dos serviços e fundos autónomos haveriam de constar do Orçamento Geral do Estado sob a forma de mapas-resumo apensos ao orçamento do respectivo ministério.
E, depois disso, veio ainda a ser publicada nova lei de enquadramento orçamental, a Lei 40/83, de 13 de Dezembro, que repetiu, no referente a fundos e serviços autónomos, o preceituado nos artigos 3.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Lei 64/77, por ela revogada, (cf. os artigos 3.º, n.º 1, e 24.º, n.º 1, da Lei 40/83).
Mesmo assim, e apesar das alterações constitucionais resultantes da revisão de 1982, ao nível da praxis orçamental, a solução normativa acerca do posicionamento destes fundos e serviços continuou a ser basicamente a mesma no biénio imediato: as Leis n.os 42/83, de 31 de Dezembro, e 2-B/85, de 28 de Fevereiro, leis que aprovaram os Orçamentos do Estado, respectivamente, para 1984 e 1985 - cf., em especial, o artigo 2.º de cada uma dessas leis -, volveram a sujeitar a aplicação das receitas próprias na realização das despesas, por parte dos fundos e serviços autónomos, à prévia aprovação, pelo Governo, dos respectivos orçamentos, e, do mesmo passo, limitaram-se a fazer referências mínimas, a nível contabilístico, aos orçamentos dos fundos e serviços autónomos.
Só nos anos seguintes se registaram, neste domínio, alterações significativas:
as Leis n.os 9/86, de 30 de Abril, e 49/86, de 31 de Dezembro, que aprovaram os Orçamentos do Estado, respectivamente, para 1986 e 1987, apesar de manterem norma paralela à constante do artigo 2.º de cada uma das leis orçamentais que imediatamente as precederam, já neles incluíram em anexos aos mapas I e II referências globais, e com certo desenvolvimento, às receitas e despesas dos fundos e serviços autónomos.
Num quadro normativo similar se veio a inscrever o artigo 2.º da Lei 2/88, sujeito à epígrafe «Orçamentos privativos», e cujo n.º 1 - a norma cuja constitucionalidade está em análise no presente capítulo - dispõe o seguinte:
Os serviços e fundos autónomos não poderão aplicar as suas receitas próprias na realização das suas despesas sem que o Governo aprove os respectivos orçamentos ordinários e suplementares.
13 - Como se vem vendo, algumas das leis orçamentais precedentemente citadas estabeleceram uma clara diferenciação de competências entre o Governo e a Assembleia da República em relação com a definição da situação orçamental dos fundos e serviços autónomos (cf. artigos 2.º, n.º 2, e 3.º da Lei n.º 11/76, 3.º da Lei 60/77, 3.º da Lei 20/78 e 3.º da Lei 21-A/79); e outras, neste domínio, optaram por fazer apenas simples referência directa à competência orçamental do Executivo (cf. as Leis n.os 8-A/80, 4/81, 40/81, 2/83, 42/83, 2-B/85, 9/86 e 49/86).
Precisamente, a norma aqui em consideração, isto é, a norma do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88, dispõe apenas, nesta particular área orçamental, sobre a competência do Governo, ao qual, por via do estatuído no artigo 202.º, alínea d), da CRP, compete afinal, no exercício de funções administrativas, exercer a tutela sobre a administração autónoma. E tal norma do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88, que se dirige em exclusivo ao Governo, não se mostra, de outra banda, incompatível com um outro tipo de acção, ainda nesse campo, por parte da Assembleia da República. Ou, por outras palavras, por via daquele preceito, o Parlamento não estará impedido de definir previamente, e num plano de maior ou menos condensação, as receitas e despesas, previstas e autorizadas, dos serviços e fundos autónomos. E tanto assim é que a Assembleia da República, ao votar a Lei 2/88 (cf. artigo 1.º desta lei), não deixou de aprovar também as receitas e despesas globais desses fundos e serviços autónomos, discriminadas em termos orgânicos, e a nível correspondente ao dos capítulos, em anexos aos mapas I e II do Orçamento do Estado para 1988 (v. Diário da República, 1.ª série, n.º 68, de 22 de Março de 1988, onde tais anexos à Lei 2/88 vieram a ser publicados).
Sendo as coisas assim, envolverá a norma do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88 - tal como é sustentado no pedido dos deputados do PS - não só uma ilícita desorçamentação das receitas próprias e das correspondentes despesas dos fundos e serviços autónomos como uma ilegítima delegação de poderes da Assembleia da República no Governo? 14 - Em 1982 [Diário da Assembleia da República, 2.ª série, suplemento ao n.º 127, de 21 de Julho de 1982, p. 2284 (6)], no decurso dos trabalhos desenvolvidos ao nível da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC), foi apresentada pelo Partido Socialista (PS), pela Associação Social-Democrata Independente (ASDI) e pela União de Esquerda para a Democracia Socialista (UEDS) a seguinte proposta de alteração do artigo 108.º da CRP:
Artigo 108.º
Orçamento
1 - O Orçamento Geral do Estado, a votar anualmente pela Assembleia da República, sob proposta do Governo e nos termos da lei de enquadramento do Orçamento, conterá:a) A discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos;
b) O orçamento da Segurança Social;
c) O orçamento consolidado do conjunto do sector público administrativo.
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Tal proposta, que comportava elementos de novidade na definição do conteúdo do Orçamento do Estado, foi depois retirada, e ao Plenário da Assembleia da República veio a ser apresentado, como proposta da CERC, o texto do actual artigo 108.º, que resultou assim da aprovação desta última proposta (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 130, de 30 de Julho de 1982, pp. 5484 e 5485).
Nessa parte dispõe, pois, hoje este preceito constitucional:
Artigo 108.º
Orçamento
1 - O Orçamento conterá:a) A discriminação das receitas e despesas do Estado;
b) O orçamento da Segurança Social.
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15 - Sobre a actual dimensão do conceito de Orçamento se pronunciou Teixeira Ribeiro, «As alterações à Constituição no domínio das finanças públicas», in Boletim de Ciências Económicas, suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito, vol. XXVI, p. 241:
Segundo o primitivo artigo 108.º, havia dois orçamentos: o Orçamento Geral do Estado, que compreendia as receitas e as despesas da administração central, e o orçamento da Segurança Social; agora, passa a haver apenas um orçamento, a que se chama Orçamento do Estado e que engloba os dois orçamentos anteriores. Como estes são ambos do Estado, a mudança de nome procura traduzir a ampliação do conteúdo.
O Orçamento com esta nova dimensão - já um pouco atrás isto foi salientado - é proposto pelo Executivo à Assembleia da República, que, em termos de absoluta indelegabilidade, o aprova com modificações ou sem elas, cabendo depois ao Governo dar-lhe execução [artigos 108.º, n.º 3, 164.º, alínea g), e 202.º, alínea b), da CRP].
E este Orçamento há-de obedecer a diversos parâmetros constitucionalmente definidos, há-de cumprir, entre outras, as regras da unidade e da universalidade, que alguma doutrina considera como sub-regras da regra da plenitude.
Pelo que respeita à regra da unidade, observa-se que o n.º 5 do artigo 108.º da CRP expressamente afirma que o Orçamento é unitário, isto é, que «as receitas e as despesas do Estado devem ser inscritas em um único documento» (Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, p. 44).
«A regra da unidade orçamental - observa, a propósito, Daniel Strasser, As Finanças da Europa, p. 30, nota 4, e numa altura em que não se verificara ainda a adesão de Portugal e Espanha - é aplicada por todos os Estados da Comunidade, com excepção do Reino Unido e da Irlanda, que dispõem de duas leis de finanças: uma para as receitas e outra referente às despesas, não estando grande parte, quer de umas, quer de outras, sujeita a autorização do Parlamento. Em quatro Estados, a regra encontra-se inscrita na Constituição:
Bélgica, República Federal da Alemanha, Luxemburgo e Países Baixos.» E apesar de a CRP, quanto à regra da universalidade, não ser já tão positiva quanto o foi para a regra da unidade, parece legítimo, mesmo assim, deduzi-la do artigo 108.º, n.º 1. É que este preceito, obrigando à discriminação no Orçamento das receitas e despesas do Estado, por certo se referirá a todas as receitas e todas as despesas (neste sentido, Sousa Franco, ob. cit., p. 322, e «A revisão da Constituição económica», in Revista da Ordem dos Advogados, ano 42.º, Setembro-Dezembro de 1982, p. 622).
Por outro lado, em pura teoria, e citando Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, p. 55, é perfeitamente exacto dizer-se que, «havendo autonomia financeira, o orçamento das receitas e despesas do respectivo serviço ou exploração tanto pode figurar no mesmo documento em que figuram as demais receitas e despesas públicas como em documento à parte do Orçamento Geral do Estado».
Qual será, porém, a posição neste domínio da nossa lei fundamental? A resposta, baseada essencialmente no ingenium do artigo 108.º da CRP, que objectivamente se decantou através de diversas e variadas vicissitudes históricas precedentemente assinaladas, há-de ser, em síntese, a seguinte: a CRP não exige a integração contabilística - isto é, ao nível dos mapas que informam o Orçamento do Estado - dos orçamentos dos fundos e serviços autónomos; antes se basta com a simples expressão desagregada - ou seja, em anexos aos mapas do Orçamento do Estado - daqueles orçamentos sectoriais, que, por essa forma embora, sempre haverão de estar sujeitos à regra da unidade orçamental [cf. Teixeira Ribeiro, Os Poderes Orçamentais da Assembleia da República, separata do Boletim de Ciências Económicas, pp.
10 e 11, que a propósito, e significativamente, escreve:
Também consta da Constituição, e agora de forma explícita, a regra da unidade: o Orçamento é unitário (artigo 108.º, n.º 5). Não pode, pois, haver mais do que um Orçamento do Estado, sob pena de se praticar uma inconstitucionalidade. É certo que a Constituição não diz o que deve entender-se por Estado e, portanto, quais as receitas e despesas são as dele.
Mas este é um caso em que parece admissível recorrer-se a uma lei ordinária, como é a Lei do Enquadramento, para interpretar a Constituição. Ora, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, dessa lei, deve compreender-se no Estado tanto a administração central, quer directa ou indirecta, como a Segurança Social.
São, pois, as receitas e despesas de toda a administração central e da Segurança Social que não podem figurar em mais que um Orçamento.] Todavia, a norma do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88 nada tem a ver com tal princípio, o princípio da unidade, e mesmo com o princípio da universalidade orçamental, pois que se limita a definir uma condição prévia à realização de despesas por parte dos fundos e serviços autónomos, a de que, sem que o Governo aprove os seus orçamentos, com o exigível desenvolvimento, tais entidades públicas não poderão nunca aplicar as receitas próprias na realização das despesas correspondentes, e de modo algum se pronuncia sobre a inclusão ou não no Orçamento do Estado, em termos condensados ou não, desses orçamentos sectoriais. Por isso mesmo, sempre se haverá de concluir que a norma do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88 (ela pode efectivamente ser lida, já se demonstrou, como não proibindo que os orçamentos dos fundos e serviços autónomos, aprovados pelo Governo, sejam previamente deduzidos dos grandes tópicos orçamentais, porventura parlamentarmente prefixados aquando da aprovação do Orçamento do Estado) não conflitua com o artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP, donde decorrem as regras da universalidade e da unidade.
Tão-pouco se mostram violados os artigos 164.º, alínea g), e 202.º, alínea b), da CRP, que repartem certas competências orçamentais entre a Assembleia da República e o Governo. E isto desde logo porque, dentro da interpretação que se vem defendendo no n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88, a atribuição de competências que esta norma faz em favor do Executivo se mostra perfeitamente conforme com a competência tutelar que o artigo 202.º, alínea d), da CRP expressamente lhe reconhece, sendo certo, por outro lado, que tal norma em nada interfere com a competência própria do Parlamento, por aquele artigo 164.º, alínea g), expressamente afirmada.
16 - Resta por fim apurar se regista aqui, e de qualquer modo, infracção ao disposto nos artigos 114.º, n.º 2, e 168.º, n.º 2, da CRP.
Reza o n.º 2 do artigo 114.º que «nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei»; e o n.º 2 do artigo 168.º que «as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada».
Mostrou-se anteriormente que o n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88 não atribui ao Governo poderes orçamentais que constitucionalmente estivessem reservados ao Parlamento, pelo que, logo por isso, é de afastar a violação do n.º 2 do artigo 114.º da CRP.
Também idêntica postura é de assumir em relação a uma eventual infracção, por parte da norma em causa, do n.º 2 do artigo 168.º da CRP. É que esta norma só poderia ter sido infringida se no n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88 houvesse sido concedida ao Governo uma qualquer autorização legislativa, coisa que, na realidade, não sucedeu.
17 - Assim, e analisado aquele preceito de vários ângulos, sempre se haverá de concluir que o n.º 1 do artigo 2.º da Lei 2/88 se não cruza ilegitimamente com a CRP. Isto é, quanto a tal norma, não se verifica qualquer das múltiplas inconstitucionalidades que no seu requerimento os deputados do PS lhe assacaram.
CAPÍTULO IV
A norma do artigo 7.º, n.º 2, da Lei 2/88 face ao artigo 108.º da CRP
[muito em especial no referente à alínea a) do n.º 1 desse artigo 108.º] e
face ainda a outras disposições constitucionais atinentes à definição dos
poderes da Assembleia da República e do Tribunal de Contas.
18 - É o seguinte o teor do artigo 7.º da Lei 2/88:
Artigo 7.º
Dívida de serviços extintos e descolonização
1 - O Governo fica autorizado a emitir empréstimos internos ou externos a prazo superior a um ano, até ao limite de 260 milhões de contos, que acresce aos limites fixados nos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º, para fazer face à eventual execução de contratos de garantia ou ao cumprimento de outras obrigações assumidas por serviços e fundos autónomos extintos, ou a extinguir em 1988, e ainda à regularização de situações decorrentes da descolonização que afectam o património de entidades do sector público.
2 - Os encargos com os empréstimos a que se refere o número anterior, a suportar eventualmente ainda em 1988, incluir-se-ão no montante referido no mesmo número.
Por via do disposto nos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º da Lei 2/88, e em ordem a fazer face ao défice orçamental, isto é, ao excesso das despesas sobre as receitas não resultantes de operações de crédito passivas, e que se prevê que seja de 471 milhões de contos, ficou o Governo autorizado a contrair empréstimos internos e externos até perfazer nessas duas áreas acréscimos de endividamento respectivamente de 429 milhões de contos e de 300 milhões de dólares americanos, equivalentes, estes últimos - v. relatório da subcomissão eventual ad hoc criada pela Comissão Parlamentar de Economia, Finanças e Plano (CPEFP), Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 31, de 16 de Dezembro de 1987, p. 732 -, ao câmbio projectado de 150$00 por dólar, a 45 milhões de contos.
Fora desses limites, para as finalidades que especifica, e que em nada têm a ver com a compensação do défice orçamental, no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 2/88 autorizou ainda o Governo a emitir empréstimos internos ou externos a prazo superior a um ano, até ao limite de 260 milhões de contos. E o n.º 2 do mesmo artigo 7.º - a norma cuja constitucionalidade ora se investiga - precisou que os encargos com tais empréstimos, a suportar eventualmente ainda em 1988, se incluiriam no montante referido no n.º 1 desse artigo 7.º Face a esse n.º 2 do artigo 7.º - de linguística algo confusa - ocorre, pois, perguntar: qual a significação de tal fórmula normativa? Que se quer aí dizer quando se prescreve que uma despesa (encargos com empréstimos) se inclui numa receita (os próprios empréstimos)? A esta interrogação, duplamente enunciada, só é possível responder uma vez considerada a norma no contexto muito particular em que se insere.
Os empréstimos referidos no n.º 1 do artigo 7.º, de acordo com o que aí se preceitua, são uma receita «destinada» a fazer face ao pagamento de determinadas despesas: despesas com o cumprimento de obrigações assumidas por certos serviços e fundos autónomos e despesas com a regularização de determinadas situações decorrentes da descolonização. No relatório da proposta de lei 14/V, proposta de orçamento do Estado para 1988 [Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 23, suplemento, de 18 de Novembro de 1987, p. 462-(4)], fazia-se, aliás, uma discriminação mais pormenorizada da «destinação» daqueles empréstimos, salientando-se, a propósito, o seguinte:
A variação dos saldos do financiamento ao SPA será, porém, superior ao montante das suas necessidades efectivas. Tal facto deve-se à ocorrência de novas operações de regularização de dívidas de outros entes públicos, que o Tesouro assumirá. Além disso, ter-se-á de acrescentar ao valor acima referido o financiamento das operações do Tesouro destinadas ao sector produtivo, incluindo-se nestas as operações activas e as relativas a comparticipações concorrentes com financiamentos comunitários.
O montante de dívidas a regularizar em 1988 será ainda muito elevado, mas o processo caminhará finalmente para o seu esgotamento. A estimativa presente do montante global da dívida a assumir pelo Tesouro em 1988 é da ordem dos 260 milhões de contos, assim distribuída:
Milhões de contos JNPP, JNF, JNV e IAPO ... 90 FFH ... 60 Crédito agrícola de emergência ... 20 «Atrasados» da descolonização ... 12 Dívida do Fundo de Abastecimento à EPAC ... 78 ... 260 Note-se, porém, que não há, por este motivo, qualquer criação de crédito novo.
Trata-se ou de transferências de titulação da dívida dentro do SPA ou da assumpção por este sector de dívidas antes tituladas por entidades do sector produtivo ou seja, está-se perante uma simples reafectação entre agentes de um saldo de crédito já existente.
19 - Por conseguinte, e segundo se deduz do n.º 1 do artigo 7.º da Lei 2/88 - em boa parte iluminado pelo trecho do relatório da proposta de lei 14/V, acabado de transcrever -, com os 260 milhões de contos (a serem obtidos através de empréstimos internos ou externos) proceder-se-ia à liquidação das dívidas ali enunciadas.
Todavia, o n.º 2 do mesmo artigo 7.º vem consentir - esse o seu verdadeiro sentido - um desvio a tal regra, vem, em suma, permitir que, eventualmente ainda em 1988, o quantum daqueles empréstimos seja parcialmente utilizado na satisfação de encargos assumidos com os próprios empréstimos, o que necessariamente acarretará, a verificar-se, uma redução, possivelmente rateada, das despesas previstas no n.º 1 de tal artigo. Essa, sem dúvida, e neste contexto, a significação da determinação de inclusão dos encargos com os empréstimos no montante dos próprios empréstimos.
Esta postura hermenêutica está, aliás, de acordo com os esclarecimentos a propósito prestados, na CPEFP, pelo Ministro das Finanças e pelo Secretário de Estado do Tesouro, de cujas intervenções se transcrevem, por mais elucidativas, as seguintes passagens [Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 35, pp. 704-(83) e 704-(84)]:
Segundo: no artigo 5.º [da proposta de lei 14/V, e que veio a corresponder ao artigo 7.º da Lei 2/88] fala-se em 260 milhões de contos, não se fala, por exemplo, em 250 milhões de contos, precisamente porque no n.º 2 se incluem, já aí, juros que são formados em 1988. De resto, não temos dúvidas nenhumas, Srs. Deputados, em emitir dívida para regularizar estas dívidas dos fundos e serviços autónomos extintos, de tal modo que o primeiro vencimento de juros ocorra em 1989, com um período atípico de juros - os juros são semestrais, mas o primeiro vencimento ocorre passados oito ou nove meses.
Não temos dificuldade técnica nenhuma nisto, pelo que o n.º 2 aparece apenas para justificar por que e que no n.º 1 estão 260 milhões de contos e não 250, por exemplo. Se o Sr. Deputado somar as dívidas que estão por regularizar, certamente não chega a 260 milhões de contos - só chega aí imputando também os juros produzidos em 1988 -, e de resto, Sr. Deputado, não precisamos do n.º 2 para nada porque, repito, o primeiro vencimento de juros pode ser sempre e vai ser posto - é isso que está em causa, ou antes, é isso que decorre do artigo 5.º, n.º 1 - em 1989. [Ministro das Finanças.] Muito rapidamente, e começando pela última questão: a estimativa, porque isto são estimativas, repito, é que, desses 260, 10 possam ser para juros. É a estimativa, repito; pode ser 0. [Secretário de Estado do Tesouro.] O Orçamento do Estado para 1988 foi ulteriormente aprovado sem que, neste ponto, se tivesse verificado qualquer alteração à proposta governamental: o artigo 7.º da Lei 2/88 corresponde, ipsis verbis, ao artigo 5.º da proposta de lei 14/V.
Nestas circunstâncias, a norma do n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88, cujo sentido e alcance se acabou de precisar, violará, pois, e atenta a sua particular dimensão significativa, a CRP, tal como é sustentado pelos deputados do PS e do PCP? 20 - No Orçamento do Estado, como documento jurídico-contabilístico da gestão financeira estadual, destacam-se duas vertentes: a da previsão e a da autorização. A este mesmo respeito, nota Brás Teixeira, Introdução ao Direito Financeiro, p. 33:
Dois são, assim, os elementos que definem a essência do Orçamento: por um lado, o tratar-se de uma previsão, temporalmente definida, de um conjunto de receitas e de despesas, por outro, a autorização para que as primeiras sejam cobradas e as segundas realizadas.
Estes dois distintos elementos estão claramente presentes na definição que se continha no velho Regulamento da Contabilidade Pública de 31 de Agosto de 1881, hoje ainda parcialmente vigente, em cujo artigo 19.º se afirmava que «o Orçamento Geral do Estado é o documento onde são previstas e computadas as receitas e as despesas anuais, competentemente autorizadas».
A lei através da qual a Assembleia da República, nos termos dos artigos 164.º, alínea g), e 169.º, n.º 2, da CRP, aprova anualmente o Orçamento do Estado é, assim, uma lei de autorização para que as receitas e despesas nele previstas sejam respectivamente cobradas e realizadas.
Sustentam os deputados do PS e do PCP que a despesa de encargos com empréstimos referida no n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 não está, todavia, inscrita no Orçamento do Estado para 1988, pelo que tal despesa, embora consentida pelo n.º 2 desse artigo 7.º, não se poderia considerar, ao nível orçamental, como verdadeiramente prevista e autorizada. Desse modo, e nesse ponto, a Lei 2/88, permitindo uma despesa que não se encontrava inscrita nos mapas orçamentais, estaria a violar a regra da universalidade, destilável, como se viu no capítulo anterior, do artigo 108.º n.º 1, alínea a), da CRP.
Não se contesta agora a valência da regra da universalidade em relação a uma despesa dessa espécie (despesa do próprio Estado com encargos de empréstimos por ele mesmo contraídos). Tratar-se-ia, assim, e indiscutivelmente, de despesa que, segundo aquela regra - e por mais estrita que tenha sido a conceitualização constitucional da sinopse anual, previsiva e autorizativa, das receitas e despesas públicas -, sempre haveria de ser incluída no Orçamento do Estado para 1988.
Será exacto, no entanto, o pressuposto de que partem os deputados do PS e do PCP? Isto é, será exacto que os encargos com os empréstimos referidos no n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 não foram, na verdade, inscritos no Orçamento do Estado para 1988? 21 - É certo que o Ministro das Finanças e o Secretário de Estado do Tesouro, através das intervenções na CPEFP atrás transcritas, talvez tenham sugerido que tal despesa não fora incluída nos mapas de despesas que informaram a proposta de lei 14/V. E é certo, ainda, que a Assembleia da República aprovou a proposta orçamental do Executivo sem lhe haver introduzido, nesse passo, quaisquer alterações.
Antes, porém, de dar resposta àquela interrogação convém deixar uma nota ainda sobre a questão de saber se no n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 se determina uma verdadeira e própria consignação da receita dos empréstimos de 260 milhões de contos referidos no n.º 1 do mesmo artigo à cobertura, entre outras, da despesa dos juros eventualmente vencidos em 1988.
Sobre esta questão, a solução que se tem por correcta é a de que no n.º 2 do artigo 7.º - até por ausência de uma menção expressa, como é exigido pelo artigo 6.º, n.º 2, da Lei 40/83 para as excepções à regra da não consignação - se procura justificar politicamente a contracção de empréstimos de 260 e não apenas de 250 milhões de contos: essa diferença para mais dever-se-ia à consideração de que os juros de tais empréstimos que eventualmente se vencessem ainda em 1988 somariam precisamente 10 milhões de contos.
No n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 explicita-se, pois, uma justificação para parte da receita que vai ser obtida através das operações de crédito passivas mencionadas no n.º 1 do mesmo artigo, não se determina, de modo algum, a afectação exclusiva daquela parte da receita à cobertura da despesa com os juros porventura vencidos em 1988. Há apenas, e quando muito, uma «destinação» de princípio daquela receita a esta despesa.
Dito isto, voltando a considerar a interrogação que se deixara em suspenso, e tendo muito particularmente em conta que no n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 se não estabeleceu, em boa verdade, qualquer desvio à regra da não consignação do artigo 6.º, n.º 1, da Lei 40/83, dá-se desde já, e decididamente, resposta positiva a tal interrogação, isto é, responde-se, e sem ambiguidades, que a referenciada despesa de juros é susceptível de ser situada em determinada dotação orçamental.
De facto, existe um crédito orçamental referenciado no mapa III, em «Despesas correntes», n.os 32 a 37, juros, no montante de 476688062, onde os encargos com os empréstimos referidos no n.º 1 do artigo 7.º da Lei 2/88, encargos de juros vencidos no decurso do presente ano, têm efectiva previsão (esses juros, vê-se dos esclarecimentos prestados pelo Ministro das Finanças e pelo Secretário de Estado do Tesouro, na CPEFP, e noutro lugar transcritos, poderiam ser, no máximo, da ordem dos 10 milhões de contos). E esta conclusão parece tanto mais justificável quanto é certo que a subcomissão ad hoc criada pela CPEFP, no relatório anteriormente referido, sublinha que a dotação para a rubrica de juros deverá estar sobrestimada (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 31, de 16 de Dezembro de 1987, p. 727).
22 - Não sendo, pois, exacto o pressuposto de que os deputados do PS e do PCP haviam partido - de que a despesa de juros do n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 não estava prevista e autorizada no Orçamento do Estado para 1988 -, forçoso é concluir-se que não se regista infracção à regra da universalidade, constitucionalmente reconhecida. Ou, por outras palavras, não se mostra quebrada a rede que logicamente deve ligar, por via da regra da universalidade, e em princípio, os preceitos da lei orçamental que permitem despesas e o próprio Orçamento, onde elas têm forçosamente de estar inscritas para que se possam considerar, do ponto de vista constitucional, como verdadeiramente previstas e autorizadas.
A ligação entre esses dois nós da rede normativa menteve-se incólume, pelo que, não havendo, como se viu, infracção à regra da universalidade, não se observa afinal, a este nível, qualquer inconstitucionalidade.
23 - Esta conclusão consequencia, por sua vez, que inevitavelmente se conclua, ainda, que não foram, de maneira alguma, violados quaisquer outros preceitos constitucionais atinentes à definição dos poderes da Assembleia da República e do Tribunal de Contas, preceitos, aliás, que os deputados do PCP - os únicos que se referem a estas eventuais inconstitucionalidades - não identificaram cabalmente. Na realidade, se no lugar em análise o Orçamento do Estado para 1988 não desrespeitou a regra da universalidade, a única que fora posta em causa, então impossível é dizer-se que, nessa parte, a Assembleia da República não exerceu plenamente a competência orçamental que o artigo 164.º, alínea g), da CRP lhe assinala ou que ficou prejudicado o exercício da competência fiscalizadora que, no domínio das finanças públicas, o artigo 219.º da CRP atribui ao Tribunal de Contas.
Em síntese final, qualquer que seja a perspectiva adoptada, a norma do n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 não ofende a CRP.
CAPÍTULO V
As normas do artigo 20.º, n.os 2, 3, 4, 5 e 6, da Lei 2/88 face aos artigos
108.º, n.os 1 [em especial quanto à alínea a) do n.º 1] e 6, e 164.º, alínea
h), ambos da CRP.
24 - Dispõe o artigo 20.º, ora em causa no presente capítulo, o seguinte:
Artigo 20.º
Reflexos da situação orçamental da CEE
1 - Do total de projectos e programas que figuram no PIDDAC - Apoios ao sector produtivo, inscreve-se no Orçamento do Estado para 1988 a totalidade da despesa relativa aos projectos e programas que não tenham prevista qualquer comparticipação das Comunidades Europeias, no montante de 9,25 milhões de contos.
2 - Os restantes programas e projectos que figuram no PIDDAC - Apoios ao sector produtivo e que tenham assegurados financiamentos de fundos comunitários serão inscritos no capítulo 50 do Orçamento do Estado pelo montante de 8,5 milhões de contos, a título de contrapartidas nacionais, podendo estas, todavia, ser reforçadas mediante operações do Tesouro, regularizáveis no Orçamento do Estado para 1989, até ao dobro daquele montante.
