I - Relatório
1 - O pedido. - O Provedor de Justiça, no uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição, veio requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro (reconhece o direito à reparação material e moral que assiste aos deficientes das Forças Armadas e institui medidas e meios que concorram para a sua plena integração na sociedade), e do artigo 1.º do Decreto-Lei 319/84, de 1 de Outubro (torna extensíveis as disposições do Decreto-Lei 43/76 aos cidadãos portugueses que, como elementos pertencentes a corporações de segurança e similares ou como civis, colaborando em operações militares de apoio às Forças Armadas nos antigos territórios do ultramar, adquiriram uma diminuição da capacidade geral de ganho em resultado de acidente), na parte em que reservam a nacionais portugueses a qualificação como deficiente das Forças Armadas ou equiparado.Estas normas dispõem o seguinte:
«Artigo 1.º
O Estado reconhece o direito à reparação que assiste aos cidadãos portugueses que, sacrificando-se pela Pátria, se deficientaram ou se deficientem no cumprimento do serviço militar e institui as medidas e os meios que, assegurando as adequadas reabilitação e assistência, concorrem para a sua integração social.» Decreto-Lei 319/84:
«Artigo 1.º
Aos cidadãos portugueses que, como elementos pertencentes a corporações de segurança e similares ou como civis, colaborando em operações militares de apoio às Forças Armadas nos antigos territórios do ultramar, adquiriram uma diminuição da capacidade geral de ganho em resultado de acidente ocorrido nas condições definidas nos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, é reconhecido o direito à percepção de uma pensão de invalidez, bem como ao gozo dos direitos e regalias constantes das disposições aplicáveis dos artigos 4.º, 5.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º e 16.º do mesmo diploma.» 2 - Fundamentos do pedido. - O Provedor de Justiça impugna a constitucionalidade das normas atrás referidas com fundamento em violação dos artigos 13.º e 15.º da Constituição da República, com o seguinte fundamento:O n.º 1 do artigo 15.º da lei fundamental consagra o princípio da equiparação de direitos dos estrangeiros e dos apátridas que se encontrem ou residam em Portugal relativamente aos cidadãos portugueses, sendo um reflexo dos princípios da universalidade e igualdade constitucionalmente consagrados (artigos 12.º e 13.º) e enformadores de todo o regime dos direitos fundamentais;
A atribuição da posição jurídica de deficiente das Forças Armadas não pode ser enquadrada nas excepções ao princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros previsto no artigo 15.º da Constituição da República: não é um direito político e não corresponde ao exercício de funções públicas destituídas de carácter predominantemente técnico;
A Constituição da República Portuguesa (CRP) admite, é certo, a intervenção do legislador no sentido de reservar aos cidadãos portugueses o gozo de certos direitos; mas essa restrição não pode escapar ao quadro geral das restrições aos direitos fundamentais;
Por outro lado, de harmonia com o princípio da igualdade, são proibidas quaisquer discriminações constitucionalmente ilegítimas, devendo qualquer diferenciação de tratamento ser razoavelmente fundada e visar a protecção de um valor ou interesse constitucionalmente relevante;
No caso em apreço, está em causa a atribuição de um determinado estatuto [de deficiente das Forças Armadas], consistindo num conjunto de posições jurídicas de natureza assistencial, entre os quais avulta o pagamento de determinada pensão - trata-se da reparação por parte do Estado das consequências de lesões irreversíveis que alguns cidadãos portugueses, que o eram então todos, sofreram ao seu serviço, em situação de risco extremo como é a guerra;
Em face da natureza do estatuto de deficiente das Forças Armadas, a diferenciação de tratamento entre os nacionais portugueses e os não nacionais prevista nas normas sub judicio configura uma diferenciação discriminatória por restringir com base na cidadania o acesso à reparação dos danos sofridos ao serviço do Estado Português;
Deste modo, verifica-se uma violação do princípio da igualdade, que não pode ser justificada pela exigência da manutenção da nacionalidade portuguesa: a manutenção da nacionalidade não é um critério material suficiente e idóneo para, no quadro das valorações constitucionais, definir quem tem ou não direito ao tipo de reparação atribuído pelo estatuto de deficiente das Forças Armadas;
Qualquer invocação da ideia de Pátria como tentativa de explicação da restrição a cidadãos nacionais da reparação da deficiência como consequência do cumprimento de serviço militar, este sim limitado a cidadãos nacionais, claudica quando pretende grosseiramente ignorar que o facto justificativo da reparação não é a prestação de qualquer serviço posterior ao facto originador da deficiência mas sim este mesmo facto - ora, durante as campanhas do ultramar todos os militares eram cidadãos portugueses e nessa qualidade lhes foi pedido pelo Estado Português o seu contributo para o esforço de guerra;
Para mais, na larga maioria se não totalidade dos casos, a perda de nacionalidade portuguesa ocorreu ope legis e não ope voluntatis, em virtude da independência das ex-colónias e em aplicação do regime do Decreto-Lei 308-A/75, de 24 de Junho;
Em conclusão, a restrição aos cidadãos portugueses do estatuto de deficiente das Forças Armadas, prevista no n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei 43/76, viola o disposto nos artigos 13.º e 15.º da Constituição da República;
O mesmo tipo de considerações vale, mutatis mutandis, para a norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 319/84, de 1 de Outubro, neste caso no âmbito do pessoal das forças de segurança e dos civis.
