I
1 - Em 22 de Junho de 1992, o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/92, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade de todas as normas de um decreto aprovado em Conselho de Ministros (registado sob o n.º 171/92 na Presidência do Conselho de Ministros) e enviado para promulgação como decreto-lei sob a designação genérica de «Racionalização do emprego dos recursos humanos na Administração Pública».O pedido do Presidente da República é do seguinte teor, que se transcreve na íntegra:
1 - A evolução do direito constitucional, por via doutrinal e jurisprudencial, aponta inelutavelmente para a afirmação dos chamados «princípios jurídicos de legislação» como verdadeiros imperativos constitucionais, postulando o seu respeito pelo legislador como princípios materiais inerentes ao Estado de direito democrático.
Por outro lado, o regime constitucional da função pública não consente um estatuto diminuído para os funcionários e demais agentes do Estado, os quais gozam, a título originário, dos direitos, liberdades e garantias e demais direitos fundamentais dos trabalhadores, previstos na Constituição.
2 - Sucede, porém, que em nenhuma das normas contidas no projecto de diploma em apreço, designadamente nos seus artigos 2.º, 3.º, 5.º, 11.º e 13.º, são definidos ou delimitados critérios materiais mínimos no que respeita à constituição de disponíveis, ao seu destino e submissão a medidas de descongestionamento, parecendo, assim, não oferecer, aquele projecto de diploma legal uma medida capaz de estabelecer regras de conduta para os particulares (neste caso funcionários e demais agentes do Estado), regras de actuação para a Administração e regras de controlo para os tribunais, o que conflitua com o princípio da precisão ou determinabilidade das leis e com o princípio da segurança no emprego (artigos 2.º e 53.º da Constituição).
3 - Refira-se ainda que o espaço de discricionariedade dado à Administração na identificação de pessoal disponível, designadamente nos seus artigos 2.º, 3.º e 6.º, n.º 1, parece exceder o constitucionalmente admissível no respeito do princípio da reserva de lei e da segurança no emprego, na medida em que, para além da possibilidade de escolhas e decisões, comete-se também à Administração a fixação dos pressupostos de facto em que irão assentar essas mesmas escolhas e decisões.
4 - A ocorrer violação dos princípios da precisão ou determinabilidade das leis, da segurança no emprego e da reserva de lei, nos termos atrás referidos, a invalidade das normas constantes dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, n.º 1, 11.º e 13.º comunicar-se-á, de forma consequencial, a todas as restantes normas do projecto de diploma em apreço que não assentem numa base contratual.
5 - Acresce que as normas dos artigos 2.º, n.º 2, e 28.º, n.º 3, poderão conflituar com o princípio da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado da direito democrático e com o disposto nos artigos 18.º, n.º 3, e 53.º da Constituição, na medida em que ponham em causa direitos e expectativas legítimas anteriormente concedidas, de forma válida e não precária, ao abrigo da ordem jurídica em vigor. O Estado tem de actuar como pessoa de bem.
6 - Poderão colocar-se ainda dúvidas sobre a correcção do procedimento legislativo que conduziu à aprovação das normas contidas no artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei 2/92, de 9 de Março, na medida em que, versando sobre legislação do trabalho, não tenham sido sujeitas a apreciação pública prévia, de harmonia com o disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição, o que, a verificar-se, configurará inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento legislativo, a qual não deixará de afectar, de forma derivada ou reflexa, todas as normas do projecto de decreto-lei em questão.
7 - Finalmente, suscitam-se dúvidas relativamente às normas constantes dos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), 8.º e 21.º do referido projecto de diploma, uma vez que as mesmas parecem não respeitar o âmbito da autorização legislativa conferida pelo artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei 2/92, de 9 de Março, o que configurará inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea v), da Constituição.
Nestes termos, requeiro a apreciação da constitucionalidade de todas as normas do projecto de decreto-lei acima identificado, face às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com os princípios da precisão ou determinabilidade das leis, da protecção da confiança, da reserva de lei e da segurança no emprego (artigos 2.º e 53.º da Constituição) e ainda com o disposto nos artigos 18.º, n.º 3 e 168.º, n.º 1, alínea v) da Constituição da República.
2 - Notificado o Governo, nos termos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, veio o Primeiro-Ministro pronunciar-se em resposta junta aos autos, de que ora se transcrevem as conclusões finais:
a) O pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma em causa formulado pelo Sr. Presidente da República é extemporâneo;
b) No caso de não ser considerado extemporâneo, deve o mesmo pedido ser rejeitado por manifesta insuficiência e obscuridade nas indicações que integram a sua formulação;
c) Não pode também o citado pedido alegar, em âmbito de fiscalização preventiva, a eventual inconstitucionalidade - por suposta preterição de formalidade essencial de normas ínsitas em lei;
d) Nem é lícito confundir os princípios jurídicos da legislação com os princípios integrantes do superconceito de norma constitucional;
e) O princípio da segurança no emprego não está questionado pelo presente projecto, na medida em que não implica qualquer precarização do vínculo à função pública;
f) O regime em causa não envolve uma restrição da garantia da estabilidade de emprego nem acarreta para os trabalhadores da função pública um tratamento menos favorável do que aquele que está consagrado para os demais trabalhadores subordinados;
g) Qualquer acto praticado pela Administração ao abrigo do presente projecto é sempre susceptível de sindicabilidade contenciosa, desde logo com base nos critérios nele estabelecidos;
h) A disciplina ora proposta reduz substancialmente a margem de discricionariedade até aqui concedida à Administração;
i) Nenhum dos preceitos do novo quadro legal é passível de violação do princípio da reserva de lei nem, como se provou já, do princípio da segurança no emprego;
j) As eventuais «expectativas legítimas» que supostamente assistiriam aos trabalhadores abrangidos não sofrem qualquer lesão;
l) Ainda que se reconheça ao princípio da confiança natureza de princípio constitucional autónomo, é manifesto que não resulta ferido por qualquer dos preceitos do novo regime;
m) Todas as normas do presente projecto de diploma subsumem-se integralmente, quer às respectivas normas de autorização legislativa quer às regras e princípios constitucionais.
Com a resposta, o Primeiro-Ministro fez juntar três documentos.
3 - Distribuído o processo ao relator, foi apresentado e apreciado o respectivo projecto de acórdão, após o que, por vencimento, foi o processo atribuído ao presente relator.
II
A - A primeira questão prévia
1 - Antes de apreciar o pedido formulado pelo Presidente da República, cumpre analisar as três questões prévias suscitadas na resposta oferecida pelo Primeiro-Ministro.Quanto à primeira, aduz o Primeiro-Ministro que «o projecto de decreto-lei que 'racionaliza o emprego dos recursos humanos na Administração Pública' [...] foi aprovado em Conselho de Ministros de 28 de Maio próximo passado, tendo sido remetido e entregue na Presidência da República no dia 11 do presente mês, pelo que, summo rigore, o prazo a que se refere o n.º 3 do artigo 278.º da Constituição terá precludido no pretérito dia 19, o que acarretaria, de per se, nos termos do estatuído no n.º 1 do artigo 52.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a não admissibilidade do pedido» (documento n.º 1).
O documento referido nesta resposta é um ofício da Presidência do Conselho de Ministros dirigido ao chefe da Casa Civil do Presidente da República, datado de 11 de Junho de 1992, e do qual consta, no seu canto inferior esquerdo, fotocópia do registo do livro de protocolo comprovativo do recebimento do referido ofício, que tem o n.º 426, assinado pelo funcionário que o recebeu (Vasco Vieira), mas sem que tenham sido preenchidos os espaços próprios para registo da data e da hora de recebimento.
Por outro lado, do projecto de diploma junto ao pedido consta, no seu canto superior direito, um carimbo a óleo com as seguintes indicações: «P. R., Reg.
n.º 31785, Entrada: 12-6-92.» Nestes termos, verifica-se uma discrepância entre a data de entrada na Presidência da República constante do aludido carimbo e a data de entrega do diploma referida pelo Primeiro-Ministro.
2 - A questão releva porquanto, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 278.º da Constituição e do n.º 1 do artigo 57.º da Lei 28/82, o prazo para o Presidente da República requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade é de oito dias a contar da data da recepção do diploma para promulgação. Ora, contando-se tal prazo continuamente, o termo do mesmo recairia no dia 19, como alega o Primeiro-Ministro, no caso de o diploma ter sido entregue na Presidência da República a 11 de Junho, ou no dia 20 de Junho (sábado) - pelo que se transferiria a prática do correspondente acto para o primeiro dia útil subsequente, a 22 de Junho -, no caso de o diploma só ter dado entrada na Presidência da República no dia 12 do mesmo mês.
Em face dos elementos disponíveis pelo Tribunal, importa registar que a fotocópia do livro de protocolo, junta pelo Primeiro-Ministro na sua resposta, não contém indicação do registo nem da data nem da hora do recebimento na Presidência da República do ofício n.º 426 da Presidência do Conselho de Ministros que acompanhava o decreto ora em apreço, pelo que dela não resulta que tal ofício tenha efectivamente dado entrada no dia 11 de Junho.
Daí que, com segurança, apenas se possa considerar, para efeitos de um juízo acerca da tempestividade do pedido do Presidente da República, a data de 12 de Junho de 1992, que consta do registo de entrada e que vem aposta no próprio projecto de diploma que acompanha o pedido.
