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Acórdão 144/85, de 4 de Setembro

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes das alíneas b) (na parte em que autoriza a transferência de verbas do capítulo «Investimentos do Plano» de um ministério para outro e dentro do mesmo ministério, se, neste caso, implicar alteração da classificação funcional das despesas), c) (na sua totalidade) d), [na parte em que autoriza a transferência de verba que implique a alteração da classificação orgânica (por ministérios) ou funcional das despesas] e e) (na parte em que autoriza a transferência de verbas que implique a alteração da classificação funcional das despesas) do artigo 17.º da Lei n.º 2-B/85, de 28 de Fevereiro (Orçamento do Estado para 1985), por violação das disposições conjugadas dos artigos 108.º, n.º 5, e 164.º, alínea g), da Constituição, mas, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, limita os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por forma a salvaguardar as transferências de verbas eventualmente já efectuadas à data da publicação deste acórdão.

Texto do documento

Acórdão 144/85
Processo 74/85
1 - Um grupo de 29 deputados à Assembleia da República requereu em 3 de Maio do ano corrente - com carácter urgente -, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das alíneas b), c), d) e e) do artigo 17.º da Lei 2-B/85, de 28 de Fevereiro (Orçamento do Estado para 1985), «por as mesmas violarem frontalmente as disposições constitucionais relativas à elaboração e alteração do Orçamento do Estado, designadamente os artigos 108.º e 164.º, alínea g), da Constituição». Com efeito - diz-se no respectivo requerimento -, «as normas em referência conferem ao Governo, ilimitadamente, poderes que em qualquer caso só à Assembleia da República cabem e tornam precária, susceptível de alteração à revelia do único órgão para o efeito competente, a repartição das verbas respeitantes aos diversos tipos de despesas públicas, o que converte o Orçamento do Estado numa vasta soma de verdadeiras dotações provisionais, livremente alteráveis pelo Governo».

Notificada a Assembleia da República, em cumprimento do determinado no artigo 54.º da Lei 28/82, para se pronunciar sobre o pedido, limitou-se o Exmo. Presidente a oferecer o merecimento dos autos e a remeter, para ser junta, uma fotocópia do Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 48, de 16 de Fevereiro de 1985, donde consta a discussão travada no seio desse órgão de soberania sobre a matéria submetida à apreciação deste Tribunal.

Distribuído o processo na sessão de 28 de Maio, cumpre decidir.
2 - É o seguinte o teor do artigo 17.º da Lei 2-B/85, de 28 de Fevereiro (Orçamento do Estado para 1985), na parte que aqui interessa:

Artigo 17.º
(Alterações orçamentais)
1 - Na execução do Orçamento do Estado para 1985, o Governo é autorizado, precedendo concordância do Ministro das Finanças e do Plano, a:

[...]
b) Transferir, quer dentro do orçamento de cada ministério ou departamento, quer do orçamento de um ministério ou departamento para outro, independentemente da classificação funcional, as verbas respeitantes a «Investimentos do Plano»;

c) Transferir verbas entre o capítulo «Investimentos do Plano» e os restantes capítulos do Orçamento do Estado, quando, na execução orçamental, o enquadramento das respectivas despesas se mostrar inadequado;

d) introduzir no mapa VII do Orçamento do Estado as alterações que se tornem necessárias à elaboração e plena execução do PIDDAC;

e) Ajustar, através de transferência e independentemente da classificação funcional, as dotações respeitantes a subsídios às empresas públicas e aumentos de capital constantes do orçamento do Ministério das Finanças e do Plano;

[...]
Diga-se desde já que as alíneas em questão reproduzem textualmente o texto correspondente da proposta de lei apresentada pelo Governo (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 39, de 12 de Janeiro de 1985).

Segundo os requerentes, tais normas violam «as disposições constitucionais relativas à elaboração e alteração do Orçamento do Estado, designadamente os artigos 108.º e 164.º, alínea g), da Constituição da República».

De acordo com a alínea g) do artigo 164.º, compete à Assembleia da República «aprovar a lei do Plano e o Orçamento do Estado».

Por seu lado, o artigo 108.º, subordinado à epígrafe «Orçamento», dispõe o seguinte:

1 - O Orçamento do Estado contém:
a) A discriminação das receitas e despesas do Estado;
b) O orçamento da segurança social.
2 - O Orçamento é elaborado de harmonia com as opções do Plano e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato.

3 - A proposta de orçamento é apresentada pelo Governo e votada na Assembleia da República, nos termos da lei.

4 - A proposta de orçamento é acompanhada de relatório justificativo das variações das previsões das receitas e despesas relativamente ao Orçamento anterior e ainda de relatórios sobre a dívida pública e as contas do Tesouro, bem como da situação dos fundos e serviços autónomos.

5 - O Orçamento é unitário e específica as despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos.

6 - O Orçamento deve prever as receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua execução, bem como as condições de recurso ao crédito público.

7 - A proposta de orçamento é apresentada e votada nos prazos fixados por lei, a qual prevê os procedimentos a adoptar quando aqueles não puderem ser cumpridos.

8 - A execução do Orçamento será fiscalizada pelo Tribunal de Contas e pela Assembleia da República, que, precedendo parecer daquele Tribunal, apreciará e aprovará a Conta Geral do Estado, incluindo a da segurança social.