3 - Resposta do órgão autor da norma. - Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio responder do seguinte modo:
O conjunto de posições jurídicas de garantia social vertidas no Estatuto dos Deficientes das Forças Armadas deve ser analisado à luz do princípio constitucional do n.º 7 do artigo 276.º da CRP, segundo o qual nenhum cidadão pode ser prejudicado na sua colocação, nos seus benefícios ou no seu emprego permanente por virtude do cumprimento do serviço militar, a que corresponde a garantia de segurança no emprego, a garantia dos direitos adquiridos e a garantia do direito a retomar as funções exercidas à data da chamada ao cumprimento do serviço militar;
Um dos objectivos primordiais do Decreto-Lei 43/76 (que designa como Estatuto dos Deficientes das Forças Armadas - EDFA) é a reabilitação dos deficientes militares, que consiste no desenvolvimento e completo aproveitamento das capacidades restantes do deficiente e é continuada até que seja recuperado o máximo possível de eficiência física, mental e vocacional, com o fim de obter, por meio de trabalho remunerado, a melhor posição económica e social possível para o militar (artigo 4.º, n.º 1, do EDFA);
Por outro lado, os deficientes das Forças Armadas são militares que poderão exercer, após a reabilitação médica, o direito de opção entre a continuação no serviço activo, a passagem à situação de reforma extraordinária ou à de beneficiário da pensão de invalidez;
Nesta medida, os deficientes das Forças Armadas não podem deixar de estar sujeitos ao regime constitucional e legal do direito e dever fundamentais de todos os portugueses de defesa da Pátria, em que se integra a prestação do serviço militar - artigo 276.º, n.os 1 e 2, da CRP; artigo 1.º da Lei 174/99, de 21 de Setembro (Lei do Serviço Militar - LSM), e artigos 7.º e 9.º do Decreto-Lei 236/99, de 25 de Junho (Estatuto dos Militares das Forças Armadas - EMFA);
Há que ter em conta, a este propósito, que as Forças Armadas são constituídas exclusivamente por cidadãos portugueses;
Sendo inegável e indesmentível a conexão entre a situação jurídica do cidadão qualificado como deficiente das Forças Armadas e a condição de cidadão-militar, podendo até verificar-se o reingresso daquele em lugar das Forças Armadas compatível com o grau da sua incapacidade [ou seja, o deficiente das Forças Armadas pode ser chamado ao desempenho de cargos ou funções nas Forças Armadas que dispensem a plena validez - artigo 7.º, n.º 1, alínea a), subalínea 1), do EDFA], logo segue-se que a reserva legal de cidadania portuguesa no acesso à primeira possui credencial constitucional suficiente na reserva constitucional do direito e dever fundamental de defesa da Pátria e do direito fundamental de prestar serviço no quadro das Forças Armadas;
Em nome da independência e da soberania nacionais, e do princípio democrático, a Constituição reserva aos cidadãos portugueses a participação nas Forças Armadas, pelo que a lei não poderia defraudar tal prescrição constitucional, concedendo aos não nacionais a outorga de um estatuto - o de deficiente das Forças Armadas - que pressupõe ou possibilita o (re)ingresso nas fileiras (activas) das Forças Armadas;
Acresce que o deficiente das Forças Armadas é titular de um conjunto de direitos e deveres próprios da condição militar (artigos 9.º a 25.º do EMFA), de que se destaca a sujeição ao comando hierárquico (artigo 26.º do EMFA), podendo até ser investido em posições de chefia ou comando [cf. o artigo 7.º, n.º 1, alínea a), subalínea 1), do EDFA e o artigo 10.º do EMFA], o que significa que tal Estatuto consagra, por opção do particular, a faculdade de acesso a funções públicas que implicam o exercício de poderes de autoridade;
Bem se compreende, pois, a subsunção do EDFA ao regime constitucional de proibição do acesso de estrangeiros e apátridas a funções públicas que impliquem o exercício de poderes de autoridade - artigo 15.º, n.º 2, segundo segmento normativo, da CRP;
Finalmente, é ainda de atentar, como contraprova, que o Decreto-Lei 348/82, de 3 de Setembro, reconhece o direito às pensões de reforma e de invalidez aos estrangeiros que, enquanto nacionais portugueses, se incapacitaram ao serviço das Forças Armadas Portuguesas.
4 - Elementos legislativos:
a) Importa ter presente que o Decreto-Lei 43/76 foi objecto de diversas rectificações, conforme as declarações publicadas:
No Diário do Governo, 1.ª série, n.º 37, de 13 de Fevereiro de 1976;
No Diário do Governo, 1.ª série, n.º 64, de 16 de Março de 1976;
No Diário da República, 1.ª série, n.º 148, 2.º suplemento, de 26 de Junho de 1976.
Por outro lado, o mesmo diploma sofreu já diversas modificações:
O n.º 2 do artigo 15.º foi revogado pelo Decreto-Lei 259/93, de 22 de Julho;
O n.º 3 do artigo 13.º foi alterado pelo Decreto-Lei 93/83, de 17 de Fevereiro;
O n.º 1 do artigo 13.º foi alterado pelo Decreto-Lei 203/87, de 16 de Maio, que também revogou o n.º 3 do mesmo artigo;
O artigo 6.º foi alterado pelo Decreto-Lei 224/90, de 10 de Julho;
O artigo 13.º voltou a ser alterado pelo Decreto-Lei 183/91, de 17 de Maio.
b) Para o tratamento da questão de constitucionalidade, são ainda elementos contextualmente importantes:
O Decreto-Lei 44 995, de 24 de Abril de 1963, que, pela primeira vez, veio permitir a certas categorias de militares mutilados ou feridos em serviço a manutenção «no serviço activo ainda que a sua capacidade física apenas lhes permita o desempenho em cargos ou funções que dispensam plena validez» (artigos 1.º e 6.º);
O Decreto-Lei 210/73, de 9 de Maio, que veio ampliar o universo pessoal de aplicação do Decreto-Lei 44 995 (cf., ainda, os Decretos-Leis n.os 291/73 e 295/73, de 8 e 9 de Junho, respectivamente);
A Portaria 94/76, que regulamenta o regime de serviço activo que dispense plena validez, para efeitos de execução do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, respeitante aos deficientes das Forças Armadas;
A Portaria 162/76, que regulamenta as situações transitórias previstas no Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, que reconhece o direito à reparação material e moral que assiste aos deficientes das Forças Armadas;
O Decreto-Lei 351/76, de 13 de Maio, que torna extensivas às forças militarizadas as disposições do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro;
O Despacho Normativo 79/77, que esclarece dúvidas quanto a interpretação da expressão «excepto ao serviço das Forças Armadas», contida no n.º 1 do artigo 13.º do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro;