Tendo o aludido pedido dado entrada no Tribunal Constitucional no dia 22 de Junho, o mesmo deve ter-se, pois, por tempestivo, pelo que improcede a primeira questão prévia suscitada pelo Primeiro-Ministro.
B - A segunda questão prévia
1 - A segunda questão prévia colocada pelo Primeiro-Ministro reporta-se à formulação do pedido do Presidente da República, a qual, por alegada insuficiência e obscuridade, deveria, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 51.º da Lei 28/82, levar o Tribunal a rejeitá-lo.Fundamentando este seu entendimento, o Primeiro-Ministro sublinha que «o pedido formulado pelo Sr. Presidente da República incide sobre todo o diploma, o que não parece, de modo algum, dar cumprimento ao n.º 1 do artigo 278.º da Constituição».
Prosseguindo nesta linha de orientação, o Primeiro-Ministro refere:
Ao invés [...] há apenas a pressuposição da invalidade de algumas das normas constantes do projecto, a qual - se se comprovasse tal eventualidade
alegadamente poderia ser comunicada «de forma consequencial, a todas as restantes normas do projecto de diploma em apreço que não assentem numa base contratual» (n.º 4 do texto do pedido).
[...] Do exposto pode afirmar-se [...] que na acção de inconstitucionalidade vigora o princípio do pedido, o qual só pode, neste caso, ter por conteúdo imperativo a solicitação de declaração como inconstitucionais de uma ou várias normas de direito ordinário, sendo a causa de pedir representada pelas normas ou princípios constitucionais que o requerente acredita violadas, pelo que, dessa forma, o seu afrontamento traduziria a razão de ser do pedido.
[...] Pelo exposto, é manifesto que o Sr. Presidente da República, quando requer «ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de todas as normas do projecto [...]» não satisfaz minimamente o ónus de identificar e individualizar em concreto as normas de direito ordinário que, segundo o seu entendimento, enfermam de inconstitucionalidade material.
[...] É, pois, necessário existir uma conexão precisa entre os princípios que são apontados como eventualmente violados e todas as normas cuja apreciação é requerida.
O que manifestamente não se verifica no caso em apreço, visto que o requerimento apresentado pelo Sr. Presidente da República contém um pedido genérico de apreciação da constitucionalidade de todas as normas de um diploma à luz de vários princípios ou normas constitucionais.
[...] Por tudo o que fica dito só resta, a este propósito, concluir: um requerimento apresentado nos termos em que o fez o Sr. Presidente da República provoca uma grande margem de indeterminação e insegurança na exacta dimensionação do pedido, que, em última análise, envolveria por parte do Tribunal uma actividade de definição e demarcação do tema em decisão que a lei não lhe autoriza [...] Pelo que o Primeiro-Ministro conclui que «deve o pedido ser rejeitado por manifesta insuficiência e obscuridade nas indicações que integram a sua formulação».
2 - O pedido do Presidente da República alude expressamente no seu n.º 1 e no parágrafo de conclusão, onde formula a síntese do que requer ao Tribunal, ambos atrás transcritos, que se pretende a fiscalização preventiva da constitucionalidade de todas as normas do decreto em apreço.
Nos n.os 2 e 3 do pedido, o Presidente da República individualiza algumas das normas do decreto (os artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, n.º 1, 11.º e 13.º) e refere, no n.º 4, que a violação material dos princípios constitucionais invocados como parâmetro naqueles pontos precedentes acarretará a invalidade daquelas normas, a qual se comunicará «de forma consequencial, a todas as normas do projecto de diploma que não assentem numa base contratual».
Da formulação do pedido, que importa analisar e entender de forma conjugada e numa leitura sistemática, resulta que, se o Presidente da República pretende ver apreciada a constitucionalidade de todas as normas do diploma em análise, fá-lo de forma directa e imediata quanto ao conjunto de normas que identifica e pelas razões em cada caso expressamente referidas, mas do n.º 6 emerge, igualmente de forma explícita, a pretensão de, à luz da conformidade constitucional da lei de autorização legislativa habilitadora do decreto em apreço, e perante a sua alegada inconstitucionalidade formal, ver apreciada a inconstitucionalidade (orgânica) de todas as normas do projecto de decreto-lei em apreço, que daquela outra atinente à lei de autorização resultaria de forma derivada ou reflexa.
Desta forma, parece não enfermar o aludido pedido da alegada indefinição ou indeterminação.
3 - Sem embargo, a eventual inconstitucionalidade consequencial atrás referenciada, nos termos do pedido, não abrangerá as normas do diploma que o Presidente da República designa como «assentes numa base contratual», as quais, em boa verdade, o requerente não identifica expressamente.
Mas de tal facto não resulta, por si só, qualquer vício de que padeça o pedido.
Com efeito, resulta do mesmo pedido que o Presidente da República requer expressamente (nos n.os 2, 3, 5 e 7) a apreciação preventiva da constitucionalidade dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, 8.º, 11.º, 13.º, 21.º e 28.º, n.º 3, do decreto em apreço e, consequencialmente, a eventual pronúncia pela inconstitucionalidade de todas as demais normas do diploma, exceptuadas as que «assentem numa base contratual».
Quanto a estas, estando nós perante um diploma que consagra opções voluntárias dos trabalhadores no referente às medidas de descongestionamento da função pública, haverá de entender-se que aquela expressão genérica utilizada pelo Presidente da República se refere aos preceitos que se reportam a tais opções e na medida em que, por serem voluntárias, podem subsumir-se ao aludido critério geral de «base contratual» adoptado pelo Presidente da República, sem que agora e em sede de um juízo liminar tenhamos que curar do rigor jurídico de tal designação.
4 - Do exposto resulta, pois, que o Tribunal é solicitado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional de todas as normas do decreto sobre «Racionalização do emprego dos recursos humanos da Administração Pública», à luz do alegado vício de inconstitucionalidade orgânica, e das normas dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, n.º 1, alínea b), 8.º, 11.º, 13.º, 21.º e 28.º, n.º 3, pelas razões e com o alcance decorrentes do pedido atrás transcrito.
Pelo que improcede a segunda questão prévia suscitada pelo Primeiro-Ministro.
C - A terceira questão prévia
1 - A última das questões prévias suscitadas pelo Primeiro-Ministro reporta-se ao n.º 6 do pedido do Presidente da República, atinente, por seu turno, à correcção do procedimento legislativo que conduziu à aprovação da norma do artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei 2/92, de 9 de Março (que aprovou o Orçamento do Estado para 1992). É que, versando tal norma sobre legislação do trabalho, estaria ela sujeita a apreciação pública nos termos do disposto nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, o que, a não se ter verificado, determinaria a inconstitucionalidade formal da norma habilitadora do decreto, que, dessa forma, não poderia deixar de afectar, de forma derivada ou reflexa, todas as normas do diploma em apreço.O Primeiro-Ministro fundamenta a sua posição da seguinte forma:
Conforme de seguida se provará, também não só é procedente a dúvida suscitada no n.º 6 do pedido como tal invocação deve ser percebida no sentido de não escrita, posto que manifestamente assenta num evidente equívoco: o Sr. Presidente da República estaria assim a tornar controvertido já não o projecto em crise, mas, de forma explicitamente directa e necessária, o artigo 5.º da Lei 2/92, de 9 de Março.
Não cabendo nesta sede qualquer juízo sobre tal intenção - que, no entanto, se configura incongruente com o facto de o Sr. Presidente da República não apenas ter promulgado a citada lei sem ter recorrido ao processo de fiscalização preventiva mas também não haver mencionado o referido preceito no pedido de fiscalização sucessiva que supervenientemente interpôs junto desse venerando Tribunal -, sempre se registará a incompetência do Tribunal Constitucional para, no âmbito da apreciação preventiva de um decreto-lei, se pronunciar directamente sobre a constitucionalidade de normas já vigentes e insertas em lei.
E apesar de caber a outro órgão de soberania - a Assembleia da República a responsabilidade pela aprovação das normas contidas na Lei 2/92, de 9 de Março (pelo que é a este órgão que compete responder - no caso de, em processo adequado, tal questão vier a ser eventualmente suscitada - sobre os procedimentos adoptados na feitura das mesmas), o Governo não quer deixar de prestar, desde já, ao Tribunal Constitucional o seguinte esclarecimento:
quer o projecto de decreto-lei em análise quer as correspondentes normas de autorização legislativa foram objecto de apreciação pelos funcionários públicos, através das respectivas associações representativas, conforme se prova pelos documentos anexos (documentos n.os 2, 3, 4 e 5).
Em todo o caso, repita-se que nunca por nunca haveria qualquer «vício de procedimento legislativo» no caso vertente, ainda que a Assembleia da República não tivesse procedido como, na sequência do que vem sendo decidido por esse alto Tribunal, procedeu; é que a possibilidade de «afectar, de forma derivada ou reflexa, todas as normas do projecto de decreto-lei em questão» apenas poderia decorrer, em tal hipótese, de foro teorético, como resultado de acórdão que declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 5.º da Lei 2/92, de 9 de Março, o que jamais teria lugar no decurso de um processo de diferente natureza e com diferente entidade como sujeito.