Importa então ver se algum destes preceitos foi violado.
2.1 - A Constituição de 1933 atribuía à Assembleia Nacional competência para «autorizar o Governo, até 15 de Dezembro de cada ano, a cobrar as receitas do Estado e a pagar as despesas públicas na gerência futura, definindo na respectiva lei de autorização os princípios a que deve ser subordinado o Orçamento, na parte das despesas cujo quantitativo não é determinado em harmonia com as leis preexistentes» (artigo 91.º, n.º 4, na redacção que lhe foi dada pela Lei 1885, de 23 de Março de 1935).

A Constituição de 1976 veio distinguir entre lei do orçamento e Orçamento. A lei do orçamento, a votar anualmente pela Assembleia da República, devia conter: a) a discriminação das receitas e a das despesas na parte respeitante às dotações globais correspondentes às funções e aos ministérios e secretarias de Estado; b) as linhas fundamentais de organização do orçamento da segurança social [n.º 1 do citado artigo 108.º e artigo 164.º, alínea g), na sua primitiva redacção]. O Orçamento Geral do Estado era elaborado pelo Governo, de harmonia com a lei do orçamento e o Plano e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato (n.º 2 do mesmo artigo 108.º).

Depois da revisão constitucional (Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro), a Assembleia da República passou a aprovar o próprio Orçamento do Estado, sob a forma de lei [artigo 108.º, n.º 3, atrás transcrito, e artigos 164.º, alínea g), e 169.º, n.º 2, na sua versão actual].

A Constituição de 1933 atribuía, portanto, à Assembleia Nacional poderes apenas para votar a lei de autorização das receitas e despesas (lei de meios). Com a Constituição de 1976 fez-se a distinção entre a lei do orçamento e Orçamento, competindo à Assembleia da República votar somente a lei do orçamento, que todavia não era uma simples lei de autorização de receitas e despesas, visto que continha as verbas das receitas e das despesas, aquelas discriminadas a nível em grande parte dos artigos e estas a nível dos departamentos do Estado. A revisão constitucional veio reforçar os poderes da Assembleia, que passou a votar o próprio Orçamento, em vez da lei do orçamento.

A este propósito escreveu o Prof. J. J. Teixeira Ribeiro, As Alterações à Constituição no Domínio das Finanças Públicas, separata do Boletim de Ciências Económicas, vol. XXVI, 1983, n.º 2:

A Assembleia da República - diz a Constituição (artigo 150.º) - é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses. Ora, se se quer que os cidadãos portugueses, através dos seus representantes, se pronunciem sobre o destino que o Estado dá ao dinheiro que lhes leva, não há dúvida de que não basta a Assembleia votar apenas a lei do orçamento, nos termos do primitivo artigo 108.º; é preciso que ela vote o próprio Orçamento, como sucede agora. Eis a lógica da grande mudança que o artigo sofreu.

Sobre estes diferentes regimes podem ver-se ainda: Prof. Doutor A. L. de Sousa Franco, «A revisão da constituição económica» (in Revista da Ordem dos Advogados, ano 42, 1982, p. 601), n.º 4, b), e «Sobre a constituição financeira de 1976-1982» (in Estudos, vol. I, 1983, do Centro de Estudos Fiscais, XX Aniversário, p. 65), n.os 5.1 a 5.4; António Bernardo A. da Gama Lobo Xavier, «Enquadramento orçamental em Portugal: alguns problemas» (in Revista de Direito e Economia, ano IX, 1983, p. 221), n.os 1 e 2; Prof. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 2.ª ed., 1984, n.os 4, 7 e 8; Luís S. Cabral de Moncada, Perspectivas do Novo Direito Orçamental Português, 1984, n.º 3, e ainda J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1984, n.º VII das anotações ao artigo 108.º

2.2 - O Orçamento é um mapa de previsão de receitas e despesas. Mas as receitas e as despesas podem ser inscritas nesse documento em globo ou discriminadamente. Isto é: tanto pode fazer-se uma previsão do total das despesas de cada serviço ou grupo de serviços e uma previsão do total de cada género ou categoria de receitas como fazer-se uma previsão de cada uma das várias espécies de receitas e de cada uma das várias espécies de despesas.

«No entanto», ensina o Prof. Teixeira Ribeiro, Lições ..., cit., n.º 5, «se as receitas e as despesas fossem previstas em globo e não discriminadamente, o Orçamento não nos indicaria as diversas fontes donde o Estado vai tirar os seus recursos, nem os diversos gastos que cada serviço público há-de realizar. Quer dizer: não teríamos, verdadeiramente, uma exposição do plano financeiro.»

Daí que as receitas e as despesas devam ser previstas especificadamente. É a regra da especificação. Essa regra está consagrada no n.º 5 do transcrito artigo 108.º da Constituição: «O Orçamento [...] específica as despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos.» E consta igualmente do n.º 1 do artigo 7.º da actual Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado (Lei 40/83, de 13 de Dezembro): «O Orçamento do Estado deve especificar suficientemente as receitas nele previstas e as despesas nele fixadas», como constava já do n.º 1 do artigo 7.º da anterior (Lei 64/77, de 26 de Agosto): «O Orçamento Geral do Estado especificará suficientemente as receitas nele previstas e as despesas nele fixadas.»