A Portaria 197/77, que prorroga por mais 90 dias o prazo previsto nas Portarias n.os 162/76 e 603/76 para os deficientes requererem a revisão do respectivo processo, a fim de serem considerados deficientes das Forças Armadas;
O Despacho Normativo 109/77, de 10 de Maio, que estabelece o processamento da liquidação das pensões de invalidez e reforma extraordinária dos cidadãos considerados deficientes das Forças Armadas, ao abrigo do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro;
A Portaria 114/79, que altera o n.º 3.º da Portaria 162/76, de 24 de Março, relativa à revisão dos processos de qualificação como deficiente das Forças Armadas;
O Decreto-Lei 230/80, de 16 de Julho, que estabelece as condições aplicáveis aos empréstimos destinados à aquisição ou construção de habitação própria de deficientes civis e das Forças Armadas;
O Decreto-Lei 348/82, de 3 de Setembro, que regula o direito às pensões de reforma e de invalidez dos cidadãos nacionais dos países africanos de língua portuguesa que, enquanto nacionais portugueses, se incapacitaram ao serviço das Forças Armadas;
O Decreto-Lei 75/83, de 8 de Fevereiro, sobre cálculo de pensões de militares;
A Portaria 815/85, que aprova os modelos de cartões destinados aos deficientes das Forças Armadas;
A Portaria 884/85, que dá nova redacção ao n.º 5.º da Portaria 816/85;
O Decreto-Lei 224/90, que atribui aos deficientes das Forças Armadas o direito de requererem a revisão do grau de incapacidade sempre que se verifique o agravamento da doença ou da lesão; altera o Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro;
O Decreto-Lei 314/90, de 13 de Outubro, que estabeleceu o regime de benefícios para militares com grande deficiência (alterado pelo Decreto-Lei 146/92, de 21 de Julho, e pelo Decreto-Lei 248/98, de 11 de Agosto);
O Decreto-Lei 183/91, de 17 de Maio, que possibilita aos deficientes das Forças Armadas a acumulação, na totalidade, dos subsídios de férias e de Natal, ou 14.º mês, que lhes couberem em razão dos cargos em que foram providos ou das pensões que aufiram;
O Decreto-Lei 184/91, de 17 de Maio, que admite a acumulação dos subsídios de férias e de Natal nos casos de acumulação de funções públicas ou públicas e privadas ou de pensões de reforma extraordinárias ou de invalidez dos deficientes das Forças Armadas; revoga diversas normas do Decreto-Lei 496/80, de 20 de Outubro;
O Decreto-Lei 146/92, de 21 de Julho;
A Lei 36/95, de 18 de Agosto, que isenta do serviço militar os filhos ou irmãos de militares falecidos ou de deficientes das Forças Armadas;
O Decreto-Lei 134/97, de 31 de Maio, que promove ao posto a que teriam ascendido os militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%, e que não optaram pelo serviço activo;
O Decreto-Lei 236/99, de 25 de Junho, que aprovou o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFA);
A Lei 174/99, de 21 de Setembro (Lei do Serviço Militar - LSM).
5 - Elementos jurisprudenciais:
a) Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem produzido ampla jurisprudência em matéria de deficientes das Forças Armadas, que não pode também deixar de ser contextualmente relevante para esta decisão:
O Acórdão 46/86 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., t. I, pp. 53 e segs.), em que o Tribunal, entre o mais, não declarou a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 13.º do Decreto-Lei 93/83, de 17 de Fevereiro, que versa sobre a acumulação de pensão de deficiente das Forças Armadas com vencimento pelo exercício de novo cargo;
O Acórdão 330/93 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25.º vol., pp. 421 e segs.), que não julgou inconstitucionais as normas dos n.os 1 e 3 do artigo 121.º do Decreto-Lei 498/72, na redacção do artigo 1.º do Decreto-Lei 75/83, de 8 de Fevereiro, e do artigo 7.º do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, sobre o cálculo da gratificação de serviço de pára-quedista para efeitos de pensão de reforma;
O Acórdão 563/96 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., pp. 47 e segs.), no qual o Tribunal não declarou a inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º do Decreto-Lei 295/73, de 9 de Junho, e declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea a) do n.º 7.º da Portaria 162/76, de 24 de Março;
Os Acórdãos n.os 319/2000 e 378/2000, sobre reintegração automática de deficientes das Forças Armadas no serviço activo.
b) Por outro lado, embora parca, também foi produzida jurisprudência no Tribunal Constitucional no que se refere ao tratamento constitucional dos estrangeiros (pelo menos, no que interessa para o caso em apreço).
De todo o modo, deverá salientar-se:
A abundante jurisprudência em que o Tribunal não julgou inconstitucional a norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 362/78, de 28 de Novembro (alterado pelo Decreto-Lei 23/80, de 29 de Fevereiro), quando interpretada no sentido de que nela se não exige que os funcionários e agentes da Administração Pública das ex-províncias ultramarinas possuam a nacionalidade portuguesa para lhes poder ser atribuída a pensão de aposentação requerida ao abrigo daquele decreto-lei, jurisprudência que foi estabelecida no Acórdão 354/97 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pp. 931 e segs.) e confirmada nos Acórdãos n.os 392/97, 405/97, 406/97, 443/97, 482/97, 590/97, 48/98, 55/98, 89/98, 91/98, 94/98, 98/98, 159/98, 165/98, 231/98, 294/98, 308/98, 309/98, 332/98, 400/98, 434/98, 552/98 e 624/98;
O Acórdão 54/87 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., pp. 273 e segs.), onde, a propósito da definição, por via legal, de excepções ao princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros, se afirmou que «embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portugueses (CRP, artigo 15.º, n.º 2, in fine), não pode obviamente fazê-lo de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada, sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas aos cidadãos portugueses» (cf., num sentido próximo, o parecer 6/94 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in Pareceres, vol. I, pp. 293-294).
6 - Descrição dos conteúdos dos diplomas questionados:
a) O Decreto-Lei 43/76:
a1) O «estatuto» de deficiente das Forças Armadas, que o Decreto-Lei 43/76 modela, possui sobretudo uma componente «assistencial» ou «prestacional».