Tudo quanto está em causa é, pois, aferir da plena compatibilidade do projecto com a respectiva norma de autorização legislativa - válida e plenamente eficaz até à sua utilização ou até 31 de Dezembro próximo futuro - e com as normas da própria lei fundamental.
2 - A questão prévia assim suscitada tem por base um entendimento do pedido do Presidente da República que, contudo, não parece de sufragar.
Com efeito, não está em causa, nem, com efeito, poderia estar, tomar uma decisão que tivesse por objecto a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 5.º da Lei 2/92, de 9 de Março, nem é isso que, verdadeiramente, pretende o Presidente da República no n.º 6 do seu requerimento.
A alegada irregularidade da Lei 2/92, no que ora importa, por eventual preterição de uma formalidade essencial no processo legislativo que a originou, releva, na economia do pedido do requerente, apenas como argumento de fundamentação do pedido efectivamente formulado, esse sim reportado às normas do decreto ora em apreço.
É que estamos perante um processo legislativo especial, o das autorizações legislativas, composto por uma lei de habilitação e por um acto delegado.
A lei de autorização (a Lei 2/92, de 9 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 1992) constitui simultaneamente pressuposto habilitador e acto-parâmetro do decreto-lei autorizado. Logo, a invalidade do acto habilitador, a verificar-se, como que se transmite ao acto delegado, comprometendo, assim, a própria validade deste.
Ora, a verificação dos pressupostos de emissão de um acto delegado não é matéria, em si mesma, alheia ao juízo de constitucionalidade que cabe formular sobre esse mesmo acto delegado. Que assim é, resulta, desde logo, do facto de ao Tribunal caber apurar se existe ou não autorização legislativa ao Governo na matéria sobre que versa o diploma delegado, porque, caso inexista tal autorização, o diploma emitido será inelutavelmente inconstitucional sob o ponto de vista orgânico. De igual forma, a verificação da validade constitucional do diploma habilitador constitui, simultaneamente, pressuposto do juízo de validade a emitir quanto ao diploma delegado.
Neste contexto, é claro que o pedido do Presidente da República não se dirige à Lei 2/92, nem poderia, de facto, dirigir-se, pelo que ao Tribunal não se coloca a questão de entender que a norma do seu artigo 5.º integra o objecto do pedido ora em apreço.
Mas o que cabe ao Tribunal é, isso sim, e enquanto pressuposto e fundamento do juízo de constitucionalidade sobre as normas objecto do pedido (as normas do decreto emitido no uso de uma autorização legislativa), tomar conhecimento da questão da validade constitucional da aludida norma da Lei 2/92, em virtude da projecção de que tal questão se reveste para efeitos da apreciação do pedido.
Pelo que o Tribunal entende poder conhecer do aludido fundamento invocado no n.º 6 do requerimento do Presidente da República, desta forma desatendendo a terceira questão prévia suscitada pelo Primeiro-Ministro.
III
A - As questões de constitucionalidade
1 - Superadas as questões prévias, importa analisar o âmbito do pedido formulado pelo Presidente da República. Seguindo a orientação constante do referido pedido, são as seguintes as questões de constitucionalidade suscitadas:
1.ª questão. - Inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 11.º e 13.º do decreto, por violação dos princípios da precisão e determinabilidade das leis e da segurança no emprego (artigos 2.º e 53.º da Constituição) (n.º 2 do pedido);
2.ª questão. - Inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.º, 3.º e 6.º do decreto, por violação dos princípios da reserva de lei e da segurança no emprego (artigos 2.º e 53.º da Constituição) (n.º 3 do pedido);
3.ª questão. - Inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.º, n.º 2, e 28.º, n.º 3, do decreto, por violação do princípio da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático e da segurança no emprego (artigos 2.º e 53.º da Constituição) (n.º 5 do pedido);
4.ª questão. - Inconstitucionalidade consequencial de todas as demais normas do decreto «que não assentem numa base contratual», a procederem as questões de inconstitucionalidade referidas nos n.os 2 e 3 do pedido (n.º 4 do pedido);
5.ª questão. - Inconstitucionalidade, por forma derivada e reflexa, de todas as normas do decreto, caso se considere existir inconstitucionalidade formal por vício de procedimento legislativo relativamente à norma do artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei 2/92, de 9 de Março, por violação dos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição (n.º 6 do pedido);
6.ª questão. - Inconstitucionalidade orgânica dos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), 8.º e 21.º do decreto, por desrespeito do âmbito da autorização legislativa, em violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea v), da Constituição (n.º 7 do pedido).
B - As normas impugnadas
1 - Em função das questões de constitucionalidade suscitadas, importa de seguida identificar as normas do decreto que o Presidente da República directa e expressamente coloca em crise.2 - Quanto à primeira questão, estão em causa as normas dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 11.º e 13.º do decreto, cujo teor é o seguinte:
Artigo 2.º
Situações que podem dar origem à identificação de pessoal disponível
1 - Podem dar origem à identificação de pessoal disponível em serviços e organismos públicos as seguintes situações:
a) Extinção de serviços ou organismos públicos;
b) Adopção de medidas de racionalização de estruturas ou de redefinição das missões de serviços e organismos públicos, acompanhada da alteração quantitativa e ou qualitativa dos respectivos quadros de pessoal;
c) Alteração dos quadros de pessoal dos mesmos serviços e organismos, quando considerados desajustados qualitativa e ou quantitativamente face às respectivas necessidades de serviço;
d) Reconhecimento de número excessivo ou qualitativamente desajustado de agentes face àquelas necessidades, que devam, por isso, ser dispensados pelos respectivos serviços ou organismos.
2 - É também considerado disponível o pessoal que se encontre de licença nos termos do artigo 78.º do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro, nos casos em que todos os lugares da respectiva categoria sejam extintos ao abrigo das medidas previstas no número anterior.
3 - Serão extintos os lugares dos quadros de pessoal dos serviços e organismos objecto das medidas enunciadas nas alíneas b) e c) do n.º 1, cujos titulares venham a ser considerados disponíveis nos termos do presente diploma, sem prejuízo das adaptações que aqueles quadros devam merecer pela salvaguarda das expectativas de promoção dos respectivos funcionários.
4 - Salvo no caso previsto na alínea a) do n.º 1 ou quando se trate de medidas que visem a eliminação de todos os lugares da mesma carreira, não podem ser extintos, com fundamento no não exercício das correspondentes funções, os lugares cujos titulares se encontrem afastados dos mesmos, nos termos das disposições legais aplicáveis, no desempenho de actividade como dirigente ou delegado sindical.
5 - Sempre que as medidas a que aludem as alíneas a) e b) do n.º 1 prevejam a transferência total ou parcial, para outros, das responsabilidades dos serviços ou organismos por elas abrangidas, serão as mesmas acompanhadas da integração nos quadros daqueles do pessoal considerado necessário à assumpção dessas responsabilidades.
6 - Constitui critério a observar nessa transição a melhor adequação entre as exigências inerentes ao conteúdo funcional dos postos de trabalho correspondentes aos lugares a prover e a capacidade, qualificação e experiência profissionais do pessoal abrangido.
Artigo 3.º
Critérios e formalidades a observar
1 - É considerado como disponível, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, o pessoal dos serviços e organismos públicos abrangidos por qualquer das medidas referidas no n.º 1 do mesmo artigo que seja tido como desocupado ou subutilizado por deixar de satisfazer necessidades permanentes de serviço ou por não reunir as habilitações literárias e ou profissionais indispensáveis à consecução das atribuições dos respectivos serviços e organismos.2 - Na consideração do pessoal a que alude o n.º 1 atender-se-á à menor adequação do mesmo face aos critérios enunciados no n.º 4 do artigo 2.º 3 - O pessoal a que se refere o presente artigo constará de lista nominativa aprovada por despacho devidamente fundamentado do membro do Governo competente, que mencionará os critérios utilizados, devendo ser afixada nas respectivas instalações e comunicada na mesma data, por escrito, com aviso de recepção, aos interessados, sempre que ausentes na situação de licença.
Artigo 5.º
Transferência para os quadros de outros serviços ou organismos
1 - Deverão ser conciliadas as medidas a que se reporta o n.º 1 do artigo 2.º com a identificação e satisfação das necessidades de pessoal de outros serviços ou organismos públicos, promovendo-se a transferência do pessoal considerado disponível e susceptível de reafectação para os respectivos quadros de pessoal, ainda que mediante a sua alteração, quando necessária.
2 - Para efeitos do disposto no número precedente:
a) Os serviços e organismos públicos que tomem a iniciativa de medidas que visem a racionalização das suas estruturas orgânicas e de pessoal deverão dar conta das mesmas à Direcção-Geral da Administração Pública (DGAP) com uma antecedência mínima de 90 dias, mantendo-a permanentemente informada da evolução daquelas medidas;
b) A DGAP, tendo em conta as necessidades de pessoal da Administração, diligenciará pela transferência do pessoal que os serviços vierem a disponibilizar.
3 - Na pendência dessa transferência, os vencimentos do pessoal em causa serão da responsabilidade do serviço ou organismo de origem.
4 - As transferências a que alude o presente artigo consideram-se feitas por urgente conveniência de serviço, podendo ser precedidas de reclassificação profissional, quando necessário.