3 - Além do disposto no n.º 2, os recursos adicionais que a CEE ponha à disposição de Portugal em 1988 no âmbito do Programa Especial de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa (PEDIP) poderão ser movimentados por operações do Tesouro, quer na parte respeitante às eventuais contrapartidas nacionais, quer relativamente aos adiantamentos que haja de efectuar por conta daqueles recursos.
4 - Fica também o Governo autorizado a adiantar, por operações do Tesouro, a diferença entre o montante inscrito no Orçamento do Estado para 1988, relativo à contribuição financeira para as Comunidades Europeias, e o que efectivamente vier a apurar-se em resultado da aprovação do orçamento comunitário para o mesmo ano.
5 - Fica o Governo autorizado a contrair dívida interna, acrescendo ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º, para financiar as operações do Tesouro referidas nos números anteriores e, bem assim, as operações do Tesouro que eventualmente devam servir de adiantamentos aos fundos comunitários assegurados para o co-financiamento dos mesmos projectos e programas.
6 - O Governo é autorizado a aumentar a despesa do capítulo 50 do orçamento do Ministério da Educação pelo montante equivalente a 30% de financiamentos adicionais do FEDER que se venham a obter para além dos actualmente previstos para qualquer finalidade e que sejam destinados a co-financiar projectos já incluídos no referido capítulo 50, acrescendo a totalidade daquele financiamento adicional às receitas do Orçamento do Estado para 1988.
No n.º 1 deste artigo 20.º - norma cuja (in)constitucionalidade não há que averiguar no presente processo - anuncia-se, quanto aos projectos e programas do PIDDAC - Apoios ao sector produtivo, não comparticipados pelas Comunidades Europeias, a inscrição, no Orçamento do Estado para 1988, da totalidade da despesa, no montante de 9,25 milhões de contos.
Algo similarmente, anuncia-se ainda no n.º 2 do artigo 20.º, relativamente aos projectos e programas do PIDDAC - Apoios ao sector produtivo, com financiamento assegurado por parte de fundos comunitários, a inscrição no capítulo 50 do Orçamento do Estado da despesa de 8,5 milhões de contos, a título de contrapartidas nacionais. Nesta parte, a constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 20.º não é, de qualquer modo, posta em causa.
A sua conformidade com a CRP é contestada apenas, pelos deputados do PS e do PCP, na parte restante, isto é, na parte em que autoriza o reforço das contrapartidas nacionais mediante operações do Tesouro, regularizáveis no Orçamento do Estado para 1989, até ao dobro daquele montante.
De igual modo, também aqueles mesmos deputados não põem em xeque, por referência à CRP, toda a norma do n.º 3 do artigo 20.º, mas apenas o segmento desta que permite que as eventuais contrapartidas nacionais aos recursos adicionais que a CEE ponha à disposição de Portugal em 1988, no âmbito do PEDIP, sejam movimentadas por operações do Tesouro.
Todavia, já a norma do n.º 4 do artigo 20.º, sobre certos adiantamentos por operações do Tesouro - adiantamentos mediante os quais se pretende cobrir a diferença entre o montante inscrito no Orçamento do Estado para 1989, relativo à contribuição financeira para as Comunidades Europeias, e o que efectivamente vier a apurar-se em resultado da aprovação do orçamento comunitário para o mesmo ano -, é apontada como totalmente inconstitucional pelos deputados do PCP.
De igual forma, estes mesmos deputados põem em causa toda a norma do n.º 5 do artigo 20.º, norma que autoriza o Governo a contrair dívida interna para financiar certas operações do Tesouro.
Ao invés, e sempre numa perspectiva de inconstitucionalidade, é a norma do n.º 6 do artigo 20.º alvo de críticas, por parte dos deputados do PCP, tão-somente na medida em que autoriza o Governo a aumentar, em certos termos, a despesa do capítulo 50 do orçamento do Ministério da Educação.
Em todos estes casos se reputam inconstitucionais:
a) As normas dos n.os 2, 3 e 6 do artigo 20.º da Lei 2/88 (nos segmentos apontados) e a norma do n.º 4 do mesmo artigo (na totalidade) por violação do disposto no artigo 108.º, 1, alínea a), da CRP;
b) E a norma do n.º 5 do mesmo artigo 20.º por infracção ao disposto no artigo 164.º, alínea h), da CRP.
Serão exactos estes pontos de vista? 25 - No que diz respeito aos referenciados normativos dos n.os 2 e 3 do artigo 20.º e à norma do n.º 4 do mesmo artigo observa-se que a sua constitucionalidade é negada pelos deputados do PCP - aqui parcialmente secundados pelos deputados do PS - precisamente por em tais preceitos se permitir que certas operações financeiras, sem qualquer eco no Orçamento do Estado para 1988, sejam levadas a efeito como simples operações de tesouraria.
Há, pois, que passar a investigar se estas operações de tesouraria, tal como se acham previstas os n.os 2, 3 e 4 do artigo 20.º, se devem considerar ou não constitucionalmente ilícitas.
Uma só vez, precisamente no artigo 108.º, n.º 4, se refere a CRP ao Tesouro.
E fá-lo nos seguintes termos:
A proposta de Orçamento é acompanhada de relatório justificativo das variações das previsões das receitas e despesas relativamente ao Orçamento anterior e ainda de relatórios sobre a dívida pública e as contas do Tesouro, bem como da situação dos fundos e serviços autónomos.
Esta referência, ainda que muito periférica, implica desde logo o reconhecimento constitucional do Tesouro em toda a sua dimensão histórica, ou seja, como «órgão, organismo ou departamento administrativo que administra todo o património monetário em separado das restantes operações de gestão patrimonial», que em suma gere «a zona patrimonial formada pelos meios monetários do Estado ou património da tesouraria, o qual é constituído, do lado activo (que agora mais interessa), pelo conjunto dos meios de liquidez a curto prazo de que o Estado é titular», sendo «os respectivos problemas de afectação de recursos a responsabilidades - por serem monetários e por serem a curto prazo - [...] autónomos em relação às restantes operações de gestão patrimonial» (Sousa Franco, ob. cit., p. 285).
No exercício desta competência, que lhe é típica, de gestão do património de tesouraria - património que se opõe ao restante património do Estado - realiza o Tesouro operações orçamentais e operações de tesouraria.
Nesta mesma ordem de ideias se escreveu, aliás, no parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado do ano económico de 1981 (Diário da República, 2.ª série, n.º 164, suplemento, de 20 de Julho de 1987):
A gestão dos meios de liquidez do Estado obriga o Tesouro Público a desempenhar funções que se integram nos circuitos monetários, pela via da emissão dos empréstimos públicos, das aplicações rentáveis, dos adiantamentos de transferência, de concessão de subsídios, etc.
O Tesouro Público, hoje centralizado na Direcção-Geral do Tesouro, é a instituição à qual, nos planos administrativo, orgânico e funcional, compete gerir os dinheiros públicos, traduzindo-se essa gestão no movimento de fundos avultados, nos quais interfere o Banco de Portugal como caixa geral do Tesouro.
Assim, subjacente a todo o movimento de fundos públicos, o Tesouro realiza operações de cobrança de receitas e de pagamento de despesas que, nuns casos, decorrem da execução Orçamental, que lhe compete assegurar, e, noutros, são efectuados à margem do Orçamento.
26 - Referindo-se a esta dupla competência do Tesouro, escreve Sousa Franco, ob. cit., pp. 399, 400 e 401:
Na sua actuação normal, o Tesouro gere fundos próprios (os do Estado) e fundos de organismos autónomos (objecto de contas especiais, como os CTT). Nesta actividade, porém, importa ainda abrir uma distinção.
Nuns casos, o Tesouro realiza operações (cobrança de receitas, pagamento de despesas) que decorrem necessariamente da execução Orçamental que lhe cabe assegurar; noutros, realiza operações à margem do Orçamento.
As operações orçamentais estão previstas no Orçamento; sujeitam-se aos processos próprios de execução dos orçamentos de receitas e despesas;
estão sujeitas a controle da Direcção-Geral da Contabilidade Pública; dão origem à inscrição definitiva na Conta Geral do Estado e provocam uma saída irreversível de fundos dos cofres públicos. São operações de arrecadação de receitas e pagamento de despesas inscritas no Orçamento.
As operações de tesouraria são realizadas à margem do Orçamento Geral do Estado, movimentam fundos que revertem na afectação normal da execução do Orçamento, a qual cabe à entidade a quem pertencem; não estão sujeitas a processo rígido nem à regra da anualidade; são imprescritíveis; e essas saídas de fundos darão origem a uma nova entrada nos cofres até à concordância do crédito. Tanto podem ser operações de receitas como de despesas, e assumem diversíssimas naturezas, como operações de movimentação de dinheiros públicos não inscritos no Orçamento (artigo 4.º, § 1.º, da Lei de 20 de Março de 1907). O seu regime foi clarificado pelo Decreto-Lei 113/85, de 18 de Abril, que as define assim (artigo 1.º): «São operações de tesouraria todos os movimentos de fundos nos cofres do Tesouro que não se encontram sujeitos à disciplina do Orçamento do Estado, bem como todas as restantes operações escriturais com eles relacionadas no âmbito das contas do Tesouro.» O artiGo 2.º, n.º 2, subdivide-as em operações passivas ou activas:
«As operações passivas correspondem à entrada de fundos ou a operações escriturais de natureza idêntica nos cofres do Tesouro e as operações activas correspondem à saída de fundos daqueles cofres ou a operações escriturais de natureza idêntica.» Uma das maneiras de suprir dificuldades na execução do Orçamento consistiria em recorrer para tal a operações de tesouraria (cf. o artigo 2.º do Decreto-Lei 74/70, de 2 de Março); nesse caso, podia-se chegar a não respeitar de todo a previsão orçamental. Por isso, é proibido efectuar despesas por operações de tesouraria, salvo em casos especiais (artigo 36.º, § 3.º, da Lei de 20 de Março de 1907; Decreto 22257, de 25 de Fevereiro de 1933, artigo 35.º, n.os 1, 2 e 3). A lei dispõe sobre a sua formalização e controle pelo Tribunal de Contas.
Quanto às receitas, os seus casos mais conhecidos relacionam-se com as emissões de moeda e a gestão da dívida flutuante, destinadas a antecipar recursos de que o Estado disporá necessariamente no termo do período orçamental, e cujas condições de utilização (aliás hoje flexíveis) estavam rigidamente condicionadas (menos, todavia, do que ao abrigo do artigo 67.º, § único, da Constituição de 1933).
Quatro funções principais são, então, asseguradas por estas operações, tanto na forma das entradas de tesouraria (receitas de tesouraria) como através das saídas de tesouraria (despesas de tesouraria): a) a antecipação de receitas que o Estado espera cobrar durante o ano, mas não pode movimentar quando delas careça para realizar despesas; b) a colocação, junto de certas instituições do sistema bancário, de disponibilidades em excesso, por prazos curtos, obtendo assim um rendimento (juro) de dinheiro que, de outra maneira, estaria inactivo (cf. Decreto-Lei 49240); c) a gestão de fundos afectos a finalidades permanentes (como no Decreto 74/70, de 2 de Março); d) a utilização como instrumentos de política monetária, regulando os mercados de dinheiro e a oferta de moeda (possível em casos como o dos bilhetes do Tesouro).
27 - Note-se, ainda, que a uma destas operações de tesouraria, à consistente em antecipações de receitas, se refere indirectamente a CRP quando, no artigo 164.º, alínea h), especifica que o Governo não necessita de autorização da Assembleia da República para realizar operações de crédito que sejam de dívida flutuante.
Sobre esta particular espécie de dívida pública escreve Teixeira Ribeiro, lições citadas, p. 222:
Por seu turno, a dívida flutuante provém dos empréstimos temporários a curto prazo. Tais empréstimos foram concebidos para ocorrer a défices momentâneos da tesouraria. Ora, ao défice de hoje segue-se o superavit de amanhã, volta depois o défice - e a dívida surge, desaparece, renasce, flutua:
por isso se lhe chama dívida flutuante.
Umas vezes, esta dívida deriva de empréstimos representados em títulos que se denominam bilhetes do Tesouro; outras, ela deriva de aberturas de crédito em conta corrente, feitas pelos bancos ao Estado; outras, ainda, deriva de suprimentos obtidos pelo Estado junto dos bancos, isto é, de aberturas de crédito simples.
A dívida flutuante, por definição, deverá ser reembolsada dentro do período financeiro (o ano) e em função das receitas orçamentadas entretanto cobradas.
28 - Decorre do que até aqui se escreveu que, à luz da CRP, serão admissíveis operações de tesouraria, isto é, operações extra-orçamentais, desde que elas tenham de algum modo a ver, mais ou menos directamente, com a gestão do património de tesouraria. Que assim deverá ser resulta não só do acolhimento constitucional do Tesouro como organismo a se, organismo, aliás, de longa tradição no nosso ordenamento jurídico (o Tesouro Público nacional foi criado pelo Decreto 22, de 16 de Maio de 1832), como ainda do facto de a CRP se referir - seja embora só por via indirecta - às operações de tesouraria imediatamente conexionadas com a constituição da dívida flutuante.
Nem sempre será fácil determinar quando se estará perante operações que, de um ou de outro modo, terão a ver com a gestão do património de tesouraria, hipótese em que as operações serão constitucionalmente legítimas, e quando tal não sucederá.
A este critério, por vezes de difícil aplicação, se irá recorrer, no entanto, para ajuizar da conformidade ou não à CRP das normas em apreço.
Revertendo, pois, à análise das normas dos n.os 2 e 3 (segmentos apontados) e da norma do n.º 4 do artigo 20.º, salienta-se agora, e antes de mais, que nenhuma das despesas a seguir discriminadas, e por aqueles dispositivos permitidas, se encontra inscrita no Orçamento do Estado para 1988:
Despesa, referida no n.º 2 do artigo 20.º, de 8,5 milhões de contos, a título de reforço das contrapartidas nacionais de igual montante inscritas no capítulo 50 do Orçamento;
Despesa, referida no n.º 3 do artigo 20.º, de montante incerto, e correspondente às contrapartidas nacionais ali previstas;
E despesa, referida no n.º 4 do artigo 20.º, de quantitativo indeterminado, e correspondente à diferença entre a contribuição financeira para as Comunidades Europeias, inscrita no Orçamento, e a que efectivamente vier a ser devida.
29 - Segundo tais preceitos, todas estas despesas serão efectuadas através de operações do Tesouro, prescrevendo o n.º 2 do artigo 20.º que as operações nele previstas serão regularizáveis no Orçamento do Estado para 1989 e nada prescrevendo os n.os 3 e 4 do artigo 20.º quanto à data da regularização orçamental das operações neles contempladas.
Por outro lado - cabe agora salientar este ponto -, não é de imediato muito claro se os n.os 2, 3 e 4 do artigo 20.º, ao fazerem alusão a certas operações do Tesouro, estarão a referir-se unicamente às saídas de tesouraria implicadas pelas despesas permitidas por aqueles dispositivos e não inscritas no Orçamento, ou também às entradas de tesouraria necessárias para que se verifique, nesse plano, a concordância de créditos. No entanto, se se tiver em atenção que no n.º 5 do artigo 20.º se autoriza o Governo a contrair dívida interna para financiar as operações do Tesouro referidas nos n.os 2, 3 e 4 do mesmo artigo, já se poderá concluir com segurança, e nos quadros de uma hermenêutica integrada, que aquelas operações de tesouraria correspondem unicamente a saídas de tesouraria (as entradas estão afinal previstas no n.º 5).
Assim, há que fazer uma leitura minimalista dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 20.º, isto é, como referindo-se tais dispositivos apenas a saídas de tesouraria.
Deste modo, e considerados nesta sua dimensão significativa os preceitos ora em exame, tem-se por certo que quer as normas dos n.os 2 e 3 (nos trechos demarcados) quer a norma do n.º 4 do artigo 20.º, na medida em que todas elas consentem despesas, as anteriormente discriminadas, despesas não inscritas no Orçamento do Estado para 1988 e apenas cobertas por operações do Tesouro, têm de ser havidas como inconstitucionais.
Na verdade, quer pelo período de tempo dessas operações (na previsão do n.º 2, de duração superior à do período financeiro, e, na previsão dos n.os 3 e 4 do artigo 20.º, de duração indefinida), quer pelo facto de, nesse particular quadro temporal, se não poderem conexionar tais operações, de maneira alguma, com a simples gestão do património de tesouraria, constituído do lado activo, recorde-se, «pelo conjunto dos meios de liquidez a curto prazo de que o Estado é titular», forçoso é concluir que esses actos de despesa não podiam ter deixado de ser considerados no Orçamento do Estado para 1988.
30 - Desta maneira, tem para o caso plena aplicação a regra da universalidade, decorrente, como se demonstrou no capítulo III e se reafirmou no capítulo IV, do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP. Como tem aplicação outra regra orçamental - a da anualidade -, regra que implica: a) a votação parlamentar, ano a ano, do Orçamento; b) a vigência do Orçamento pelo período de um ano.
Tal regra, note-se, era claramente afirmada no texto primitivo da CRP (artigo 108.º, n.º 1). No entanto, e apesar de no actual artigo 108.º da CRP se ter deixado de fazer qualquer referência directa a esse parâmetro temporal, é de entender que tal regra ainda hoje tem pleno acolhimento constitucional.
Com efeito, tudo indica que, aquando da revisão de 1982, o poder constituinte derivado se limitou a introduzir na CRP o conceito de orçamento do Estado na sua acepção tradicional, muito particularmente no que respeita à sua vertente periódica (na história constitucional portuguesa, os orçamentos sempre foram anuais). E a isto acresce o facto de a CRP, no artigo 93.º, alínea c), explicitamente afirmar que o Plano anual há-de ter a sua expressão financeira no Orçamento do Estado, o que necessariamente, e ao nível temporal, os associa (neste sentido, Sousa Franco, ob, cit., p. 319, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., I vol., p. 470, Guilherme de Oliveira Martins, Constituição Financeira, 2.º vol., pp. 278 e 279).
À luz destes princípios constitucionais - e dentro do discurso argumentativo que se vem desenvolvendo - verifica-se que, não podendo as despesas permitidas pelas normas dos n.os 2 e 3 (segmentos apontados) e pela norma do n.º 4 do artigo 20.º ser realizadas através de operações de tesouraria (em causa não está de maneira alguma, directa ou indirectamente, um acto de gestão do património de tesouraria), tinham elas de ser inscritas, embora a um nível meramente previsivo, no Orçamento do Estado para 1988. Isto o que resulta imediatamente da regra da anualidade e da regra da universalidade, as quais, como se viu, têm efectivamente assento constitucional.
Prescrevendo de outro modo, as normas ora em questão (que se referem directamente à realização de despesas não previstas no Orçamento) violam aqueles princípios constitucionais decorrentes do artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP, lido em articulação com o preceituado no artigo 93.º, alínea c).
31 - Passa-se agora a investigar se a norma do n.º 5 do artigo 20.º da Lei 2/88 contraria ou não o disposto no artigo 164.º, alínea h), da CRP, como é sustentado pelos deputados do PCP.
O n.º 5 do artigo 20.º, como se teve oportunidade de ver aquando da sua transcrição no início deste capítulo, autoriza o Governo, para determinados fins, a contrair dívida interna de montante incerto, montante que acresceria ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º, limite este último, relembre-se uma vez mais, correspondente a um acréscimo de endividamente interno da ordem dos 429 milhões de contos.
Por seu lado, o artigo 164.º, alínea h), da CRP determina que compete à Assembleia da República - em quadro de total indelegabilidade - autorizar o Governo a contrair empréstimos e a realizar outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, definindo as condições gerais daqueles empréstimos.
Em comentário a este preceito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.
cit., 2.º vol., p. 183, o seguinte:
Não careçam de autorização as operações de «dívida flutuante», visto que esta, nos termos da definição financeira corrente (que há-de ter-se por constitucionalmente acolhida), se limita a acudir a dificuldades transitórias decorrentes do desfasamento entre a efectivação das despesas e a realização das receitas do Estado.
[...] Entre as «condições gerais» que à AR compete definir contam-se a indicação do montante e a natureza do empréstimo, a entidade financiadora, o prazo de amortização e os encargos (cf. Pareceres da Comissão de Assuntos Constitucionais da AR, vol. I, Lisboa, 1978, p. 231).
32 - Dito isto, cabe agora de imediato salientar que certas operações de crédito passivas autorizadas no n.º 5 do artigo 20.º da Lei 2/88 originam dívida flutuante, dívida que, como já se sublinhou, provém de empréstimos temporários a curto prazo e que representa como que um adiantamento de receitas que irão entrar, em breve, no Tesouro.
É esse o caso dos empréstimos que o Executivo é autorizado a contrair para financiar as operações do Tesouro que devam servir de adiantamento aos fundos comunitários que irão ser postos à disposição de Portugal.
Nesse trecho, a norma do n.º 5 do artigo 20.º não é inconstitucional. É certo que, na moldura do artigo 164.º, alínea h), da CRP, e como se notou, à Assembleia da República não cabe, ao menos em princípio, autorizar o Governo a contrair empréstimos que dêem origem a dívida flutuante [cf. ainda os artigos 26.º, n.º 4, da Constituição de 1911 e 91.º, n.º 5, da Constituição de 1933, que, respectivamente, dispunham competir ao Congresso da República e à Assembleia Nacional autorizar o Executivo a realizar empréstimos e outras operações de crédito que não fossem de dívida flutuante, tradição constitucional que não foi interrompida pelo artigo 164.º, alínea h), da actual CRP]. Antes, o Governo, sem licença do Parlamento, pode livremente realizar todas e quaisquer operações de crédito que sejam de dívida dessa espécie.
Apesar de tudo isto, a autorização parlamentar constante do n.º 5 do artigo 20.º, no segmento agora particularmente considerado (segmento em que autoriza o Governo a contrair dívida flutuante), não se confronta, de maneira alguma, com a CRP. Nele, ao cabo e ao resto, consubstancia-se um acto de autorização que, numa perspectiva jurídico-constitucional, é perfeitamente irrevelante, mas que, ainda assim, tem a virtualidade de coenvolver politicamente o Parlamento na realização das operações de dívida flutuante ali previstas e de, nessa medida, o corresponsabilizar com o Governo.
33 - No que se refere à parte restante da norma do n.º 5 do artigo 20.º da Lei 2/88 - parte em que se dá autorização ao Governo para endividar internamente o Estado, já não em termos de dívida flutuante, mas antes em termos de dívida fundada -, observa-se que, ao invés, se terá de concluir aqui pela sua inconstitucionalidade. É que, relativamente a autorizações de tal espécie, a Assembleia da República está constitucionalmente obrigada a indicar - citado artigo 164.º, alínea h) - as condições gerais de cada empréstimo, e tal preceito, nesta parte, não foi minimamente acatado.
Poder-se-á discutir qual seja a exacta extensão do conceito constitucional de condições gerais dos empréstimos autorizados, se nessas condições se haverão de compreender ou não todas as mencionadas no citado parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia da República. Sem embargo, o que é incontestável é que, no caso, nem uma só de tais condições foi elencada na autorização dos empréstimos ora considerados, e algumas, pelo menos, sempre o teriam de ser; por isso que, e obviamente, se conclua que o artigo 164.º, alínea h), da CRP não foi de todo em todo respeitado.
34 - Finalmente, passa-se a analisar se a norma do n.º 6 do artigo 20.º é ou não constitucionalmente insolvente.
No n.º 6 do artigo 20.º a Assembleia da República autoriza o Governo a aumentar a despesa do capítulo 50 do orçamento do Ministério da Educação pelo montante equivalente a 30% de certos financiamentos adicionais do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), e desde logo se especifica que a totalidade daquele financiamento adicional acrescerá às receitas do Orçamento do Estado para 1988.
Como logo no início deste capítulo se salientou, a constitucionalidade da norma do n.º 6 do artigo 20.º apenas é contestada pelos deputados do PCP enquanto autoriza o Governo a aumentar, em determinados termos, uma despesa orçamental. Trata-se pois, e nessa parte, de autorizar o Governo a proceder a uma alteração do Orçamento do Estado para 1988. Era lícito, porém, à Assembleia da República fazê-lo? Após a revisão de 1982 passou a caber ao Parlamento a aprovação do próprio Orçamento, sob proposta do Governo [artigos 108.º, n.º 2, e 164.º, alínea g), da CRP], devendo o acto de aprovação, nos termos do artigo 169.º, n.º 2, revestir a forma de lei.
E, pelo menos nos casos em que se trate de alterações de fundo, igual regime deverá ser seguido: proposta de alteração orçamental apresentada pelo Governo e aprovação pela Assembleia da República. Nesta mesma ordem de ideias se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/85 (Diário da República, 1.ª série, n.º 203, de 4 de Setembro de 1985):
Como previsão que é, o Orçamento pode vir a ser confirmado ou infirmado pelos factos: pode, por exemplo, vir a tornar-se necessária uma despesa não prevista ou verificar-se ser insuficiente a dotação inscrita para determinado efeito. Daí a necessidade de o alterar. As alterações ao Orçamento são, por isso, admitidas em todos os ordenamentos jurídicos.
Sendo, porém, o nosso Orçamento votado em lei da Assembleia da República, com «especificação» das despesas, compreende-se que não possa o Governo, que é quem tem a incumbência de o executar, alterá-lo como lhe aprouver.
A esse respeito ensina o Prof. Teixeira Ribeiro, Lições citadas, n.º 9:
Ora, ao aprovar o Orçamento, a Assembleia fixou o montante máximo não só da despesa total como da despesa de cada capítulo e de cada função e subfunção. Daí que, em princípio, seja vedado ao Governo transferir verbas de capítulo para capítulo e de função para função ou de subfunção para subfunção, bem como abrir créditos que se traduzem em aumento da despesa total do Orçamento ou da despesa de qualquer capítulo e de qualquer função e subfunção.
Diz, por sua vez, o Prof. Sousa Franco, no citado estudo «Sobre a constituição financeira de 1976-1982», n.º 5.10:
Quem pode agir pode alterar (ou revogar: mas não se pode revogar sem mais o Orçamento [...]). Logo, o Orçamento pode ser alterado, desde que seja respeitada a forma inicial: iniciativa legislativa do Governo (devido à sua competência exclusiva e indelegável neste domínio) e alteração por lei de revisão da Assembleia. Será esta a forma normal de introduzir alterações orçamentais.
Conclui, por seu lado, António Bernardo A. da Gama Lobo Xavier, no estudo citado, n.º 11, que, com a aprovação do Orçamento, o Governo fica vinculado pelos próprios níveis inferiores de especificação daquele documento, no que concerne às classificações orgânica - capítulos - e funcional - subfunções -, de tal forma que as alterações dos mapas orçamentais que contêm as referidas classificações das despesas públicas só podem ser levadas a cabo através da intervenção do Parlamento.
Finalmente, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra e volume citados, n.º XI das anotações ao artigo 108.º, escrevem:
Aprovado o Orçamento, cabe ao Governo apenas executá-lo, não podendo obviamente alterá-lo. Mas já a AR pode alterá-lo, desde que tal lhe seja proposto pelo Governo (e não por iniciativa parlamentar). Em suma: a lei do orçamento só pode ser alterada por nova lei aprovada nos mesmos termos da lei originária. Tal como a AR não pode abrir mão da sua competência exclusiva para aprovar o Orçamento, também não pode autorizar o Governo a alterar a respectiva lei.
Temos, assim, que, sendo o Orçamento votado em lei - lei da Assembleia da República, mediante proposta do Governo -, as alterações ao Orçamento devem, como regra, ser igualmente objecto de lei, precedendo proposta governamental.
35 - De acordo com estes princípios, e sem necessidade de especificar agora os casos em que, perifericamente embora, ao Governo é consentido proceder a alterações orçamentais, tem-se por seguro que uma alteração orçamental como a que o n.º 6 do artigo 20.º habilita o Executivo a levar a cabo não é, pela sua magnitude, constitucionalmente admissível: ela «mexeria» afinal com o total das despesas previstas e autorizadas no Orçamento.
Neste mesmo sentido se pronuncia Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, p. 389:
Já nos casos em que as alterações orçamentais se traduzam num aumento da despesa total do Orçamento ou de cada sector orgânico e funcional fixado na lei do orçamento, a regra é a competência da Assembleia, que a exerce através de uma lei de revisão orçamental.
E também por idêntico posicionamento interpretativo da constituição financeira se decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão 206/87 (Diário da República, 1.ª série, n.º 156, de 10 de Julho de 1987):
Para lá desse grau de especificação das receitas e despesas já o Governo poderá fazer alterações, alterações que, obviamente, não poderão nunca implicar com o quantum global das receitas previstas ou com o total das despesas especificadas, porque, nesse caso, a competência pertencerá já, em exclusivo, ao Parlamento.