Interessa analisar, pois, alguns dos principais direitos e regalias atribuídos aos deficientes das Forças Armadas pelo Decreto-Lei 43/76:
Direito à reabilitação médica e vocacional, complementada pela educação especial e culminando com a integração nos meios familiar, profissional e social, através de um processo contínuo até à máxima recuperação possível de eficiência física, mental e vocacional (artigo 4.º, n.os 1 a 4);
Colocação em qualquer modalidade de trabalho protegido, a fim de exercer actividade profissional compatível com o grau das suas possibilidades (artigo 4.º, n.º 5);
Fornecimento, manutenção e substituição gratuitos do equipamento protésico, plástico, de locomoção, auxiliar de visão e outros considerados necessários (artigo 4.º, n.os 9 e 10);
Assistência social para evitar ou eliminar dificuldades de natureza familiar, social e económica, quando não sejam reabilitáveis, quando a reabilitação não possa ser satisfatória ou quando tenham restrita capacidade geral de ganho (artigo 5.º, n.º 1);
Possibilidade de colocação no domicílio com apoio assistencial especial ou de internamento em estabelecimento apropriado, consoante o seu desejo, quando a reabilitação não seja satisfatória (artigo 5.º, n.º 2);
Recurso a medidas de protecção, tais como facilidades no acesso aos alojamentos, aos transportes, aos locais de trabalho e a outros locais públicos (artigo 5.º, n.º 3);
Cálculo por inteiro da pensão de reforma extraordinária ou de invalidez (artigo 9.º);
Atribuição de abono suplementar de invalidez, como forma de compensação da diminuição da sua capacidade geral de ganho e que representa uma reparação pecuniária por parte da Nação, aos deficientes das Forças Armadas (DFA) reconhecidos nos termos do Decreto-Lei 43/76, que percebam vencimento (após opção pelo serviço), pensão de reforma extraordinária ou pensão de invalidez (artigo 10.º);
Atribuição de prestação suplementar de invalidez aos DFA a quem for atribuída uma percentagem de incapacidade igual ou superior a 90% e que tenham sofrido lesões profundas ou limitação de movimentos que lhes impossibilitem a liberdade de acção (artigo 11.º);
Direito à actualização automática das pensões, abonos e prestações, antes referidos, «com relação aos correspondentes vencimentos dos militares do mesmo posto e tempo de serviço efectivo na situação de activo» (artigo 12.º);
Possibilidade de acumulação de pensões e vencimentos (artigo 13.º, na redacção do Decreto-Lei 203/87 e do artigo único do Decreto-Lei 183/91);
Transformação e adaptação, por conta do Estado, dos automóveis ligeiros de passageiros de uso privativo, quando a incapacidade seja igual ou superior a 60% (artigo 15.º, n.º 3);
Isenção do imposto anual sobre uso e fruição de veículos, quando a incapacidade seja igual ou superior a 60% (artigo 15.º, n.º 4);
Recolhimento, mediante expressa vontade, em estabelecimento assistencial do Estado, quando a incapacidade seja igual ou superior a 60% (artigo 15.º, n.º 5);
Concessão, por morte, de pensão de preço de sangue, mesmo que aquela não tenha resultado da causa determinante da deficiência, quando a incapacidade seja igual ou superior a 60% (artigo 16.º);
Outros direitos e regalias de natureza social e económica, discriminados no artigo 14.º:
Uso de cartão de DFA;
Alojamento e alimentação por conta do Estado quando em deslocações para tratamento;
Reduções de preço em transportes;
Tratamento e hospitalização gratuitos em estabelecimentos hospitalares do Estado;
Isenção de propinas em estabelecimento de ensino oficial e uso gratuito de livros e material escolar;
Prioridade na nomeação para cargos públicos ou para cargos de empresas com participação financeira maioritária do Estado;
Condições especiais para aquisição ou construção de habitação própria;
Direito à inscrição como sócio nos Serviços Sociais das Forças Armadas.
a2) Mas, para além de todos estes direitos e regalias de natureza «assistencial» ou «prestacional», um outro direito se afigura particularmente relevante.
Tal direito é conferido pelo artigo 7.º do diploma em análise, que, sob a epígrafe «Direito de opção pela continuação no serviço activo», determina:
«1 - a) Quando a JS [junta de saúde] concluir sobre a diminuição permanente do DFA, e após ter-lhe atribuído a correspondente percentagem de incapacidade, pronunciar-se-á sobre a sua capacidade geral de ganho restante.
Se esta for julgada compatível com o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez, informá-lo-á que poderá continuar na situação do activo em regime que dispense plena validez, ou pela passagem à situação de reforma extraordinária ou de beneficiário de pensão de invalidez, devendo o DFA prestar imediatamente a declaração relativa a essa opção.
Se não for julgada compatível com o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez, o DFA, caso discorde, pode prestar declaração de desejar submeter-se a reabilitação vocacional e profissional militar, a qual será objecto de reconhecimento por parte da comissão de reclassificação, cujas missão e composição serão reguladas por portaria.
O DFA será, de seguida, sujeito a exame por parte da JER [junta extraordinária de recurso], a qual se pronunciará, então, em definitivo, tomando também em consideração aquele parecer da comissão de reclassificação (CR);
b) No caso de o DFA optar pela continuação na situação do activo, em regime que dispense plena validez, as juntas remeterão o processo para a comissão de reclassificação, a fim de esta se ocupar dos trâmites relacionados com o seu destino funcional;
c) O exercício do direito de opção a que se refere a alínea a) deste artigo é definitivo para os oficiais, sargentos e praças do QP [quadro permanente], mas carece do reconhecimento expresso pela comissão de reclassificação, quanto aos resultados positivos da reabilitação vocacional e profissional militar, no caso dos oficiais, sargentos e praças dos quadros do complemento do Exército e Força Aérea e não permanentes da Armada;
d) Quando aquela CR não puder reconhecer resultados favoráveis na reabilitação vocacional ou nos esforços desenvolvidos na reabilitação profissional militar pelo DFA, este terá passagem à situação de beneficiário da pensão de invalidez.
2 - Os DFA, se militares do QP, de graduação igual ou superior a:
Praças do Exército;
Praças da Força Aérea; e Marinheiros da Armada;
que pelas JS ou JER forem dados como aptos para o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez, podem optar pela continuação na situação do activo, em regime que dispense plena validez, ou pela passagem à situação de reforma extraordinária.
3 - Os DFA, se militares dos:
QC do Exército e Força Aérea; ou Quadros não permanentes da Armada;
de posto igual ou superior a:
Soldado recruta do Exército ou Força Aérea; ou Segundo-grumete da Armada;
que pelas JS ou JER forem dados como aptos para o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez e que pela CR forem considerados com adequada reabilitação vocacional e profissional militar podem optar pela continuação na situação do activo, em regime que dispense plena validez, ou pela situação de beneficiário da pensão de invalidez.
4 - OS DFA, se do QP, de graduação igual ou superior a:
Praças do Exército; ou Praças da Força Aérea; ou Marinheiros da Armada;
e do QC do Exército ou da Força Aérea e dos quadros não permanentes da Armada, de posto igual ou superior a:
Soldado recruta do Exército ou da Força Aérea; ou Segundo-grumete da Armada;
que pelas JS ou JER forem dados como aptos para o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez, mas que não optaram pela continuação na situação do activo em regime que dispense plena validez, ou incapazes do serviço activo ou incapazes de todo o serviço militar, têm passagem à situação de reforma extraordinária ou à de beneficiário de pensão de invalidez.» O denominado Estatuto dos Deficientes das Forças Armadas também prevê, pois, a submissão do deficiente a um programa de reabilitação vocacional e profissional militar - para usar a expressão do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), subalínea 2) -, ou seja, a um programa especificamente orientado a promover a possibilidade de manutenção nas fileiras ou a sua reintegração no serviço activo.