Artigo 11.º
Integração no quadro de efectivos interdepartamentais
1 - Os funcionários e agentes que não forem transferidos nos termos do artigo 5.º ou que não optarem pelas medidas de descongestionamento da função pública a que aludem os artigos 6.º a 10.º serão integrados no quadro de efectivos interdepartamentais (QEI), que para o efeito se considera criado junto da Direcção-Geral da Administração Pública (DGAP).
2 - Em cada uma das Regiões Autónomas será criado, pelo diploma a que se refere o n.º 3 do artigo 1.º, um quadro de efectivos interdepartamentais próprio.
Artigo 13.º
Integração no QEI
Só poderão ser integrados no QEI:a) Os funcionários dos quadros dos serviços e organismos da administração central abrangidos pelo âmbito de aplicação do presente diploma;
b) Os agentes com contrato administrativo de provimento que desempenhem funções nos mesmos serviços e organismos há mais de um ano ininterrupto.
3 - Quanto à segunda questão, além das normas já transcritas dos artigos 2.º e 3.º, releva ainda a norma do artigo 6.º, n.º 1, que dispõe:
Artigo 6.º
Opção por medidas excepcionais de descongestionamento da função
pública
1 - O pessoal considerado disponível nos termos do artigo 3.º e integrado nas categorias e carreiras a fixar por despacho do Ministro das Finanças poderá optar por uma das seguintes medidas excepcionais de descongestionamento da função pública:a) Aposentação voluntária;
b) Pré-aposentação;
c) Desvinculação da função pública, mediante indemnização;
d) Licença sem vencimento, por tempo indeterminado.
..........................................................................................................................
4 - Quanto à terceira questão, para além do n.º 2 do artigo 2.º já transcrito, releva a norma do n.º 3 do artigo 28.º, que dispõe:
Artigo 28.º
Prevalência do diploma
..........................................................................................................................3 - Releva para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 21.º o tempo de serviço na situação de disponibilidade dos funcionários e agentes integrados nos QUEI criados pela legislação a que alude o artigo 29.º 5 - Finalmente, quanto à sexta questão, importa considerar a norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea b) (já transcrita), bem como as normas dos artigos 8.º e 21.º, do seguinte teor:
Artigo 8.º
Pré-aposentação
1 - O pessoal abrangido pelo n.º 1 do artigo 6.º que possua idade igual ou superior a 55 anos de idade ou 25 anos de serviço prestado ao Estado contável pela Caixa Geral de Aposentações pode optar pela situação de pré-aposentação, que se traduz pela suspensão do respectivo vínculo à função pública, mediante o direito à percepção de uma prestação pecuniária mensal correspondente a 50% da respectiva remuneração base e do subsídio de Natal e, bem assim, a igual percentagem do subsídio de férias a que tenha direito, a suportar pelo serviço ou organismo de origem.2 - A situação de pré-aposentação caracteriza-se por:
a) Ter a duração máxima de cinco anos, cessando, todavia, logo que o funcionário ou agente atinja o limite de idade legalmente fixado ou complete 30 anos de serviço, podendo, neste último caso, optar pela aposentação bonificada nos termos do artigo 7.º;
b) O período de tempo nessa situação relevar para efeitos de aposentação, em termos proporcionais à prestação pecuniária mensal, salvo se o funcionário ou agente optar pelo desconto por inteiro para a aposentação, caso em que será considerado todo o tempo na situação de pré-aposentação;
c) O funcionário ou agente ter direito a requerer, com uma antecedência mínima de 30 dias, a cessação da situação de pré-aposentação;
d) O pessoal em causa manter o direito à assistência na doença, ao abono de família e demais prestações complementares e ao acesso aos serviços sociais, salvo se passar a beneficiar de outro regime de segurança social;
e) A pensão será calculada em função da remuneração base da respectiva categoria.
3 - A prestação pecuniária a que se refere o n.º 1:
a) É actualizada anualmente em percentagem igual à que o funcionário ou agente beneficiaria se se mantivesse no activo;
b) Está sujeita aos correspondentes descontos para efeitos de aposentação, sobrevivência e assistência na doença, sem prejuízo do disposto na parte final da alínea b) do n.º 2.
4 - O pessoal que cesse a situação de pré-aposentação será integrado no QEI, sem prejuízo do disposto na parte final da alínea a) do n.º 2.
5 - O pessoal na situação de pré-aposentação não pode, em caso algum, exercer actividade na função pública.
Artigo 21.º
Aposentação obrigatória
1 - Será obrigatoriamente aposentado, sem submissão a junta médica, o pessoal do QEI que possua mais de 20 anos de serviço, independentemente da idade, e permaneça na disponibilidade durante dois anos seguidos ou três interpolados.2 - Ao pessoal nas condições previstas no número anterior será atribuída uma pensão correspondente ao número de anos de serviço efectivamente prestado, acrescida de uma importância correspondente a 20% do seu quantitativo, benefício aplicável até ao limite máximo da respectiva pensão.
C - A questão da conformidade constitucional dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 11.º
e 13.º
1 - Conforme resulta do que atrás se deixou assinalado, o requerente equaciona as questões de constitucionalidade material que suscita a título principal em torno de dois núcleos essenciais: por um lado, o princípio da segurança no emprego (artigo 53.º da Constituição) e, por outro, embora tomando em consideração vertentes distintas entre si, o princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), com os quais pretende ver confrontados, quanto ao primeiro princípio, as normas dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, n.º 1, 11.º, 13.º e 28.º, n.º 3, e, quanto ao segundo princípio, as normas dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 11.º e 13.º, por eventual violação do princípio da precisão e determinabilidade das leis, dos artigos 2.º, 3.º e 6.º, n.º 1, por eventual violação do princípio da reserva de lei, e dos artigos 2.º, n.º 2, e 28.º, n.º 3, por eventual violação do princípio da protecção da confiança.Analisemos em primeiro lugar as questões que se colocam a propósito do princípio da segurança no emprego.
2 - Este princípio tem expressa consagração constitucional no artigo 53.º da lei fundamental, que dispõe que «é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos».
O preceito em causa insere-se no capítulo III «Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores», do título II, «Direitos, liberdades e garantias», da parte I da Constituição, «Direitos e deveres fundamentais».
Da sua inserção sistemática resulta, desde logo, que, quanto ao parâmetro constitucional invocado, estamos perante um direito, liberdade e garantia sujeito ao especial regime jurídico constante do artigo 18.º da Constituição.
O preceito do artigo 53.º da Constituição, no que ora nos interessa, tem sido objecto de uma progressiva sedimentação quanto ao seu âmbito e alcance normativos, quer por parte do legislador quer pela justiça constitucional.
Desse percurso resulta que no seu âmbito de previsão normativa devem ter-se por incluídos os trabalhadores da Administração Pública, que, assim, no plano da segurança no emprego, beneficiam do mesmo tipo de garantia constitucional de que usufruem os trabalhadores submetidos a contrato individual de trabalho (cf. Acórdão 154/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol. t. I, pp. 185 e segs.) A um tal conclusão, com efeito, não obsta, numa primeira análise, a especial relação estatutária que envolve os trabalhadores da Administração Pública. Na realidade, não se pode ignorar que a relação de emprego pública se reveste de especificidades e comporta, por isso, diversas projecções no plano subjectivo, decorrentes da natureza da actividade e das finalidades a prosseguir pela Administração. O estatuto funcional destes trabalhadores (cf. artigo 269.º da Constituição) compreende, pois, um conjunto próprio de direitos, regalias, deveres e responsabilidades que lhe emprestam um figurino especial face à relação laboral de matriz jus-privatista.
Mas esse estatuto, concebido em função da isenção e imparcialidade da Administração e da exclusiva subordinação dos funcionários ao interesse geral por ela prosseguido, não legitima, no plano constitucional, a compressão do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos à generalidade dos trabalhadores, os quais, nessa medida, se aplicam também aos funcionários públicos. A especial relação estatutária em causa antes exige uma permanente procura da concordância prática entre as restrições de direitos decorrentes dos especiais ditames das finalidades específicas da Administração e a salvaguarda dos direitos fundamentais dos funcionários públicos.
Neste contexto, é insofismável que a garantia constitucional da segurança no emprego abrange, também, os funcionários públicos, pelo que o Estado não pode dispensar livremente os seus funcionários, tal como a extinção ou reformulação dos seus serviços ou organismos não pode constituir, por si só, razão suficiente que leve à livre e total disponibilidade dos funcionários em causa. Pelo que a reorganização da Administração sempre terá de atender aos princípios e regras constitucionais que consagram e garantem os direitos dos funcionários públicos.
Assim sendo, importa reconhecer que, num primeiro momento, o princípio da segurança no emprego compreende o direito dos trabalhadores à manutenção do seu emprego. Mas, com este alcance, e invocando o paralelismo com a relação laborar de direito privado, podem efectivamente ocorrer situações onde a extinção ou reorganização dos serviços e organismo da Administração determinem a impossibilidade de manutenção, por parte do funcionário, do concreto lugar que desempenha. A resolução de tais situações poderá compreender, em tese geral, a necessidade de adoptar soluções que determinam alteração das condições de desempenho profissional dos funcionários públicos.