Aceita-se, pois, por todos estes motivos, que só a Assembleia da República, sob proposta do Governo, poderia levar a termo uma alteração de despesa do tipo da prevista no n.º 6 do artigo 20.º [quem é inicialmente competente para participar no processo de produção normativa do Orçamento do Estado, nos termos dos artigos 108.º, n.º 2, e 164.º, alínea g), da CRP, não pode deixar de ser, ao menos em princípio, igualmente competente para participar, e em idênticos termos, no seu processo de alteração].
Tendo havido no n.º 6 do artigo 20.º uma delegação de competências orçamentais no Executivo, delegação que, nos quadros do artigo 164.º da CRP, a Assembleia da República não podia efectuar (as diversas atribuições de competências especificamente discriminadas nesse artigo 164.º são para ser exercitadas directamente pelo Parlamento), verifica-se, e irremissivelmente, que aquele n.º 6 do artigo 20.º, na parte considerada, é organicamente inconstitucional.
CAPÍTULO VI
A norma do artigo 4.º, n.º 3, da Lei 2/88, em conjugação com o n.º 4, as
normas do artigo 4.º, n.os 5, 6 e 7, e a norma do artigo 20.º, n.º 5, da Lei
n.º 2/88, em conjugação com os n.os 2, 3 e 4 do artigo 20.º, na medida em
que nelas se estabelece a possibilidade de cobrir despesas não
discriminadas no Orçamento com receitas nele não inscritas e
provenientes de empréstimos que não contam para os limites definidos
nos artigos 3.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, da Lei 2/88, face ao artigo 108.º, n.º 1,
alínea a), da CRP, em articulação com o n.º 5 do mesmo artigo 108.º
36 - Neste capítulo, ao menos em princípio, dever-se-ia conhecer, de acordo com o pedido formulado pelos deputados do PS - e incidente sobre diversas normas da Lei 2/88 -, da constitucionalidade da norma do artigo 4.º, n.º 3, em conjugação com o n.º 4, das normas do artigo 4.º, n.os 5, 6 e 7, e da norma do artigo 20.º, n.º 5, em conjugação com os n.os 2, 3 e 4 (note-se, a este propósito, que em dois lugares da petição os deputados do PS se referem à norma do n.º 7 do artigo 4.º, com exclusão da norma do n.º 6 desse artigo 4.º, e noutro passo da mesma petição é a inversa que se verifica: referência ao n.º 6 do artigo 4.º e exclusão do n.º 7 do artigo 4.º).
Arguem aqueles deputados estas normas assim definidas de violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º, em conexão com o n.º 5 do artigo 108.º da CRP, e na exacta medida em que nelas se estabelece a possibilidade de cobrir despesa não discriminada no Orçamento mediante utilização de receita nele não inscrita e proveniente de empréstimos que não contam para os limites definidos nos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º Mas, se esta é a argumentação de síntese dos deputados do PS, então é evidente que não quiseram par em causa a constitucionalidade da norma do n.º 6 do artigo 4.º, pois aí se determina que o montante utilizado das linhas de crédito que o Governo é autorizado a contrair para apoio à emissão de títulos de dívida até ao montante de 500 milhões de dólares conta para o limite fixado no n.º 1 desse artigo 4.º, limite correspondente a um acréscimo de endividamento externo do montante de 45 milhões de contos (v. o que sobre a conversão em escudos do acréscimo de endividamento externo ali previsto, e expresso em dólares, se escreveu no capítulo IV). Tudo isto significa afinal, e por direitas contas: a) que a referência a esse n.º 6 do artigo 4.º foi devida a manifesto lapso; b) que, em vez desse n.º 6, os deputados do PS queriam referir-se apenas, como aliás fizeram noutros lugares da petição, ao n.º 7 do artigo 4.º Haverá, pois, que investigar se a norma do n.º 3 do artigo 4.º, em articulação com o n.º 4, e se as normas dos n.os 5 e 7 do artigo 4.º são ou não inconstitucionais. E que investigar ainda, pelo menos à partida, se a norma do artigo 20.º, n.º 5, em conjugação com os n.os 2, 3 e 4, e segundo o particular enfoque proposto pelos deputados do PS, é também ou não inconstitucional.
É o que de seguida se irá fazer.
37 - Dispõe o artigo 4.º da Lei 2/88, nos seus n.os 3, 4, 5 e 7, o seguinte:
Artigo 4.º
Empréstimos externos
1 - ....................................................................................................................2 - ....................................................................................................................
3 - Fica o Governo autorizado, através do Ministro das Finanças, com a faculdade de delegar, a contrair junto do Banco Europeu de Investimento (BEI), do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e do Kreditanstalt für Wiederaufbau (KFW) empréstimos e a realizar outras operações de crédito, até montantes correspondentes, respectivamente, a 250 milhões de ecus, a 150 milhões de dólares americanos e a 100 milhões de marcos, e a celebrar contratos com entidades que venham a ser incumbidas da execução dos projectos, em ordem a pôr à sua disposição os fundos mutuados directamente ao Estado por aquelas instituições financeiras, o que não conta para o limite do n.º 1 deste artigo.
4 - Os empréstimos a que se refere o número anterior destinar-se-ão ao financiamento de linhas de crédito para pequenas e médias empresas e autarquias locais, de projectos relativos a infra-estruturas de transportes, de saneamento básico e de abastecimento de água, de projectos no sector da habitação e da educação e a outras acções visando o desenvolvimento económico e social, designadamente no âmbito do Programa de Correcção Estrutural do Défice Externo e do Desemprego.
5 - Fica o Governo autorizado, através do Ministro das Finanças, com a faculdade de delegar, a celebrar com o Fonds de Rétablissement du Conseil de l'Europe contratos de empréstimo, denominados numa ou várias moedas estrangeiras, até ao contravalor de 100 milhões de dólares americanos, destinados à construção de habitações sociais, educação e acções de formação, criação de postos de trabalho e financiamento de outros projectos, designadamente de apoio a pequenas e médias empresas e a acções de apoio a emigrantes e outros que se enquadrem nos objectivos estatutários daquela instituição.
6 - ....................................................................................................................
7 - As utilizações que tenham lugar em 1988 dos empréstimos já contratados com base em autorizações orçamentais dadas em anos anteriores, relativas aos empréstimos contraídos junto do Banco Europeu de Investimento (BEI), do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), do Kreditanstalt für Wiederaufbau (KFW) e do Fonds de Rétablissement du Conseil de l'Europe, não contam para o limite fixado no n.º 1, considerando-se em vigor as respectivas autorizações nos termos gerais.
Segundo o n.º 1 do artigo 4.º, o Governo ficou autorizado a contrair empréstimos externos e a realizar outras operações de crédito sobre o exterior, incluindo a renegociação da dívida externa, com a finalidade de financiar o défice do Orçamento do Estado para 1988, até ao limite, em cada momento, de 300 milhões de dólares (correspondentes, como já se disse e redisse, a 45 milhões de contos).
Quer no n.º 3, em conexão com o n.º 4 do artigo 4.º, quer no n.º 5 do mesmo artigo 4.º, autoriza-se ainda o Governo, para determinadas finalidades, a contrair empréstimos em moedas estrangeiras, especificando-se, no caso do n.º 3, que os empréstimos ali previstos ou só alguns deles (mais adiante se voltará a este ponto) não contam para o limite do n.º 1 do artigo 4.º, e não se explicitando, no caso do n.º 5, ao menos expressamente, se os empréstimos ali referidos contam ou não, e de algum modo, para esse limite do n.º 1 do artigo 4.º Os deputados do PS interpretam o n.º 5 do artigo 4.º como determinando que os empréstimos cuja contracção autoriza ao Executivo não relevam para o limite do n.º 1 do artigo 4.º Não é, porém, claro que seja esse o sentido de tal norma. Na verdade, se para as diversas operações financeiras mencionadas nos n.os 3, 6 e 7 do artigo 4.º se tem o cuidado de precisar se elas contam ou não para o limite do n.º 1 do artigo 4.º, que significado pode ter, a esse nível, um dispositivo que sobre esse ponto, e por completo, silencia? Por ora, deixa-se em suspenso a resolução desta questão, qual seja a de se saber se os empréstimos autorizados pelo n.º 5 do artigo 4.º também hão-de ser considerados, no todo ou em parte, para efeitos do limite do n.º 1 do artigo 4.º De facto, face à linha argumentativa que se irá desenvolver, só mais para diante será indispensável tomar posição definitiva sobre a questão.
Tendo isto bem presente, passar-se-á de seguida a investigar se as normas dos n.os 3 e 5 do artigo 4.º, a primeira em articulação com o n.º 4 do mesmo artigo, enfermam ou não da inconstitucionalidade que lhes é assinalada pelos deputados do PS no seu requerimento.
38 - Recorde-se que estes concluem pela inconstitucionalidade de tais normas com base numa argumentação de que se destacam os seguintes passos:
As despesas discriminadas no Orçamento têm dado origem a défice coberto por empréstimos que financiam o excesso de despesa sobre as outras receitas do Estado.
Nos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º da Lei 2/88 fixam-se, respectivamente, os limites dos empréstimos internos e externos a contrair para fazer face ao défice.
Tais limites referem-se directa e explicitamente a necessidades determinadas pela finalidade do financiamento do défice, condição essa que se inscreveu na Lei 2/88 ao abrigo da alínea h) do artigo 164.º da CRP. Os empréstimos que não contam para os citados limites não foram autorizados em relação com a finalidade de financiamento do défice. Essa condição de finalidade apenas foi autorizada, ao abrigo da alínea h) do artigo 164.º da CRP, para as operações a incluir nos limites dos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º Assim, de acordo com a doutrina aceite, a utilização de empréstimos para cobrir despesa adequadamente discriminada no Orçamento deverá incluir-se nesses limites, na exacta medida em que se destina a financiar défice.
No Orçamento do Estado para 1988 apenas estão discriminadas receitas de empréstimos internos e externos necessários para financiar o défice, nos limites dos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º, e para financiar ainda as despesas com passivos financeiros adequadamente inscritas no Orçamento, sendo aquelas receitas não só necessárias para os efeitos previstos no n.º 6 do artigo 108.º da CRP como ainda suficientes para não haver violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º Por outro lado, e para além do que se refere a despesas com passivos financeiros, não só não estão discriminados nas receitas os produtos dos empréstimos que não contam para os limites dos n.os 1 dos artigos 3.º e 4.º como também só poderá haver lugar à sua utilização para cobrir despesa no caso de esta não se encontrar adequadamente inscrita, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da CRP.
No entanto, e para lá disto, sucede que os empréstimos externos a contrair nos termos do n.º 3 do artigo 4.º não só podem servir para financiar verdadeiras e próprias despesas orçamentais como podem vir a ter outras utilizações não correspondentes a despesas orçamentais, utilizações, todas elas, não sujeitas ao limite do n.º 1 desse artigo 4.º Ora, na medida em que financiem despesas orçamentais, deviam estar sujeitas a esse limite. O recurso para tal efeito a empréstimos fora do referido limite só terá sentido para cobrir despesas não adequadamente discriminadas em violação dos preceitos constitucionais aplicáveis. Só despesa que não se encontra adequadamente discriminada e especificada, em violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º, conjugada com o n.º 5 do mesmo artigo da CRP, terá de encontrar cobertura em financiamento fora dos limites autorizados para financiar o défice.
Esta argumentação, pelo menos em alguns aspectos, não parece suportada por uma lógica evidente e fácil. Todavia, e apesar desta dificuldade, ir-se-á procurar apurar se quer a norma do n.º 3 do artigo 4.º, em articulação com o n.º 4 do mesmo artigo, se quer a norma do n.º 5 do artigo 4.º merecem ou não as críticas que em particular lhe foram dirigidas pelos deputados do PS. Isto naturalmente exigirá que, em alguns pontos, se alargue o campo de indagação.
39 - Em primeiro lugar, importa sublinhar que as condições gerais dos empréstimos que o Governo ficou autorizado a contrair por via do preceituado no n.º 3 do artigo 4.º - e isto em cumprimento do disposto no artigo 164.º, alínea h), da CRP - se encontram perfeitamente explicitadas no n.º 2 do artigo 4.º Aliás, essas condições gerais, aí expressamente consignadas, são válidas para todas as autorizações de empréstimos constantes dos n.os 1, 3, 5 e 6 do artigo 4.º Em segundo lugar, cabe referir que tanto a receita dos empréstimos a que alude o n.º 3 do artigo 4.º (até montantes correspondentes a 250 milhões de ecus, 150 milhões de dólares e 100 milhões de marcos) como a receita do empréstimo a que se refere o n.º 5 do artigo 4.º (até ao contravalor de 100 milhões de dólares) não constituirão, ao menos na sua maior parte, receita do Estado no sentido mais rigoroso da expressão.
Repare-se, a este propósito, que, por um lado, o n.º 3 do artigo 4.º, depois de autorizar o Governo a contrair os empréstimos aí discriminados, autoriza-o ainda a «celebrar contratos com entidades que venham a ser incumbidas da execução dos projectos em ordem a pôr à sua disposição os fundos mutuados directamente ao Estado», e que, por outro lado, o n.º 4 do artigo 4.º especifica que «os empréstimos a que se refere o número anterior destinar-se-ão ao financiamento de linhas de crédito para pequenas e médias empresas e autarquias locais, de projectos relativos a infra-estruturas de transportes, de saneamento básico e de abastecimento de água, de projectos no sector da habitação e da educação e a outras acções visando o desenvolvimento económico e social, designadamente no âmbito do Programa de Correcção Estrutural do Défice Externo e do Desemprego».
E repare-se ainda, a este mesmo propósito, que o n.º 5 do artigo 4.º, após a autorização dada ao Governo para contratar o empréstimo aí referenciado, especifica que o quantitativo pecuniário por esta via obtido se destina «à construção de habitações sociais, educação e acções de formação, criação de postos de trabalho e financiamento de outros projectos, designadamente de apoios a pequenas e médias empresas e a acções de apoio a emigrantes e outros que se enquadrem nos objectivos estatutários» do Fonds de Rétablissement du Conseil de l'Europe (FRCE).
40 - Numa primeira leitura, estes preceitos sugerirão que o Estado, quanto às importâncias mutuadas, não desempenhará, por direitas contas, o papel de tomador jurídico final, já que os fundos, emprestados directamente ao Estado, serão passados, num segundo momento, e ao menos em princípio, para pequenas e médias empresas, autarquias locais e outros entes públicos ou privados.
No entanto, se se conjugarem estes preceitos, aliás de grande complexidade dispositiva, com o relatório sobre as Grandes Opções do Plano para 1988, publicado, nos termos do artigo 94.º, n.º 2, da CRP, em anexo à Lei 3/88, de 26 de Janeiro, e se, nesse contexto, se proceder à sua releitura, já será lícita outra ilação: a de que algumas das operações de crédito assinaladas nos n.os 3 e 5 do artigo 4.º se destinarão, excepcionalmente embora, e em última instância, a financiar o próprio Estado.
Efectivamente, naquele relatório, ao referirem-se as principais fontes de financiamento do PIDDAC, assinala-se que, dentro do Orçamento do Estado para 1988, estarão afectados àquele plano de investimentos e despesas, particularmente na área do PIDDAC - Tradicional, diversas receitas, entre elas a de crédito externo de 11199136 contos, resultante precisamente de empréstimos do BIRD (3865206 contos), do BEI (6793850 contos), do KFW (392000 contos) e do FRCE (148080 contos), empréstimos esses que constituem afinal apenas pequena fracção das operações de crédito mencionadas nos n.os 3 e 5 do artigo 4.º [cf. quadros II e III do relatório, in Diário da República, 1.ª série, n.º 21, de 26 de Janeiro de 1988, pp. 272-(301) e 272-(302)].
41 - Face a esta hermenêutica dos n.os 3 e 5 do artigo 4.º - a que, numa visão global da lei orçamental, se tem por mais ajustada -, constata-se que, pela sua destinação, os empréstimos do BEI, BIRD, KFW e FRCE ora constituirão receitas de outras entidades (que as utilizarão na realização de investimentos referidos nos n.os 4 e 5 do artigo 4.º) ora constituirão receita do Estado (que a utilizará na realização de investimentos na área do PIDDAC - Tradicional).
No primeiro caso, não se está, de modo algum, perante a receita do Estado stricto sensu, e, logo por isso, as regras da universalidade e da unidade deduzíveis, como se escreveu no capítulo III deste acórdão, dos artigos 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP, não se poderão ter por infringidas. Na realidade, tais regras, constitucionalmente definidas, imporão a orçamentação num único documento de todas as «entradas» do Estado, e, na presente hipótese, não se trata, no rigor das coisas, de uma receita do Estado, mas antes de receitas das entidades às quais, e a jusante do Estado intermediário, vão destinados os empréstimos.
No segundo caso, a receita é efectivamente uma receita do Estado, e, por via das mencionadas regras da unidade e da universalidade, terá ela de constar do mapa I do Orçamento do Estado para 1988.
Nesse mapa I, «Receitas de capital», capítulo 12, grupo 05, artigo 01, acha-se inscrita a receita de crédito externo de 157600000 contos, que resulta da consideração das seguintes parcelas [v. relatório da proposta de lei 14/V, Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 23, de 18 de Novembro de 1987, p. 462-(6)]:
Milhões de contos Amortizações de empréstimos externos ... 112,6 Endividamento líquido (referido no n.º 1 do artigo 4.º) ... 45,0 Total ... 157,6 42 - Deste modo, a receita dos empréstimos em questão, que foi canalizada directamente para o Estado - e que, segundo o relatório anexo à Lei 3/88, será da ordem dos 11199136 contos -, só se poderá considerar inclusa na receita de crédito externo de 157600000 se o endividamento consequente contar de facto para o limite do n.º 1 do artigo 4.º É certo que a norma do n.º 3 do artigo 4.º, depois de autorizar o Governo a realizar certos empréstimos, dispõe expressamente no seu último inciso: «o que não conta para o limite do n.º 1 deste artigo». Mas não menos certo é que esta ressalva, numa análise sistemática da situação normativa (em causa está enfim a lógica interna do corpo normativo que é a lei orçamental), deverá ser interpretada restritivamente, isto é, como valendo apenas para os empréstimos destinados a outras entidades e em relação aos quais o Estado intervirá, por direitas contas, como simples mediador.
E é certo também que a norma do n.º 5 do artigo 4.º não se pronuncia explicitamente sobre a questão, isto é, não especifica se o endividamento resultante dos empréstimos ali autorizados conta ou não para o limite do n.º 1 do artigo 4.º No entanto, não menos certo é que, situando-se tal preceito numa relação de perfeito paralelismo com o do n.º 3 do artigo 4.º, se deverá ter por aplicável aos empréstimos nele contemplados, e por derivabilidade analógica, isto é, por igualdade de razões, idêntica ressalva: o quantum dos empréstimos destinados realmente ao Estado, esse, há-de contar para o limite do n.º 1 do artigo 4.º Ou, por outras palavras, a norma do n.º 5 do artigo 4.º como que «capturou», por proximidade lógico-normativa, a ressalva constante da parte final do n.º 3 do artigo 4.º 43 - Feitas todas as contas, é de ter por assente, e em última análise, que aquela importância, que andará à volta de 11199136 contos, que representará a quota dos empréstimos referenciados nos n.os 3 e 5 do artigo 4.º e que constituirá receita do Estado em sentido estrito - e uma vez que ela conta para o limite do n.º 1 do artigo 4.º -, se acha, na realidade, prevista no mapa I em «Receitas de capital», capítulo 12, grupo 05, artigo 01 («Crédito externo»). E assim, elucidado por tal forma o alcance significativo destes outros segmentos das normas dos n.os 3 e 5 do artigo 4.º, a primeira em conjugação com o n.º 4 do mesmo artigo, segmentos normativos que se referem a empréstimos destinados ao próprio Estado, observa-se que a configuração normativa de tais segmentos os afastou da área crítica, ou seja, de uma área de conflito com a CRP. Ou, melhor dizendo, também não se regista aqui violação do preceituado no artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP, já que as regras da universalidade e da unidade foram, in casu, plenamente acatadas.
44 - Relativamente à norma do n.º 7 do artigo 4.º, cabe salientar, por um lado, que nele se especifica que as utilizações que tenham lugar em 1988 de certos empréstimos já contratados com base em autorizações orçamentais dadas em anos anteriores não contam para o limite do n.º 1 do artigo 4.º e, por outro lado, que tais autorizações se deverão considerar em vigor nos termos gerais.
Têm-se aqui em mira empréstimos já contratados em anos precedentes e ainda não totalmente utilizados, possivelmente os empréstimos referidos nos artigos 3.º, n.º 6, e 4.º, n.º 1, da Lei 9/86 e 4.º, n.os 2, 3 e 5, da Lei 49/86.
Observa-se, pois, como que uma novação, ainda que meramente parcelar, de autorizações parlamentares passadas.
Dito isto, cabe aqui notar que o n.º 7 do artigo 4.º se refere à situação financeira de anos económicos findos, e terá porventura a ver com a realização de despesas por conta desses anos. Nestas circunstâncias, não se configura como curial pôr em causa a infracção, por parte de tal preceito, das regras da universalidade e da unidade [artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP].
De qualquer modo, trata-se de empréstimos referentes a anos transactos similares aos dos n.os 3 e 5 do artigo 4.º, decerto valendo para eles as considerações então expendidas.
45 - Por fim, põem os deputados do PS em causa a constitucionalidade da norma do artigo 20.º, n.º 5, em conjugação com os n.os 2, 3 e 4 do mesmo artigo.
Dispõe o artigo 20.º, n.º 5, que «fica o Governo autorizado a contrair dívida interna, acrescendo ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º, para financiar as operações do Tesouro referidas nos números anteriores e, bem assim, as operações do Tesouro que eventualmente devam servir de adiantamentos aos fundos comunitários assegurados para o co-financiamento dos mesmos projectos e programas».
A este respeito, observam os deputados do PS que os n.os 2 e 3 do artigo 20.º referem-se a despesa não discriminada no Orçamento do Estado para 1988 a financiar, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo 20.º, pelo recurso a autorização para «contrair dívida interna acrescendo ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º», e que idêntica situação se verifica em relação à «diferença entre o montante inscrito no Orçamento do Estado para 1988, relativo à contribuição financeira para as Comunidades Europeias e a que efectivamente vier a apurar-se em resultado da aprovação do orçamento comunitário para o mesmo ano», diferença referida no n.º 4 do artigo 20.º, que também será financiada pelo recurso a dívida interna acrescendo ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º Ora, seria razoável pela natureza desta eventual diferença que ela fosse financiada pela dotação provisional ou através de uma das diversas soluções para o caso oferecidas pela Lei 40/83. O que não se pode é invocar o princípio da razoabilidade para justificar o recurso a financiamento de despesa por empréstimo não contido nos limites do financiamento do défice, afirmam em síntese final os mesmos deputados.
Já no capítulo anterior se concluiu pela inconstitucionalidade do primeiro segmento da norma do n.º 5 do artigo 20.º, em natural articulação com os n.os 1, 2, 3 e 4, e concluiu-se assim por se entender que tal segmento normativo conflituava com a CRP.
Não se vê agora que, no particular quadro argumentativo que então se desenvolveu, possa ter ainda algum relevo, à luz da CRP, designadamente do artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, o facto de no primeiro segmento do n.º 5 do artigo 20.º se dizer que a dívida interna que aí se autorizava o Governo a contrair acresceria ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º Na verdade, se já no capítulo V deste acórdão se concluiu que era inconstitucional essa autorização para contrair dívida interna - autorização de certo modo correlacionada com o disposto nos números anteriores desse mesmo artigo 20.º -, então forçoso é concluir também que, nestas circunstâncias, não tem verdadeiramente autonomia, para efeitos de formulação de um segundo juízo de inconstitucionalidade, a determinação de que tal dívida se não teria de situar dentro do limite do n.º 1 do artigo 3.º Por isso mesmo, e nesta particular situação, se entende não ser merecedora de uma especial análise a constitucionalidade de tal determinação.
Relativamente ao segundo segmento do n.º 5 do artigo 20.º, que parece não ter sido posto em causa pelos deputados do PS, nota-se que, no capítulo precedente, se concluiu pela sua conformidade constitucional.
Não se vê motivo, à luz da argumentação ora expendida por aqueles deputados, para alterar tal juízo: em causa, nesse segmento normativo, está a contracção de dívida flutuante, e o Governo, em tal domínio, está constitucionalmente autorizado a agir extra-orçamentalmente, ou seja, por simples operações do Tesouro.
CAPÍTULO VII
As normas do artigo 19.º, da inscrição do capítulo 51 do Ministério das
Finanças, constante do mapa II, a que se refere a alínea a) do artigo 1.º, e
da inscrição em «Despesas de capital», código 71 «Outras despesas de
capital», no mapa III, a que também se refere a alínea a) do artigo 1.º,
todas da Lei 2/88, face aos artigos 108.º, n.os 1, alínea a), 3, 5 e 6, e
164.º, alínea g), da CRP.
46 - Estipula o artigo 19.º da Lei 2/88 o seguinte:
Artigo 19.º
Dotação concorrencial
1 - É inscrita a título de dotação concorrencial no orçamento do Ministério das Finanças - capítulo 51 - uma verba de valor negativo de 33 milhões de contos, a qual consagra o princípio de que as despesas do Orçamento do Estado para 1988 devem concorrer entre si para terem efectivo cabimento orçamental com a correlativa não execução ou redução de actividades incluídas em despesas de funcionamento ou com prejuízo de programas e projectos do PIDDAC menos competitivos ou de menor prioridade.2 - A execução da dotação concorrencial deve ser cumprida ao longo do ano económico, pressupondo uma afectação mais eficiente de recursos e uma selecção criteriosa dos programas, projectos e actividades, dando prioridade às despesas mais essenciais, bem como às despesas com comparticipação assegurada pelas Comunidades Europeias.
3 - Para efeitos do número anterior, a aplicação da dotação concorrencial começará por incidir, em partes iguais, sobre o PIDDAC, por um lado, e sobre todas as outras despesas, por outro.
Em conformidade com o disposto no artigo 1.º, alínea a), da Lei 2/88 foi aprovado o Orçamento do Estado para 1988, em cujo mapa II, no sector departamental relativo ao Ministério das Finanças, se inscreveu no capítulo 51 a dotação concorrencial de - 33 milhões de contos, e em cujo mapa III, na divisão referente a «Despesas de capital», e sob o n.º 71, se inscreveu em «Outras despesas de capital» a verba de - 10182358 contos.
Serão realmente inconstitucionais todas estas normas que se referem à figura da dotação concorrencial, como pretendem os deputados do PS e do PCP? A este novo instrumento orçamental alude o relatório da subcomissão para o efeito criada pela CPEFP (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 31, de 16 de Dezembro de 1987, p. 726) nos seguintes termos:
A terceira questão que se coloca, em termos da apreciação geral do orçamento das despesas, é a proposta relativa à dotação negativa de 33 milhões de contos, designada «Dotação concorrencial». De acordo com o relatório da proposta orçamental, a dotação concorrencial visa vincular «a execução orçamental de 1988 à não realização de despesas de igual montante, dado que os programas, projectos e actividades passarão a concorrer entre si, reduzindo-se ou extinguindo-se os que vierem a revelar-se com menor mérito relativo». A Comissão não desconhece que, face à Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado, o Governo tem a possibilidade de reduzir ou anular dotações orçamentais, a menos que impostas por contrato ou por disposição legal, já que as dotações aprovadas pela Assembleia da República são limites máximos de despesa. Acresce que já em orçamentos anteriores foram aprovados dispositivos legais tendentes a vincular a não realização da totalidade das despesas orçamentadas, sendo certo que, a par do quantitativo desse «congelamento», eram claramente definidas igualmente a natureza económica e a afectação orgânica dessas despesas não realizáveis, o que não sucede no caso em apreço.
A Comissão não chegou a consenso quanto à valoração desta dotação.
Refere, pois, a subcomissão, neste passo do seu relatório, que já em orçamentos anteriores, embora com outro grau de definição, haviam sido aprovados dispositivos legais tendentes a vincular a Administração à não realização da totalidade das despesas orçamentadas.
São exemplo disso, nomeadamente, os seguintes preceitos:
a) Lei 2/83
Artigo 50.º
Aumento de produtividade
1 - Em consequência das medidas a implementar durante o ano de 1983 deverão os serviços que integram a Administração Pública obter um acréscimo de produtividade de, pelo menos, 4%, sendo reduzidas numa importância equivalente a esta percentagem as dotações dos orçamentos de despesa dos ministérios ou departamentos equiparados, com cobertura nas receitas gerais do Estado.
b) Lei 2-B/85
Artigo 65.º
Aumento de produtividade
1 - Em consequência das medidas a implementar durante o ano de 1985, deverão os serviços que integram a Administração Pública obter um acréscimo de produtividade de, pelo menos, 3%, sendo reduzidas numa importância equivalente a esta percentagem as dotações dos orçamentos de despesa dos ministérios ou departamentos equiparados, com cobertura nas receitas gerais do Estado.
c) Lei 9/86
Artigo 9.º
Recursos humanos
1 - ....................................................................................................................2 - ....................................................................................................................