Por outro lado, prevê-se que, se reunir os requisitos para o efeito, o deficiente possa optar pela continuação no serviço activo, direito potestativo, de exercício automático e que, em certas condições [cf. o artigo 7.º, n.º 1, alínea c)], é definitivo; ou seja, o DFA - rectius, qualquer que possua a capacidade para o efeito, de acordo com o juízo da JS tem o direito de se manter no activo, sem que as autoridades militares (ou civis) o possam recusar.
Como se refere no preâmbulo do Decreto-Lei 43/76:
«O direito à opção entre o serviço activo que dispense plena va1idez e as pensões de reforma extraordinária ou de invalidez será agora possível para todos os DFA, quer sejam dos quadros permanentes ou do complemento, com plena independência do posto ou graduação, bastando que as autoridades militares considerem suficiente a sua capacidade geral de ganho restante e verifiquem estar resolvidos favoravelmente os problemas da reabilitação profissional.» Este direito de opção já era, aliás, conferido pelo artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 210/73, de 9 de Maio, que dispunha:
«Os militares dos quadros permanentes das forças armadas deficientes em consequência de acidentes ou doenças resultantes do serviço em campanha ou de manutenção da ordem pública ou da prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública podem continuar na situação de activo ou optarem pela passagem à situação de reforma extraordinária.» (itálico acrescentado).
O Decreto-Lei 43/76 veio apenas, como se referiu, manter - e ampliar - este direito de opção pelo serviço activo.
b) O Decreto-Lei 319/84:
O Decreto-Lei 319/84 teve como destinatários, como expressamente se refere no respectivo preâmbulo, os cidadãos que se deficientaram em situações idênticas às previstas no Decreto-Lei 43/76, mas de cujo regime não podiam beneficiar por não «poderem ser qualificados de militares» - isto é, «os elementos de diversas corporações de segurança e similares existentes nos ex-territórios do ultramar e outros civis, que, comandados, enquadrados ou integrados nas Forças Armadas, actuavam ao lado dos militares em operações de campanha ou de manutenção da ordem pública».
Considerando que a exclusão desses elementos do regime previsto no Decreto-Lei 43/76 constituía «uma situação que se reconhece justo e urgente corrigir», o Decreto-Lei 319/84 veio, pois, tornar-lhes extensíveis «as disposições aplicáveis» do mesmo Decreto-Lei 43/76.
De acordo com o preceituado no artigo 1.º do Decreto-Lei 319/84, foram consideradas como disposições aplicáveis as constantes dos artigos 4.º, 5.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º e 16.º do Decreto-Lei 43/76. Quer isto dizer que foram estendidos aos beneficiários do novo diploma os direitos e regalias de tipo «assistencial» ou «prestacional», com exclusão da possibilidade de opção pela manutenção ou reintegração no serviço activo das Forças Armadas.
Com efeito, tais direitos e regalias abrangidos pelo Decreto-Lei 319/84 são apenas os que se referem à reabilitação, à assistência social, ao abono suplementar de invalidez, à prestação suplementar de invalidez, à actualização automática de pensões e abonos, à acumulação de pensões e vencimentos, aos benefícios de natureza social e económica, bem como às pensões de preço de sangue.
II - A questão de constitucionalidade
7 - A definição do problema de constitucionalidade a sua referência normativa.- O Provedor de Justiça sustenta que as normas sub judicio violam os artigos 13.º e 15.º da Constituição, na medida «em que reservam a nacionais portugueses a qualificação como deficiente das Forças Armadas ou equiparado».
Como a mencionada diferenciação de tratamento tem origem na escolha de um critério distintivo que o requerente considera arbitrário e discriminatório, a questão é configurada, desde logo, como um problema de violação do princípio da igualdade.
Todavia, sendo a circunstância que o legislador elege para estabelecer a solução legal diferenciada a da nacionalidade, e como o princípio da igualdade, no que toca a essa circunstância, é objecto de uma consideração e concretização específicas no artigo 15.º da Constituição, é à luz deste preceito constitucional e dos princípios específicos nele consignados que a questão de constitucionalidade há-de ser considerada, na medida em que este parâmetro especial consome o da igualdade em geral.
Ora, o artigo 15.º da Constituição estabelece, nos seus n.os 1 e 2, que tem como epígrafe «Estrangeiros, apátridas e cidadãos europeus»:
«Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.
Exceptuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.» A Constituição consagra, assim, o princípio da equiparação de direitos e deveres entre cidadãos portugueses e estrangeiros (ou apátridas) residentes em Portugal.
Essa equiparação depara-se, desde logo, porém, com dois limites constitucionalmente fixados: não pode abranger os direitos políticos nem o exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico. E, para além disso, a Constituição remete para o legislador a possibilidade de reservar certos direitos exclusivamente a cidadãos portugueses - ou seja, a possibilidade de afastar o princípio da equiparação relativamente a certos direitos.
Estão, consequentemente, englobadas na questão de constitucionalidade proposta três questões a resolver, a saber:
Os direitos em causa estarão abrangidos pelo princípio de equiparação constante do n.º 1 do artigo 15.º da CRP? Não estarão tais «direitos» excluídos do princípio da equiparação, pelo n.º 2 do mesmo artigo 15.º, ou então reservados pela Constituição aos cidadãos portugueses? Poderá o legislador reservar esses «direitos» exclusivamente a cidadãos portugueses, usando a credencial contida na parte final do mencionado n.º 2 do artigo 15.º? 8 - Âmbito do princípio de equiparação. - A primeira questão colocada implica que o Tribunal determine, antes de mais, se todos os direitos se encontram, prima facie, abrangidos pelo princípio da equiparação (salvo, evidentemente, as excepções consignadas ou permitidas pelo n.º 2 do artigo 15.º).