Ora, importa deixar claro, pelas razões já aduzidas, que as alterações estatutárias que o legislador entenda dever introduzir no ordenamento em nome do interesse geral prosseguido pela Administração e que afectem as aludidas condições de desempenho profissional dos funcionários públicos, porque se podem traduzir na compressão de direitos desses funcionários, deverão estar inelutavelmente subordinadas aos limites que a Constituição postula para as restrições aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores.
3 - Resulta das normas do decreto em apreço que verdadeiramente não estamos perante casos em que se compreenda a cessação do vínculo jurídico à função pública, isto é, as soluções jurídicas previstas para os funcionários dos serviços ou organismos que venham a ser extintos ou reorganizados, nos termos do artigo 2.º, não se traduzem num «despedimento».
Mas não é por as coisas assim serem que o princípio da segurança no emprego se poderá ter por insusceptível de operar na análise da legitimidade constitucional das alterações do ordenamento constantes do decreto em apreço.
Com efeito, se no caso vertente não se trata, como se disse, da cessação do vínculo à função pública, contudo, no centro das medidas em apreço está em causa a subsistência (ou insubsistência) da relação laboral efectiva dos funcionários que venham a ser considerados disponíveis, nos termos e condições previstos no diploma em análise. E consequentemente quais os limites a que deve subordinar-se a modificação das condições de desempenho da actividade profissional dos aludidos funcionários públicos? Importa recordar que, entre nós, o edifício jurídico do estatuto do funcionalismo público decorre de uma matriz originária onde o valor da estabilidade no emprego constituía elemento basilar da exclusiva vinculação dos funcionários ao interesse público, da garantia de isenção e imparcialidade da Administração e, no plano subjectivo, em certa medida e quanto a algumas categorias e carreiras, compensação face a um estatuto remuneratório que a evolução da sociedade tornou menos atractivo do que o praticado no sector privado para actividades homólogas ou paralelas.
A progressiva alteração deste paradigma, acelerada após 1976, fez assentar a imparcialidade e neutralidade da Administração e a vinculação exclusiva dos funcionários ao interesse público em garantias objectivas, com assento constitucional e legal, típicas de um Estado de direito democrático, de par com o reconhecimento aos trabalhadores da Administração Pública de direitos laborais próprios e, mais recentemente, de uma reavaliação salarial introduzida pelo denominado «novo sistema remuneratório» (definido, no essencial, pelos Decretos-Leis n.os 184/89, de 2 de Junho, e 353-A/89, de 16 de Outubro), evolução esta de que não importa aqui curar mas da qual decorre que, em termos gerais, a mobilidade do mercado laboral típica das modernas sociedades de economia aberta vem apresentando cada vez mais relevantes pontos de contacto com o desempenho profissional de funções públicas.
Recorde-se, aliás, a propósito, que a modificação da relação de emprego público determinada por reajustamentos estruturais da Administração, com a possibilidade de poder dar origem à constituição de pessoal excedentário, não é questão nova no nosso ordenamento jurídico, pois esta já patente, pelo menos, no Decreto-Lei 167/82, de 10 de Maio, onde se referia (no artigo 2.º, n.º 1) que «darão origem à constituição de excedentes as medidas de racionalização global ou parcial das estruturas e dos quadros ou efectivos da administração central que conduzirem a situações de desocupação ou subutilização do pessoal dos serviços ou organismos que forem objecto das mesmas».
Este diploma viria a ser revogado pelo Decreto-Lei 43/84, de 3 de Fevereiro, que, no seu artigo 2.º, n.º 1, reproduziu integralmente o já citado preceito do diploma de 1982, que constitui a legislação neste momento em vigor e que o decreto em apreço pretende substituir, conforme resulta do disposto no seu artigo 29.º, alínea e).
Ora, das considerações atrás formuladas, pode-se concluir que, em princípio, é constitucionalmente legítimo que o Governo proceda à introdução de modificações estruturais na Administração que determinem consequências no plano da relação laboral efectiva dos funcionários dos serviços e organismos abrangidos por tais medidas de reorganização e reestruturação.
Mas de igual forma resulta claro do que já se deixou dito que tais consequências no plano da relação de emprego público conhecem os limites da garantia de segurança no emprego constante do artigo 53.º da Constituição e, porque comportam compressão ou mesmo restrições a direitos, liberdades e garantias dos funcionários públicos, hão-de ser sujeitas sempre a um juízo de conformidade e adequação às especiais imposições do artigo 18.º da Constituição.
A que acresce que, se não está em causa, como já se disse, uma autêntica cessação do vínculo à função pública dos trabalhadores abrangidos pelo decreto em análise, sem embargo, o princípio da segurança do emprego terá de ser inelutavelmente chamado à colação, uma vez que as medidas em causa comportam formas de cessação da relação laboral efectiva daqueles funcionários, que se devem ter por abrangidas pelo âmbito de protecção normativa do referido princípio da segurança no emprego, pelo que importa agora considerar a questão dos aludidos limites constitucionais às normas restritivas de direitos, liberdades e garantias. O que parece não poder ser feito sem que se trace uma breve panorâmica da disciplina jurídica em vigor e das principais alterações que agora se lhe pretende introduzir.
4 - Conforme já foi afirmado, não sendo inovatória, a disciplina objecto do decreto em apreço foi registando alterações sensíveis ao longo do tempo.
4.1 - No regime de 1982, a criação de excedentes seria sempre feita mediante diploma legal (artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 167/82), devendo os diplomas que extinguissem ou reorganizassem serviços estabelecer os critérios a observar para efeitos de transição de pessoal para outros serviços ou organismos e para a constituição de excedentes de pessoal (artigo 3.º, n.º 1).
Para efeitos de transição, previa-se (artigo 3.º, n.º 2) que os critérios a adoptar teriam em atenção a melhor adequação entre as características e qualificações profissionais de cada um dos funcionários e agentes abrangidos e as exigências inerentes aos postos de trabalho a prover, preocupação essa que deveria ser assegurada, sempre que possível, mediante recurso à última classificação de serviço ou, no caso de não existir, ao resultado do concurso para a respectiva categoria.
Na constituição de excedentes ter-se-ia em conta, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º, relativamente a cada categoria e em caso de igualdade de qualificações, a natureza do vínculo, atendendo a uma ordem definida no diploma (tarefeiros, prestadores eventuais de serviços, assalariados e contratados além do quadro e pessoal dos quadros), e, para efeitos de eventual desempate dentro de cada uma dessas categorias, atender-se-ia sucessivamente (n.º 4 do mesmo artigo) à menor antiguidade na categoria, à menor antiguidade na carreira e à menor antiguidade na função pública.
A aquisição da qualidade de excedente dependia de despacho conjunto do Ministro das Finanças e do Plano e dos Ministros da Reforma Administrativa e da pasta respectiva (artigo 5.º, n.º 1) e os funcionários e agentes considerados excedentes ficavam automaticamente integrados em quadros de efectivos interdepartamentais (QEI), para o efeito criados junto dos competentes serviços de organização e pessoal de cada ministério (artigo 6.º, n.º 1).
O pessoal constituído em excedente manteria a categoria de que era titular à data dos diplomas que extinguissem os respectivos lugares (artigo 7.º, n.º 1), tendo direito, na situação de actividade e durante o período de frequência de acções de formação e aperfeiçoamento profissional, ao vencimento por inteiro (artigo 15.º, n.os 1 e 2) e, na situação de disponibilidade, ao vencimento por inteiro durante o período de um ano a contar da data de aquisição da qualidade de excedente (salvo quanto aos funcionários de nomeação definitiva, que manteriam sempre o vencimento por inteiro) e ao vencimento de categoria a partir do termo do referido ano [artigo 15.º, n.º 3, alíneas a) e b)]. Em todos os casos os excedentes manteriam o direito às diuturnidades, subsídios de Natal e de férias correspondentes, ao abono de família, à segurança social e à assistência na doença (artigo 15.º, n.º 4), sendo o tempo de permanência nos QEI considerado para todos os efeitos legais, designadamente antiguidade, conversão da nomeação provisória em definitiva, promoção e aposentação (n.º 5 do mesmo artigo).
Em ordem a promover o descongestionamento dos QEI, designadamente no tocante a funcionários e agentes titulares de categorias de difícil recolocação, a Administração poderia, mediante requerimento dos interessados, promover a sua desvinculação da função pública, através do pagamento de uma indemnização ou da atribuição de um subsídio às empresas privadas em sectores ou áreas prioritárias ou instituições particulares de solidariedade social que quisessem integrar nos seus quadros funcionários e agentes constituídos em excedentes (artigo 18.º).
4.2 - Este diploma viria a ser revogado, como já se disse, pelo Decreto-Lei 43/84, de 3 de Fevereiro.
Neste texto legal previa-se que dariam origem a excedentes as medidas de racionalização global ou parcial das estruturas e dos quadros ou efectivos dos serviços da administração central, dos organismos de coordenação económica e dos demais institutos públicos que revestissem a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos e das autarquias locais (artigo 1.º), medidas essas que conduzissem a situações de desocupação ou subutilização do respectivo pessoal (artigo 2.º), dispondo-se ainda que na constituição de excedentes se atenderia sucessivamente à menor antiguidade na categoria, à menor antiguidade na carreira e à menor antiguidade na função pública (artigo 3.º, n.º 3) e que, no tocante à transição de pessoal e à utilização de instrumentos de mobilidade, nomeadamente a transferência, a afectação colectiva e a deslocação (artigo 3.º, n.º 1), seriam adoptados critérios que tivessem em atenção a necessidade de garantir a melhor adequação entre as características e qualificações profissionais do pessoal abrangido e as exigências inerentes aos postos de trabalho a prover, preocupação que deveria ser assegurada, sempre que possível, mediante o recurso à última classificação de serviço ou, no caso de esta não existir, ao resultado do concurso para a respectiva categoria (artigo 3.º, n.º 2).