3 - ....................................................................................................................
4 - ....................................................................................................................
5 - Um serviço que liberte pessoal para outros serviços poderá ser compensado com aumento de dotação para outras aplicações, podendo ao mesmo tempo ser congeladas as verbas de pessoal libertadas pelas saídas dos funcionários e agentes.
d) Lei 49/86
Artigo 10.º
Recursos humanos
1 - ....................................................................................................................2 - Um serviço que liberte pessoal para outros serviços poderá ser compensado com aumento de dotação para outras aplicações, podendo ao mesmo tempo ser congeladas as verbas de pessoal libertadas pelas saídas dos funcionários e agentes.
47 - A dotação concorrencial consagrada na Lei 2/88 veio mais tarde a ser objecto de regulamentação, no plano executivo, através do artigo 7.º do Decreto-Lei 67/88, de 2 de Março, o qual, neste sentido, precisou o seguinte:
Artigo 7.º
Dotação concorrencial
1 - A execução da dotação concorrencial, definida pelo artigo 19.º da Lei 2/88, de 26 de Janeiro, concretizar-se-á, nos termos do artigo 20.º da Lei 40/83, de 13 de Dezembro, através da cativação de dotações em capítulos de cada ministério, de forma a totalizar 33 milhões de contos.2 - As cativações de verbas a que se refere o número anterior serão feitas respeitando a seguinte sequência:
1.º Até ao final do segundo mês de execução orçamental proceder-se-á, mediante despacho do Ministro das Finanças, à fixação de quotas proporcionais nos orçamentos de funcionamento de cada ministério ou departamento equiparado, de forma a totalizar 16,5 milhões de contos, não contando para a determinação daquelas quotas as rubricas de transferências correntes e de capital para as autarquias locais, regiões autónomas, Assembleia da República, Presidência da República e Segurança Social, bem como os capítulos «Encargos da dívida pública», «Pensões e reformas» e «Despesas excepcionais», e ainda as despesas com compensação em receita e as que constam da Lei de Programação Militar;
2.º Até ao fim do segundo mês de execução orçamental, por despacho do Ministro do Planeamento e da Administração do Território, serão fixadas as quotas proporcionais de cativação no capítulo 50 de cada ministério ou departamento equiparado, de forma a totalizar 16,5 milhões de contos;
3.º Até ao dia 30 de Abril, o ministro da tutela indicará ao Ministro das Finanças a distribuição provisória das dotações orçamentais a cativar no respectivo ministério, estabelecendo-se o dia 15 de Julho como data limite para eventuais alterações àquela distribuição, com vista a uma tomada de decisão pelo Conselho de Ministros;
4.º Até ao dia 30 de Abril, sob proposta do ministro da tutela, o Ministro do Planeamento e da Administração do Território reajustará as quotas de cativação estabelecidas no PIDDAC;
5.º Até ao dia 30 de Julho, sob proposta do Ministro do Planeamento e da Administração do Território, o Conselho de Ministros procederá à análise do nível de execução e perspectivas de realização, bem como do grau de prioridade dos programas e projectos do PIDDAC, sendo reajustadas em conformidade as quotas de cativação;
6.º Deverá cada ministério garantir que durante a execução orçamental relativa ao 1.º e ao 2.º trimestres não sejam assumidos compromissos que possam pôr em causa o cumprimento do disposto nos números anteriores;
7.º Até ao dia 15 de Setembro e tendo presente o grau de execução e perspectivas de realização do orçamento de funcionamento e do PIDDAC, o Conselho de Ministros, sob proposta dos Ministros das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território, deliberará sobre eventuais alterações nas quotas de cativação, fixando-as definitivamente;
8.º O grau de concorrencialidade das despesas, segundo o seu mérito relativo e imprescindibilidade, e ainda a disponibilidade do co-financiamento comunitário constituem a base de referência para a alteração das quotas proporcionais de cativação quer do orçamento de funcionamento quer do PIDDAC.
48 - À laia de contributo para a resolução do problema da sua verdadeira natureza jurídica, não será despicienda ainda a transcrição de certos passos, os mais significativos a este respeito, do debate na especialidade da proposta de lei relativa ao Orçamento do Estado para 1988, debate que se desenrolou perante a CPEFP (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 35, de 30 de Dezembro de 1987):
[...] de acordo com o que se acha aqui estabelecido no artigo 17.º [a que veio a corresponder o artigo 19.º da Lei 2/88], a gestão desta dotação concorrencial vai permitir fazer transferências de verbas entre os diversos capítulos, de acordo com a classificação - eu, de acordo com o que aqui está, tiro essa conclusão. [Deputado Nogueira de Brito, p. 704-(75).] [...] há uma questão que ainda não está clarificada [quanto à dotação concorrencial] e é [...] que de entre as despesas algumas seriam realizadas até aos 100%, outras seriam a menos de 100%. Isso é o normal em todos os orçamentos e, em princípio, são raros os casos em que se poderá ir além dos 100% do orçamentado. Mas, para além disso, há outro aspecto, que é o seguinte: que despesas? Isso não foi, até hoje, explicado. [Deputado Octávio Teixeira, p. 704-(76).] Já dissemos que a Assembleia da República autoriza máximos em cada rubrica orçamental e nós cumpriremos os máximos, ficando, no entanto, abaixo dos máximos em algumas das rubricas, de modo a também cumprir esta reserva negativa. [Ministro das Finanças, p. 704-(78).] O que se passa é que [...] a autoridade orçamental competente, perante um determinado esquema de execução, julgará em seu critério o que é que deve ser cortado e o que não deve ser. No entanto, para que isto pudesse ser concorrencial era preciso que os projectos competissem uns com os outros concorrencialmente, isto é, que fosse conhecida a priori a escala de mérito [...] Ora, como sabemos, não há nada que concorra aqui e o que se vai passar é um processo político, negociado ou não, em que a autoridade orçamental corta. Isto não tem nada de concorrencial, é um processo de decisão que é perfeitamente legítimo do ponto de vista da gestão orçamental, simplesmente não se compadece com o nome de dotação, nem com o nome de concorrencial [...] O mapa II tem um número negativo, de 33 milhões de contos, mas como aquele mapa se chama mapa de despesa e como toda a gente está de acordo em que esses 33 milhões de contos não são uma despesa e sim um abate, entendo que esse número não pode constar desse mapa, pois, nesse caso, o mapa perde a sua característica homogénea, ou seja, deixa de ter todas as suas inscrições da mesma natureza. [Deputado João Cravinho, p. 704-(87).] [...] a dotação concorrencial foi um esquema que este governo encontrou para apresentar um défice inferior aos juros [...] todos os anos o Ministério das Finanças - ou, antes, os Ministérios das Finanças, porque não é só o seu governo que faz isto - cativa verbas nos diversos ministérios e não deixa realizar as despesas previstas [...] O que lhe pergunto é o seguinte: com esta inovação da dotação concorrencial o Governo não está, pura e simplesmente, a escamotear o défice? [Deputada Helena Torres Marques, p. 704-(88).] Em primeiro lugar, a dotação concorrencial está bem nas despesas porque realmente constitui uma redução.
[...] Nós aqui temos de votar um limite máximo para a despesa, mas isso não significa necessariamente que a mesma tenha de ser atingida. [Deputado Alípio Dias, p. 704-(90).] [...] pelo Sr. Deputado Nogueira de Brito, que me perguntou se esta matéria [a da dotação concorrencial] não contemplava transferências de verbas entre serviços ou ministérios. Efectivamente ela não contempla esse aspecto, [...] é a posteriori, através da afirmação da competitividade pelos Srs. Ministros e pelos serviços, que a dotação concorrencial vai funcionar. [Ministro das Finanças, pp. 704-(90) e 704-(91).] [...] dada a inscrição que o Governo fez desta dotação provisional como despesa negativa, ajuda a concebê-la como uma forma auxiliar de financiamento, isto é, neste sentido a dotação concorrencial diminui as necessidades de financiamento e, portanto, deve ser analisada pela Assembleia juntamente com o financiamento. [Deputado Nogueira de Brito, p.
704-(179).] [...] este número que aqui está, exprima o que exprimir, não exprime a dimensão de uma despesa, exprime a dimensão de uma redução. Portanto, como o Sr. Deputado Nogueira de Brito aqui afirmou, essa matéria deve ser vista em termos de financiamento, porque é esse o efeito, é essa a sua consequência directa. [Deputado João Cravinho, p. 704-(180).] O grande problema é, naturalmente, o de saber se essa margem de inovação é compatível com o quadro constitucional e se é compatível com a própria Lei do Enquadramento, uma vez que estamos no domínio, repito, da inovação.
[...] O que não se consegue, repito, é apurar qual a caracterização jurídica, a precisa natureza jurídica da cuja dita dotação concorrencial. Isto porquê? Porque é uma dotação negativa? Sabemos que uma dotação negativa será o contrário, no mínimo, de uma dotação positiva e distingue-se claramente da dotação provisional por isto, mas não só.
[...] aquilo que se visa é instituir despesas sem financiamento assegurado, isto é, traduz-se no OE uma nova situação, um novo quadro, e esse quadro é o de haver actividades que têm financiamento seguro, despesas que têm financiamento assegurado, e outras que não o têm.
[...] eu creio que é difícil obter um entendimento quanto à questão de saber se é uma receita ou uma despesa.
[...] Todavia, entendo que há um lado mais volumoso e notório que o outro, como é normal, aliás, e esse lado é o lado do financiamento.
[...] A questão que se coloca é saber se é compatível com o quadro constitucional um orçamento aberto.
[...] Devo alertar também para as implicações que isto tem em relação ao regime de alteração do OE. [Deputado José Magalhães, pp. 704-(180) e 704-(181).] [...] o Governo admitiu claramente que houvesse uma clarificação do seu pensamento no sentido de referir [...] que não haveria nenhum intuito de fazer modificações de capítulos e, portanto, essa limitação deveria ser explicitada na redacção do artigo 17.º Não permitia que houvesse modificações em termos dos capítulos do Orçamento. [Presidente da Comissão de Economia, Finanças e Plano, p. 704-(182).] O que aqui se pretende, como já se explicou por diversas vezes, não é criar normas que violem os princípios constitucionais em matéria orçamental, mas tão-somente permitir uma gestão mais racional das despesas, uma adopção de critérios de selectividade, de concorrencialidade e de competitividade dentro dos ministérios em matéria de despesas durante a execução orçamental.
Trata-se, em suma, de uma norma de execução orçamental que gera poupanças ex ante e não gera poupanças ex post.
[...] Também as normas de limitação das dotações de cabimento orçamental dos plafonds máximos de cada capítulo de cada ministério não serão violadas por esta dotação concorrencial. Portanto, esta dotação concorrencial não serve para fazer transferências de verbas entre ministérios, mas tão-somente para garantir nos ministérios um nível de poupança mínimo de 33 milhões de contos.
[...] Esta dotação concorrencial também não descaracteriza o OE porque não representa mais de 1,4% das despesas totais do OE.
[...] uma norma que pela primeira vez caracteriza [...] o Orçamento [...] não como um mero documento jurídico-formal de inscrição de verbas que os serviços poderão gastar até a um limite, mas sim como um instrumento de gestão pública segundo o qual os ministérios não devem contentar-se apenas em ter dotações orçamentais, em não ultrapassarem essas dotações segundo as regras da inscrição e cabimento, fazendo com que pela primeira se introduzam normas de prioridade dentro das suas actividades, mesmo quando todas elas tenham cabimento à partida. [Secretário de Estado do Orçamento, pp. 704-(182) e 704-(183).] Averiguámos esta dificuldade [de relacionamento da dotação concorrencial com a despesa] junto de todos e de cada um dos Srs. Ministros e todos eles nos informaram de que isto não lhes dizia respeito. Todos disseram que a sua despesa ia ser cumprida a 100% da respectiva dotação. Não é uma questão de despesa, mas sabemos já que é uma questão de receita, porque sabemos que o financiamento que nos é pedido se destina às importâncias que não são alcançadas pela receita fiscal deduzidas desta importância. [Deputado Nogueira de Brito, p. 704-(184).] Por aquilo que o Governo nos tem dito, a dotação dita concorrencial põe todas as despesas a concorrer entre si, excepto as despesas com pessoal. Gostaria de saber qual é a capacidade de concorrência de uma dotação como, por exemplo, a dotação de juros. Vai concorrer como e com quem? Ou se paga ou não se paga. Não pode concorrer com ninguém.
[...] Isto, de facto, é uma questão de mera execução orçamental e nesse sentido sugiro-lhe o seguinte: retira-se a chamada dotação concorrencial do articulado e dos mapas de despesa e, no artigo de execução orçamental, acrescenta-se um número, dizendo assim: «O Governo procederá ao que quiser no sentido de poupar, em termos de execução orçamental, 33 milhões de contos.» [Deputado Octávio Teixeira, p. 704-(184).] [...] efectivamente nós não estávamos a votar uma despesa, que esta norma é programática da forma como o Governo iria executar, que nem era necessário cá estar, mas que fazia com que o Governo viesse mesmo a ter necessidade de poupar estes 33 milhões de contos. Dito isto, significa [...] que não estamos a votar uma despesa, estamos a votar uma decisão que tem reflexos não sobre as receitas [...] mas sobre o financiamento do défice. [Deputada Helena Torres Marques, p. 704-(184).] [...] não há nenhuma norma que proíba a inscrição de dotações no orçamento da despesa de valor negativo e, portanto, por mais voltas que dêem à Constituição, não há nenhuma norma que proíba a inscrição de verbas de montante negativo no OE. [Secretário de Estado do Orçamento, p. 704-(185).] O Governo nunca afirmou, nesta matéria de dotação concorrencial, que o problema que aqui estava era de défice orçamental. Não era, era um problema de inscrever uma norma no OE que elevasse o grau de rigor da sua execução.
[...] concordam com esta norma, concordam com estes princípios, só não querem é que, no défice orçamental, tenha impacte logo de início.
[...] mas aceito também [...] que, na execução orçamental, se tenham de adoptar opções de gestão orçamental que, em cada dia e em cada momento, impliquem uma poupança global, pelo menos, de 33 milhões de contos.
[Secretário de Estado do Orçamento, p. 704-(185).] Simplesmente, o Sr. Secretário de Estado faz outra coisa, fala de uma norma de execução que não apresenta como tal, não se quer confortar com uma expressão escrita da norma de execução como norma, o que quer é o número. [Deputado João Cravinho, p. 704-(186).] [...] diz o Sr. Secretário de Estado que se trata tão-só de conceptualizar a prática, cristalizando juridicamente este fenómeno, que toda a gente reconhecerá que se tem verificado, e que é o da existência de despesas não realizadas. Tratar-se-ia, pois, de uma forma de controle do défice ex ante ou, pelo menos, de uma forma de poupança forçada, por assim dizer. O Governo é incapaz de se autocompelir à poupança, viria à Assembleia da República para, sob força de lei, decretar como obrigatória uma poupança à qual, de bom grado, se submeteria.
[...] a questão, como bem foi sublinhado, é a natureza jurídica e até financeira, face a uma concepção moderna do papel do Orçamento, da decisão orçamental. Isto é, se o Orçamento é, realmente, esse instrumento de gestão - e deve sê-lo, um instrumento de gestão dinâmico e compatível com as políticas de diversas índoles que se pretende implementar, consagrando e exprimindo prioridades, com as margens de flexibilidade, mas também de vinculação -, então a decisão fundamental, num sistema de repartição de poderes como é o sistema das democracias como a nossa, é o de garantir que a decisão orçamental, que é parlamentar por excelência, não seja distorcida na parte que cabe ao outro órgão de soberania envolvido, isto é, ao Governo.
[...] Agora temos as despesas com cabimento efectivo e as despesas sem cabimento efectivo, isto é, sem cabimento algum. [Deputado José Magalhãres, pp. 704-(186) e 704-(187).] Portanto, há uma forma de cabimento que é o de todas as despesas terem cabimento, mas, como concorrem entre si, há despesas que têm um cabimento - não direi provisório - que pode deixar de o ser. No entanto, há um aspecto fundamental neste poder deixar de ser cabimento, e que é o facto de não ter a tal inconstitucionalidade, que o Sr. Deputado receia que tenha, consubstanciada no facto de haver despesas que ultrapassem o cabimento que a Assembleia da República votou no decurso do debate e votação do OE para 1988. Portanto, esta norma tem o risco para os serviços que têm menor prioridade ou que justificaram menos bem as suas actividades.
[...] Esta dotação concorrencial [...] significa que as decisões de prioridade e de selectividade não se esgotam no momento em que o Conselho de Ministros aprova a proposta de lei do Orçamento, a enviar à Assembleia da República.
Esses princípios de prioridade vão manter-se desde o primeiro ao último dia de execução do OE. [Secretário de Estado do Orçamento, pp. 704-(187) e 704-(188).] A questão mais preocupante, e que o Sr. Secretário de Estado acabou por corroborar, é que esta técnica, este sistema, introduz uma grande margem de incerteza nas inscrições feitas pela Assembleia da República, dá-lhes um grau de flutuação e de incerteza que me parece dificilmente compatível com o estatuto que constitucionalmente lhes seria devido e transfere para o Governo a decisão fulcral quanto ao financiamento.
Ora bem, esta transferência excede a margem normal que decorreria do poder do Governo em matéria de execução. [Deputado José Magalhães, p.
704-(188).] [...] efectivamente, essa margem é da competência do Governo, que só está limitada no sentido «não», isto é, a Assembleia vota no sentido «sim» da despesa até um limite e o Governo pode decidir não gastar essa despesa.
Esse limite está previsto pela Constituição. São as obrigações da lei e de contrato, e, portanto, o Governo nunca poderia evocar normas deste tipo de poupança orçamental que pusessem em causa obrigações cometidas ao Estado através de lei, sendo o caso, por exemplo, dos vencimentos dos funcionários, das rendas dos contratos dos prédios, das obrigações de pagamento de juros, de serviço da dívida e de empréstimos, etc. [Secretário de Estado do Orçamento, p. 704-(188).] Suponho que uma das ideias que ainda não ouvi referida, mas que certamente será uma das intenções do Governo ao propor esta dotação concorrencial votada aqui desta forma, foi a de associar a Assembleia da República a um mecanismo de racionalização, de eficácia. É um convite que se agradece, mas sucede que não é expresso de forma compatível com as responsabilidades do Governo e com as competências da Assembleia.
Baralha uma coisa e outra, levando a Assembleia a substituir o Governo nas tarefas ingratas [...], deforma um princípio fundamental dessa colaboração, o que vai dar o péssimo resultado de pretender transformar a Assembleia da República não num órgão de soberania que superiormente, e dentro da competência máxima orçamental, dá o seu apoio, mas numa bengala do Governo, para este efeito. [Deputado João Cravinho, p. 704-(188).] 49 - A fim de examinar os problemas de constitucionalidade suscitados pela dotação concorrencial, importa analisar a sua incidência estritamente orçamental, ou seja, sobre os mapas de receitas e despesas que constituem o Orçamento.
A dotação concorrencial reflecte-se no mapa II - «Despesas por departamentos do Estado» - através da inscrição de uma verba negativa de - 33 milhões de contos. Ora, verificando-se que o montante global das despesas previstas (descontada a dotação concorrencial) é igual ao montante global das receitas previstas, conclui-se que, sem aquela dotação negativa, o montante das despesas excederia de 33000000 de contos as receitas previstas. O efeito da dotação concorrencial consiste realmente em fazer com que as despesas formalmente previstas no mapa II não possam atingir a soma de todas elas, tendo de ficar aquém desta em 33 milhões de contos.
Todavia, já quanto ao mapa III - «Despesas por grandes agrupamentos económicos» -, a dotação concorrencial negativa é de apenas - 10182358 contos, o que só se compreende se se entender que esse número - que corresponde à rubrica «Outras despesas de capital» - constitui um saldo resultante da diferença entre o valor negativo de «Dotação concorrencial» de 33 milhões de contos e o valor positivo de «Despesas de capital» não especificadas, de montante equivalente à diferença entre os dois valores indicados.
Quanto ao mapa IV - «Classificação funcional das despesas públicas» -, não existe nenhum reflexo da dotação concorrencial, pois não se inscreveu nenhuma dotação negativa. Ora, como o montante das despesas desse mapa é idêntico ao dos mapas II e III, a explicação para a aparente incongruência estará porventura no facto de, no mapa IV, as dotações previstas já estarem deduzidas da dotação concorrencial, distribuída pelas várias rubricas que o compõem, de acordo com critérios que a simples análise dos mapas não revela.
A) As normas em causa neste capítulo face ao disposto no artigo 108.º,
n.os 1, alínea a), e 5, da CRP
50 - Dispõe o artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP que o Orçamento do Estado contém a discriminação das receitas e despesas do Estado, acrescentando o n.º 5 do mesmo artigo 108.º que o Orçamento especificará as despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos.A propósito, escreve Sousa Franco, ob. cit., p. 323:
A regra da especificação diz-nos que no Orçamento se deve especificar ou individualizar suficientemente cada receita e cada despesa.
A regra da especificação encontra o seu fundamento numa necessidade de clareza e nos próprios objectivos da instituição orçamental, que seriam defraudados sem esta exigência.
Em Portugal, a Constituição expressamente impõe a exigência de especificação quanto às despesas, por forma a evitar-se a formação de fundos secretos (CRP, artigo 108.º, n.º 3), enquanto idêntica exigência é formulada também para as receitas pela LEOE (artigo 7.º, n.º 1).
Esta regra da especificação, segundo os deputados do PS, teria sido infringida, uma vez que a possibilidade de o Governo, por via da dotação concorrencial, suprimir a seu bel-prazer as despesas que quisesse poria em causa a discriminação das despesas orçamentadas.
Já na perspectiva dos deputados do PCP, aquela regra da especificação teria sido derrotada, por um lado, porque no artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP se estipula que o Orçamento há-de abranger as receitas e as despesas, mas não um tertium genus, como é o caso da dotação concorrencial, e, por outro lado, porque havendo as despesas, segundo o artigo 19.º, n.º 1, da Lei 2/88, de «concorrer entre si para terem efectivo cabimento orçamental», a Assembleia da República teria afinal aprovado a inscrição de dois tipos de despesas (umas com cobertura e outras sem cobertura financeira), ignorando mesmo em qual das categorias se inseririam as despesas por ela aprovadas.
Serão exactos e merecerão por isso acolhimento estes posicionamentos críticos? É evidente que a constitucionalidade do Orçamento do Estado para 1988 não é posta em causa, enquanto nele se alinham ao longo dos mapas II, III e IV as despesas previstas e autorizadas. Não se contesta que essas despesas, em si mesmas consideradas, tenham sido suficientemente especificadas.
Critica-se, sim, a intromissão, nesse plano, da figura da dotação concorrencial.
51 - Com a aprovação do Orçamento do Estado, a Assembleia da República autoriza a realização das despesas nele previstas e, por outro lado, abre créditos em ordem à efectuação de tais despesas.
Por via desta aprovação coloca-se à disposição dos diversos departamentos estaduais os plafonds de créditos distribuídos. Não ficam eles, porém, e em absoluto, com a faculdade de livre disposição dos créditos abertos, desde logo porque, na sua utilização, esses mesmos departamentos ficam obrigados a respeitar determinadas regras, designadamente as constantes dos artigos 18.º e 19.º da Lei 40/83.
Por outro lado, tal faculdade dispositiva não implica necessariamente que os serviços tenham sempre de utilizar os créditos abertos até ao esgotamento, pois que apenas em relação às despesas obrigatórias - decorrentes de leis preexistentes ou de contratos - se verifica o ónus da utilização forçada dos créditos abertos. Ou, como de um modo próximo escreve Teixeira Ribeiro, Lições citadas, pp. 41 e 42:
As verbas nele inscritas [no orçamento das despesas] correspondem às importâncias que se prevê que os serviços precisam gastar. Por conseguinte, nunca os serviços poderão fazer despesas de montante superior aos créditos orçamentais. Supõe-se, evidentemente, que as farão de montante igual, mas isso não impede que, vindo a verificar-se excesso nas previsões, as façam de montante inferior.
No propósito de sujeitar os gastos públicos a critérios de racionalidade e economicidade, e apontando sempre para a não exaustão dos créditos orçamentados, veio o artigo 13.º da Lei 2/88, na linha, aliás, do artigo 18.º, n.º 3, da Lei 40/83, determinar que o Governo tomasse as medidas necessárias à rigorosa contenção das despesas públicas e ao controle da sua eficiência, de forma a alcançar possíveis reduções do défice orçamental e uma melhor aplicação dos recursos públicos.
Esta linha política da administração financeira desenvolve-se, nestas situações, e como é bom de ver, pura e simplesmente ao nível da execução orçamental. Em nada influi no plano da especificação das despesas autorizadas, especificação que se situa num momento claramente anterior.
52 - Ora tudo se passa de modo diferente no caso da «dotação concorrencial». É que ela opera não apenas ao nível da execução orçamental mas sim e desde logo ao nível da sua previsão. Na verdade, o que há de verdadeiramente novo na dotação negativa é o facto de as despesas previstas não poderem ser efectivamente realizadas pelo valor inscrito, visto que a respectiva soma excede o montante das receitas orçamentadas. A previsão de cada despesa só pode ter aquele valor se deduzido do equivalente à dotação concorrencial. Ou seja: a previsão de despesas não pode ter efectivamente o valor enunciado nos mapas de despesas; a especificação das despesas está sob reserva da dotação concorrencial. Das despesas especificadas há necessariamente uma ou mais que não podem ser realizadas, no todo ou em parte, até à concorrência de 33 milhões de contos.
É certo que no mapa II as despesas, de acordo com a classificação orgânica a que obedece aquele mapa, estão distribuídas pelos vários departamentos da administração financeira, dentro destes por organismos (capítulos) e a esses níveis quantitativamente discriminadas. E no mapa III as despesas, de acordo com a classificação económica a que está sujeito aquele mapa, distribuem-se por despesas correntes e despesas de capital, dentro de cada uma dessas categorias por números e a esses níveis estão quantitativamente discriminadas.
Se não existisse a dotação concorrencial quer num mapa quer noutro, tal discriminação de despesas não mereceria qualquer censura do ponto de vista do artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP (que, aliás, nem exige a especificação de despesas segundo a respectiva classificação económica, critério a que obedece, como se viu, a elencação de despesas constante do mapa III). Todavia, entrando em cena a dotação concorrencial, o quadro altera-se radicalmente, como se mostrou. Na verdade, a especificação de despesa passa a ser, em certa medida, fictícia, já que uma parte das despesas - e quais não se sabe - não podem ter efectivo cabimento orçamental (como diz expressamente o preceito em causa). Ora, se uma ou mais despesas não podem ter cabimento e se não se sabe qual ou quais são, então não se pode dizer que haja especificação de despesas no sentido verdadeiro e próprio.
Não se diga, portanto, que a dotação concorrencial é apenas mais um instrumento de redução de despesas na fase de execução do Orçamento. Já se mostrou que ela afecta desde logo a previsão orçamental, sabendo-se à partida que haverá uma necessária diferença entre as despesas previstas e as realizadas, não se conhecendo de antemão quais é que vão ser sacrificadas. A diferença essencial está em que, sem a dotação concorrencial, as despesas previstas podem todas e cada uma delas ser realizadas até ao limite da dotação orçamental, enquanto com a dotação concorrencial as despesas previstas não podem ser realizadas, todas e cada uma delas, até esse limite, havendo necessariamente uma ou mais que afinal não têm cabimento orçamental.
Também não tem relevância o argumento de que o valor da dotação concorrencial constitui apenas 1/66 do total das despesas autorizadas, pelo que o seu significado será despiciendo. A verdade é que, por mais reduzido que seja, proporcionalmente, o valor de tal dotação, sempre ela se reflectirá inexoravelmente numa contra-especificação das despesas.
Por conseguinte, há que concluir pela violação da regra constitucional da especificação das despesas, decorrente da alínea a) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.
B) As normas em causa neste capítulo face aos artigos 108.º, n.º 3, e
164.º, alínea g), da CRP
53 - Em quadro de absoluta indelegabilidade, estatui o artigo 164.º, alínea g), da CRP que compete à Assembleia da República aprovar o Orçamento do Estado, aprovação que, nos termos do artigo 169.º, n.º 2, da CRP, terá de ser feita por via de lei.Com estes preceitos se conjuga, aliás, o n.º 3 do artigo 108.º da CRP, que determina que a proposta de orçamento é apresentada pelo Governo e votada na Assembleia da República, nos termos da lei.