«O Orçamento [...] específica as despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional» - diz o artigo 108.º, no seu n.º 5.

Na classificação orgânica, as despesas distribuem-se por: departamentos do Estado (Encargos Gerais da Nação; Ministério da Defesa Nacional, englobando Estado-Maior-General das Forças Armadas, Marinha, Exército e Força Aérea, e restantes ministérios); dentro de cada departamento, por organismos (capítulos); dentro de cada capítulo, por serviços dependentes (divisões); dentro de cada divisão, por subdivisões.

A classificação funcional atende à natureza das funções exercidas pelo Estado. Assim, temos: serviços gerais da Administração Pública; defesa nacional; educação; saúde; segurança e assistência sociais; habitação e equipamentos urbanos; outros serviços colectivos e sociais; serviços económicos; outras funções (cf. o mapa IV «Classificação funcional das despesas públicas», anexo à Lei 2-B/85).

2.3 - Como previsão que é, o Orçamento pode vir a ser confirmado ou infirmado pelos factos: pode, por exemplo, vir a tornar-se necessária uma despesa não prevista ou verificar-se ser insuficiente a dotação inscrita para determinado efeito. Daí a necessidade de o alterar. As alterações ao Orçamento são, por isso, admitidas em todos os ordenamentos jurídicos.

Sendo, porém, o nosso Orçamento votado em lei da Assembleia da República, com «especificação» das despesas, compreende-se que não possa o Governo, que é quem tem a incumbência de o executar, alterá-lo como lhe aprouver.

A esse respeito ensina o Prof. Teixeira Ribeiro, Lições ..., cit., n.º 9:
Ora, ao aprovar o Orçamento, a Assembleia fixou o montante máximo não só da despesa total como da despesa de cada capítulo e de cada função e subfunção. Daí que, em princípio, seja vedado ao Governo transferir verbas de capítulo para capítulo e de função para função ou de subfunção para subfunção, bem como abrir créditos que se traduzem em aumento da despesa total do Orçamento, ou da despesa de qualquer capítulo e de qualquer função e subfunção.

Diz, por sua vez, o Prof. Sousa Franco, no citado estudo «Sobre a constituição financeira de 1976-1982», n.º 5.10:

Quem pode agir pode alterar (ou revogar: mas não se pode revogar sem mais o Orçamento ...). Logo, o Orçamento pode ser alterado, desde que seja respeitada a forma inicial: iniciativa legislativa do Governo (devido à sua competência exclusiva e indelegável neste domínio) e alteração por lei de revisão da Assembleia. Será esta a forma normal de introduzir alterações orçamentais.

Conclui, por seu lado, António Bernardo A. da Gama Lobo Xavier, no estudo citado, n.º 11, que, «com a aprovação do Orçamento, o Governo fica vinculado pelos próprios níveis inferiores de especificação daquele documento, no que concerne às classificações orgânica - capítulos - e funcional - subfunções -, de tal forma que as alterações dos mapas orçamentais que contêm as referidas classificações das despesas públicas só podem ser levadas a cabo através da intervenção do Parlamento».

Finalmente, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. e vol. cit., n.º XI das anotações ao artigo 108.º, escrevem:

Aprovado o Orçamento, cabe ao Governo apenas executá-lo, não podendo obviamente alterá-lo. Mas já a AR pode alterá-lo, desde que tal lhe seja proposto pelo Governo (e não por iniciativa parlamentar). Em suma: a lei do orçamento só pode ser alterada por nova lei aprovada nos mesmos termos da lei originária. Tal como a AR não pode abrir mão da sua competência exclusiva para aprovar o Orçamento, também não pode autorizar o Governo a alterar a respectiva lei.

Temos, assim, que, sendo o Orçamento votado em lei - lei da Assembleia da República, mediante proposta do Governo -, as alterações ao Orçamento devem, como regra, ser igualmente objecto de lei, precedendo proposta governamental.

E é essa a regra constante dos n.os 1 e 2 do artigo 20.º da citada Lei 40/83: «as alterações que impliquem aumento da despesa total do Orçamento do Estado ou dos montantes de cada capítulo fixados no Orçamento só podem ser efectuadas por lei da Assembleia da República» (n.º 1); «as alterações que impliquem a transferência de verbas ou a supressão de dotações entre capítulos, ou ainda de natureza funcional, são também aprovadas por lei da Assembleia da República».

Esse mesmo artigo contém, porém, excepções. Assim: «exceptuam-se do disposto no n.º 1 as despesas não previstas e inadiáveis, para as quais o Governo pode efectuar inscrições ou reforços de verbas com contrapartida em dotação provisional a inscrever no orçamento do Ministério das Finanças e do Plano, destinada a essa finalidade» (n.º 3); «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, podem ser reduzidas ou anuladas mediante decreto-lei as dotações que careçam de justificação, desde que fiquem salvaguardadas as obrigações do Estado» (n.º 4); «exceptuam-se do regime consignado nos números anteriores as verbas relativas às contas de ordem, cujos quantitativos de despesas podem ser alterados automaticamente até à concorrência das cobranças efectivas de receitas» (n.º 5); «exceptuam-se ainda do regime definido nos n.os 1 a 3 as despesas que, por expressa determinação da lei, possam ser realizadas com utilização de saldos de dotações de anos anteriores, bem como as despesas que tenham compensação em receitas» (n.º 6).