O pessoal considerado excedente ficaria automaticamente integrado em quadros de efectivos interdepartamentais (QEI), nos termos do n.º 1 do artigo 6.º, podendo ser chamado à actividade, destacado para a frequência de acções de formação e aperfeiçoamento profissionais ou manter-se na situação de disponibilidade (artigo 8.º).
A passagem à actividade era regulada pelo artigo 9.º do mesmo decreto-lei, operada em função das qualificações profissionais requeridas pelos lugares a prover, atendendo sucessivamente à maior antiguidade no QEI, à maior antiguidade na categoria, à maior antiguidade na carreira e à maior antiguidade na função pública (artigo 9.º, n.º 3).
A cessação da qualidade de excedente vinha prevista no artigo 11.º, podendo ocorrer por colocação através de integração em lugares do quadro, por recusa não aceite como fundamentada de colocação ou de frequência de acções de formação e aperfeiçoamento, por aposentação ou por desvinculação da função pública.
Os excedentes mantinham a categoria e a natureza do provimento que detinham à data da aquisição daquela qualidade (artigo 12.º, n.º 1), tendo direito na situação de disponibilidade ao vencimento por inteiro, às diuturnidades, ao subsídio de Natal, ao subsídio de férias correspondente ao período de férias a que tinham direito nos termos da lei, ao abono de família e prestações complementares, à segurança social e à assistência na doença, bem como à apresentação a concurso (artigo 12.º, n.º 4).
Constituíam incentivos ao descongestionamento dos quadros de efectivos interdepartamentais a desvinculação da função pública, mediante indemnização, a aposentação voluntária e a licença sem vencimento por tempo indeterminado (artigo 14.º, n.º 1).
Os excedentes que reunissem os requisitos constantes do n.º 1 do artigo 34.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro (que previa que se poderiam aposentar por sua iniciativa e independentemente de submissão a junta médica os funcionários e agentes que contassem mais de 60 anos de idade e 20 anos de serviço ou que reunissem 30 anos de serviço, independentemente da idade) e que cumulativamente se encontrassem na situação de disponibilidade há mais de dois anos, seguidos ou interpolados, seriam obrigatoriamente aposentados, sem direito a bonificação (artigo 16.º, n.º 2).
O sistema assim definido era complementado por uma regra de congelamento de admissões, constante do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 41/84, que dispunha que era congelada a admissão de pessoal para lugares dos quadros, bem como a contratação além dos quadros de pessoal que não se encontrasse vinculado aos serviços e organismos referidos no n.º 1 do artigo 1.º do mesmo diploma, sem prejuízo da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 12.º do mesmo decreto-lei, que permitia descongelamentos de admissões a fixar por despacho global anual do Ministro das Finanças e do Plano e do Secretário de Estado da Administração Pública, prevendo ainda o n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei 43/84 que a recusa de integração de excedentes que a Direcção-Geral de Emprego e Formação da Administração Pública considerasse adequados ao posto de trabalho em causa inviabilizava a utilização da quota de descongelamento por parte do respectivo serviço para a correspondente carreira.
4.3 - O decreto ora em apreço, nos termos do seu artigo 29.º, visa introduzir alterações neste quadro normativo pela revogação do Decreto-Lei 43/84 e do Decreto-Lei 42/84 (com excepção dos seus artigos 7.º e 8.º - referentes aos adidos em licença sem vencimento e licença ilimitada e aos funcionários da ex-administração ultramarina em licença ilimitada não ingressados no quadro geral de adidos).
No essencial e para o que ora interessa considerar, o decreto em análise tipifica no seu artigo 2.º as situações que «podem dar origem à identificação de pessoal disponível em serviços e organismos públicos», a saber: a extinção de serviços e organismos públicos [alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º], a adopção de medidas de racionalização de estruturas ou de redefinição das missões de serviços e organismos públicos, acompanhada da alteração quantitativa e ou qualitativa dos respectivos quadros de pessoal [alínea b) do mesmo número], a alteração dos quadros de pessoal dos mesmos serviços e organismos, quando considerados desajustados qualitativa e ou quantitativamente face às respectivas necessidades permanentes de serviço [alínea c) do mesmo n.º 1] e o reconhecimento do número excessivo ou qualitativamente desajustado de agentes face àquelas necessidades, que devam, por isso, ser dispensados pelos respectivos serviços ou organismos [alínea d) do n.º 1 do mesmo artigo 2.º].
O diploma considera ainda como disponíveis os funcionários que se encontrem «de licença nos termos do artigo 78.º do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro, nos casos em que todos os lugares da respectiva categoria sejam extintos ao abrigo das medidas previstas no número anterior» (artigo 2.º, n.º 2).
Nos casos em que a extinção de serviços ou organismos e em que as medidas de racionalização de estruturas ou de redefinição das missões de serviços e organismos prevejam a transferência, total ou parcial, para outros serviços ou organismos das responsabilidades daqueles, serão as mesmas acompanhadas da integração nos quadros desses outros serviços do pessoal considerado necessário à assumpção dessas responsabilidades (n.º 5 do artigo 2.º), sendo de observar nessa transição o critério da «melhor adequação entre as exigências inerentes ao conteúdo funcional dos postos de trabalho correspondentes aos lugares a prover e a capacidade, qualificação e experiências profissionais do pessoal abrangido» (artigo 2.º, n.º 6).
O artigo 3.º, n.º 1, do decreto identifica o pessoal disponível, reportando-se ao que integre os serviços ou organismos previstos no n.º 2 do artigo 2.º e que seja considerado como desocupado ou subutilizado por deixar de satisfazer as necessidades permanentes de serviço «ou por não reunir as habilitações literárias e ou profissionais indispensáveis à consecução das atribuições dos respectivos serviços ou organismos», relevando para tal juízo de inadaptação ou de menor adequação os critérios constantes do n.º 6 do artigo 2.º (e não do n.º 4 do artigo 2.º, como por lapso consta do texto do decreto, o que expressamente é referido como tal na resposta do Primeiro-Ministro).
Esse pessoal constará de lista nominativa aprovada por despacho devidamente fundamentado do membro do Governo competente, «que mencionará os critérios utilizados» (artigo 3.º, n.º 3), conhecendo os destinos previstos no artigo 4.º: ou a transferência para os quadros de outros serviços ou organismos públicos [alínea a) do artigo 4.º], ou a opção por medidas de descongestionamento da função pública [alínea b) do mesmo artigo] ou a integração no quadro de efectivos interdepartamentais (QEI) [alínea c) do mesmo artigo 4.º].
O regime de transferência para os quadros de outros serviços ou organismos vem regulado no artigo 5.º do decreto, onde se prevê (n.º 1) que as medidas de reestruturação previstas no n.º 1 do artigo 2.º «deverão ser conciliadas [...] com a identificação e satisfação das necessidades de pessoal de outros serviços e organismos públicos».
O pessoal considerado disponível e que não tenha sido transferido nos termos do artigo 5.º ou que não tenha optado pelas medidas de descongestionamento previstas nos artigos 6.º a 10.º do decreto será integrado no QEI, criado junto da Direcção-Geral da Administração Pública (artigo 11.º), só o podendo ser, contudo, nos termos do artigo 13.º, «os funcionários dos quadros dos serviços e organismos da administração central abrangidos pelo âmbito de aplicação do presente diploma» e os «agentes com contrato administrativo de provimento que desempenham funções nos mesmos serviços e organismos há mais de um ano ininterrupto».
Registe-se que se procede à centralização do processo de transferência acima assinalado na Direcção-Geral da Administração Pública (DGAP), para a qual são transferidos os meios humanos que até agora geriam descentralizadamente os vários quadros de efectivos interdepartamentais existentes nos diferentes ministérios (artigo 26.º). O QEI previsto no decreto integrará todos os funcionários e agentes integrados nesses outros QEIs já existentes (artigo 25.º) e é a DGAP o organismo que passará a ser consultado para efeitos de admissão de pessoal não vinculado na função pública.
As medidas de descongestionamento a que alude o artigo 6.º são a aposentação voluntária, a pré-aposentação, a desvinculação da função pública mediante indemnização e a licença sem vencimento por tempo indeterminado.
A aposentação voluntária vem prevista em termos mais amplos do que constava do Decreto-Lei 43/84 (cf. Artigo 16.º, n.º 1), a pré-aposentação constitui uma solução inovatória face ao regime anterior, a desvinculação da função pública mediante indemnização retoma uma solução já prevista no artigo 9.º do Decreto-Lei 43/84, embora neste diploma as condições para o seu exercício viessem expressamente previstas e agora remete-se a sua regulamentação para ulterior diploma autónomo, e finalmente a licença sem vencimento por tempo indeterminado retoma, por seu turno, idêntica solução prevista no artigo 17.º do Decreto-Lei 43/84, embora em diferentes condições e com distintas implicações que, em termos globais, não se podem ter como mais desfavoráveis aos funcionários que optem por esta solução.