Compete, pois, ao Parlamento aprovar «o documento onde são previstas e computadas as receitas e as despesas anuais, competentemente autorizadas» (artigo 19.º do Regulamento da Contabilidade Pública de 31 de Agosto de 1881) e ao Executivo não só apresentar a respectiva proposta, mas ainda, e de acordo com o disposto no artigo 202.º, alínea b), da CRP, fazer executar o Orçamento aprovado.
A regra de que o Orçamento é aprovado pela Assembleia da República (sob proposta do Governo) e executado pelo Governo é um traço decisivo da «constituição orçamental» desde a primeira revisão constitucional (1982). A decisão orçamental compete à Assembleia da República; ao Governo compete dar-lhe execução.
Deste princípio essencial decorrem várias ilações, as mais importantes das quais são as seguintes:
a) O Orçamento aprovado pela Assembleia da República não pode deixar de preencher requisitos mínimos em termos de especificação de receitas e de despesas;
b) A Assembleia da República não pode autorizar o Governo a alterar o Orçamento;
c) O Orçamento não pode ser alterado pelo Governo, ao menos nos aspectos constitucionalmente reservados à Assembleia da República.
Este princípio constitucional da repartição de competências orçamentais entre a Assembleia da República e o Governo traduz-se necessariamente em conferir à Assembleia da República a competência para decidir das opções politicamente significativas em matéria orçamental: volume de despesas e receitas globais, dimensão do recurso ao crédito, opções em matéria de despesas, distribuindo, de acordo com determinados critérios políticos, as dotações para cada rubrica, etc. A Assembleia da República não só não pode delegar no Governo a sua competência nesses pontos como não pode renunciar ao exercício dessa competência, deixando ao Governo poderes mais ou menos discricionários.
Numa jurisprudência já significativa o Tribunal tem vindo a apurar a concretização destes princípios constitucionais.
Assim, sobre alterações orçamentais e, muito particularmente, sobre a repartição de competências entre órgãos de soberania em ordem à alteração do Orçamento do Estado (Assembleia da República e Governo) escreveu-se no Acórdão 144/85 do Tribunal Constitucional, que aqui se volta a citar:
Como previsão que é, o Orçamento pode vir a ser confirmado ou infirmado pelos factos: pode, por exemplo, vir a tornar-se necessária uma despesa não prevista ou verificar-se ser insuficiente a dotação inscrita para determinado efeito. Daí a necessidade de o alterar. As alterações ao Orçamento são, por isso, admitidas em todos os ordenamentos jurídicos.
Sendo, porém, o nosso Orçamento votado em lei da AR, com «especificação» das despesas, compreende-se que não possa o Governo, que é quem tem a incumbência de o executar, alterá-lo como lhe aprouver.
A esse respeito ensina o Prof. Teixeira Ribeiro, Lições ..., citadas, n.º 9:
Ora, ao aprovar o Orçamento, a Assembleia fixou o montante máximo não só da despesa total como da despesa de cada capítulo e de cada função e subfunção. Daí que, em princípio, seja vedado ao Governo transferir verbas de capítulo para capítulo e de função para função ou de subfunção para subfunção, bem como abrir créditos, que se traduzem em aumento da despesa total do Orçamento ou da despesa de qualquer capítulo e de qualquer função e subfunção.
Diz, por sua vez, o Prof. Sousa Franco no citado estudo «Sobre a Constituição Financeira de 1976-1982», n.º 5.10:
Quem pode agir pode alterar (ou revogar: mas não se pode revogar sem mais o Orçamento [...]). Logo, o Orçamento pode ser alterado, desde que seja respeitada a forma inicial: iniciativa legislativa do Governo (devido à sua competência exclusiva e indelegável neste domínio) e alteração por lei de revisão da Assembleia. Será esta a forma normal de introduzir alterações.
Conclui, por seu lado, António Bernardo A. da Gama Lobo Xavier no estudo citado, n.º 11, que, «com a aprovação do Orçamento, o Governo fica vinculado pelos próprios níveis inferiores de especificação daquele documento, no que concerne às classificações orgânica - capítulos - e funcional - subfunções -, de tal forma que as alterações dos mapas orçamentais que contêm as referidas classificações das despesas públicas só podem ser levadas a cabo através da intervenção do Parlamento».
E complementando e desenvolvendo este posicionamento interpretativo, escreveu-se, ainda nesta mesma área (área das alterações orçamentais), no Acórdão 206/87 do Tribunal Constitucional (Diário da República, 1.ª série, n.º 156, de 10 de Julho de 1987) o seguinte:
[...] para uma mais exacta definição das áreas de competência da AR e do Governo em matéria orçamental, cabe relembrar que, nos termos do artigo 108.º, n.º 3, da CRP, «a proposta de orçamento é apresentada pelo Governo e votada na AR, nos termos da lei», que, no caso, é a Lei 40/83.
Ora, e como decorre da Lei 40/83 (cf. os artigos 10.º, 12.º, 14.º e 20.º dessa Lei 40/83), a AR tem de votar especificadamente o Orçamento apenas até aos níveis definidos nos mapas I, II e IV que o integram (v. o que a esse respeito se escreveu no capítulo IV deste acórdão).
Esses níveis mínimos de especificação, recorde-se ainda uma vez, são os seguintes:
a) No que toca às receitas, segundo a classificação económica, o seu desenvolvimento deve ir até aos artigos;
b) No que toca às despesas:
Segundo a classificação orgânica, o seu desenvolvimento deve ir até aos capítulos;
Segundo a classificação funcional, o seu desenvolvimento deve ir até às subfunções.
Para lá desse grau de especificação das receitas e despesas, já o Governo poderá fazer alterações, alterações que, obviamente, não poderão nunca implicar com o quantum global das receitas previstas ou com o total das despesas especificadas, porque, nesse caso, a competência pertencerá já, em exclusivo, ao Parlamento.
54 - Impõe-se agora que por este quadro constitucional - cujos traços essenciais se delinearam - se «meçam» as normas da Lei 2/88 que se reportam à figura da dotação concorrencial, procurando determinar-se, no essencial, se a Assembleia da República, ao institucionalizar aquela figura, recuou no exercício pleno da sua competência própria e exclusiva, e se, de passo, delegou indevidamente poderes orçamentais que só a ela cabiam no Executivo.
Como já se mostrou, a dotação concorrencial significa que de entre as despesas orçamentadas há uma ou mais que, necessariamente, não podem ser realizadas, por não poderem ter cabimento orçamental. Essa falta de cabimentação pode afectar totalmente qualquer das despesas especificadas de montante inferior a 33 milhões de contos, ou afectar parcialmente, até esse montante, as de valor superior. Qual ou quais as despesas virão as ser afectadas, isso fica na disponibilidade do Governo, sendo este totalmente livre na selecção das despesas a serem total ou parcialmente prejudicadas, salvaguardado apenas o critério genérico enunciado no n.º 2 do artigo 19.º da Lei 2/88.
Isto quer dizer que os critérios que levaram a Assembleia da República a distribuir a despesa global de determinado modo pelas diversas rubricas da despesa podem acabar por ser substituídas pelos do Governo, nos limites da dotação concorrencial. Assim, se, por exemplo, a Assembleia da República, de acordo com a escala de prioridades que orientou a decisão orçamental, dotou a despesa x com 30 milhões de contos e a despesa y com apenas 15 milhões, por efeito da dotação concorrencial o Governo pode vir a anular a despesa x, realizando integralmente a despesa y, assim invertendo totalmente a lógica das prioridades da decisão orçamental da Assembleia da República.
A dotação concorrencial traduz-se portanto numa verdadeira subversão do carácter da decisão parlamentar sobre o Orçamento.
Os mapas de despesas orçamentais deixam de exprimir uma verdadeira e definitiva alocação das receitas pelas várias despesas. A Assembleia da República renuncia a exercer integralmente a sua competência, deixando mãos livres ao Governo para ser ele a decidir numa área mais ou menos extensa do orçamento das despesas. A relação entre as despesas previstas nos mapas aprovados pela Assembleia da República pode ser significativamente alterada pelo Governo, e também numa medida tanto maior quanto maior for o valor da dotação concorrencial.
Esta transforma-se, assim, no cavalo de Tróia por onde a competência constitucionalmente reservada da Assembleia da República em matéria orçamental é invadida e expropriada a favor do Governo, que, desse modo, inviesadamente, recupera uma parte dos poderes que a modificação constitucional de 1982 lhe retirou.
Constitucionalmente reduzido à tarefa de executar o Orçamento, o Governo readquire, com a dotação concorrencial, um certo poder de decidir o orçamento das despesas, com diminuição e compressão correspondente dos poderes constitucionalmente exclusivos da Assembleia da República.
O plano financeiro que o Orçamento é, e que constitucionalmente é da competência da Assembleia da República, passa a ser um plano imperfeito, já que prevê despesas que necessariamente não podem ser realizadas e cuja selecção fica na discricionariedade do Governo.
A dotação concorrencial, por conseguinte, faz com que o Governo, em vez de ser apenas o executor do Orçamento aprovado pela Assembleia da República, intervenha também na concretização de uma dimensão do próprio plano orçamental através da alteração do elenco de despesas, alteração necessariamente postulada pela dotação concorrencial.
55 - Em contrário disto não pode argumentar-se com o facto de ser a própria Assembleia da República a aprovar a dotação concorrencial. É que, como já se disse acima, a Assembleia da República não pode delegar os seus poderes nem deixar de exercê-los. As regras da «constituição financeira» visam, desde logo, garantir que a Assembleia da República não possa dispensar-se do exercício da sua competência orçamental.
Também não pode invocar-se a favor da dotação concorrencial o facto de a competência constitucional do Governo para executar o Orçamento ter de envolver necessariamente uma certa área de discricionariedade, desde logo quanto à possibilidade de não realização integral das despesas orçamentadas.
É certo que a primeira função do orçamento das despesas é a de limite de despesa por cada rubrica, não implicando, porém, uma verdadeira obrigação de despesa, salvo quando isso decorra de lei ou de contrato. O Governo pode, por isso, fazer poupanças, não esgotando os créditos orçamentados. Todavia, uma coisa é essa poupança na utilização de uma certa dotação orçamental - que, todavia, pode ser totalmente gasto - e outra coisa, bem diferente, é o Governo ficar com o poder de alterar as próprias dotações orçamentais, seleccionando uma ou várias das despesas nominalmente orçamentadas para efeitos de lhe não atribuir sequer cabimento orçamental, isto é, para efeitos de as desorçamentar, total ou parcialmente (até ao limite da dotação concorrencial).
É este poder que o Governo não pode ter; e esse poder que a Assembleia da República não pode conferir ao Governo.
Por conseguinte, tem de concluir-se que se verifica uma infracção das normas constitucionais que definem a competência orçamental da Assembleia da República e do Governo [artigos 108.º, n.º 3, e 164.º, alínea g), da CRP].
C) As normas em causa neste capítulo face ao disposto no artigo 108.º,
n.º 6, da CRP
56 - Determina o artigo 108.º, n.º 6, da CRP que «o Orçamento deve prever as receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua execução, bem como as condições de recurso ao crédito público».Define-se aqui um certo princípio orçamental, o princípio do equilíbrio, que se explana, todavia, em sentido meramente formal: bastará que as receitas, quaisquer receitas, mesmo as advenientes da contracção de empréstimos, sejam, ao nível previsivo, iguais ou superiores às despesas.
Por conseguinte, reafirmando o que já se disse noutro lugar deste acórdão, o equilíbrio orçamental, na óptica constitucional, registar-se-á sempre que do cotejo das receitas e despesas previstas, umas e outras globalmente consideradas, resulte uma situação contabilística de igualdade ou de superavit.
O que não pode ocorrer é que as despesas previstas excedam as receitas orçamentadas, ou seja, que haja previsão de despesas sem cobertura em receitas.
Todavia, e no que se refere ao Orçamento do Estado para 1988, a dotação concorrencial vem de algum modo interferir com o esquema clássico de equilíbrio orçamental. Em ordem a apurar se se regista equilíbrio naquele Orçamento, já não bastará então fazer as contas tendo em atenção apenas o quantum das receitas e o quantum das despesas; necessário será também, e nessa análise puramente formal, considerar ainda a acção redutora ou anulatória da dotação concorrencial. Por via desse influxo, certas despesas, ulteriormente seleccionadas, far-se-ão por baixo do previsto, ou até não se farão, o que consequenciará uma previsão global das despesas não correspondente à soma das várias parcelas de despesas inscritas, mas antes a essa soma subtraída da verba negativa da dotação concorrencial.
Somadas todas as despesas especificadas nos mapas II e III, verifica-se que elas excedem as receitas previstas no mapa I. Mas, como já se mostrou por efeito da dotação concorrencial, as despesas não poderão ser realizadas tal como estão especificadas, sendo algumas «anuladas» pelo Governo necessariamente até ao montante da referida dotação concorrencial. Ora, é fácil verificar que o excesso da soma das despesas sobre o das receitas é exactamente igual ao valor da «dotação negativa» inscrita em cada um dos mapas II e III. Deste modo, a diferença é apenas aparente.
No entanto - convém voltar a sublinhar particularmente este ponto -, a influência da dotação concorrencial do Orçamento do Estado para 1988 é variável dentro de cada um dos três mapas de despesas, elaborados, aliás de acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 2, da Lei 40/83, segundo códigos de classificação orgânica, económica e funcional (relembre-se que, segundo o artigo 108.º, n.º 5, da CRP, as despesas só teriam obrigatoriamente de ser especificadas segundo códigos de classificação orgânica e funcional).
Assim, enquanto o mapa II (mapa das despesas segundo a classificação orgânica), para o qual, aliás, remete directamente o artigo 19.º da Lei 2/88, inscreve no capítulo 51 do Ministério das Finanças a dotação concorrencial de - 33 milhões de contos, já o mapa III (mapa das despesas segundo a classificação económia) se limita a inscrever em «Despesas de capital», e sob o n.º 71, «Outras despesas de capital», a dotação concorrencial de - 10182358 contos, e o mapa IV (mapa das despesas segundo a classificação funcional), esse, nem sequer lhe faz referência.
Estas diferenças explicam que no mapa II as despesas previstas, e somadas uma a uma, sejam da ordem dos 2205178336 contos, no mapa III da ordem dos 2182360694 contos e no mapa IV da ordem dos 2172178336 contos.
Assim, as receitas previstas, alinhadas no mapa I, e que somam 2172178336 contos, a um nível imediato apenas correspondem às despesas discriminadas no mapa IV. Mediatamente, porém, e subtraídas àqueles totais de despesas previstas nos mapas II e III as dotações concorrenciais, respectivamente, de - 33 milhões de contos e de - 10182358 contos, essa perfeita correspondência monetária entre receitas e despesas também se verificará.
Face a esta situação, de contornos não em absoluto uniformes (ela é variável de mapa de despesas para mapa de despesas), será lícito concluir-se que, ainda assim, foi respeitada a regra do equilíbrio orçamental, tal como o artigo 108.º, n.º 6, da CRP a afirma? É exacto que no n.º 6 do artigo 108.º da CRP se exige que as receitas compensem cabalmente as despesas. No entanto, não menos certo é que, na óptica deste preceito constitucional, tal cotejo das «entradas» e «saídas» orçamentais deverá necessariamente ser de ordem global, não só porque esse é o sentido imediato do n.º 6 do artigo 108.º, mas também porque em nenhum lugar a CRP prescreve, seja para que área for do Orçamento, a regra da consignação de receitas, o que, a verificar-se, implicaria então que se tivessem de registar equilíbrios sectoriais.
Assim, e dentro desta visão global, a constitucionalmente adoptada, observa-se que as dotações concorrenciais, que influenciam as previsões de despesas, e em graus diversos, nos mapas II e III, consequenciam, pela sua dimensão subtractiva em relação ao conjunto das «saídas», que o total previsivelmente realizável das despesas, se equipare, afinal, em qualquer daqueles mapas, ao montante das receitas previstas no mapa I.
Deste modo, e em última análise, entende-se que neste aspecto não foi violada a CRP, designadamente o disposto no seu artigo 108.º, n.º 6.
57 - Não deve, porém, deixar de notar-se que, sendo rejeitada, por inconstitucional, a «dotação concorrencial» - pelos outros fundamentos acima considerados -, todo o discurso anterior sobre o equilíbrio orçamental entra em crise. Na verdade, sem a respectiva «dotação negativa», os mapas II e III passam a prever um montante global de despesas superior às receitas (previstas no mapa I), deixando portanto de observar-se o necessário equilíbrio orçamental constitucionalmente exigido (o que exigirá ou uma diminuição das despesas orçamentadas ou um aumento das receitas, ou ambos, com alteração dos respectivos mapas).
Mas isso será consequência não da dotação concorrencial, mas sim justamente da sua inconstitucionalização.
CAPÍTULO VII
A norma do artigo 22.º, n.º 1, alínea c), da Lei 2/88 face ao artigo 108.º,
n.º 5, da CRP
58 - É o seguinte o teor do segmento ora em causa do artigo 22.º da Lei 2/88:
Artigo 22.º
Alterações orçamentais
1 - Na execução do Orçamento do Estado para 1988 o Governo é autorizado, precedendo concordância do Ministro das Finanças, a:a) .....................................................................................................................
b) .....................................................................................................................
c) Efectuar as transferências de verbas de pessoal justificadas pela mobilidade e reafectação de recursos humanos e seu racional aproveitamento ou pela antecipação da aposentação, independentemente da classificação funcional e orgânica.
2 - ....................................................................................................................
3 - ....................................................................................................................
Segundo os deputados do PS, teria sido aqui afectada a área de competência própria da Assembleia da República respeitante a alterações orçamentais, já que só o Parlamento poderia «mexer» no sector do Orçamento do Estado para 1988 que tivesse a ver com a especificação de despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional (artigo 108.º da CRP).
A este propósito, teve já o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar nos Acórdãos n.os 184/85 e 206/87, dos quais, aliás, e em outros passos do presente acórdão, se fizeram já largas transcrições. Não se vão fazer de novo citações textuais daqueles arestos. Recordar-se-á apenas que neles, e considerados em conjunto, se entendeu, entendimento que ora se volta a sufragar:
a) Que, no que respeita aos níveis mais elevados da especificação das receitas e despesas, o Orçamento do Estado só pode ser alterado desde que se torne a seguir a tramitação inicial, tramitação particularmente definida nos artigos 108.º, n.º 3, 164.º, alínea g), 169.º, n.º 2, e 200.º, n.º 1, alínea d), da CRP e que, no caso de uma alteração daquela dimensão, se terá de traduzir em proposta de lei de alteração do Governo seguida de lei de revisão do Orçamento aprovada pela Assembleia da República;
b) E que, devendo o orçamento das despesas ser aprovado pela Assembleia da República com um determinado desenvolvimento especificativo, de modo que tal desdobramento, segundo a classificação orgânica, vá ao menos até aos capítulos e, segundo a classificação funcional, vá no mínimo às subfunções, só se poderá então admitir, e quando muito, que o Governo proceda, por si só, a alterações orçamentais para lá desses limites, ou seja, na área dos níveis mais baixos da especificação de despesas.
59 - Feitas estas considerações de ordem geral, e revertendo ao caso sub judice no presente capítulo, nota-se:
Que o artigo 22.º, n.º 1, alínea c), permite que o Governo, precedendo concordância do Ministro das Finanças, e por determinados motivos, proceda a alterações orçamentais, consistentes em transferências de verbas de pessoal;
E que o mesmo preceito permite ainda que o Executivo efectue essas transferências de verbas com a maior latitude, isto é, sem respeito pelos níveis especificativos a que, nos termos do artigo 108.º, n.º 5, da CRP, e segundo a classificação orgânica e funcional, sempre terá de obedecer, no Orçamento do Estado, a especificação das despesas.
Sendo assim, impõe-se concluir que a norma do artigo 22.º, n.º 1, alínea c), enquanto atribui ao Governo uma competência alternativa do Orçamento que, pela sua dimensão, apenas cabia à Assembleia da República, viola a CRP, não apenas o seu artigo 108.º, n.º 5, como é referido pelos deputados do PS, mas mais exactamente o regime constitucional anteriormente citado, que comete ao Parlamento o poder de, sob proposta do Executivo, reformular o Orçamento.
CAPÍTULO IX
A norma do artigo 36.º, n.º 4, da Lei 2/88 face ao artigo 108.º, n.º 1,
alínea a), da CRP
60 - O artigo 41.º da Lei 9/86 criou o ISP, com taxas variáveis e correspondentes à diferença entre o preço de venda ao público dos produtos petrolíferos e o respectivo custo, custo em que se incluiriam os encargos fiscais resultantes da aplicação do imposto sobre o valor acrescentado, do imposto de consumo e dos direitos de importação.O artigo 68.º da Lei 49/86 manteve basicamente este regime, apenas especificando em termos mais precisos as diversas componentes do custo de cada um dos produtos petrolíferos sobre que incidia o ISP.
Veio depois o Decreto-Lei 292/87, de 30 de Julho, regulamentar o sistema de determinação e cobrança do ISP, esclarecendo no respectivo relatório o seguinte:
Nos termos do artigo 41.º da Lei 9/86, de 30 de Abril, foi criado o imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), como forma de substituição do sistema que regulava, por via meramente administrativa, os aspectos parafiscais da chamada «economia de combustíveis».
As operações de determinação e cobrança do imposto continuaram, todavia, a processar-se na base de normativos anteriormente aplicáveis aos extintos «diferenciais de preços», realidade que se impõe seja alterada, particularmente em razão da integração das receitas geradas pelo imposto no Orçamento do Estado.
Por outro lado, a assunção dos diferenciais sobre combustíveis líquidos e gasosos como impostos determina que as operações de cobrança sejam cometidas à administração fiscal.
Quanto à determinação e cobrança do ISP, especificou-se no artigo 2.º, n.º 1, desse Decreto-Lei 292/87 que tal passava a competir à Direcção-Geral das Alfândegas (DGA), a qual - artigos 2.º, 3.º e 4.º do mesmo diploma legal -, baseando-se em elementos fornecidos até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitassem, pela Electricidade de Portugal (EDP), E. P., e pelos titulares de declarações de importação para consumo, procederia à determinação do ISP, dando depois conhecimento à EDP e aos titulares de declarações de importação para consumo processadas no mês anterior ao imposto liquidado, e lhes remeteria, até ao dia 25 do próprio mês em que os elementos lhe tivessem sido fornecidos, as respectivas guias de cobrança, com prazo de pagamento até ao último dia útil do mês da emissão.
De acordo com este esquema, a dívida do ISP, em cada mês nascida para os respectivos contribuintes, seria liquidada e paga apenas no mês seguinte.
Este desfasamento de ordem mensal entre o momento em que se verificavam os pressupostos fácticos da tributação (e com eles, e segundo a doutrina dominante, o surgimento da dívida fiscal) e o momento em que o correspondente ISP tinha de ser liquidado e pago levou a que no n.º 4 do artigo 36.º da Lei 2/88, sujeito à epígrafe «Imposto sobre produtos petrolíferos», se determinasse:
As receitas do ISP relativas ao mês de Dezembro, ainda que liquidadas no mês seguinte, são contabilizadas como receitas do ano a que dizem respeito.
Esta norma permite, pois, que receitas do ISP referentes a Dezembro de 1988 e pagas em Janeiro de 1989 sejam contabilizadas como receitas de 1988, e por isso inscritas no Orçamento do Estado para o ano em curso.
61 - Os deputados do PS, na sua interpretação da norma ora em exame, sustentaram que, em violação do disposto no artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP, o n.º 4 do artigo 36.º veio determinar que as liquidações (e não cobranças) do ISP, efectuadas em 1988 e 1989 (em Janeiro de cada um desses anos), haveriam de ser contabilizadas como receitas, respectivamente, de 1987 e 1988.
Como decorre do anteriormente exposto, não se alinha com a leitura que os deputados do PS fizeram da norma do artigo 36.º, n.º 4. Antes dela frontalmente se discorda, e a dois níveis.
Por um lado, não se lê tal norma como estipulando ainda que as receitas do ISP relativas a Dezembro de 1987 e liquidadas no mês seguinte houvessem de ser incluídas no Orçamento do Estado para 1987. De facto, tal leitura só seria possível se esse preceito, declaradamente, tivesse tido o propósito de alterar o Orçamento do Estado daquele ano. Ora isso não sucede, e inserindo-se a norma em apreço na Lei 2/88, que aprovou o Orçamento do Estado para 1988, é de presumir, face à ausência de qualquer determinação em contrário, que ela valerá - artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil - unicamente para o futuro: para o Orçamento do Estado de 1988 e para os dos anos seguintes.
Por outro lado, considerou-se ainda que, quando o n.º 4 do artigo 36.º da Lei 2/88 se refere «às receitas do ISP relativas do mês de Dezembro, ainda que liquidadas no mês seguinte», está a abarcar apenas as receitas do ISP respeitantes a Dezembro de 1988 e pagas em Janeiro de 1989.
O termo «liquidar» - cita-se aqui o verbo, por comodidade de exposição, no infinito impessoal - é, mesmo a um nível meramente jurídico, altamente polissémico. Na hermenêutica do n.º 4 do artigo 36.º, e atendendo ao seu particular contexto, só duas dessas várias significações potenciais poderiam, à partida, merecer acolhimento: ou «liquidar» - e essa foi a leitura dos deputados do PS - significava proceder à liquidação do ISP, entendida esta como «o acto que encerra o processo administrativo fiscal e que define o conteúdo das posições jurídicas do Estado e do contribuinte, concretizando para o primeiro o direito a receber uma prestação pecuniária de determinado montante e para o segundo o dever de a prestar» (Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, p.
414), ou «liquidar» - e essa é a leitura que se defende - significava antes solver a dívida do ISP pelo pagamento.
Optou-se, pois, como logo se anunciou, por esta segunda leitura, e isto por três ordens de razões:
Em primeiro lugar, é de sublinhar que só tal interpretação assegurará a lógica interna do preceito, já que, na técnica contabilística, apenas será possível contabilizar como receita importâncias efectivamente pagas (cf. o n.º 4 do artigo 36.º, que, neste ponto, preceitua que as receitas do ISP liquidadas são de imediato contabilizadas), e não, de modo algum, impostos simplesmente quantificados em decisão final de processo tributário gracioso;
Em segundo lugar, nota-se que só essa interpretação se mostra capaz de assegurar a lógica externa do preceito, lógica, aliás, e de algum modo, paralela àquela segundo a qual é admitido o fecho das despesas orçamentadas em cada ano até 14 de Fevereiro do ano seguinte (Sousa Franco, ob. cit., p. 320);
E, em terceiro lugar, salienta-se que a solução interpretativa propugnada pelos deputados do PS teria consequências altamente absurdas (o ISP liquidado em Janeiro de 1989, mas cuja cobrança só ocorresse muito mais tarde, porventura anos depois, ainda assim teria de ser referido ao Orçamento do Estado para 1988).
62 - Interpretada nestes termos a norma do n.º 4 do artigo 36.º da Lei 2/88, registar-se-á quanto a ela a inconstitucionalidade que no seu requerimento inicial os deputados do PS lhe apontam? Ou, mais directamente, violará tal norma, com essa dimensão significativa, o disposto no artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da CRP, uma vez que, segundo este dispositivo constitucional - e sempre na óptica daqueles deputados -, a correcta discriminação das receitas não pode deixar de postular a contabilização, no Orçamento do Estado de cada ano, das receitas que no seu decurso previsivelmente se hão-de cobrar? Como se vê, na perspectiva dos deputados do PS, é o princípio da anualidade orçamental que é posto verdadeiramente em xeque pela norma do n.º 4 do artigo 36.º No entanto, tal princípio, que após a revisão de 1982 deixou de ser afirmado expressamente na CRP, continuou apesar disso, e como já se demonstrou no capítulo V, a ter base constitucional.
Terá, assim, a norma do n.º 4 do artigo 36.º, na realidade, infringido - e reformulando-se, de algum modo, a interrogação há pouco feita - o princípio da anualidade orçamental, que tem efectivamente assento na CRP? 63 - A resposta, avance-se já, terá necessariamente de ser negativa.
Qualquer que seja o período financeiro a considerar, pode o Orçamento, como nota Teixeira Ribeiro, Lições citadas, p. 37, ser da gerência ou do exercício:
Orçamento da gerência, que é aquele em que se prevêem as receitas que o Estado irá cobrar e as despesas que irá pagar durante o período financeiro. É, portanto, uma previsão de receitas e de despesas na sua fase terminal de cobranças e de pagamentos.
Orçamento do exercício, que é aquele em que se prevêem as receitas que o Estado irá cobrar e as despesas que irá pagar em virtude dos créditos e das dívidas que irão surgir a seu favor e contra si durante o período financeiro. É, portanto, uma previsão de receitas e de despesas na sua fase inicial de créditos e de dívidas.