Na verdade, pode colocar-se o problema de saber se o artigo 15.º da CRP, quando diz, no seu n.º 1, que «os estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português», abrange toda e qualquer categoria de direitos ou, pelo contrário, pretende referir-se apenas ao gozo de certos direitos - os direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias, ou os direitos constitucionalmente garantidos.Recorrendo ao elemento histórico, deve referir-se o projecto de Constituição do Centro Democrático Social, cujo artigo 14.º, n.º 1, conferia aos estrangeiros apenas o gozo de direitos, liberdades e garantias: «[O]s direitos, liberdades e garantias do cidadão português são extensivos aos estrangeiros e apátridas que se encontram ou residam em Portugal» (itálico acrescentado). Na Assembleia Constituinte, o texto oriundo da Comissão e aprovado em plenário cingia-se igualmente aos direitos, liberdades e garantias: «[O]s estrangeiros e apátridas que se encontram ou residam em Portugal gozam dos direitos, liberdades e garantias do cidadão português» (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 53, de 22 de Agosto de 1975, pp. 940-941, itálico acrescentado). O texto final da versão originária da Constituição de 1976, porém, referia-se a «direitos» em geral, numa formulação que permaneceu inalterada até hoje. Do ponto de vista do elemento sistemático, recorde-se que a norma do artigo 15.º surge inserida no título I («Princípios gerais») da parte I («Direitos e deveres fundamentais») da Constituição. E, na perspectiva do elemento literal, o n.º 1 do artigo 15.º da Constituição fala em «direitos e deveres», sem qualquer qualificação adicional, o que, em princípio, não autoriza o intérprete a distinguir onde o legislador não o faz, levando à conclusão de que o artigo 15.º da Constituição se aplica, em princípio, a todos e quaisquer direitos (e deveres).
A jurisprudência constitucional nunca se defrontou directamente com este problema: os acórdãos que trataram de problemas relacionados com a posição dos estrangeiros fizeram-no em conjugação com o princípio da igualdade (v. g. os já citados acórdãos que trataram da pensão de reforma dos ex-funcionários ultramarinos), com as garantias de processo penal (v. g. os Acórdãos n.os 54/87, 359/93, 434/93, 442/93, 288/94, 577/94 ou 41/95) ou com o acesso ao direito e aos tribunais (v. g. os Acórdãos n.os 316/95, 317/95, 318/95, 338/95, 339/95, 340/95, 341/95, 392/95, 403/95, 407/95, 420/95, 444/95, 464/95, 690/95, 726/95, 138/96, 240/96 e 962/96 ou 365/2000).
Por outro lado, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República já teve ocasião de observar no seu parecer 23/81 (in Pareceres, vol. I, p. 319):
«À luz da Constituição de 1976, o substrato universalista que lhe é inerente, aliado ao princípio da equiparação, permite afirmar que os estrangeiros e os apátridas gozam dos mesmos direitos nela ou na lei ordinária consignados aos cidadãos portugueses.» Nesse sentido, aliás, se pronuncia essencialmente a doutrina (cf., nomeadamente, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 134; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. III, 3.ª ed., Coimbra, 1994, pp. 141 e 142;
Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, p. 184; Mário Torres, prefácio a Direitos dos Estrangeiros, de Ana Vargas e Joaquim Ruas, Lisboa, 1995, p. 17).
Aceitando-se este âmbito alargado quanto ao princípio da equiparação, para o qual a doutrina e a jurisprudência apontam, e que é justificado pela ideia essencial de um universalismo de direitos característico da igualdade no Estado de direito, terá de se concluir que ele abrange, prima facie, os «direitos e regalias» conferidos aos DFA, muito embora eles não sejam direitos, liberdades e garantias, possam não ser tidos como direitos fundamentais e seja questionável sustentar que o regime específico de protecção ou assistência por parte do Estado que eles concretizam decorra implicitamente da conjugação de normas constitucionais como as do artigo 71.º e do artigo 276.º, n.º 7, isto é, sejam direitos constitucionalmente garantidos e não decorram apenas da lei.
9 - Exclusões ao princípio da equiparação:
a) Partindo da anterior posição, deverá agora averiguar-se, desde logo, se estamos perante o quadro de excepções ao princípio da equiparação definido na primeira parte do n.º 2 do artigo 15.º: direitos políticos ou o exercício de funções públicas destituídas de carácter predominantemente técnico.
Não se enquadrando os direitos em causa no conceito de direitos políticos, acontece, porém, que um dos direitos conferidos aos DFA pelo Decreto-Lei 43/76 - e estendido pelo Decreto-Lei 319/84 - nunca poderá, em parte, ser atribuído a estrangeiros.
Com efeito, a «prioridade na nomeação para cargos públicos», que se traduz na «preferência, em igualdade de condições com outros candidatos, no provimento em quaisquer lugares do Estado, dos institutos públicos, incluindo os organismos de coordenação económica, das autarquias locais, das instituições de previdência social, das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e das empresas com participação financeira maioritária do Estado» (cf. o artigo 14.º, n.º 7), não pode ocorrer quando se trate de funções desprovidas de carácter predominantemente técnico, por via do preceituado no n.º 2 do artigo 15.º da Constituição.
b) Por outro lado, importa igualmente verificar se não estamos perante direitos reservados pela Constituição exclusivamente a cidadãos portugueses.
Neste contexto, não se pode afirmar - como o faz o Primeiro-Ministro na sua resposta - que os DFA são militares. Se assim fosse, a questão da constitucionalidade do n.º 1 do artigo 1.º Decreto-Lei 43/76 ficaria imediatamente resolvida no sentido da não inconstitucionalidade - em virtude do disposto n.º 2 do artigo 275.º, que determina que «as Forças Armadas compõem-se exclusivamente de cidadãos portugueses».
No entanto, o artigo 3.º do Decreto-Lei 43/76 vem demonstrar claramente que não é necessário ser militar para possuir o estatuto de DFA, quando estabelece:
«Os cidadãos a quem, ao abrigo do presente diploma, seja reconhecida a qualidade de deficiente das Forças Armadas e que, por força de leis gerais ou especiais já promulgadas ou a promulgar, venham a perder a qualidade de militares continuarão, independentemente desse facto, a ser considerados DFA e a usufruir dos direitos e regalias, bem como a obrigar-se aos deveres que neste diploma lhes são consignados.» A qualidade de militar não é, pois, uma condição necessária para possuir a qualidade de DFA.
De todo o modo, o que verdadeiramente interessa é saber se o acervo de direitos consignado no Decreto-Lei 43/76 é, na sua generalidade, apenas usufruível por militares. E a resposta a essa questão é obviamente negativa, como o demonstra a circunstância de o Decreto-Lei 319/84 ter vindo estender a generalidade desse regime a membros de forças de segurança e a civis.
Contudo, a simples possibilidade de o deficiente continuar (ou reingressar) no serviço activo das Forças Armadas constitui, por si só, uma razão suficiente para vedar aos estrangeiros o direito de opção definido no artigo 7.º do Decreto-Lei 43/76.