A não utilização voluntária das referidas opções de descongestionamento por parte do pessoal considerado disponível implica a sua integração no QEI. Os funcionários e agentes que o integrarem estão sujeitos a deveres e gozam de direitos específicos, numa situação que, não sendo definitiva, poderá desembocar no regresso à actividade, nos termos e condições previstos no artigo 18.º, no destacamento para a frequência de acções de formação e aperfeiçoamento profissional, nos termos do artigo 20.º e na aposentação obrigatória, prevista no artigo 21.º Os funcionários e agentes que vierem a ser integrados no QEI mantêm «a categoria e a natureza do vínculo que detinham à data da aquisição dessa qualidade» (artigo 15.º, n.º 1, do decreto) e têm direito, na situação de disponibilidade (artigo 15.º, n.º 4) à respectiva remuneração base mensal durante os primeiros 30 dias seguidos de inactividade [alínea a) do artigo 15.º, n.º 4], a cinco sextos da mesma remuneração a partir do prazo referido na alínea anterior e até 180 dias, seguidos ou interpolados, de inactividade [alínea b) do n.º 4], a 70% e 60% da mesma remuneração a partir, respectivamente, dos primeiros seis meses e um ano nas circunstâncias referidas na alínea precedente [alínea c) do n.º 4].
O mesmo pessoal tem ainda direito (artigo 15.º, n.º 5) ao subsídio de Natal, ao subsídio de férias correspondente ao período de férias a que tivesse direito nos termos da lei, ao abono de família e prestações complementares, à segurança social e assistência na doença, às regalias concedidas pelos Serviços Sociais do Ministério das Finanças ou, a seu pedido, à manutenção da inscrição nos serviços sociais do departamento ministerial de origem e à apresentação a concurso.
Registe-se, a este propósito, que neste ponto o decreto não pretende revogar directamente o regime do Decreto-Lei 43/84.
Neste capítulo, o referido regime foi alterado pelo artigo 11.º da Lei 2-B/85, de 28 de Fevereiro (que aprovou o Orçamento do Estado para 1985), o qual determinou que o pessoal excedente integrado nos QEI, enquanto na situação de disponibilidade, manteria o vencimento base por inteiro durante os primeiros 30 dias, após o que passaria a auferir 90% do vencimento correspondente à respectiva letra, sendo-lhes assegurados os demais direitos e regalias previstos no n.os 4 e 5 do Decreto-Lei 43/84.
Este regime foi mantido pelo artigo 9.º, n.º 9, da Lei 9/86, de 30 de Abril (que aprovou o Orçamento do Estado para 1986), e pelo artigo 10.º, n.º 4, da Lei 49/86, de 31 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 1987), sendo de novo alterado pela Lei 2/88, de 26 de Janeiro (Lei do Orçamento para 1988), a qual dispôs, no n.º 8 do seu artigo 15.º, que o aludido pessoal teria direito a 90% do vencimento correspondente à respectiva letra a partir do 30.º dia seguido ou interpolado de inactividade e a 80% e 70% do vencimento correspondente à letra, nas mesmas circunstâncias, a partir dos 120.º e 210.º dias, respectivamente, solução que seria mantida inalterada, por seu turno, pela Lei 114/88, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento para 1989), no seu artigo 14.º, n.º 8 (embora com a ressalva que do regime previsto para o período posterior ao 120.º dia se deveriam ter por excluídos os excedentes que tivessem adquirido tal qualidade por força da reestruturação, extinção ou fusão de serviços).
Nova alteração foi introduzida pelo artigo 17.º, n.º 2, da Lei 101/89, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento para 1990), que determinou que o pessoal integrado nos QEI na situação de disponibilidade teria direito a cinco sextos do vencimento correspondente à respectiva remuneração base mensal a partir do 30.º dia seguido ou interpolado de inactividade e a 70% e 60% do aludido vencimento nas mesmas circunstâncias, respectivamente, a partir dos 120.º e 240.º dias. Este modelo foi mantido inalterado pela Lei 65/90, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento para 1991), no seu artigo 18.º, n.º 2.
Finalmente, a recente Lei 2/92, de 9 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 1992), introduziu inovatoriamente o sistema que é recolhido no decreto em apreço, no seu artigo 7.º, e que, registe-se, introduz uma melhoria na situação remuneratória antecedente.
Retomando a caracterização do decreto em apreço, por último assinale-se que o pessoal integrado no QEI será obrigatoriamente aposentado (sem submissão a junta médica) desde que possua mais de 20 anos de serviço, independentemente da idade, e permaneça na disponibilidade durante dois anos seguidos ou três interpolados (artigo 21.º, n.º 1), sendo-lhe atribuída uma pensão de aposentação correspondente ao número de anos de serviço efectivamente prestados, acrescida de uma importância correspondente a 20% do seu quantitativo, compensação esta aplicável até ao limite máximo da respectiva pensão.
5 - Desta breve panorâmica resulta que o sistema acabado de resumir introduz restrições à segurança no emprego dos funcionários e agentes por ele visados, comportando soluções inovatórias face ao regime vigente.
Conforme já se deixou claro, a necessidade de modernização da Administração Pública, decorrente do normal alargamento da própria actividade administrativa, da progressiva ampliação das prestações de ordem social que lhe cabem num Estado de direito democrático e da necessidade de responder a novos desafios que se lhe colocam nos espaços geopolíticos mais amplos em que o País se insere, podem constituir relevantes interesses de ordem pública que, ao projectarem as suas sequelas no âmbito do funcionamento e da estrutura da Administração Pública, determinem a introdução de mecanismos de mobilidade dos seus funcionários e agentes, em termos que comportem a compressão ou restrição da garantia subjectiva decorrente do princípio da segurança no emprego. Mas, não sendo, por isso, a relação de emprego público imodificável em todos os seus elementos, os limites de tal compressão ou restrição não podem deixar de constituir, na sua tradução normativa, objecto do controlo de constitucionalidade, em função da concreta modulação das soluções adoptadas pelo decreto em apreço.
À semelhança de causas objectivas que podem determinar a cessação dos contratos de trabalho privados (cf., neste sentido, v. g., o Acórdão 64/91 deste Tribunal, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 11 de Abril de 1991), também no âmbito da Administração Pública causas objectivas ligadas à reestruturação e racionalização dos serviços e organismos públicos podem levar à compressão do estatuto jurídico dos funcionários públicos sem que daí resulte forçosamente violada a segurança no emprego protegida constitucionalmente. Mas, à luz do artigo 18.º, tal compressão deve conformar-se segundo o critério da restrição das restrições (devendo, por isso, «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»), deve revestir carácter geral e abstracto, não poderá ter efeitos retroactivos nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais em causa. Em suma, a compressão da garantia constitucional da segurança no emprego deve ser necessária, adequada e proporcional e respeitar o núcleo essencial do correspondente direito à segurança no emprego de que beneficiem os funcionários públicos.
Neste contexto, a determinação da observância dos critérios constantes do artigo 18.º da Constituição, pela sua própria natureza, não é facilmente dissociável, no plano de um juízo de constitucionalidade, do quadro de princípios constitucionais invocados pelo Presidente da República, designadamente do princípio da determinabilidade e precisão das leis e da reserva de lei. Dito de outro modo: o crivo do artigo 18.º, na perspectiva da determinação da necessidade, adequação e proporcionalidade das restrições introduzidas pelo decreto em apreço, anda de par com a essência das garantias conferidas aos cidadãos em geral pelo princípio do Estado de direito democrático, designadamente, no que ora importa, a que decorre dos princípios da determinabilidade e precisão das leis e da reserva de lei.
Nesta óptica, as questões colocadas pelo Presidente da República quanto aos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 11.º e 13.º do decreto assentam numa alegada indefinição ou ausência de delimitação, em sede legal, dos critérios mínimos no que respeita à constituição de disponíveis, ao seu destino e submissão a medidas de descongestionamento, de que resultaria não oferecer o diploma uma medida capaz de estabelecer regras de conduta para os particulares (funcionários e demais agentes do Estado), regras de actuação para a Administação e regras de controlo para os tribunais, o que conflituaria com o princípio da determinabilidade das leis e com o princípio da segurança no emprego (artigos 2.º e 53.º da Constituição).
Sobre o princípio da precisão ou determinabilidade das leis, Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 1991, pp. 376 e segs.) entende que o mesmo, sob o ponto de vista intrínseco, reconduz-se às seguintes ideias:
1) Exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto;
2) Exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de:
Alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos;
Constituir uma norma de actuação para a Administração;
Possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos.
Pormenorizando o sentido destas linhas de força do aludido princípio, o mesmo autor sublinha que estamos perante uma situação que tem a ver com as relações «legiferação-aplicação da lei». Com efeito, a indeterminabilidade normativa pode significar delegação da competência de decisão, isto é, pode tradudir-se em situações onde a lei deixa à Administração amplos poderes de decisão, reconduzindo-se assim a um problema de distribuição de tarefas entre o legislador e o aplicador das leis.