Ora a CRP não toma partido neste campo, isto é, não se pronuncia sobre o tipo de orçamento que deverá ser adoptado. A solução é dada pela lei ordinária, e precisamente pelo Decreto com força de lei 18381, de 24 de Maio de 1930, que se decidiu pelo sistema da gerência.
Àqueles tipos de orçamento (orçamento da gerência e orçamento do exercício) correspondem paralelos tipos de conta (conta da gerência e conta do exercício), uma vez que entre o orçamento, como previsão, e a conta, como realização, se regista uma conexão incindível, uma conexão como que entre um prius e um posterius.
«Há a conta de todas as despesas pagas e de todas as receitas cobradas durante determinado período: é a conta da gerência; e há a conta de todas as despesas pagas e de todas as receitas cobradas em virtude das dívidas e dos créditos nascidos durante determinado período: é a conta do exercício.» (Teixeira Ribeiro, Lições citadas, p. 97.) O referido Decreto com força de lei 18381, embora dirigindo-se imediatamente à conta, influi em termos reflexos na caracterização do próprio Orçamento - cf. o relatório de tal diploma legislativo, onde significativamente se escreveu:
Ela [a reforma veiculada pelo próprio Decreto com forma de lei 18381] pretende que orçamento e conta sejam informados pelos mesmos princípios, e tanto nas receitas como nas despesas; que traduzam a mesma orientação essencial, para poderem ser comparados e poder ver-se num documento a efectivação do outro; que consigam ser a expressão, o mais perfeita possível, da realidade financeira.
Assim, e directamente para a conta, determinou este diploma legal no seu artigo 2.º:
O serviço de contabilidade pública, a partir de 1 de Julho de 1930, é referido somente a anos económicos que começam em 1 de Julho e terminam em 30 de Junho, e, nesta conformidade, todas as operações de receita e despesa pertencerão ao ano económico em que se realizarem e em conta dele serão escrituradas.
Por isso, daí em diante, e por via desta imposição legal, aboliu-se a conta do exercício e passou a existir uma única conta, a conta da gerência, correspondente ao ano económico, e isto com inevitáveis consequências sobre o estilo do Orçamento (recorde-se que, posteriormente, o ano económico, para efeitos orçamentais e de conta, por via do disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei 25299, de 6 de Maio de 1935, passou a coincidir com o ano civil).
64 - O Orçamento, que então, acompanhando a reforma do regime da conta, passara, por esta razão, a ser da gerência, não o foi, todavia, a partir daí e até hoje, puramente da gerência.
É que a conta, em boa verdade, também não o era só da gerência. Assim, a este respeito, e elucidativamente, escreve Teixeira Ribeiro, Lições citadas, pp.
100, 101 e 102:
Contudo, o Decreto com força de lei 18381 ainda deixou subsistir - de facto, que não de direito - um resto da conta de exercício. Dispõe, na verdade, o seu artigo 3.º:
A conta corrente do Tesouro Público no Banco de Portugal como Caixa Geral do Estado, respeitante ao dia 30 de Junho (hoje, dia 31 de Dezembro), só será encerrada no dia 14 de Agosto (hoje, dia 14 de Fevereiro) seguinte, escriturando-se em referência a 30 de Junho (hoje, 31 de Dezembro) todas as receitas e despesas respeitantes ao ano económico findo nesta data, cobradas e pagas no mencionado prazo.
Por conseguinte, as receitas liquidadas mas não cobradas, bem como as despesas realizadas mas não pagas, até ao fim do ano económico ainda podem ser cobradas e pagas nos 45 dias seguintes, considerando-se, no entanto, como cobradas e pagas no último dia do ano económico a que respeitam.
Mas este período de 45 dias só subsiste hoje quanto às despesas, conforme resulta do § único do artigo 4.º do Decreto-Lei 25299, de 6 de Maio de 1935:
Desde 1 de Janeiro de 1936 todas as receitas do Estado serão escrituradas em conta do ano económico em que a cobrança se efectuar.
Portanto, a nossa actual conta do ano económico (Conta Geral do Estado) é uma conta que abrange todas as receitas cobradas e todas as despesas pagas de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro; simplesmente, escrituram-se como pagas em 31 de Dezembro as despesas realizadas até essa data que venham a ser pagas até 14 de Fevereiro.
Mediante tal artifício, a Conta Geral do Estado é, de direito, integralmente da gerência. De facto, só é integralmente da gerência quanto às receitas, pois, quanto às despesas, ela é apenas quase da gerência, uma vez que as despesas pagas até 14 de Fevereiro por virtude de dívidas nascidas contra o Estado no ano anterior se inscrevem, não na Conta do ano em que os pagamentos se efectuam, mas na Conta do ano em que as dívidas surgiram.
De todo o exposto até aqui resulta que, ao nível da lei ordinária, sendo o Orçamento do Estado presentemente um orçamento da gerência, não deixa, todavia, de ser também, e em certa medida, isto é, quanto às despesas, um orçamento do exercício. E tudo isto sem quebra do princípio da anualidade, constitucionalmente consagrado.
Na realidade, não havendo opção, no plano da CRP, como anteriormente se notou, por um qualquer destes tipos de orçamento, o princípio da anualidade sempre se deverá ter por respeitado:
a) Se no Orçamento se previrem «as receitas que o Estado irá cobrar e as despesas que irá pagar» no período de um ano (orçamento da gerência);
b) Se no Orçamento se previrem «as receitas que o Estado irá cobrar e as despesas que irá pagar em virtude dos créditos e das dívidas que irão surgir a seu favor e contra si» durante o mesmo período (orçamento do exercício).
65 - E prosseguindo com a investigação, e privilegiando a análise jurídico-formal, ser-se-ia tentado a considerar que tal princípio constitucional não seria ainda infringido se o Orçamento, aprovado para valer pelo período financeiro de um ano, combinasse e recolhesse livremente elementos de um e outro tipo de orçamento. É que então, dir-se-ia, o período financeiro de referência, ainda que perspectivado de modo não unívoco, seria sempre o ano.
E, desse modo, concluir-se-ia, já que a CRP não opta pelo orçamento da gerência ou do exercício nem proíbe um orçamento de tipo misto, isso bastaria, isto é, tal referência ao período de um ano, para se dar por cumprido o princípio constitucional da anualidade.
Esta interpretação da CRP, de ordem puramente especulativa, não pode, porém, ser integralmente aceite. É que o princípio da anualidade não é um princípio meramente formal. Antes comporta uma dimensão material, necessariamente incompatível com certas formulações orçamentais de tipo misto.
Não será fácil, para todos os casos em que se tiver ido para uma solução orçamental desta ordem, estabelecer a fronteira, definir os critérios, especificar, enfim, as situações orçamentais de modelo heterogéneo que, infringindo o princípio da anualidade, nesta sua vertente substancial, cairão afinal, necessariamente, no âmbito da inconstitucionalidade. Caso paradigmático de uma solução orçamental desta natureza - e, por isso mesmo, constitucionalmente impura - será o de um orçamento que, injustificada e anomalamente, por via da referência conjugada aos dois modelos de orçamento atrás referidos (o da gerência e o do exercício), vier a concentrar num só ano financeiro o grosso das receitas de um biénio.
66 - Não se torna necessário, porém, e com vista a uma rigorosa delimitação de campos, proceder nesta área a ulteriores desenvolvimentos analíticos.
Bastará, neste momento, enfatizar que se tem por perfeitamente conciliável com o princípio da anualidade, visualizado na sua dupla dimensão (formal e material), uma solução orçamental do género da expressa no n.º 4 do artigo 36.º e explicar brevemente porquê.
É verdade que aí, e dentro de um orçamento que é predominantemente da gerência, se faz uma certa concessão ao modelo do orçamento do exercício:
receitas do ISP pago em Janeiro de 1989 por créditos surgidos para o Estado no mês anterior serão contabilizadas como receitas de 1988. Mas não menos verdade é que tal concessão não só é puramente pontual como, à partida, está decididamente vocacionada para projectar a sua valência normativa sobre orçamentos de anos subsequentes.
Trata-se, pois, por um lado, de uma solução de reduzido alcance (o acréscimo de receitas que ela comportará será sempre pouco significativo em relação ao conjunto das receitas orçamentalmente previstas) e, por outro lado, de uma solução ainda que não pretende «favorecer» exclusivamente o Orçamento do Estado para 1988, mas, em princípio, e igualmente, os orçamentos dos anos futuros.
Neste quadro, não se poderá ter por ofendido pelo n.º 4 do artigo 36.º o princípio constitucional da anualidade orçamental, considerado este quer na sua componente formal quer na sua componente material.
CAPÍTULO X
A norma do artigo 15.º, n.º 4, da Lei 2/88 face ao artigo 168.º, n.º 2, da
CRP
67 - Reza o seguinte a norma objecto de análise no presente capítulo:
Artigo 15.º
Gestão de recursos humanos
1 - ....................................................................................................................2 - ....................................................................................................................
3 - ....................................................................................................................
4 - O Governo poderá autorizar, em termos a definir por resolução do Conselho de Ministros, que o pessoal considerado subutilizado e não susceptível de reafectação possa aposentar-se por vontade própria, independentemente de apresentação a junta médica, desde que preencha, pelo menos, uma das seguintes condições:
a) Tenha 15 anos de serviço, qualquer que seja a sua idade;
b) Possua 40 anos de idade e reúna 10 anos de serviço para efeitos de aposentação.
5 - ....................................................................................................................
6 - ....................................................................................................................
7 - ....................................................................................................................
8 - ....................................................................................................................
9 - ....................................................................................................................
10 - ..................................................................................................................
11 - ..................................................................................................................
12 - ..................................................................................................................
Na óptica dos deputados do PS, o Governo pretendeu aqui obter autorização para, em relação à função pública, prefixar um particular regime de aposentação por vontade própria, pelo que a norma do n.º 4 do artigo 15.º, na medida em que permitiria que essa prefixação se fizesse por simples resolução do Conselho de Ministros, infringiria o disposto no artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
Em primeira nota, observa-se que o teor desta crítica faz supor que os deputados do PS, apesar de não o afirmarem declaradamente, teriam entendido também que a norma do n.º 4 do artigo 15.º contrariava ainda o disposto no artigo 201.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
Terão razão de ser estas críticas? 68 - Dispõe o artigo 168.º, n.º 1, alínea u), da CRP que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre as bases do regime e âmbito da função pública, acrescentando o n.º 2 do mesmo artigo 168.º que as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada.
Embora o não digam expressamente, foi por certo por considerarem que estava em causa matéria relativa a bases do regime da função pública, matéria do domínio legislativo da Assembleia da República, que os deputados do PS vieram sustentar que a «delegação legislativa» instrumentada no n.º 4 do artigo 15.º haveria de obedecer à determinação constante do n.º 2 do artigo 168.º da CRP, isto é, haveria de indicar o seu objecto, sentido, extensão e duração.
Para além disto, e como já se salientou, os deputados do PS teriam sustentado, embora só implicitamente, que se registaria ainda infracção do artigo 201.º, n.º 1, alínea b), da CRP, preceito que determina que o Governo, uma vez autorizado a legislar em matérias de reserva legislativa da Assembleia da República, o há-de fazer por decretos-leis.
Não se contesta que o regime de aposentação faça parte do estatuto próprio da função pública e que, por isso mesmo, só a Assembleia da República ou o Governo por ela autorizado pudessem definir, mediante o uso de leis (caso do Parlamento) ou de decretos-leis (caso do Executivo), as bases daquele regime, ou seja, as linhas fundamentais ou grandes princípios desse particular sector estatutário.
Sendo as coisas assim, se, de facto, e em termos substanciais, através do n.º 4 do artigo 15.º a Assembleia da República tivesse pretendido autorizar o Governo a legislar em matéria de bases do regime da função pública, então, e necessariamente, se haveria de concluir que, se não era violado o artigo 168.º, n.º 2, da CRP (cujo incumprimento se não configurava como manifestamente evidente), ao menos infringido fora o artigo 201.º, n.º 1, alínea b), da CRP: à revelia deste dispositivo constitucional, o n.º 4 do artigo 15.º permitia que o Governo produzisse, sob a forma de resolução do Conselho de Ministros, legislação parlamentarmente autorizada.
69 - No entanto, tudo indica, mesmo a um primeiro nível de análise, que não foi esse o sentido e alcance do n.º 4 do artigo 15.º (coteje-se a formulação dispositiva de tal norma, que preceitua que «o Governo poderá autorizar, em termos a definir por resolução do Conselho de Ministros [...]», com a formulação típica, clássica mesmo, das autorizações legislativas, de que é exemplo, entre outros, logo o artigo seguinte, o artigo 16.º, que, por seu lado, estatui que «fica o Governo autorizado a legislar no sentido do [...]»). Nesse n.º 4 do artigo 15.º estabeleceu-se sim, e directamente, a base desse particular regime de aposentação por vontade própria e desenvolveu-se mesmo, regulamentativamente, essa dita base.
Na verdade, aí se previu a possibilidade, em relação à função pública, de o pessoal considerado subutilizado e não susceptível de reafectação se aposentar por vontade própria, independentemente de apresentação a junta médica (base), e se especificaram, já num plano puramente regulamentar, as condições mínimas que os potenciais candidatos à aposentação haveriam de preencher:
15 anos de serviço, independentemente da idade;
10 anos de serviço e 40 de idade.
Prova-se assim que o preceito em exame não só se revela, quanto a um muito particular capítulo do estatuto da função pública (o capítulo da aposentação), como uma lei de base mas, mais ainda, como uma lei regulamentativa dessa mesma base. É verdade que, no comum dos casos, a Assembleia da República se limitará, no exercício da competência legislativa prevista no artigo 168.º, n.º 1, alínea u), da CRP, a definir as bases do regime e âmbito da função pública, ou de um seu particular capítulo, deixando para o Governo - artigo 201.º, n.º 1, alínea c), da CRP - a sua regulamentação através de decretos-leis de desenvolvimento. Todavia, não está o Parlamento impedido, como aliás decorre directamente do disposto nesse artigo 201.º, n.º 1, alínea c), de desenvolver, como sucedeu no caso em apreço, as bases do regime jurídico da função pública por ele próprio editadas. Está-se numa área em que as competências normativas da Assembleia da República e do Governo são concorrenciais.
Se não se regista assim qualquer inconstitucionalidade, enquanto a norma do n.º 4 do artigo 15.º explicita uma base e a desenvolve, não se registará, contudo, infracção à CRP no segmento em que tal norma determina que o Governo pode autorizar, em termos a definir por resolução do Conselho de Ministros, a aposentação voluntária do pessoal ali referido? 70 - Aqui cabe, em primeiro lugar, notar que o desenvolvimento das bases de um regime jurídico - que, quando levado a cabo pelo Governo, repete-se, tem de revestir a forma de decreto-lei - não há-de esgotar fatalmente todo esse regime até ao mais ínfimo pormenor. Bastará então, para que se cumpra tal desenvolvimento legislativo, que o Governo ou a Assembleia da República (no caso de esta querer estender a sua competência legislativa a tal ponto) desmultipliquem as bases em termos de perfeita estruturação regulamentativa do regime por elas condensado. E quer o desenvolvimento das bases de um regime jurídico tenha sido levado adiante pelo Parlamento, quer o haja sido pelo Governo, sempre o Executivo, em momento subsequente, e no exercício da função administrativa, pode intervir e fazer os regulamentos necessários à boa execução do regime em causa [artigo 202.º, alínea c), da CRP].
Ora, é neste plano, no plano do exercício da função administrativa, que o Governo terá de dar execução ao regime jurídico da aposentação por vontade própria, institucionalizado e desenvolvido pelo n.º 4 do artigo 15.º da Lei 2/88. Essa execução será feita, como aí se diz, através de resolução do Conselho de Ministros, que por essa via irá preencher espaços menores desse regime, tais como, e porventura, a delimitação dos serviços abrangidos pela medida, a definição da forma a que deverá obedecer a manifestação de vontade do funcionário público no sentido da aposentação, a estação oficial que deverá colher tal declaração, o prazo para o efeito, etc.
71 - Note-se, a propósito, que não competirá, de modo algum, a essa resolução estabelecer os termos do processo de determinação dos serviços ou sectores dos serviços em que ocorrerá subutilização do pessoal, pois que tal regime consta já dos n.os 2 e 3 do artigo 15.º da Lei 2/88.
De facto, aí se especifica que «no âmbito da política de emprego e numa dupla perspectiva de redução de desmotivação profissional e eliminação de deseconomias e desperdícios de recursos públicos o Governo promoverá a detecção de situações de subutilização de pessoal e incentivará a utilização de instrumentos de mobilidade e reafectação para as corrigir» (n.º 2), e que «para os efeitos previstos nos n.os 1 e 2 serão intensificadas as auditorias de gestão».
Será, pois, por esta via, designadamente pelo recurso às auditorias de gestão, da competência da Direcção-Geral da Administração Pública [cf. artigo 2.º, n.º 3, alínea e), do Decreto Regulamentar 40/87, de 2 de Julho], que o Governo virá a detectar as situações de subutilização de pessoal e a determinar, em consequência, o campo de aplicação do regime do n.º 4 do artigo 15.º da Lei 2/88.
É assim indubitável que a resolução do Conselho de Ministros a que se refere este n.º 4 do artigo 15.º não pode deixar de limitar-se a regular aspectos menores ou simplesmente executivos do regime de aposentação por vontade própria.
É certo que, na prática, nada impedirá que tal resolução venha a assumir outra dimensão. Mas, se tal suceder, isso não poderá significar de modo algum que o n.º 4 do artigo 15.º contrarie a CRP. Esse eventual «excesso», qualquer que seja a sua qualificação como vício normativo, situar-se-á então ao nível da resolução e não ao nível da norma ora em análise, cujo sentido mais plausível se mostra de todo em todo conforme com a CRP.
Daqui se conclui que, nem mesmo neste último segmento (o que se refere à edição de certa resolução pelo Conselho de Ministros), a norma do n.º 4 do artigo 15.º pode ser havida como inconstitucional. Trata-se nesse segmento, e unicamente, de outorgar ao Governo, e para um caso específico, o exercício de uma competência que lhe é própria: a competência para editar regulamentos necessários à boa execução das leis, competência prevista no artigo 202.º, alínea c), da CRP.
CAPÍTULO XI
A norma do artigo 11.º da Lei 2/88 face ao artigo 108.º da CRP e face
ainda a outras disposições constitucionais atinentes aos poderes da
Assembleia da República e do Tribunal de Contas.
72 - É o seguinte o texto do artigo cuja constitucionalidade, contestada pelos deputados do PCP, ora se vai apreciar:
Artigo 11.º
Concessão de empréstimos e outras operações activas
1 - Fica o Governo autorizado a conceder empréstimos e a realizar outras operações de crédito activas de prazo superior a um ano até ao montante de 80 milhões de contos.
2 - As condições das operações previstas no número precedente serão aprovadas pelo Ministro das Finanças, com a faculdade de delegar.
3 - Para aplicação em operações a realizar ao abrigo do disposto neste artigo fica o Governo autorizado a contrair empréstimos internos a prazo superior a um ano até ao montante fixado no n.º 1.
4 - O Governo informará trimestralmente a Assembleia da República da justificação e das condições das operações realizadas ao abrigo deste artigo.
Dizem a propósito os deputados do PCP que neste preceito se regista violação da CRP, designadamente do artigo 108.º e de certas outras disposições constitucionais atinentes aos poderes do Parlamento e do Tribunal de Contas, na medida em que pelo recurso abusivo a operações de tesouraria nele se vem afinal a permitir a existência de um orçamento paralelo de tesouraria subtraído ao normal exercício dos poderes daqueles órgãos de soberania. Será, na verdade, assim? 73 - No artigo 11.º não se especifica expressamente que as operações de crédito activas e passivas nele previstas haverão de ser levadas a cabo através de simples operações de tesouraria. Não é, por isso, imediatamente evidente que assim haverá de ser.
Tem-se, deste modo, por pertinente - e sem deixar de enveredar por pistas investigativas sugeridas, ao menos em certa medida, pelos deputados do PCP - começar por apurar se as normas dos n.os 1, 2, 3 e 4 do artigo 11.º não se confrontarão, ao cabo e ao resto, com as regras da universalidade e da unidade, destiláveis, como noutro lugar deste acórdão se afirmou (cf. capítulo III), dos artigos 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP.
Relembre-se que, segundo a regra da universalidade, todas as receitas e despesas do Estado deverão ser discriminadas no Orçamento e que, segundo a regra da unidade, essas mesmas receitas e despesas haverão de ser inscritas em um único documento orçamental.
Ora as normas dos n.os 1 e 3 do artigo 11.º, como no decurso da subsequente análise se irá provar, não respeitam minimamente tais regras.
74 - Antes de mais, é de colocar a questão de saber o que é o Orçamento do Estado.
Segundo o artigo 19.º do Regulamento da Contabilidade Pública, de 31 de Agosto de 1881, dispositivo ainda hoje, e salvo no que respeita à sua designação, inteiramente em vigor, «o Orçamento Geral do Estado é o documento onde são previstas e computadas as receitas e as despesas anuais, competentemente autorizadas».
Este conceito, dada a sua indiscutibilidade histórica, foi por certo constitucionalmente acolhido. E, assim, não terá sido por acaso que no artigo 1.º, alínea a), da Lei 2/88 - na esteira, aliás, de precedentes leis orçamentais - se estipulou:
São aprovados pela presente lei:
a) O Orçamento do Estado para 1988, constante dos mapas I a IV;
A referência aos mapas, precise-se o ponto, abrangerá fatalmente os respectivos anexos, que deles, é evidente, sempre serão parte integrante (v.
Diário da República, 1.ª série, n.º 68, de 22 de Março de 1988, já anteriormente citado, e onde foram publicados anexos aos mapas I e II do Orçamento do Estado para 1988).
75 - Sendo, pois, o Orçamento do Estado o conjunto de mapas onde, para o período financeiro, se prevêem as receitas que o Estado fica autorizado a cobrar e as despesas que fica autorizado a realizar, é apodíctico - eles são, afinal, o cerne do plano financeiro - que haverá de ser ao nível de tais mapas que as regras da universalidade e da unidade haverão de operar.
Por isso mesmo, não é suficiente, para se terem por cumpridas aquelas sub-regras, que no artigo 11.º se venha agora prever uma receita de crédito interno de 80 milhões de contos (n.º 3) e uma despesa de activos financeiros de igual montante (n.º 1).
Indespensável era ainda que tal receita e tal despesa estivessem efectivamente inscritas nos mapas respectivos: eles, e não outras normas jurídicas disseminadas na lei orçamental, é que, em última instância, constituem o Orçamento do Estado.
Ora isso, na realidade, não acontece: nem a receita referida no n.º 3 do artigo 11.º se acha inscrita no mapa de receitas, nem a despesa referida no n.º 1 do mesmo artigo se acha inscrita nos mapas de despesas. De seguida, e em poucas palavras, se mostrará que tais verbas se encontram total e completamente desenquadradas do Orçamento.
76 - O artigo 3.º, n.º 1, da Lei 2/88 autorizou o Governo a contrair empréstimos internos até perfazer um acréscimo de endividamento interno de 429 milhões de contos, e isto para fazer face ao débito dos orçamentos do Estado, dos serviços autónomos e dos fundos autónomos. Neste preceito, é bom de ver, não se autoriza o Executivo a contrair empréstimos internos unicamente até ao limite de 429 milhões de contos. Antes se permite, expressamente, que tal limite seja ultrapassado, desde que daí não resulte um acréscimo de endividamento interno de montante superior a tal quantia.
Assim sendo, o Executivo, por via desse normativo, ficou autorizado a contrair empréstimos internos para além desse tecto de 429 milhões de contos, desde que o correspondente excesso viesse a ser utilizado na amortização da própria dívida interna. No relatório geral da proposta de lei 14/V (que veio a dar origem, recorde-se, à Lei 2/88) explica-se, a dado passo - Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 23, de 18 de Novembro de 1987, p.
462-(6) -, que, na verdade, existe o propósito de amortizar a dívida interna em 167,1 milhões de contos, o que permitiria, ainda nos quadros do n.º 1 do artigo 3.º da Lei 2/88, a efectiva contracção, por parte do Estado, de empréstimos internos que ultrapassassem naquele montante o quantum de 429 milhões de contos.
Vê-se assim, e consideradas em conjunto estas duas parcelas (167,1 e 429 milhões de contos), que o Governo, no esquema da autorização que pedira à Assembleia da República e lhe viera a ser dada pelo artigo 3.º, n.º 1, projectava contrair empréstimos internos da ordem dos 596,1 milhões de contos, quantitativo esse que, uma vez aprovado o Orçamento do Estado para 1988, veio a corresponder grosso modo à receita prevista no mapa I, capítulo 12, grupo 06, artigo 01, «Crédito interno», no montante de 594273908 contos.
Como assim, a receita de 80 milhões de contos, mencionada no n.º 3 do artigo 11.º da Lei 2/88, não se poderá considerar prevista no Orçamento, desde logo porque nem no artigo 11.º nem noutro preceito orçamental se sugere, directa ou indirectamente, que tal receita de crédito interno há-de contar para o limite do n.º 1 do artigo 3.º E no que toca à paralela despesa de 80 milhões, a que faz alusão o n.º 1 do artigo 11.º, a situação ainda é mais evidente. De facto, no mapa III, em «Despesas de capital», n.os 60 a 65, «Activos financeiros», está inscrita unicamente a verba de 24552850 contos, verba obviamente insuficiente para comportar aquela despesa de 80 milhões de contos, que, por isso mesmo, se não pode ter por prevista.
De tudo isto resulta que quer as operações de crédito activas mencionadas no n.º 1 do artigo 11.º quer as operações de crédito passivas descritas no n.º 3 do mesmo artigo não estão orçamentalmente enquadradas.
Esta interpretação é, aliás, confirmada pelo disposto no n.º 4 do artigo 11.º, segundo o qual «o Governo informará trimestralmente a Assembleia da República da justificação e das condições das operações realizadas ao abrigo deste artigo». Na verdade, este ónus, parlamentarmente imposto ao Executivo, só terá verdadeiramente sentido se em causa estiverem operações de crédito desorçamentadas.
Por conseguinte, têm-se por constitucionalmente insolventes as normas dos n.os 1 e 3 do artigo 11.º, na medida em que, violando as regras da universalidade e da unidade, vêm permitir que o Estado, à revelia do Orçamento do Estado para 1988, que as não prevê, realize a despesa e cobre a receita nelas contempladas.
A norma do n.º 2, que logicamente depende da do n.º 1, e a norma do n.º 4, que logicamente está subordinada às dos n.os 1 e 3, essas serão apenas consequencialmente inconstitucionais.
77 - Por outro lado, não se quer deixar de salientar que a norma do n.º 3 do artigo 11.º infringe ainda o preceituado no artigo 164.º, alínea h), da CRP, que determina:
Compete à Assembleia da República:
[...] h) Autorizar o Governo a contrair e a conceder empréstimos e a realizar outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, definindo as respectivas condições gerais, e estabelecer o limite máximo dos avales a conceder em cada ano pelo Governo.
Segundo o parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia da República, já citado no capítulo V deste acórdão, entre as condições gerais das operações de crédito passivas que, por força do disposto no artigo 164.º, alínea h), da CRP, haverão de ser parlamentarmente autorizadas contam-se a indicação do montante e a natureza do empréstimo, a entidade financiadora, o prazo de amortização e os encargos.
Algumas destas condições mínimas, como o prazo de amortização e os encargos, sem qualquer dúvida constitucionalmente exigidas, não foram, porém, referidas expressamente no n.º 3 do artigo 11.º Por isso, logo se afirmou que tal norma, por esse lado, também se confrontava com a CRP, rectius, com o disposto no seu artigo 164.º, alínea h).
78 - Face à conclusão de inconstitucionalidade das normas dos n.os 1, 2, 3 e 4 do artigo 11.º, torna-se agora desnecessário averiguar, e por razões de economia processual, se se verificam ainda as outras inconstitucionalidades apontadas às mesmas normas, aliás em termos não muito precisos, pelos deputados do PCP.