Há, pois, alterações orçamentais que o Governo pode fazer.
Estarão nesse número as alterações previstas nas alíneas b), c), d) e e) do artigo 17.º da Lei 2-B/85, aqui em apreciação?

Pode desde logo adiantar-se que estas alterações não encontram cobertura nas excepções previstas no artigo 20.º da Lei 40/83.

Se lá coubessem, as referidas alíneas do artigo 17.º da Lei 2-B/85 seriam inúteis.

Examinemos então as normas em apreço.
2.3.1 - Pela alínea b) desse artigo 17.º é o Governo autorizado a transferir, quer dentro do orçamento de cada ministério ou departamento, quer do orçamento de um ministério ou departamento para outro, independentemente da classificação funcional, as verbas respeitantes a «Investimentos do Plano».

Conforme se vê no mapa II do Orçamento, «Despesas por departamentos do Estado e capítulos», elaborado de acordo com o quadro incluído no n.º 9 das Grandes Opções do Plano para 1985 (aprovadas pela Lei 2-A/85, de 28 de Fevereiro), as verbas respeitantes a «Investimentos do Plano» (capítulo 50 do Orçamento) aparecem distribuídas pelos Encargos Gerais da Nação e pelos Ministérios da Defesa Nacional, das Finanças e do Plano, da Administração Interna, da Justiça, da Agricultura, da Indústria e Energia, do Comércio e Turismo, do Trabalho e Segurança Social, da Educação, da Saúde, do Equipamento Social, da Qualidade de Vida, da Cultura e do Mar.

Por esta norma a Assembleia autorizou, assim, o Governo a transferir, dentro de cada ministério ou departamento, e até de um ministério ou departamento para outro, as verbas respeitantes a «Investimentos do Plano», e isto independentemente da classificação funcional.

Mas, se a norma não viola a Constituição na parte em que permite a transferência de verbas respeitantes a «Investimentos do Plano» (capítulo 50 do Orçamento) dentro do mesmo ministério e sem haver alteração da classificação funcional - a verba destinada à construção de um escola pode ser aplicada na construção de outra escola -, já há violação da Constituição - precisamente das disposições conjugadas dos artigos 108.º, n.º 5, e 164.º, alínea g) - quando a autorização se refira à transferência de verbas daquele capítulo, dentro do mesmo ministério, se houver alteração da classificação funcional, ou então à transferência de verbas de um ministério para outro, porque neste caso há alteração da classificação orgânica.

A alínea em apreciação permitiria, por exemplo, que o Governo transferisse as verbas de 4362700 contos e 1553000 contos, concedidas, respectivamente, aos Ministérios da Educação e da Saúde, no capítulo «Investimentos do Plano», para o orçamento da Administração Interna ou para o da Defesa Nacional, dentro do mesmo capítulo.

Ora isso não pode ser, face aos citados preceitos da Constituição.
Já, aliás, no domínio da redacção primitiva da Constituição se defendia ser esse o entendimento correcto do artigo 108.º Como disse o deputado Vítor Constâncio aquando da discussão na Assembleia das alterações propostas para esse artigo [in Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 18, de 21 de Novembro de 1981, p. 400-(48)], «muito embora, de facto, o Governo possa fazer alterações orçamentais durante o ano, e deve poder continuara fazer, ele hoje não pode fazer alterações orçamentais que alterem aquilo que foi aprovado na Assembleia ao nível das verbas globais por cada ministério e por cada função do Estado dentro da classificação funcional das despesas. Porque esse quadro também é aprovado pela Assembleia e, portanto, o Governo não pode fazer transferências de despesas de educação para despesas de saúde, por exemplo, alterando com isso os plafonds que estão definidos no quadro de classificação funcional de despesas que é aprovado na Assembleia. Portanto, já hoje uma limitação desse tipo existe».

2.3.2 - A alínea c) do artigo 17.º da Lei 2-B/85 autoriza o Governo a transferir verbas entre o capítulo «Investimentos do Plano» e os restantes capítulos do Orçamento do Estado quando, na execução orçamental, o enquadramento das respectivas despesas se mostrar inadequado.

Aqui permite-se ao Governo efectuar transferências do capítulo «Investimentos do Plano» para outros capítulos do Orçamento, e isto não só dentro do mesmo ministério, como porventura de um ministério para outro.

Seja como for, é evidente a violação dos preceitos citados, pela alteração da classificação orgânica que tais transferências implicam.

2.3.3 - A alínea d) do mesmo artigo 17.º autoriza o Governo a introduzir no mapa VII do Orçamento do Estado as alterações que se tornem necessárias à elaboração e plena execução do PIDDAC (Programa de Investimentos e de Despesas de Desenvolvimento da Administração Central).

O mapa VII «Programas e projectos plurianuais» compreende os programas sectoriais (cf. o quadro constante do n.º 9 das Grandes Opções do Plano) e a programação financeira plurianual dos programas integrados de desenvolvimento regional (omitida na Lei 2-B/85 e depois publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 91, de 19 de Abril de 1985).