Na verdade, a CRP reservou aos nacionais a pertença às Forças Armadas - que são compostas exclusivamente por cidadãos portugueses, nos termos do citado artigo 275.º, n.º 2 -, resolvendo de forma absolutamente inequívoca e definitiva uma questão que, desde há muito, tem suscitado controvérsia no âmbito do direito militar (cf., exemplificativamente, sobre esta controvérsia, David Blanquer, Ciudadano y soldado. La Constitución y el servicio militar, Madrid, 1996, capítulo III - «Extranjeria y servicio militar», pp. 123 e segs.).
Assim, enquanto certos países admitiram ou admitem que estrangeiros prestem serviço militar (cf. o Military Selective Service Act de 28 de Setembro de 1971 dos Estados Unidos, a Lei do Serviço Militar de 17 de Julho de 1951 da Noruega, o National Service Act australiano de 17 de Março de 1951, a Sentença n.º 53, do Tribunal Constitucional italiano, de 24 de Abril de 1967), a CRP recusa frontalmente essa possibilidade. E, sublinhe-se, fá-lo desde a sua versão originária (artigo 274.º, n.º 2), devendo ainda referir-se que a reserva aos portugueses da participação nas Forças Armadas não suscitou qualquer controvérsia na Assembleia Constituinte, tendo sido aprovada por unanimidade (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 120, de 17 de Março de 1976, p.
3981).
Não admira, pois, que a doutrina defina as Forças Armadas como a «organização armada do Estado, constituída exclusivamente por cidadãos portugueses [...] destinada a assegurar a defesa militar do País contra qualquer ameaça ou agressão externas» (cf. António Egídio de Sousa Leitão, «Forças Armadas», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. IV, Lisboa, 1991, p. 377).
Em face disto, seria inconcebível que um estrangeiro, a pretexto de possuir o estatuto de deficiente conferido pelo Decreto-Lei 43/76, pudesse optar pela integração nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas, ao abrigo do disposto no seu artigo 7.º Mas não se retira da exclusão desse direito de opção a necessária consequência da exclusão dos direitos de natureza «assistencial» ou «prestacional» previstos nas restantes normas daquele diploma, bem como no Decreto-Lei 319/84.
c) Restrições legais ao princípio da equiparação:
a) Falta finalmente esclarecer se tais direitos não poderiam ter sido reservados exclusivamente a cidadãos portugueses, usando o legislador da credencial constante da parte final do n.º 2 do artigo 15.º da CRP.
Admitindo-se, em geral, a possibilidade de o legislador - autonomamente, e para além do que já se consigna na Constituição - reservar a cidadãos nacionais o gozo de determinados direitos, a verdade é que tal intervenção legislativa fica sujeita a certos limites, que este Tribunal teve ocasião de enunciar no Acórdão 54/87:
«Embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portugueses (CRP, artigo 15.º, n.º 2, in fine), não pode obviamente fazê-lo de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada, sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas aos cidadãos portugueses.» Ora, no caso vertente, deverá ponderar-se o significado da recusa de tratamento igualitário a estrangeiros que se tomaram deficientes ao serviço das Forcas Armadas Portuguesas, numa altura em que detinham a nacionalidade portuguesa, sendo certo que, geralmente, foram incorporados independentemente da sua vontade e vieram a perder compulsivamente a cidadania portuguesa, por via do preceituado no Decreto-Lei 308-A/75, de 24 de Junho.
Ora, é certo que a não atribuição aos estrangeiros da qualidade de DFA não deixou sem qualquer protecção social aqueles que, sendo nacionais portugueses ao tempo das guerras coloniais, se tornaram estrangeiros com a independência dos antigos territórios ultramarinos.
Na realidade, o Estado Português não se desinteressou totalmente da situação desses cidadãos, já que, pelo Decreto-Lei 348/82, de 3 de Setembro, veio regular o direito às pensões de reforma e de invalidez dos nacionais dos países africanos de língua portuguesa que, enquanto nacionais portugueses, se incapacitaram ao serviço das Forças Armadas, dispondo, no n.º 1 do seu artigo 1.º, que «mantêm o direito às pensões de reforma e de invalidez os cidadãos nacionais dos países africanos de língua portuguesa que, enquanto nacionais portugueses, se incapacitaram ao serviço das Forças Armadas Portuguesas e satisfaçam, conforme os casos, as disposições legais que regulamentavam para os cidadãos nacionais do recrutamento ultramarino, em idêntica situação, o direito às mesmas pensões». Porém, este regime é particularmente pouco abrangente, quando comparado com o que se encontra vertido no Decreto-Lei 43/76, mesmo que deste último seja subtraído o direito de opção pela manutenção ou reingresso no serviço activo.
Desde logo, porque o cálculo das pensões previstas no Decreto-Lei 348/82 é, segundo se estabelece no seu artigo 2.º, n.º 2, regulamentado «mediante acordo com cada um dos países» africanos de língua oficial portuguesa, enquanto o montante das pensões devidas nos termos do Decreto-Lei 43/76 «será sempre calculado por inteiro», conforme preceitua o seu artigo 9.º Mas também porque o Decreto-Lei 348/82 ignora por completo os direitos e regalias que se referem à reabilitação (incluindo o fornecimento e manutenção de equipamento protésico), à assistência social (incluindo o internamento em estabelecimento adequado e outras medidas de protecção), ao abono suplementar de invalidez, à prestação suplementar de invalidez, à actualização automática de pensões e abonos, à acumulação de pensões e vencimentos, aos benefícios de natureza social e económica (incluindo o tratamento e hospitalização gratuitos em estabelecimentos do Estado), bem como às pensões de preço de sangue -, todos direitos cujo gozo não depende da qualidade de militar, como se comprova pelo facto de também serem usufruídos por civis, nos termos do consignado no Decreto-Lei 319/84.
Assim sendo, não se pode deixar de considerar que, tendo em conta as condições em que se tornaram deficientes numa época em que possuíam a nacionalidade portuguesa e as circunstâncias em que perderam essa mesma nacionalidade, a discriminação dos estrangeiros residentes em Portugal operada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 43/76, na medida em que reserva a cidadãos portugueses o gozo dos direitos a que se referem os artigos 4.º, 5.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º (salvo no que se refere à preferência no provimento em funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico), 15.º e 16.º do mesmo diploma, se tem de considerar como colidente com o princípio de justiça inerente a um Estado de direito democrático, não justificada nem pela necessidade nem pela adequação, e, consequentemente, como arbitrária e desproporcionada, importando violação do princípio de equiparação constante do artigo 15.º, n.º 1, da Constituição.