CAPÍTULO XII
A norma do artigo 16.º da Lei 2/88 face ao artigo 168.º, n.º 2, da CRP
79 - Fiscaliza-se neste capítulo a constitucionalidade da autorização legislativa constante do artigo 16.º da Lei 2/88, o qual de seguida se transcreve:
Artigo 16.º
Regime jurídico da função pública
Fica o Governo autorizado a legislar no sentido do aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública em matéria de:a) Regime de provimento e de exercício de funções públicas, visando a definição do tipo de vínculos entre a Administração e quem lhe prestar serviço ou actividade, das formas de exercício transitório de funções, do regime de incompatibilidade e acumulações, da prestação de serviço de funcionários em empresas públicas e privadas, do regime de exercício de funções por trabalhadores daquelas empresas na Administração e da posse e suas formalidades;
b) Regime de férias, faltas e licenças e duração do trabalho, tendo em vista aproximá-lo do regime de contrato de trabalho, das soluções vigentes na Administração dos países comunitários e das obrigações decorrentes das convenções internacionais;
c) Estatuto remuneratório e subsídios de carácter social, com vista a sistematizar e aperfeiçoar o conjunto dos direitos referentes ao vencimento e demais abonos;
d) Estatuto do pessoal dirigente, visando a revisão do Decreto-Lei 191-F/79, de 26 de Junho, no tocante à definição da competência própria dos dirigentes, da área e forma de recrutamento;
e) Regime geral de recrutamento e selecção de pessoal, visando a simplificação do processo e a redução das formalidades e prazos de realização de concursos;
f) Revisão da carreira técnica superior, no sentido de a tornar mais atractiva e de propiciar condições para reduzir situações de acumulação;
g) Estatuto da Aposentação, tendo em vista princípios de equidade no tratamento dos funcionários, a simplificação processual e a sua adequação ao novo regime de tributação dos titulares de cargos públicos e visando ainda permitir a intercomunicabilidade do emprego nos sectores público e privado.
Referem, a propósito, os deputados do PCP que nesta autorização legislativa se omitiram as regras atinentes no sentido das alterações a introduzir no regime da função pública, do que decorreria violação do disposto no artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
Esta norma constitucional, fruto da revisão de 1982, passou a exigir (cf. o artigo 168.º, n.º 1, do texto primitivo) que as leis de autorização para legislar sobre matéria da exclusiva competência da Assembleia da República indicassem, além do objecto, extensão e duração da autorização, também o seu sentido, isto é, a directiva, ainda que genérica, a que o Governo teria de obedecer no exercício do poder legislativo nele delegado pela Assembleia da República.
Terá este parâmetro, o do sentido da autorização legislativa, sido efectivamente respeitado in casu? 80 - A autorização legislativa em consideração, sublinhe-se de imediato, é afinal uma autorização complexa que, em boa verdade, se desdobra em sete autorizações independentes, tantas quantas as alíneas ao longo das quais se desenvolve o artigo 16.º da Lei 2/88, autorizações essas cujo objecto se refere aos seguintes sectores do regime da função pública:
Regime de provimento e de exercício de funções públicas [alínea a)];
Regime de férias, faltas e licenças e duração do trabalho [alínea b)];
Estatuto remuneratório e subsídios de carácter social [alínea c)];
Estatuto do pessoal dirigente [alínea d)];
Regime geral de recrutamento e selecção de pessoal [alínea e)];
Revisão da carreira técnica superior [alínea f)];
Estatuto da Aposentação [alínea g)].
81 - E depois de se analisar em detalhe se, em relação à matéria de cada uma das autorizações, se regista ou não a concorrência daquele particular parâmetro (o do sentido da autorização), chega-se ao seguinte quadro conclusivo:
1) Quanto às alíneas b), c), e), f) e g) do artigo 16.º Nestas alíneas contêm-se cinco autorizações legislativas cujo sentido, em maior ou menor grau, é, na verdade, apontado:
Na alínea b), ao dizer-se que as alterações a introduzir no regime de férias, faltas e licenças e duração do trabalho terão em vista aproximá-lo do regime do contrato de trabalho, das soluções vigentes na Administração dos países comunitários e das obrigações decorrentes das convenções internacionais;
Na alínea c), ao determinar-se que a refundição do estatuto remuneratório e subsídios de carácter social terá em vista sistematizar e aperfeiçoar o conjunto dos direitos referentes ao vencimento e demais abonos;
Na alínea e), ao especificar-se que as alterações a introduzir no regime geral de recrutamento e selecção do pessoal visarão a simplificação do processo e redução de formalidades e prazos de realização de concursos;
Na alínea f), ao precisar-se que a revisão da carreira técnica superior será no sentido de a tornar mais atractiva e de propiciar condições para reduzir situações de acumulação;
E na alínea g), ao sublinhar-se que as alterações a introduzir no Estatuto da Aposentação se nortearão por princípios de equidade no tratamento dos funcionários e visarão quer a simplificação processual e a sua adequação ao novo regime de tributação dos titulares de cargos públicos quer a intercomunicabilidade do emprego nos sectores público e privado.
Por conseguinte, entende-se que nestes casos foi efectivamente cumprido o imperativo constitucional de indicação do sentido das autorizações legislativas.
Porventura, em algumas situações em termos mínimos, mas ainda assim cumprido. E isso chegará, pois que não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a maior ou menor perfeição dos textos legais, mas apenas apurar se as normas jurídicas neles contidas se confrontam ou não, e irremissivelmente, com a CRP.
Nestes termos, e pelo que diz respeito às autorizações legislativas contidas nas alíneas b), c), e), f) e g) do artigo 16.º da Lei 2/88, conclui-se que não se observa qualquer violação, por parte da Assembleia da República, do disposto no n.º 2 do artigo 168.º da CRP, designadamente no que se refere à definição do sentido das autorizações parlamentares.
2) Quanto às alíneas a) e d) do artigo 16.º Já aqui se impõe - afirme-se liminarmente - extrair da situação normativa em análise a conclusão diametralmente oposta.
De facto, nas alíneas a) e d) do artigo 16.º da Lei 2/88 elencam-se as matérias a que respeitam as autorizações legislativas, precisam-se mesmo as áreas, dentro de cada uma dessas matérias, em relação às quais as autorizações poderão ser exercidas, mas de modo algum se explicita uma directiva, se dá um critério da reforma legislativa que, em cada um desses sectores, se pretende introduzir.
Como assim, verifica-se que nem de perto nem de longe se estabelece nestas alíneas a) e d) do artigo 16.º o sentido das autorizações legislativas, pelo que a inconstitucionalidade de tais autorizações, face ao preceituado no artigo 168.º, n.º 2, da CRP, é, de todo em todo, incontestável.
82 - Por conseguinte, e resumindo, só parcialmente será de concluir pela inconstitucionalidade do artigo 16.º da Lei 2/88, isto é, na parte referente às suas alíneas a) e d), que, na realidade, desobedecem ao preceituado no artigo 168.º, n.º 2, da CRP.
CAPÍTULO XIII
Limitação de efeitos
83 - No que toca aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, determina o artigo 282.º da CRP o seguinte:A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (n.º 1);
Todavia, se se tratar de inconstitucionalidade por infracção de norma constitucional posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última (n.º 2);
Ficam em regra ressalvados os casos julgados (n.º 3);
Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos n.os 1 e 2 (n.º 4).
Com a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de certa norma jurídica contrária à lei fundamental pretende-se realizar, no concreto, uma certa ideia de justiça. Todavia, é bom não esquecer que, «se se prosseguir cegamente a justiça, sem atender à segurança, a instabilidade da vida social anulará as vantagens teoricamente obtidas» (Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, p. 166).
E buscando uma solução em que esses dois valores, o da justiça e o da segurança, se compensassem - e embora não só por esse motivo -, implementou o n.º 4 do artigo 282.º da CRP o instituto da limitação de efeitos.
Tal instituto, na particular perspectiva em que ora é encarado, surge assim como um meio de atenuar os riscos da incerteza e insegurança, consequentes em regra a uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas jurídicas (outros motivos da limitação de efeitos, que ora não importa considerar, são, como se viu, a equidade e o interesse público de excepcional relevo).
Pretende-se em suma, e por esta via, salvar em certos casos um valor, o da segurança jurídica, que, tal como o da justiça, não é alheio à própria ideia de direito (cf. Guilherme Moreira, Instituições de Direito Civil, vol. I, p. 70, que à segurança jurídica se refere nestes precisos termos:
A confiança nas leis existentes, a certeza de que produzirão os devidos efeitos os factos realizados em harmonia com as suas prescrições, o respeito pelos interesses criados sob a garantia da lei, constituem a verdadeira base da autoridade e da força obrigatória das leis e, por meio delas, da ordem social.) 84 - A maior parte das normas consideradas neste acórdão, e cuja inconstitucionalidade vai ser declarada com força obrigatória geral, tem directa incidência financeira ou orçamental, pelo que, por razões de segurança jurídica, é aconselhável que o Tribunal Constitucional proceda, ao abrigo do disposto no artigo 282.º, n.º 4, da CRP, a uma limitação, de ordem categorial, dos efeitos de tal declaração, de modo a evitar que as operações financeiras ou orçamentais entretanto levadas a cabo nos quadros dos preceitos inconstitucionalizados venham subitamente a deixar de ter suporte legal.
Aliás, em situações algo semelhantes a estas já o Tribunal Constitucional procedeu a similares limitações de efeitos (v. Acórdãos n.os 144/85 e 206/87, publicados, respectivamente, no Diário da República, 1.ª série, n.os 203 e 156, de 4 de Setembro de 1985 e 10 de Julho de 1987). E outra não poderá ser, pelas razões apontadas, a decisão a tomar neste caso.
CAPÍTULO XIV
Decisão
85 - Pelos motivos expostos, decide-se:A) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas, todas da Lei 2/88, de 26 de Janeiro:
1) Norma do n.º 2 do artigo 20.º, na parte em que autoriza o reforço das contrapartidas nacionais nela previstas mediante operações do Tesouro, regularizáveis no Orçamento do Estado para 1989, até ao dobro daquele montante;
2) Norma do n.º 3 do artigo 20.º, na parte em que permite que as eventuais contrapartidas nacionais aos recursos adicionais que a CEE ponha à disposição de Portugal em 1988, no âmbito do PEDIP, sejam movimentadas por operações do Tesouro;
3) Norma do n.º 4 do artigo 20.º;
4) Norma do n.º 5 do artigo 20.º, no segmento em que autoriza o Governo a contrair dívida interna, acrescendo ao limite fixado no n.º 1 do artigo 3.º, para financiar as operações do Tesouro referidas nos números anteriores;
5) Norma do n.º 6 do artigo 20.º, na parte em que autoriza o Governo a aumentar, em certos termos, a despesa do capítulo 50 do orçamento do Ministério da Educação;
6) Normas do artigo 19.º, da inscrição do capítulo 51 do Ministério das Finanças constante do mapa II, a que se refere a alínea a) do artigo 1.º, e da inscrição em «Despesas de capital», código 71, «Outras despesas de capital», constante do mapa III, a que também se refere a alínea a) do artigo 1.º;
7) Norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 22.º;
8) Normas dos n.os 1, 2, 3 e 4 do artigo 11.º;
9) E normas das alíneas a) e d) do artigo 16.º;
B) Não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das demais normas referidas nos pedidos dos deputados do Partido Socialista e do Partido Comunista Português;
C) E limitar os efeitos da inconstitucionalidade, por forma a salvaguardar a validade dos actos de natureza financeira ou orçamental praticados até à data da publicação do presente acórdão ao abrigo das normas inconstitucionalizadas.
Lisboa, 29 de Novembro de 1988. - Raul Mateus (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - José Magalhães Godinho - José Martins da Fonseca - Luís Nunes de Almeida (com declaração de que não subscrevo toda a fundamentação quanto ao artigo 7.º, n.º 2) - Vital Moreira (vencido em parte, conforme declaração de voto junta) - Messias Bento [vencido na parte em que se declarou a inconstitucionalidade das normas a que se referem os n.os 5, 6 e 8 da alínea A) da decisão; vencido também quanto à fundamentação relativa às questões referidas nos n.os 1, 2 e 3 da mesma alínea A), e vencido, finalmente, no que toca à fundamentação referente ao artigo 7.º, n.º 2 - tudo nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Cardoso da Costa, a que me associo] - Mário de Brito (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - Antero Alves Monteiro Dinis (vencido em parte, nos termos da declaração junta) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido em parte, nos termos da declaração que junto) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
1 - No acórdão decidiu-se, inter alia, não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 20.º, n.º 5, da Lei 2/88, de 26 de Janeiro, na parte em que a Assembleia da República autorizou o Governo a contrair dívida interna para financiar as operações do Tesouro que devam servir de adiantamento aos fundos comunitários que irão ser postos à disposição de Portugal (1.º ponto), e decidiu-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 19.º, da inscrição no capítulo 51 do Ministério das Finanças, constante do mapa II, a que se refere a alínea a) do artigo 1.º, e da inscrição em «Despesas de capital», código 71, «Outras despesas de capital», constante do mapa III, a que também se refere a alínea a) do artigo 1.º, todas da Lei 2/88 (2.º ponto).Precisamente nestes dois pontos o meu voto foi de sinal contrário. De seguida se explicitarão as razões da dupla divergência.
A) Quanto ao 1.º ponto
2 - Referiu-se no acórdão, e correctamente, que, face ao disposto no artigo 164.º, alínea h), da Constituição da República Portuguesa (CRP) o Governo podia, sem licença da Assembleia da República, contrair empréstimos que dessem origem a dívida flutuante.Ora, na minha perspectiva, o segmento do n.º 5 do artigo 20.º da Lei 2/88, que não foi declarado inconstitucional, isto é, o segmento que deu autorização ao Executivo para, no plano da dívida flutuante, realizar operações de tesouraria, confrontava-se de facto com a CRP. E confrontava-se com a CRP porquanto tal segmento normativo, na medida em que envolve uma desnecessária autorização do Parlamento ao Governo, está a dar suporte a uma ilícita intromissão da Assembleia da República na área da actividade administrativa do Executivo, em clara ofensa ao princípio da separação de poderes decorrente do artigo 114.º da CRP.
Por isso, votei que esse outro trecho do n.º 5 do artigo 20.º da Lei 2/88 fosse igualmente declarado inconstitucional.
B) Quanto ao 2.º ponto
3 - Relativamente às normas da Lei 2/88 que dispõem sobre a figura da dotação concorrencial, o meu voto foi no sentido da sua não inconstitucionalização.Cabe assim, e desde logo, anunciar que acompanhei o acórdão enquanto nele se conclui pela não violação, por parte de tais normas, do princípio do equilíbrio orçamental, afirmado expressamente no artigo 108.º, n.º 6, da CRP.
Já de tal acórdão divergi, porem, enquanto nele se conclui pela violação, por parte dessas mesmas normas, do artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, por um lado, e dos artigos 108.º, n.º 3, e 164.º, alínea g), da CRP, por outro.
Sucessivamente se analisarão estas «inconstitucionalidades», esclarecendo e precisando, em relação a cada uma delas, o meu ponto de vista.
B-1) As normas relativas à dotação concorrencial face ao disposto no artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP 4 - Em primeiro lugar, importa salientar que nada tem de constitucionalmente ilegítimo, ao menos numa análise meramente formal, a intromissão entre as receitas e as despesas da figura da dotação concorrencial, figura a respeito da qual, e em anotações à proposta de lei 14/V (que veio a originar a Lei 2/88), se escreveu em texto editado pelo Ministério das Finanças e transmitido pelo Secretário de Estado do Orçamento à mesa da CPEFP o seguinte:
A exemplo do que se pratica em vários países da OCDE (exemplo: Canad, a onde as policy reserves podem ser zero ou negativas, havendo possibilidade de ser suplementadas com poupanças obrigatórias em alguns programas [...]), introduz-se a presente norma, que, através da escolha dos projectos mais competitivos (quer os de desenvolvimento da actividade de funcionamento, quer os projectos do PIDDAC, com prioridade para os co-financiados pela CEE), obrigará a aumentos efectivos de produtividade.
A dotação concorrencial tem, como se referiu, aspectos de analogia com a dotação provisional, mas, enquanto esta se destina ao aumento de despesa, a primeira obriga a restringi-la através do mecanismo de pôr em concorrência projectos e actividades numa lógica de custos (ou despesas a suportar) versus benefícios (ou necessidades a satisfazer).
Transcrita esta breve nota sobre tal espécie orçamental, com precedentes no direito comparado, e prosseguindo a análise na perspectiva anunciada, tem agora por oportuno, e antes de mais, recordar o que em certos lugares do Acórdão 461/87 do Tribunal Constitucional (Diário da República, 1.ª série, n.º 12, de 15 de Janeiro de 1988) se escreveu a propósito da extensão e conteúdo do Orçamento:
Se o Orçamento é, antes de tudo, um mapa de previsões de receitas e despesas e a exposição de um programa financeiro, na respectiva lei não deixam de surgir com frequência disposições que vão para além da estrita expressão dessa previsão e desse programa.
[...] Trata-se de um problema [o dos chamados cavaliers budgétaires ou riders] bem conhecido da prática constitucional e da doutrina, quer no nosso, quer noutros ordenamentos. E um problema que nalguns destes encontra resposta constitucional expressa, que se traduz na delimitação precisa das normas susceptíveis de serem inseridas na lei orçamental (assim, o artigo 110.º, n.º 4, da Grundgesetz da República Federal da Alemanha) ou na proibição de nestas se inscreverem disposições de certo tipo com certo alcance (assim, o artigo 81.º da Constituição italiana).
Entre nós, porém, não se depara com qualquer preceito expresso da Constituição similar aos referidos. E daí que a doutrina viesse entendendo não ser constitucionalmente questionável a inserção na lei do orçamento de normas sem imediata incidência financeira ou normas «não orçamentais», um procedimento que se compreenderia tanto melhor quanto se deve considerar superada uma concepção puramente «formal» daquela lei (assim, J. M.
Cardoso da Costa, est. cit., pp. 19 e segs., e A. Lobo Xavier, «Enquadramento orçamental em Portugal: alguns problemas», na Revista de Direito e Economia, ao ano IX, 1983, pp. 242 e segs.).
5 - Face a este entendimento do Tribunal Constitucional acerca do âmbito da lei orçamental, entendimento em que ora persisti, tive por óbvio que a inclusão na Lei 2/88 de um novo instrumento financeiro, como é a dotação concorrencial, não podia ter-se, numa análise meramente formal da situação, como de todo em todo descabido. De facto, se já se considerou que, à luz da CRP, a inserção na lei orçamental de normas sem imediata incidência financeira não era proibida, igualmente, e até por maioria de razão, se deveria entender agora que as normas da dotação concorrencial - cuja dimensão financeira é incontestável - não podiam ser havidas como um corpo em absoluto estranho à realidade orçamental, tal como a molda a CRP.
Por outro lado, e em particular, tive por irrelevante que tais normas tivessem especial expressão nos mapas II e III (mapas de despesas), pois que, de facto, inexiste qualquer determinação constitucional sobre o exacto conteúdo de tais mapas.
Por conseguinte, o artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP não tinha de ser lido como impondo que no Orçamento se contivessem unicamente normas sobre matéria financeira, designadamente as que autorizassem a cobrança de receitas e a realização de despesas. Outro tipo de normação era ainda permitido. Por isso, repete-se, nesta exacta medida, ou seja, numa simples perspectiva formal ou de posição, não se observava, a meu ver, e sem embargo da sua novidade, qualquer inconstitucionalidade em relação a tais normas.
Mas perguntar-se-á: não obstante isto, ou seja, apesar de no Orçamento, e em abstracto, haver espaço para normas deste tipo, não seria exacto dizer-se que elas, pela sua particular incidência sobre as despesas inscritas, consequenciariam afinal para essas mesmas despesas um estatuto de indefinição, de todo em todo incompatível com a regra da especificação do artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP? 6 - Elencam-se no acórdão diversas regras a que haverá de obedecer a execução do orçamento das despesas. Precisamente a estas regras, e no meu ponto de vista, veio o artigo 19.º da Lei 2/88 ajuntar mais uma: a de que, para efeitos de uma poupança de 33 milhões de contos nos gastos previstos, as despesas do Orçamento do Estado para 1988 haveriam de concorrer selectivamente entre si, como condição prévia ao efectivo reconhecimento do seu cabimento orçamental. A intervenção aplicativa desta regra veio assim consequenciar a correlativa não execução ou redução - segundo certa escala de prioridades - das actividades económica e socialmente tidas por menos essenciais.
Por esta forma, o artigo 19.º da Lei 2/88, em articulação com a inscrição de verba de valor negativo do mapa II, impôs a vinculação dos serviços à não realização de uma parte - no preciso montante de 33 milhões de contos - das despesas autorizadas, cujo quantitativo global, segundo a classificação orgânica, é da ordem dos 2205178336 contos. Ou, nessa mesma perspectiva orgânica, e dizendo as coisas de outra maneira, ou seja, segundo um relacionamento proporcional, ficaram genericamente vinculados os vários departamentos da administração financeira à não realização de despesas que representem perto de 1/66 do total das despesas autorizadas.
Todavia, já dentro da classificação económica das despesas (mapa III), o montante da dotação concorrencial que sobre elas se há-de repercutir tem uma dimensão menor. De facto, e sobre as despesas assim classificadas, cujo montante total é de 2182360694 contos, incidirá uma verba negativa, correspondente à dotação concorrencial nela prevista, de - 10182358 contos.
Por conseguinte, e sempre na óptica classificativa do mapa III, estão os serviços vinculados à não realização das despesas autorizadas numa proporção inferior à constante do mapa II.
E no que se refere ao mapa IV, onde as despesas previstas se alinham segundo a classificação funcional e atingem o montante de 2172178336 contos, é de notar que aí não intervém, de qualquer modo, a figura da dotação concorrencial.
A questão da suficiente especificação das despesas não seria pois de pôr - nem os requerentes a puseram - em relação ao mapa IV, de cujo esquema não participa a dotação concorrencial, mas apenas em relação aos mapas II e III. No que toca a estes dois últimos mapas, sempre lidos em articulação com o disposto nos artigos 1.º, alínea a), e 19.º da Lei 2/88, é de notar que o problema se põe com mais acuidade em relação ao primeiro (onde é maior a incidência da dotação concorrencial) que em relação ao segundo (onde essa incidência é menor).
7 - Dito isto, impõe-se agora recordar que as despesas autorizadas são previstas pelo máximo, máximo que pode ou não ser atingido na fase executiva do Orçamento do Estado, e recordar ainda que, de há anos a esta parte, se tem vindo a procurar, mediante a aplicação da técnica custo/benefício na tomada das decisões de despesa, que os departamentos estaduais não esgotem os créditos abertos.
Esta linha política da administração financeira desenvolve-se nesta situação e, como é bom de ver, pura e simplesmente ao nível da execução orçamental.
Em nada influi no plano da especificação das despesas autorizadas, especificação que se situa num momento claramente anterior.
Ora, algo semelhante se passa com a dotação concorrencial, tal como ela é referida nos mapas II e III, lidos estes em necessária articulação com os artigos 1.º, alínea a), e 19.º da Lei 2/88: a sua função redutora no campo das despesas, e segundo uma vertente utilitarista, é por demais evidente.
No mapa II, as despesas, de acordo com a classificação funcional a que obedece aquele mapa, estão distribuídas pelos vários departamentos da administração financeira, dentro destes por organismos (capítulos) e a esses níveis quantitativamente discriminadas. E no mapa III, as despesas, de acordo com a classificação económica a que está sujeito aquele mapa, distribuem-se por despesas correntes e despesas de capital, dentro de cada uma dessas categorias por números e a esses níveis estão quantitativamente discriminadas.
Quer num mapa quer noutro tal discriminação de despesas não merece qualquer censura do ponto de vista do artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP, que, aliás, nem exige a especificação de despesas segundo a respectiva classificação económica, critério a que obedece, como se viu, a elencação de despesas constante do mapa III.
E nem se diga que a dotação concorrencial se sobrepõe a tal ponto a essas discriminações de despesas (as constantes dos mapas II e III) que a regra da especificação acaba por não ser verdadeiramente acatada. É que essa sobreposição da dotação concorrencial se desenvolve fundamentalmente no decurso da fase executória do Orçamento. Nessa fase é que as despesas deverão «concorrer entre si para terem efectivo cabimento orçamental com a correlativa não execução ou redução de actividades» (artigo 19.º, n.º 1, da Lei 2/88).
8 - Ao invés, na fase anterior, na fase de aprovação do Orçamento do Estado para 1988, as despesas previstas nos mapas II e III foram autorizadas com a devida especificação, minimamente influindo em tal previsão o facto de já se saber que algumas delas, de certeza e em função de uma escolha posterior, se não realizarão ou não se realizarão por inteiro.
Na verdade, a enorme desproporção existente entre o quantum negativo da dotação concorrencial e o quantum positivo do total das despesas previstas ora no mapa II ora no mapa III significa que a acção da dotação concorrencial sempre será de pequena escala. A previsão das despesas especificadas, que, a posteriori, será confirmada ou infirmada pelos factos e que, por isso mesmo, no comum dos casos, nunca será coisa certa, por influência da dotação concorrencial será, pois, apenas um pouco menos certa.
Isto, porém, não envolve violação do disposto no artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP, já que, se a dotação concorrencial reduz a «certeza» da previsão das despesas, não reduz a «certeza» da especificação. Ora, é neste último plano que precisamente incidem aqueles dispositivos constitucionais.
Aliás, não é nada clara a argumentação final do acórdão a este respeito, isto é, nele não se explica, com um mínimo de lógica, como é que este rebaixamento de grau na «certeza» da previsão das despesas veio paralelamente rebaixar o grau de «certeza» da sua especificação.
Por esta via discursiva, então também se haveria de concluir que as despesas não obrigatórias - aquelas cuja realização não é decidida facultativamente pelo Governo na fase executiva do Orçamento do Estado - estavam afinal também insuficientemente especificadas: a sua incerteza previsiva, na lógica do acórdão, acarretaria fatalmente a sua incerteza especificativa, o que constituiria, do meu ponto de vista, o mais completo absurdo.
Por estas razões, entendi - e nessa linha de entendimento votei - que não se registava aqui, de modo algum, violação ao disposto no artigo 108.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP.
B-2) As normas relativas à dotação concorrencial face ao disposto nos artigos 108.º, n.º 3, e 164.º, alínea g), da CRP 9 - A proposta de orçamento, segundo o artigo 108.º, n.º 3, da CRP, é apresentada pelo Governo e votada na Assembleia da República, nos termos da lei. E, por força do disposto no artigo 164.º, alínea g), da CRP, esta competência parlamentar é indelegável no Executivo, ao qual compete precisamente, nos termos do artigo 202.º, alínea b), da CRP, dar depois execução ao Orçamento do Estado aprovado.
À luz destas regras constitucionais, logo considerei que as normas da Lei 2/88 respeitantes à figura da dotação concorrencial eram perfeitamente conformes com a CRP, isto é, não significavam qualquer ilegítimo recuo por parte da Assembleia da República no exercício pleno da sua competência orçamental. Isto, aliás, o que de imediato se procurará demonstrar.
10 - O Orçamento do Estado, sublinhe-se este aspecto da constituição financeira, não tem vindo a ser concebido como um modelo de realidade futura que o Governo tivesse de pôr em acto, rigidamente, cegamente, a todos e quaisquer níveis.
É certo que nele existem balizas que, no período da execução orçamental, não podem, de modo algum, ser ultrapassadas pelo Executivo (v. g., não podem ser cobradas receitas de espécies não contempladas no Orçamento e não podem ser realizadas despesas, de cada uma das espécies previstas no Orçamento, para além dos quantitativos inscritos). Mas também não é menos certo que em tal programa financeiro, e ainda no que respeita à fase da execução orçamental, coexiste uma certa margem de discricionariedade em benefício do Governo (v. g., podem ser cobradas receitas das espécies orçamentadas em montantes superiores aos previstos, podem não se realizar despesas previstas e pode ainda o Executivo desenvolver, em certa medida, os quadros especificativos das receitas e despesas orçamentadas).
Por conseguinte, uma coisa é o plano financeiro previsto e inserto no Orçamento do Estado e outra coisa é o plano financeiro realizado e inserto na Conta Geral do Estado, que será apreciado, a um nível político, nos termos dos artigos 108.º, n.º 8, e 165.º, alínea d), da CRP, pela Assembleia da República.
Entre aquele modelo de previsão da realidade e a realidade acontecida podem assim verificar-se, com pleno respeito pelo quadro constitucional vigente, sensíveis diferenças.
11 - A figura da dotação concorrencial criou, é certo, um conjunto de condições iniciais cuja dinâmica se haveria de exercer fundamentalmente ao nível da execução do Orçamento do Estado para 1988. De facto, e uma vez aprovado pela Assembleia da República, tal programa financeiro - que, à partida, comportava múltiplas possibilidades de materialização - começou a evoluir para a sua concretização através de sucessivas decisões mediadoras que, ao nível mais elevado, pertencem ao Executivo, sendo ainda a este que, ao cabo e ao resto, caberiam as escolhas decisivas postuladas por aquela espécie orçamental.
Não há dúvida também que a institucionalização da figura da dotação concorrencial, ao nível do Orçamento do Estado para 1988, por um lado, veio criar um maior grau de incerteza para a Assembleia da República ao nível da previsão das despesas e, por outro lado, veio sujeitar o Governo ao respeito por determinadas regras ao nível da realização dessas mesmas despesas, despesas cuja efectuação dependeria, em última análise, das escolhas que o Executivo, em função do duplo critério economicidade/utilidade, viesse a fazer.