Os programas sectoriais estão distribuídos pela Presidência do Conselho de Ministros e pelos Ministérios da Defesa Nacional (Departamentos da Força Aérea e da Marinha), da Justiça, das Finanças e do Plano, da Educação, do Trabalho e Segurança Social, da Saúde, da Agricultura, da Indústria e Energia, do Comércio e Turismo, da Cultura, do Equipamento Social (Departamentos de Obras Públicas e de Transportes), da Qualidade de Vida e do Mar.

Na programação financeira plurianual dos programas integrados de desenvolvimento regional estão previstos o Programa de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes, o Programa Integrado de Desenvolvimento Regional da Cova da Beira, o Programa Integrado de Desenvolvimento Regional do Baixo Mondego, o Programa Integrado de Desenvolvimento Rural da Zona Crítica Alentejana, o Programa Integrado de Desenvolvimento Regional do Nordeste Algarvio, o Apoio ao Aproveitamento dos Recursos Endógenos de Freixo de Espada à Cinta e acções preparatórias dos programas de desenvolvimento rural integrado.

Ora, a autorização concedida por esta norma, na parte em que permite transferências de verbas que impliquem a alteração da classificação orgânica (por ministérios) ou funcional das despesas, viola igualmente os preceitos constitucionais atrás referidos.

2.3.4 - A alínea e) do artigo 17.º da Lei 2-B/85 autoriza o Governo a ajustar, através de transferência e independentemente da classificação funcional, as dotações respeitantes a subsídios às empresas públicas e aumentos de capital constantes do orçamento do Ministério das Finanças e do Plano.

Como já sabemos pela transcrição feita do artigo 108.º da Constituição, o Orçamento é unitário (n.º 5). A regra da unidade é repetida na já citada Lei 40/83. Diz, com efeito, o n.º 1 do seu artigo 3.º:

O Orçamento do Estado é unitário e compreende, todas as receitas e despesas da administração central, incluindo as receitas e despesas de todos os serviços, institutos e fundos autónomos, bem como as receitas e despesas da segurança social.

Simplesmente, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, «os orçamentos das regiões autónomas, das autarquias locais e das empresas públicas são independentes, na sua elaboração, aprovação e execução, do Orçamento do Estado, mas deste deverão constar, em mapas globais anexos, os elementos necessários à apreciação da situação financeira de todo o sector público administrativo e de todo o sector público empresarial».

Daí que se possa dizer, com o Prof. Teixeira Ribeiro, Lições ..., cit, n.º 5, c), I:

Há, pois, um único orçamento da administração central. Mas não há rigorosamente um único orçamento do Estado, uma vez que ficam de fora as receitas e as despesas das nossas muitas empresas públicas. Estas são estabelecimentos do Estado, mas de índole industrial ou comercial, com gestão semelhante à das empresas privadas e personalidade jurídica. São, pois, estabelecimentos industriais do Estado personalizados, pelo que constituem órgãos autárquicos da administração estadual descentralizada.

Como se vê, o Orçamento do Estado não é orçamento de todo o Estado. Fogem a ele as empresas públicas. Mas não inteiramente, visto que, nos termos do transcrito n.º 2 do artigo 3.º da Lei 40/83, os dados globais dos orçamentos destas empresas, bem como os dos orçamentos das regiões autónomas e das autarquias locais, devem figurar em mapas anexos ao Orçamento do Estado.

Pode dizer-se que as principais receitas das empresas públicas são as resultantes da sua actividade específica [artigo 18.º, alínea a), do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril]. Mas, por um lado, o capital estatutário destas empresas pode ser aumentado por força de entradas patrimoniais do Estado (artigo 17.º do mesmo diploma, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 353-A/77, de 29 de Agosto) e, por outro lado, o Estado pode conceder-lhes, subsídios [artigos 18.º, alínea c), e 20.º desse mesmo decreto-lei].

E, conforme se salientou no n.º 2.2, «Fixação das despesas orçamentais», da proposta de Orçamento do Estado para 1985, incluíram-se no Ministério das Finanças e do Plano, entre outras verbas que constituem encargos gerais da Nação, as de 29000 milhares de contos para aumentos de capital estatutário e 29000 milhares de contos para subsídios às empresas públicas.

Ora estas dotações é que, pela autorização constante da alínea em apreciação, seriam ajustáveis pelo Governo, através de transferência e «independentemente da classificação funcional».

Só que a autorização aqui dada, enquanto permite alterar a classificação funcional das despesas, viola os citados preceitos da Constituição, isto é, o n.º 5 do artigo 108.º e o artigo 164.º, alínea g).

2.4 - O n.º 4 do artigo 282.º da Constituição dispõe que, «quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos n.os 1 e 2», ou seja, sem que esses efeitos se produzam «desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional».

No caso dos autos, militam razões de segurança jurídica que aconselham a que se faça a limitação de efeitos prevista nesse preceito, para evitar que transferências de verbas eventualmente feitas ao abrigo das autorizações em questão viessem a ficar sem suporte legal.