Deve, pois, declarar-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em causa, nessa parte.
b) Idêntica violação da Constituição resulta da discriminação operada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 319/84, relativamente à qual nem sequer é possível utilizar o argumento tirado do artigo 275.º, n.º 2, da lei fundamental, uma vez que aquele diploma não tem por objecto militares mas elementos pertencentes a corporações de segurança ou civis que colaboraram em operações militares de apoio às Forças Armadas nos antigos territórios do ultramar.
Por isso mesmo, não podia esse diploma, como é evidente, mandar aplicar todas as disposições do Decreto-Lei 43/76 àquelas categorias de cidadãos - não faria sentido, obviamente, atribuir a um civil deficientado numa operação militar o direito de opção pelo serviço militar activo, tal como o faz o artigo 7.º do Decreto-Lei 43/76.
Todavia, a aplicabilidade das disposições atinentes aos direitos de natureza «assistencial» ou «prestacional» também aos estrangeiros residentes em Portugal que, como elementos de corporações de segurança ou como civis, colaborando em operações militares de apoio às Forças Armadas, se vieram a tornar deficientes justifica-se igualmente por razões de justiça que determina a arbitrariedade de qualquer discriminação neste domínio, não justificada pela necessidade ou adequação da aplicação de tais direitos. É verdade que o argumento que se pode tirar da obrigatoriedade do serviço militar nem sempre terá aqui plena validade, na medida em que os deficientados poderão, em alguns casos, não ter sido compelidos a colaborar com as Forças Armadas nas operações militares.
A verdade, porém, é que a sua exclusão do regime previsto no Decreto-Lei 319/84 implica uma situação ainda mais intolerável que aquela em que se encontram os ex-militares que perderam a cidadania portuguesa.
É que o regime do Decreto-Lei 348/82 só se aplica a militares - isto é, aos que «se incapacitaram ao serviço das Forças Armadas» -, o que significa que os actuais cidadãos de países africanos que, como civis ou membros das corporações de segurança, se deficientaram em apoio às Forças Armadas, não têm o quadro mínimo de protecção conferido por aquele diploma, o que será colmatado se lhes for aplicável o Decreto-Lei 319/84. Com efeito, este último, para além de mandar aplicar aos seus beneficiários várias disposições do EDFA, também reconhece o direito a uma pensão de invalidez calculada por inteiro (artigo 3.º, n.º 2).
Portanto, a discriminação dos estrangeiros residentes em Portugal operada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 319/84, na medida em que reserva a cidadãos portugueses o gozo dos direitos nele previstos (salvo no que se refere à preferência no provimento em funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico resultante da remissão para o artigo 14.º do Decreto-Lei 43/76), tem de considerar-se igualmente como colidente com o princípio de justiça inerente a um Estado de direito democrático, compreendido, no caso, como igualdade essencial de tratamento assistencial de quem serviu numa situação de confrontação armada o Estado Português e, consequentemente, como arbitrária e desproporcionada, importando violação do princípio de equiparação constante do artigo 15.º, n.º 1, da Constituição.
Deve, pois, declarar-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em causa, nessa parte.
c) Finalmente, impõe-se esclarecer que, apesar de o artigo 15.º, n.º 1, da Constituição se reportar aos estrangeiros que se encontrem ou residam em Portugal, o princípio da equiparação não pode, aqui, operar, de pleno, relativamente aos que apenas se encontrem em Portugal. O modo próprio de resolver a situação dessas pessoas será através de acordos internacionais com os respectivos países. E isto tanto por razões de praticabilidade (por exemplo, no que se refere a pensões) relativamente a alguns direitos como porque se trata de direitos sociais a prestações em que não pode pretender-se que o princípio da equiparação opere sempre automática e integralmente.
III - Limitação de efeitos
10 - O interesse público na limitação de efeitos. - Tendo em conta o largo período de tempo já decorrido, a dificuldade em corrigir situações que foram ocorrendo e se foram prolongando e a correspondente incerteza sobre a forma de eliminar, em muitos casos, os efeitos já produzidos pelas normas cuja inconstitucionalidade virá a ser agora declarada, o que não deixaria de causar grave perturbação nos serviços públicos, limitar-se-ão os efeitos da inconstitucionalidade, de modo que estes apenas se produzam a partir da publicação oficial do acórdão, ficando, porém, sempre ao legislador a possibilidade de equacionar esta situação de outro modo, indo mais longe.
IV - Decisão
11 - Decisão. - O Tribunal Constitucional decide:a) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, na medida em que reserva a cidadãos portugueses, excluindo cidadãos estrangeiros residentes, o gozo dos direitos a que se referem os artigos 4.º, 5.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º (salvo no que se refere à preferência no provimento em funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico), 15.º e 16.º do mesmo diploma, por violação do princípio constante do artigo 15.º, n.º 1, da Constituição;
b) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 319/84, de 1 de Outubro, na medida em que reserva a cidadãos portugueses, excluindo cidadãos estrangeiros residentes, o gozo dos direitos nele previstos (salvo no que se refere à preferência no provimento em funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico resultante da remissão para o artigo 14.º do Decreto-Lei 43/76), por violação do princípio constante do artigo 15.º, n.º 1, da Constituição;
c) Limitar os efeitos da inconstitucionalidade, de modo que estes apenas se produzam a partir da publicação oficial do acórdão.
9 de Outubro de 2001. - Maria Fernanda Palma - Maria Helena Brito - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Luís Nunes de Almeida - Artur Maurício - José de Sousa e Brito - Paulo Mota Pinto (embora com dúvidas sobre se as normas em causa não deveriam ter sido declaradas inconstitucionais também na medida emque excluem do gozo dos direito eferidos na decisão - ou de alguns deles - cidadãos estrangeiros, não penas residentes, mas que se encontrem em Portugal, abrangidos igualmente pelo artigo 15.º, n.º 1, da Constituição e que se tenham tornado deficientes ao serviço das Forças Armadas Portuguesas; na verdade, e dispensando-me de outras considerações, não fui plenamente convencido, sobretudo quanto a alguns desses direitos - v. g., o direito ao fornecimento, manutenção e substituição gratuitos de equipamento protésico, previsto no artigo 4.º, n.os 9 e 10, do Decreto-Lei 43/79 -, pelos argumentos empregues na decisão para, invocando tal artigo 15.º, n.º 1, da Constituição, se substituir a limitação pela nacionalidade pelo critério da residência em Portugal) - Guilherme da Fonseca (com a mesma declaração de voto do Exmo. Conselheiro Mota Pinto) - José Manuel Cardoso da Costa.