Não se vê assim que seja lícito dizer-se, como se fez no acórdão, que a Assembleia da República não aprovou verdadeiramente o Orçamento do Estado para 1988, mas apenas como que as suas bases. E isto fundamentalmente por três ordens de razão:
1) A previsão das despesas, que por definição, e quanto às despesas não obrigatórias, é sempre incerta, tornou-se parcelarmente, que não globalmente - e por via da ingerência no Orçamento da figura da dotação concorrencial -, algo mais incerta, circunstância no entanto irrelevante, já que a CRP não especifica qual o grau de certeza que há-de ter tal previsão;
2) O grau de especificação das despesas orçamentadas não se mostra comprometido, pois que a intervenção daquele instrumento financeiro não actua nesse plano;
3) A acção intromissiva da dotação concorrencial exerce-se fundamentalmente ao nível executório, área essa da exclusiva competência do Governo.
Deste modo, o Orçamento do Estado para 1988 não ficou descaracterizado por via da ingerência de tal figura financeira. A Assembleia da República aprovou, de facto, um orçamento com a dimensão constitucionalmente requerida.
12 - Não é, pois, verdade que fosse ao Executivo que a posteriori viesse a caber, em relação ao Orçamento do Estado referente ao ano em curso, a conformação do plano financeiro do Estado através da sua execução: o Governo «recebeu» da Assembleia da República um orçamento perfeitamente acabado, e caber-lhe-ia como nos demais anos, dentro de um certo quadro de discricionariedade, dar-lhe execução.
Note-se que também não é exacto afirmar-se que ao Executivo, mediante a utilização da dotação concorrencial orçamentalmente prevista, seria possível, no decurso de 1988, fazer alterações no Orçamento numa dimensão não consentida pela CRP. É que a dotação concorrencial nada tem a ver com alterações orçamentais, as quais, de facto, e para lá de um determinado nível, têm de ser feitas, é exacto, pela Assembleia da República, sob proposta do Governo.
Na realidade, e no plano executório do Orçamento, o Governo, em virtude da dotação concorrencial, não o alteraria. Apenas utilizando as escolhas potenciais que tal figura financeira lhe proporcionava optaria por não executar plenamente, em certas áreas, o orçamento das despesas, mas isto sempre numa medida previamente definida pelo próprio Orçamento.
Por esta série de motivos, entendi pois, e na ponta final da argumentação que vim desenvolvendo, que tão-pouco se registava, por parte das normas da Lei 2/88 sobre dotação concorrencial, violação do disposto nos artigos 164.º, alínea g), e 108.º, n.º 3, da CRP, preceitos esses que dispõem especificativamente sobre a competência orçamental da Assembleia da República.
Raul Mateus.
Declaração de voto
1 - Acompanhei o acórdão quanto à decisão de não inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, sobre a aprovação dos orçamentos dos serviços e fundos autónomos. E também compartilho na generalidade do discurso feito sobre o enquadramento de tais fundos e serviços sob o ponto de vista da «constituição orçamental». Julgo, porém, necessário sublinhar e precisar alguns pontos.Assim:
a) O Orçamento tem de abranger os serviços e fundos autónomos. O conceito constitucional-financeiro de «Estado» abrange quer a administração directa quer a administração indirecta [v., além do Prof. Teixeira Ribeiro, no lugar referido no texto, também a Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, p. 469 (nota II ao artigo 108.º)]. A desorçamentação dos serviços e fundos autónomos é, pois, rotundamente inconstitucional;
b) A regra da unidade orçamental exige pelo menos a unidade documental do(s) orçamento(s) de todo o sector administrativo-financeiro do Estado; por isso, o Orçamento, quando não integra os serviços e fundos autónomos nos mapas comuns, deve incluir os seus orçamentos em mapas específicos (mapas autónomos ou anexos);
c) Aos orçamentos dos serviços e fundos autónomos aplicam-se, mutatis mutandis, as regras da especificação das receitas e despesas, bem como as da classificação orgânica e funcional;
d) Por isso, obviamente, o mapa específico dos orçamentos e serviços autónomos deve constar da proposta do Governo e ser aprovado pela AR;
e) É com base no mapa «sintético» dos fundos e serviços autónomos constante do orçamento aprovado pela AR que o Governo deve ulteriormente aprovar o orçamento desagregado específico de cada serviço ou fundo, sem cuja aprovação eles não podem realizar as respectivas operações financeiras (como se diz na norma em causa).
2 - Votei pela inconstitucionalidade do artigo 7.º, n.º 2. Parece-me evidente que a despesa aí mencionada - a dos juros dos empréstimos referidos no n.º 1 do preceito - não se encontra prevista nos mapas de despesas do Orçamento, ao contrário do que dá por assente o acórdão. Tal desorçamentação implica, obviamente, uma violação das regras da unidade e da especificação orçamental.
3 - Votei pela inconstitucionalidade global dos diversos números questionados do artigo 20.º Por um lado, divergindo da delimitação do pedido feito no acórdão, tenho por certo que foi essa inconstitucionalidade global que foi pedida pelos deputados recorrentes. Depois, é evidente que tais normas configuram um Orçamento paralelo prevendo operações («operações do Tesouro») não inscritas nos respectivos mapas orçamentais. Como é doutrina assente no Tribunal, tal desorçamentação afronta igualmente as regras da unidade e da especificação orçamental.
4 - Votei pela inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.os 3 e 5, pois, como se reconhece no próprio acórdão, os empréstimos aí previstos visam satisfazer, ao menos em parte, despesas públicas propriamente ditas, pelo que o respectivo montante deveria ser levado aos respectivos mapas de receitas e despesas, o que não sucede. Assim, as normas em causa configuram um verdadeiro orçamento eventual paralelo, à margem do Orçamento propriamente dito (que é constituído pelos respectivos mapas), violando assim a regra constitucional da unidade.
5 - Votei a inconstitucionalidade do artigo 15.º, n.º 4, e do artigo 16.º (para além das alíneas deste que são declaradas inconstitucionais no acórdão) porque ambos versam sobre matérias (direito da função pública) que nada têm a ver com o Orçamento e que, por isso, não devem figurar na respectiva lei, a qual tem um regime constitucional especial, enquanto e por causa de ser a lei do orçamento. Dou aqui por reeditadas as considerações que a este propósito deixei registadas no n.º 2 da declaração de voto que juntei ao Acórdão 461/87 (Diário da República, 1.ª série, n.º 12, de 15 de Janeiro de 1988).
6 - Votei contra a limitação de efeitos até à publicação do acórdão, tendo-me pronunciado no sentido de ela dever ser fixada apenas até à comunicação oficial da decisão do Tribunal à AR - o que, aliás, já ocorreu. A meu ver, é um absurdo admitir que o Governo continue a praticar actos financeiros ao abrigo de normas orçamentais, depois do conhecimento oficial de que elas foram declaradas inconstitucionais. Também aqui reitero o que já deixei escrito a propósito de hipótese semelhante no n.º 3 da declaração de voto que fiz no Acórdão 144/85 (Diário da República, 1.ª série, n.º 203, de 4 de Setembro de 1985).
Vital Moreira.
Declaração de voto
1 - Artigo 4.º, n.os 3 e 5, da Lei 2/88. - Votei a sua inconstitucionalidade parcial - precisamente na medida em que os empréstimos aí previstos se destinam a satisfazer despesas públicas - por o respectivo montante não figurar nos mapas, ou seja, por violação da regra da unidade do Orçamento (n.º 5 do artigo 108.º da Constituição).2 - Limitação de efeitos. - O acórdão limita os efeitos das inconstitucionalidades «por forma a salvaguardar a validade dos actos de natureza financeira ou orçamental praticados até à data da publicação do presente acórdão ao abrigo das normas inconstitucionalizadas».
Por razões idênticas às expostas na declaração de voto do conselheiro Vital Moreira no Acórdão deste Tribunal n.º 144/85, de 31 de Julho, penso, todavia, que é de todo injustificável a ressalva de efeitos para além da data em que o Governo teve conhecimento do presente acórdão.
Mário de Brito.
Declaração de voto
1 - O acórdão a que a presente declaração respeita houve as normas das alíneas a) e d) do artigo 16.º da Lei 2/88, de 26 de Janeiro, como violadoras do disposto no artigo 168.º, n.º 2, da Constituição, com base no entendimento de que ali se elencam «as matérias a que respeitam as autorizações legislativas, precisam-se mesmo as áreas, dentro de cada uma dessas matérias, em relação às quais as autorizações poderão ser exercidas, mas de modo algum se explicita uma directiva, se dá um critério da reforma legislativa que, em cada um desses sectores, se pretende introduzir. Como assim, verifica-se que nem de perto nem de longe se estabelece nestas alíneas [...] o sentido das autorizações legislativas».Dissentindo do assim decidido, votei no sentido da inexistência da referenciada inconstitucionalidade, para tanto buscando apoio no conjunto de razões que a seguir se deixarão expostas.
2 - Em obediência ao disposto no artigo 168.º, n.º 2, da Constituição, «as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada».
A versão originária do texto constitucional no seu artigo 168.º, n.º 1, no quadro dos limites materiais, apenas se referia ao objecto e extensão, havendo a exigência do sentido da autorização sido aditada na revisão de 1982, com o que se sublinhou a autonomia deste elemento substancial face à interpretação conjugada dos outros elementos, e reforçando-se também o grau de rigor na determinação dos respectivos limites.
Acolheu-se, desta maneira, a experiência de outros ordenamentos onde o princípio da especialidade das autorizações ou delegações legislativas tinha, já há muito tempo, dignidade constitucional.
Assim, a Constituição de Bona, no artigo 80.º, prescreve que a lei «deverá determinar o conteúdo, o fim e a extensão das referidas autorizações», enquanto a Constituição italiana, no artigo 76.º, dispõe que «o exercício da função legislativa não pode ser delegado no Governo, a não ser com determinação dos princípios e critérios directivos e apenas por tempo limitado e com objecto definido».
Se o objecto constitui o elemento enunciador da matéria sobre que versa a autorização e a extensão especifica qual a amplitude das leis autorizadas, através do sentido são fixados os princípios base, as directivas gerais que devem orientar o Governo na elaboração da lei delegada.
Este último elemento de condicionamento substancial constitui já não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro limite interno à própria autorização, porque é essencial para a determinação das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa. (Cf., neste sentido, o Acórdão 107/88, Diário da República, 1.ª série, de 21 de Junho de 1988.) À luz deste quadro conceitual entende-se não ser legítima a conclusão de que, nas normas em causa, não foi definido o sentido das respectivas autorizações legislativas.
Vejamos porquê.
3 - Por força do disposto no artigo 16.º, alínea a), da Lei 2/88, ficou o Governo autorizado a legislar no sentido do aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública em matéria de «regime de provimento e de exercício de funções públicas, visando a definição do tipo de vínculos entre a Administração e quem lhe prestar serviço ou actividade, das formas de exercício transitório de funções, do regime de incompatibilidades e acumulações, da prestação de serviço de funcionários em empresas públicas e privadas, do regime de exercício de funções por trabalhadores daquelas empresas na Administração e da posse e suas formalidades».
Sem embargo de poder desde logo afirmar-se, face ao âmbito de estatuição que após a revisão constitucional de 1982 foi atribuído ao artigo 168.º, n.º 1, alínea u), da Constituição (cf. Acórdão 142/85, Diário da República, 2.ª série, de 7 de Setembro de 1985), que diversas destas matérias não integram a área da competência reservada da Assembleia da República, sendo assim, quanto a elas, inútil, por desnecessária, a credencial parlamentar, sempre haverá de dizer-se ser possível, numa certa visão das coisas, encontrar-se naquela norma o sentido a que se faz alusão no artigo 168.º, n.º 2, da Constituição.
Com efeito, no domínio das diversas matérias ali elencadas (provimento e exercício de funções públicas; exercício transitório de funções;
incompatibilidades e acumulações; prestação de serviço de funcionários em empresas públicas e privadas e de trabalhadores destas empresas na Administração; posse e suas formalidades) existia já um determinado regime jurídico, visando-se agora legislar no sentido do seu aperfeiçoamento e modernização.
Este regime jurídico acha-se especialmente suportado pelo quadro normativo dos Decretos-Leis n.os 49397, de 24 de Novembro de 1969, 110-A/81, de 14 de Maio, e 41/84, de 3 de Fevereiro, nos quais, respectivamente, e em especial, se disciplina a matéria do regime de provimento, dos contratos de provimento e dos contratos de pessoal além dos quadros, se disciplinam as acumulações de lugares ou cargos públicos e se estabelecem regras relativas aos contratos de pessoal e contratos de prestação de serviço e aprovam instrumentos de mobilidade nos serviços da Administração Pública.
Ora, quando se tenha presente essa disciplina jurídica, toda ela iluminada por determinados princípios gerais, diversos deles com assento constitucional (cf., nomeadamente, o artigo 269.º da Constituição), bem poderá dizer-se que a autorização que se traduza no aperfeiçoamento e modernização do regime da função pública nas áreas assinaladas, visando a definição do tipo de vínculos e respectivo regime, há-de circunscrever-se à modificação de ordem essencialmente técnica e instrumental, fautora daqueles objectivos (definição de conceitos, clarificação de situações, simplificação de procedimentos), mas sem pôr em causa as estruturas essenciais do regime em vigor.
E porque o sentido das autorizações não tem de exprimir-se em abundantes princípios ou critérios directivos (que, levados às últimas consequências, até poderiam condicionar totalmente em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), devendo apenas ser suficientemente inteligível para que o legislador delegado possa observar os ditames do legislador delegante, nada impede que naquele enunciado se encontre traduzido um determinado sentido susceptível de ser concretizado na legislação autorizada.
E, a assim ser, há-de dizer-se inexistir a inconstitucionalidade que no acórdão foi imputada à norma da alínea a) do artigo 16.º da Lei 2/88.
4 - Tudo o que vem de dizer-se vale, por maioria de razão, para a norma da alínea d) do artigo 16.º do mesmo diploma, segundo a qual ficou o Governo autorizado a legislar no sentido do aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública em matéria de «estatuto do pessoal dirigente, visando a revisão do Decreto-Lei 191-F/79, de 26 de Junho, no tocante à definição da competência própria dos dirigentes, da área e forma de recrutamento».
É que, para além de considerações idênticas às anteriormente produzidas e que também podem servir no plano da norma agora em causa, verifica-se aqui uma explicitação visivelmente mais desenvolvida do sentido da autorização, traduzida na referência concreta feita à revisão do Decreto-Lei 191-F/79, nos domínios da definição da competência própria dos dirigentes e da área e forma do seu recrutamento.
Com suficiente rigor se alcançam as directivas a observar pela lei delegada a partir do quadro normativo vigente [Decreto-Lei 48059, de 23 de Novembro de 1967, e artigos 2.º (recrutamento e selecção), 3.º (competência) e 4.º (provimentos) do Decreto-Lei 191-F/79], directivas que a partir do estatuto actual, nas áreas delimitadas, se hão-de traduzir no seu aperfeiçoamento e modernização.
Pode assim dizer-se que, também aqui, não se verifica qualquer violação do disposto no artigo 168.º, n.º 2, da Constituição.
Aliás, e como remate expositivo, bem poderia dizer-se que, a aceitar-se a lógica da construção feita no acórdão, a propósito do alcance a conceder ao sentido das autorizações legislativas, deveriam ter-se havidas como constitucionalmente ilegítimas diversas outras autorizações contidas no artigo 16.º da Lei 2/88.
Antero Alves Monteiro Dinis.
Declaração de voto
Fiquei vencido quanto às conclusões n.os 5, 6 e 8 da alínea A) da decisão e ainda quanto à fundamentação do acórdão no respeitante à matéria dos n.os 1, 2 e 3 das mesmas conclusões. Além disso - e prescindindo de uma ou outra divergência de pormenor, praticamente inevitável num acórdão com a extensão e complexidade deste -, tão-pouco subscrevi a fundamentação no tocante ao julgamento de não inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 7.º do diploma em apreço. Direi, de seguida, procurando cingir-me ao essencial, das razões do meu dissentimento; mas não sem, a final, acrescentar ainda uma observação, que tenho por pertinente, acerca do alcance da conclusão n.º 9 da alínea A) da decisão.1 - No que toca a boa parte das questões em cuja apreciação divergi da maioria do Tribunal, subjaz ao meu dissentimento o ponto de vista - que perfilho - de que a incidência (e, portanto, a observância) das regras constitucionais sobre a organização e a aprovação parlamentar do Orçamento há-de ser considerada relativamente ao conjunto do documento, da lei do orçamento, que é emitido pela Assembleia da República. Isto é: há-de ser considerada, não apenas relativamente aos mapas orçamentais e seus anexos, mas também ao próprio articulado da lei. Valerá esta afirmação para a regra da unidade, que é (como no acórdão se reconhece) a de uma unidade documental, que recebe indiscutível consagração constitucional (artigo 108.º, n.º 5); mas valerá também para a regra da universalidade, a entender-se, como este Tribunal vem entendendo, mas já não é indiscutido (contra, Prof.
Teixeira Ribeiro, Os Poderes Orçamentais da Assembleia da República, separata do Boletim de Ciências Económicas, vol. XXX, Coimbra, 1987, p. 13), que igualmente ela é uma exigência da Constituição.
Que é assim, em meu modo de ver, decorre já da própria unidade formal, e como que incindível, do documento orçamental aprovado pela Assembleia da República, ou seja, das diversas partes integrantes da lei do orçamento. Mas decorre depois, e decisivamente, do facto de o sentido substancial das mencionadas regras, enquanto postuladas constitucionalmente, o seu sentido político-constitucional, portanto, em nada ser afectado pelo ponto de vista que perfilho, e antes se manter, com ele, integralmente preservado - apurado esse sentido, como decerto se impõe, à luz da exigência constitucional prioritária na matéria, que é a do voto parlamentar do Orçamento. Com efeito, como os mapas orçamentais, os seus anexos e o articulado da lei integram um só e mesmo documento submetido à Assembleia, e esta (claro está) todos discute e vota, temos que ainda as receitas e despesas que porventura constem apenas daquele articulado são objecto do debate político público e do voto parlamentar a que o Orçamento tem de ser sujeito - e isto é que é verdadeiramente essencial.
Penso, por isso, que a circunstância de haver receitas e despesas nessas condições - e traduzindo-se desse modo, se assim se quiser qualificar o caso, numa «orçamentação paralela» ou «adicional» à que figura nos mapas (mas, afinal, com a mesma origem política e tão «pública» quanto a destes) - não será, só por si, motivo de inconstitucionalidade. Poderá discutir-se um tal método, ou até expediente orçamental, e porventura discordar-se dele no plano técnico ou no plano político; mas às criticas que nesses planos se lhe façam não poderá juntar-se uma crítica constitucional. Ponto será apenas - mas isso é já outro lado da questão - que desse modo (por via dessa orçamentação «adicional») não seja posta em causa a regra do equilíbrio (formal) do Orçamento, prescrita no n.º 6 do artigo 108.º da Constituição.
Pela razão que fica exposta, desde logo não acompanhei a fundamentação do acórdão no respeitante à declaração de inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 20.º do diploma em apreço «na parte em que autoriza o reforço das contrapartidas nacionais nela previstas mediante operações do Tesouro, regularizáveis no Orçamento do Estado para 1989, até ao dobro daquele montante» (n.º 1 das conclusões) - ou seja (tal é o sentido da restrição, lida conjugadamente com o entendimento, também restritivo, que se fez do pedido nesse ponto), na parte em que admite que a regularização das mesmas operações de tesouraria possa fazer-se naquele outro Orçamento. Votei a conclusão, mas antes e unicamente porque, com admitir-se tal possibilidade, resulta violado o princípio constitucional da anualidade do Orçamento (como desnecessário se torna explicar). Não fora isso, e no preceito em causa não teríamos mais do que a previsão de uma despesa do Estado, cujo montante máximo se estabelece, que haveria de encontrar cobertura no excesso, que viesse a verificar-se, das receitas efectivamente arrecadadas sobre as previstas nos mapas orçamentais. Não significaria, de facto, outra coisa - como creio ser evidente - a autorização para realizar tal despesa por operações de tesouraria a regularizar no próprio ano a que o Orçamento respeita.
Pela mesma ordem de razões não acompanhei a fundamentação do acórdão no que toca à declaração de inconstitucionalidade dos n.os 3 (na parte que foi objecto de tal declaração) e 4 do mesmo artigo 20.º Votei as correspondentes conclusões (conclusões n.os 2 e 3), mas antes porque nesses preceitos não se fixa o montante máximo - ou seja, a dotação - das despesas aí previstas:
essa, com efeito, será uma exigência que, por essencial (como é óbvio) ao próprio conceito de «orçamento», não pode deixar de integrar a noção constitucional deste último.
Por outro lado, mas ainda pela mesma ordem de razões, não votei a declaração de inconstitucionalidade das normas dos n.os 1 e 3 nem, por via de consequência, dos n.os 2 e 4 do artigo 11.º (n.º 8 das conclusões): na verdade, aprovando-se aí uma nova despesa do Estado, mas fixando-se-lhe o montante máximo, e prevendo-se, por outra parte, a receita destinada a assegurar-lhe cobertura, com a correspondente autorização, já poderá concluir-se, à luz de quanto atrás se disse e sem necessidade de mais considerações, que o facto de uma e outra (as ditas despesa e receita) não figurarem nos mapas orçamentais será constitucionalmente irrelevante. Posto isto, não deixarei em todo o caso de assinalar marginalmente que - se bem vejo as coisas - nem sequer poderá dizer-se, quanto à receita e despesa em causa, que a sua não inclusão naqueles mapas «desfigura» o défice orçamental: é que, tratando-se de um caso de cobertura por receita «não efectiva» de despesa também «não efectiva», a situação nunca contaria, claro está, para aquele défice.
2 - Também não votei a declaração de inconstitucionalidade da norma do n.º 6 do artigo 20.º (n.º 5 das conclusões).
Entendi, a tal respeito, que essa norma contém verdadeira e substancialmente não uma «autorização» ao Governo para alterar a dotação do capítulo 50 do orçamento da despesa do Ministério da Educação (o que seria, decerto, inconstitucional) mas sim uma alteração condicional da mesma dotação, «aprovada» desde logo pela Assembleia da República, que o Governo fica autorizado a «executar». Repare-se, com efeito, em que a Assembleia não transfere para o Governo a decisão política original sobre o aumento da despesa do capítulo em causa; estabelece ela própria as circunstâncias, condições e medida de tal aumento, colocando-o na dependência da verificação de um facto futuro, cuja ocorrência, por outro lado, escapa também ao poder decisório do Executivo.
A situação é, pois, muito diferente da do artigo 22.º, n.º 1, alínea c), do diploma em apreço ou daquelas outras sobre as quais o Tribunal se pronunciou no Acórdão 144/85 (Diário da República, 1.ª série, de 4 de Setembro de 1985) - aresto em que primeiro foi chamado a tomar posição acerca do âmbito da reserva parlamentar em matéria de alterações orçamentais.
3 - Tão-pouco votei a declaração de inconstitucionalidade das normas do artigo 19.º da Lei 2/88 e das correspondentes inscrições nos mapas II e III do Orçamento para 1988, uma e outras relativas à designada «Dotação concorrencial» (n.º 6 das conclusões).
Louvo-me basicamente, quanto a este ponto, nas razões a tal propósito expendidas pelo relator do presente acórdão, Exmo. Conselheiro Raul Mateus, na sua declaração de voto. Assim, brevitatis causa, limitar-me-ei a acentuar que, não acarretando a previsão da dotação concorrencial (como nessa declaração desenvolvidamente se mostra) a violação de qualquer das específicas regras de organização do Orçamento constitucionalmente impostas, a sua inconstitucionalidade só poderia derivar, ao fim e ao cabo, da incompatibilidade de tal figura com o sentido e alcance político-constitucional do voto parlamentar do Orçamento (e da correspondente reserva), atenta, nomeadamente, a dimensão deste enquanto plano financeiro. Ora, a verdade é que naquele voto não vai mais do que a fixação do montante máximo da despesa, ficando depois ao Governo (salvo, claro está, o caso das despesas de montante legal ou contratualmente obrigatório) a possibilidade de utilizá-la ou não na íntegra; como não vai além disso, por conseguinte, o juízo político de distribuição e afectação dos recursos disponíveis a que a Assembleia procede ao votar as despesas. Mas, se é assim, então quando a Assembleia prevê (e vota) desde logo que o Governo não gaste integralmente certas dotações, e desde logo lhe impõe uma utilização selectiva delas ao longo do ano económico, segundo critérios de eficiência e essencialidade - e foi o que a Assembleia fez ao votar a dotação concorrencial -, não está ela a conferir ao Governo uma faculdade que este já não detivesse, nem tão-pouco a abdicar de um poder que a ela, e em exclusivo, pertencesse. Então, por outras palavras, não é o Governo chamado a fazer opções que transcendam o simples plano da execução orçamental - que é sua tarefa própria [artigo 202.º, alínea b), da Constituição]. Eis o ponto fulcral da questão - o ponto que, a meu ver, a argumentação em contrário do acórdão não logra pôr em causa.
Conclusão diversa daquela a que cheguei só poderia admiti-la se a dotação concorrencial fosse de um montante de tal modo elevado e expressivo que por via dela a distribuição dos recursos disponíveis efectuada pela Assembleia da República viesse a assumir apenas, ao fim e ao cabo, um carácter meramente provisório (ou «provisional») e ficasse despida, pois, de real conteúdo; e se desse modo se estivesse afinal a transferir para o Governo a decisão efectiva sobre aquela distribuição de recursos, em medida que notoriamente excedesse o puro âmbito da «execução» do Orçamento. Aí, de facto, bem se poderia dizer que a «quantidade» implicaria uma mudança de «qualidade» da situação; ou seja, bem se poderia anuir à conclusão de que a dotação concorrencial desfiguraria o «plano financeiro» que é o Orçamento, e desvirtuaria a exigência constitucional da sua aprovação parlamentar. Só que, manifestamente, não é esse o caso na hipótese vertente - quando o montante da dotação concorrencial se cifra em 33 milhões de contos e o total da despesa constante do respectivo mapa orçamental atinge 2205 milhões de contos.
4 - Divergi ainda do acórdão mas agora, e de novo, apenas no tocante aos respectivos fundamentos - no respeitante ao julgamento de não inconstitucionalidade de que foi objecto a norma do n.º 2 do artigo 7.º da Lei 2/88 (capítulo IV do acórdão).
Com efeito, votei essa conclusão desde logo, e sem mais, por entender que aí se está perante uma norma sem directa incidência orçamental, simplesmente relativa à autorização para contrair os empréstimos de que se trata no n.º 1.
Interpretei a norma em causa como estabelecendo um limite suplementar ao montante máximo de endividamento previsto na disposição precedente, tal que, se houver juros a suportar em 1988, estes acrescerão ao capital e a correspondente soma não poderá ultrapassar 260 milhões de contos; um limite suplementar tal que, por outras palavras, aqueles juros serão como que objecto de «capitalização». Ora isso é o bastante para arredar qualquer violação da Constituição.
5 - Expostas as questões em que divergi do acórdão, acrescentarei mais o seguinte no que respeita, por fim, ao alcance que entendo ser o da declaração de inconstitucionalidade das normas das alíneas a) e d) do artigo 16.º do diploma em apreço (conclusão n.º 9).
Votei tal declaração - embora não sem alguma dúvida -, já que, no rigor dos termos, tais preceitos, enquanto normas de autorização legislativa, não parece satisfazerem a exigência constitucional (artigo 168.º, n.º 2) relativa à definição do «sentido» da autorização, ou seja, relativa à indicação de um critério normativo geral por que deva nortear-se o uso dela.
O certo, no entanto, é que - se mais uma vez vejo bem as coisas - tal declaração de inconstitucionalidade não retirará ao Governo a possibilidade de legislar sobre as matérias em causa, pois que, para tanto, não carece ele - ou melhor, só em limitada medida carece - de autorização legislativa. Com efeito, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, essa autorização só será necessária quando a legislação a emitir vá contender com o «quadro dos princípios básicos fundamentais» da regulamentação da função pública, isto é, com as «linhas de força estruturais» do respectivo regime - princípios e linhas de força esses que, na falta de uma lei quadro da função pública, há que continuar a extrair dos «numerosos e dispersos textos legais» atinentes à matéria. Foi nestes precisos termos, na verdade, que o Tribunal, no Acórdão 142/85, se pronunciou extensamente sobre o alcance da reserva parlamentar da alínea u) do artigo 168.º, n.º 1, da Constituição, relativa à definição das «bases do regime e âmbito da função pública» (cf. Diário da República, 2.ª série, de 7 de Setembro de 1985).
José Manuel Cardoso da Costa.