Assim, entende-se dever limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por forma a salvaguardar as transferências de verbas eventualmente já efectuadas à data da publicação deste acórdão.

3 - Pelo exposto, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes das alíneas b), c), d) e e) do artigo 17.º da Lei 2-B/85, de 28 de Fevereiro (Orçamento do Estado para 1985), por violação das disposições conjugadas dos artigos 108.º, n.º 5, e 164.º, alínea g), da Constituição, nos termos seguintes:

A alínea b), na parte em que autoriza a transferência de verbas do capítulo «Investimentos do Plano» de um ministério para outro e dentro do mesmo ministério, se, neste caso, implicar alteração da classificação funcional das despesas;

A alínea c), na sua totalidade;
A alínea d), na parte em que autoriza a transferência de verba que implique a alteração da classificação orgânica (por ministérios) ou funcional das despesas;

A alínea e), na parte em que autoriza a transferência de verbas que implique a alteração da classificação funcional das despesas.

Mas, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, limitam-se os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por forma a salvaguardar as transferências de verbas eventualmente já efectuadas à data da publicação deste acórdão.

Lisboa, 31 de Julho de 1985. - Mário de Brito (relator, vencido quanto à limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, conforme declaração de voto que junto) - Raul Mateus - Jorge Campinos - Luís Nunes de Almeida - José Magalhães Godinho - José Manuel Cardoso da Costa - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - Mário Afonso - Vital Moreira [vencido parcialmente quanto à declaração da inconstitucionalidade apenas parcial da alínea d) e quanto à limitação dos efeitos, nos termos da declaração de voto junta] - António Luís Costa Mesquita (vencido, apenas pelo que toca à restrição dos efeitos, pelos motivos declarados pelo Exmo. Conselheiro Relator) - Armando Manuel Marques Guedes.


Declaração de voto
Votei vencido quanto à limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por entender que se não verifica qualquer dos pressupostos de que, à face da Constituição, depende essa limitação. As inconstitucionalidades são, a meu ver, flagrantes; para elas foi alertada a Assembleia da República aquando da discussão das normas em apreço; e um deputado chegou mesmo a anunciar que iriam ser oportunamente tomadas as iniciativas necessárias para combater, pelos meios que a Constituição prevê, «este monstro jurídico que acaba de ser criado com os votos da coligação governamental». - Mário de Brito.


Declaração de voto
1 - Votei contra as conclusões do acórdão apenas quanto a dois pontos bem precisos: a) quanto à conclusão relativa à alínea d) do n.º 1 do artigo 17.º, por entender que ela é inconstitucional, não apenas parcialmente (como decide o acórdão), mas sim integralmente; b) quanto à limitação dos efeitos da declaração da inconstitucionalidade - que, nos termos do acórdão, só se produzirão a partir da data da sua publicação (no jornal oficial, bem entendido) -, por entender que não existem razões bastantes para tal.

Lamento, certamente, não poder subscrever integralmente o acórdão, quando o considero uma das mais importantes decisões do Tribunal nesta área, ficando seguramente a constituir um ponto de referência obrigatório em matéria de direito constitucional orçamental. Entendo, porém, que os dois pontos contra os quais voto afectam significativamente essa importância (de resto, escusadamente quanto a um deles).

2 - A mencionada alínea d) autoriza o Governo a alterar o mapa VII do Orçamento. O acórdão considera que ela é inconstitucional na parte em que as alterações aí autorizadas afectem a classificação orgânica ou funcional das despesas envolvidas.

Sem dúvida que a norma é inconstitucional nessa parte. Mas, a meu ver, também o é na parte restante.

A aprovação do Orçamento compete à AR [CRP, artigo 164.º, alínea g)]. Trata-se de uma competência política da AR, que é exclusiva e não pode ser delegada (CRP, artigo 114.º, n.º 2). A AR não pode delegar no Governo a aprovação do Orçamento, não podendo, portanto, autorizar aquele a alterar este. No Orçamento só a AR pode mexer (embora apenas sob proposta do Governo). Que o mapa VII faz parte do Orçamento e foi aprovado pela AR, disso não podem restar dúvidas. Ele consta explicitamente da Lei do Orçamento (Lei 2-B/85, artigo 1.º, e anexos) e provém da própria proposta do Governo. Aliás, é a própria Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado (Lei 40/83, de 13 de Dezembro) que, sem lugar para dúvidas, considera o mapa VII como parte integrante do Orçamento. Ele surge mencionado entre os «mapas orçamentais», cujo elenco consta do artigo 12.º, n.º 1, dessa lei, e não entre os «anexos informativos», a que se refere o artigo 13.º da lei; quanto ao seu conteúdo, a lei curou de estabelecer que tal mapa «deve conter os programas e projectos que, integrados no âmbito dos investimentos do Plano, a Administração Pública pretenda realizar e que impliquem encargos plurianuais» (artigo 12.º, n.º 3, da referida lei).

Justifica-se, aliás, plenamente que assim se passem as coisas. É o mapa VII que consubstancia as escolhas políticas fundamentais em matéria de investimentos, devendo por isso considerar-se parte imprescindível do programa financeiro que o Orçamento deve ser e que à AR (e só a ela) cabe aprovar. Não compreendo como é que um conceito constitucionalmente adequado de Orçamento poderia deixar de incluir o mapa VII, ao menos com o conteúdo que decorre da definição que dele dá o referido preceito da Lei 40/83.

De qualquer forma, ainda que se entenda poder discutir-se se o mapa VII tem de ir ao ponto de discriminar os investimentos ao nível de cada projecto concreto, a verdade é que não pode questionar-se que o pode fazer, ao menos quando seja o Governo, ele próprio, a propô-lo nesses termos à aprovação da AR.

Desse modo, é indiferente saber se o mapa VII, tal como consta do Orçamento para 1985, constitui elemento absolutamente necessário do Orçamento; o que importa é que, fazendo parte integrante dele e tendo sido aprovado pela AR, não pode ser, por isso mesmo, alterado senão pela mesma AR (embora apenas sob proposta do Governo).

Ao limitar-se a uma declaração de inconstitucionalidade parcial da alínea d) do n.º 1 do artigo 17.º da lei do orçamento, aliás sem especificar as razões de tal limitação, o acórdão parece partir do pressuposto de que o mapa VII, apesar de formalmente integrado no Orçamento, só em parte é que constitui elemento da reserva parlamentar do Orçamento. Isto suporia uma delimitação material do conceito de orçamento que, para além de não estar explicitada no texto do acórdão, se me afigura ser indevidamente restritiva.

Hoje é à AR que compete aprovar o Orçamento ele mesmo, e não apenas uma «lei do orçamento - ou lei de bases do orçamento -, como sucedia na versão originária da Constituição. Ora, por um lado, o conceito de orçamento é um conceito pré-constitucional suficientemente densificado por um longo trabalho doutrinal e legislativo, de modo a não poder ser arbitrariamente manipulado; por outro lado, e independentemente disso, tendo em conta o sentido da revisão constitucional nesta matéria, o conceito constitucional de orçamento não pode, pelo menos, ser de tal modo limitado no seu alcance que o orçamento aprovado pela AR não seja mais do que uma «lei do orçamento» corrigida e aumentada. O Orçamento do Estado de agora tem de ter um âmbito substantivamente mais amplo do que a antiga «lei do orçamento» e não pode ter um âmbito substantivamente mais reduzido do que aquilo que anteriormente era aprovado como Orçamento pelo Governo. Ao fim e ao cabo, o propósito e o sentido da alteração constitucional foi transferir do Governo para a AR a competência para a aprovação do Orçamento. O sentido da revisão constitucional nesta matéria não pode ser «neutralizado» nem o regime originário pode ser «recuperado» através de uma remodelação reducionista do conceito de orçamento ou de um obscuro conceito restauracionista de reserva orçamental do Governo.

Acresce que a Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado contém uma definição do âmbito material do Orçamento que, a não ser impugnada sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, tem de ser tomada como ponto de referência nesta questão. Ora, se há alguma coisa que pode censurar-se no conceito do Orçamento decorrente daquela lei, não é seguramente o de ele ser generoso de mais para a competência da AR ou de dar excessivo alcance à revisão constitucional nesta matéria ... Mas, apesar de esse conceito ser ele próprio assaz limitativo, ele inclui, mesmo assim, o questionado mapa VII. Por isso não vejo como é que, sem se contestar a conformidade constitucional dessa lei, se pode considerar excessiva a inclusão do mapa VII no Orçamento de 1985, admitindo-se que ele possa ser alterado por outrem que não a AR. O Orçamento, com o âmbito com que é proposto pelo Governo à AR e é por ela aprovado, não pode ser alterado pelo Governo, nem pode a AR autorizá-lo a fazê-lo. Por menos precisos que sejam os contornos da reserva parlamentar de orçamento, a verdade é que não existe nenhuma reserva governamental de orçamento. A única coisa que a Constituição reserva ao Governo em matéria de orçamento é a sua execução [artigo 202.º, alínea b)], e não a sua definição ou alteração.

3 - Quanto à limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, considero dificilmente justificável a própria ideia de salvaguardar a validade das alterações orçamentais que o Governo possa ter entretanto efectuado e julgo sustentável abranger também as que o Governo vier a efectuar até à publicação oficial do acórdão.

Tenho por indiscutível que a regra constitucional é a de que a declaração de inconstitucionalidade implica a nulidade originária da norma afectada, com efeito desde a entrada em vigor da norma (artigo 282.º, n.º 1), e que só excepcionalmente é que tal regra deve ser afastada, exigindo-se que seja patente a existência de qualquer dos motivos justificadores a que alude o artigo 280.º, n.º 4, da Constituição, a saber: «a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado». Julgo que a frequência com que o Tribunal está a recorrer à limitação dos efeitos corre o risco de transformar a excepção em regra, sendo de temer que se crie a convicção de que «o crime compensa» e de que vale sempre a pena criar normas inconstitucionais, porque, por mais flagrante que seja desde o início a inconstitucionalidade, sempre haverá fortes probabilidades de o Tribunal Constitucional, ao declarar a norma inconstitucional, vir a salvaguardar os actos e factos entretanto consumados.

No caso concreto, importa sublinhar alguns dados da questão: 1.º a inconstitucionalidade das normas aqui apreciadas apresentava-se desde a origem clamorosa e flagrante; 2.º ela foi logo publicamente denunciada, vivamente e por parte de múltiplos quadrantes, no debate da AR sobre o Orçamento; 3.º aí mesmo foi anunciado, por alguns dos ora requerentes, que iriam lançar mão dos meios constitucionais adequados para declarar a inconstitucionalidade dos aludidos preceitos; 4.º foi do conhecimento público, através da imprensa, a apresentação do requerimento ao Tribunal Constitucional.

Nestas circunstâncias, não vejo como é que, de boa fé o Governo poderia ter dado utilização às contestadas autorizações, e, no caso contrário, como é que seria justificável «premiar» tal utilização com uma magnânima ressalva dos efeitos de inconstitucionalidade. Registe-se, de todo o modo, que não foi aduzido nenhum caso de utilização das autorizações questionadas, sendo de sublinhar que, tratando-se da alteração de uma lei, elas só poderiam ser efectuadas por via legislativa (ou seja, por decreto-lei).

Todavia, se, com bastante esforço e muito boa vontade, ainda poderia agenciar-se uma qualquer justificação para ressalvar a legitimidade da utilização que o Governo possa ter dado até agora às autorizações aqui declaradas inconstitucionais, já considero absurdo que se ressalve mesmo a utilização que o Governo ainda pudesse vir a fazer delas de ora em diante, até à data de publicação do acórdão, ou seja, depois de ele conhecer a própria declaração de inconstitucionalidade.

Não que receie que uma tal ressalva possa ter qualquer efeito prático, pois tenho por seguro que uma tal utilização sempre seria impensável à luz de um princípio de boa fé democrática (para além de que, encontrando-se o Governo na situação de demitido, lhe estão vedados outros actos que não os «estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos», nos termos do artigo 189.º, n.º 5, da CRP, não sendo fácil imaginar uma hipótese em que seja de considerar estritamente necessária a prática de actos estritamente inconstitucionais ...). Em todo o caso, em termos teóricos e metodológicos, nada pode justificar tão desmedida (e escusada) ressalva de efeitos.

Dado o seu carácter necessariamente excepcional, qualquer limitação dos efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade deve ser ela mesma reduzida ao estritamente necessário para a salvaguarda dos valores mencionados no artigo 282.º, n.º 3. Ora não entendo como é que, neste caso, pode considerar-se necessário ressalvar a validade dos actos que o Governo viesse a praticar entre o dia de hoje - em que a decisão do Tribunal vai ser publicamente conhecida através da sua afixação no átrio da sede do Tribunal, nos termos gerais - e o dia (aliás, indeterminado) em que o acórdão venha a ser publicado no Diário da República.

O que haveria a salvaguardar, quando muito, seria que o Governo não fosse apanhado desprevenido, vendo invalidados os seus actos por acção da eficácia retroactiva de uma declaração de inconstitucionalidade que não conhecia. Mas, ainda que se achasse insuficiente a publicidade derivada da afixação pública da decisão, bastaria então que o Tribunal desse conhecimento do teor do acórdão directamente ao Governo, tal como o faz em relação aos requerentes e ao órgão autor da norma (na ocorrência, a Assembleia da República), ao abrigo de uma regra regimental puramente interna.

Por tudo isto, entendo que os princípios constitucionais reclamavam uma consideração bastante mais exigente da questão da limitação dos efeitos do que aquela que decorre da decisão aprovada quanto a esse ponto. Eis por que a não pude acompanhar. - Vital Moreira.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42792.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1935-03-23 - Lei 1885 - Presidência do Conselho

    Introduz alterações à Constituïção Política da República Portuguesa.

  • Tem documento Em vigor 1976-04-08 - Decreto-Lei 260/76 - Ministério das Finanças - Secretaria de Estado do Planeamento

    Estabelece as bases gerais das empresas públicas.

  • Tem documento Em vigor 1977-08-26 - Lei 64/77 - Assembleia da República

    Aprova o enquadramento do Orçamento Geral do Estado.

  • Tem documento Em vigor 1977-08-29 - Decreto-Lei 353-A/77 - Ministérios do Plano e Coordenação Económica e das Finanças

    Altera o Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, que estabelece as bases gerais das empresas públicas, e o Decreto-Lei 490/76, de 23 de Junho, que estabelece normas relativas à fixação do capital estatutário das empresas públicas.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1983-12-13 - Lei 40/83 - Assembleia da República

    Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado.

  • Tem documento Em vigor 1985-02-28 - Lei 2-B/85 - Assembleia da República

    Orçamento do Estado para 1985.

  • Tem documento Em vigor 1985-02-28 - Lei 2-A/85 - Assembleia da República

    Grandes Opções do Plano para 1985.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1987-07-10 - Acórdão 206/87 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de diversas normas de vários artigos de legislação referente às regiões autónomas e limita os efeitos da inconstitucionalidade.

  • Tem documento Em vigor 1988-12-21 - Acórdão 267/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DE ALGUMAS NORMAS DA LEI NUMERO 2/88, DE 26 DE JANEIRO (ORCAMENTO DO ESTADO PARA 1988). LIMITA OS EFEITOS DA INCONSTITUCIONALIDADE.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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