Na decorrência deste ponto de vista, o citado autor refere que «o controlo destas 'normas abertas' deve ser reforçado. Elas podem, por um lado, dar cobertura a uma inversão das competências constitucionais e legais; por outro lado, podem tornar claudicante a previsibilidade normativa em relação ao cidadão e ao juiz. De facto, as cláusulas gerais podem encobrir uma 'menor valia' democrática, cabendo, pelo menos, ao legislador uma reserva global dos aspectos essenciais da matéria a regular. A exigência de determinabilidade das leis ganha particular acuidade no domínio das leis restritivas ou de leis autorizadoras de restrição».
Estas razões, que justificam, na opinião de Gomes Canotilho, a exigência de uma especial densificação normativa a nível legal, conexionam-se intimamente com a questão da reserva de lei, ou seja, na expressão do citado autor, «com o problema de saber em que medida o legislador pode confiar tarefas de normação a outras entidades diferentes das legiferantes», o que torna indissociável do problema da densidade da disciplina legal as questões do próprio fundamento e extensão do poder regulamentar, do âmbito de autorização legal para o exercício de poderes discricionários por parte da Administração e da natureza dos poderes da Administração quando aplica cláusulas gerais e conceitos indeterminados (op. cit., p. 377).
Equacionando a relação entre determinabilidade das leis e reserva de lei, Sérvulo Correia escreve (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 53):
Em princípio, a distribuição das matérias por escalões sucessivos (Stufenfolge), constituídos pela reserva absoluta, pela reserva relativa e pela colocação fora da reserva de lei formal, representa uma ponderação da sua decrescente essencialidade ou relevância para o bem comum e para os interesses de cada um dos cidadãos. Na República Federal da Alemanha, assinala-se hoje em dia a tendência para fazer corresponder a tal graduação, embora não necessariamente com rigoroso paralelismo, um dever decrescente de densidade normativa (Regelungsdichte) incidindo sobre o órgão autor da norma. Assim, quanto maior a importância do preceito menor deverá ser a margem de liberdade por ele deixada à Administração, como executante (no plano da emissão de regulamentos, como no da prática de actos concretos), para livremente escolher pressupostos de decisão ou fixar o respectivo conteúdo. Tal orientação funda-se na ideia - que parece correcta, embora levante por certo dificuldades de execução, que só a jurisprudência poderá pouco a pouco ultrapassar através de um trabalho casuístico - de que a abertura da norma nos casos em que a sua própria emissão não seja delegável representaria afinal um expediente para ultrapassar em favor da Administração um critério de repartição de poderes de conformação expressa ou implicitamente imposto pela lei fundamental.
Conforme resulta destas citações, a questão da relevância do princípio da precisão ou determinabilidade das leis anda associada de perto à do princípio da reserva de lei e reconduz-se a saber se, num dado caso, o âmbito de previsão normativa da lei preenche ou não requisitos tidos por indispensáveis para se poder afirmar que o seu conteúdo não consente a atribuição à Administração, enquanto executora da lei, de uma esfera de decisão onde se compreendem elementos essenciais da própria previsão legal, o que, a verificar-se, subverteria a ordem de repartição de competências entre o legislador e o aplicador da lei.
Argumenta a este propósito o Primeiro-Ministro na sua resposta que o aludido princípio se situa no plano da metódica da legislação, à qual pertence o estudo da racionalização e optimização de certos princípios que devem informar a conformação material e formal dos actos legislativos, sendo, por isso, princípios metalegais e não princípios constitucionais, não podendo, por isso, constituir parâmetro adequado de um juízo de constitucionalidade que incide sobre normas legais.
Reconhece-se, sem dificuldade, que o princípio da determinabilidade ou precisão das leis não constitui um parâmetro constitucional a se, isto é, desligado da natureza das matérias em causa ou da conjugação com outros princípios constitucionais que relevem para o caso. Se é, pois, verdade que inexiste no nosso ordenamento constitucional uma proibição geral de emissão de leis que contenham conceitos indeterminados, não é menos verdade que há domínios onde a Constituição impõe expressamente que as leis não podem ser indeterminadas, como é o caso das exigências de tipicidade em matéria penal constantes do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição e em matéria fiscal (cf.
artigo 106.º da Constituição) ou ainda enquanto afloramento do princípio da legalidade (nulla poena sine lege) ou da tipicidade dos impostos (null taxation without law).
Ora, atento o especial regime a que se encontram sujeitas as restrições aos direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 18.º da Constituição, em especial do seu n.º 3, e em articulação com o princípio da segurança jurídica inerente a um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), forçoso se torna reconhecer que, em função de um critério ou princípio de proporcionalidade a que deverão estar obrigadas as aludidas restrições, uma vez que está em causa a garantia constante do artigo 53.º da Constituição, o grau de exigência de determinabilidade e precisão da lei há-de ser tal que garanta aos destinatários da normação um conhecimento preciso, exacto e atempado dos critérios legais que a Administração há-de usar, diminuindo desta forma os riscos excessivos que, para esses destinatários, resultariam de uma normação indeterminada quanto aos próprios pressupostos de actuação da Administração, e que forneça à Administração regras de conduta dotadas de critérios que, sem jugularem a sua liberdade de escolha, salvaguardem o «núcleo essencial» da garantia dos direitos e interesses dos particulares constitucionalmente protegidos em sede de definição do âmbito de previsão normativa do preceito (Tatbestand) e finalmente que permitam aos tribunais um controlo objectivo efectivo da adequação das concretas actuações da Administração face ao conteúdo da norma legal que esteve na sua base e origem.
5.1 - Ora, a esta luz, resulta que a norma referente à definição das situações que podem dar origem à identificação de pessoal disponível, o n.º 1 do artigo 2.º do decreto não parece padecer do alegado vício de indeterminabilidade.
Com efeito, as situações aí previstas, atinentes à estruturação dos serviços e organismos e à racionalização dos respectivos quadros, por definição, terão de ter sempre, no plano da sua execução, um específico suporte normativo (decreto-lei ou regulamento), correspondendo a identificação de tais situações ao exercício das livres escolhas de ordem política que o Governo faça enquanto órgão de condução da política geral do País e órgão superior da Administração Pública (cf. artigo 185.º da Constituição).
De igual forma, os n.os 2 a 5 do artigo 2.º do mesmo diploma não são também censuráveis a esta luz, porquanto constituem regras de especificação e regulamentação das aludidas opções constantes do n.º 1 do mesmo artigo (isto sem prejuízo de, mais adiante, revertermos ao n.º 2 do preceito impugnado pelo Presidente da República à luz do princípio da protecção da confiança).
5.2 - O mesmo, contudo, já não se poderá dizer da norma que resulta da conjugação do n.º 6 do artigo 2.º, da parte final do n.º 1 do artigo 3.º e do n.º 2 do mesmo artigo 3.º Com efeito, destas normas extrai-se que será considerado disponível o pessoal tido como desocupado ou subutilizado «por não reunir as habilitações literárias e ou profissionais indispensáveis à consecução das atribuições dos respectivos serviços e organismos» (a parte final do n.º 1 do artigo 3.º), em cuja consideração se atenderá à «menor adequação do mesmo face aos critérios enunciados no n.º 6 do artigo 2.º» (artigo 3.º, n.º 2), os quais se traduzem na sua «capacidade, qualificação e experiência profissionais» (artigo 2.º, n.º 6).
O pessoal em causa constará de lista nominativa aprovada por despacho devidamente fundamentado do membro do Governo competente, que mencionará os critérios utilizados na sua identificação.
Deste sistema resulta uma lata indeterminação da definição legal dos critérios a observar pela Administração na identificação do pessoal considerado disponível, os quais acabarão apenas por ser explicitados (quiçá de forma genérica, quiçá individualizadamente) no despacho fundamentado do ministro competente que aprove a respectiva lista nominativa, isto é, através da própria escolha concretizada da Administração.
Indeterminação essa que resulta quer da ambiguidade da parte final do n.º 1 do artigo 3.º (donde se depreende uma formulação simultaneamente cumulativa e alternativa) quer da total ausência de elementos objectivos de ponderação da escolha da Administração para determinar o conteúdo dos critérios de «capacidade, qualificação e experiência profissionais» a que alude o n.º 6 do artigo 2.º Resulta evidente da solução do decreto que foi intenção do legislador afastar os critérios objectivos constantes da legislação que se pretende revogar (a classificação de serviço ou do concurso para a respectiva categoria e a antiguidade na função pública, na carreira e na categoria - cf. n.os 2 e 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei 43/84), mas em sua substituição não foram incluídos elementos suficientes que norteassem a conduta da Administração para preenchimento dos aludidos critérios vagos e indeterminados que a lei se limita a enunciar. Assinale-se que, mesmo no domínio da capacidade, qualificação e experiência profissionais, o legislador prescindiu da referência à classificação de serviço ou ao resultado do concurso para a respectiva categoria, a que expressamente se reportava a legislação a revogar (cf. artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 43/84).
A solução do decreto permite, pois, que os critérios de selecção do pessoal disponível dêem cobertura a soluções largamente atomizadas (em contraste, aliás, com a preocupação de consagrar uma gestão centralizada do QEI), divergentes de serviço para serviço e de departamento ministerial para departamento ministerial, aqui dando-se prevalência a um critério (por exemplo, o da maior experiência na carreira) e ali privilegiando o critério oposto (o da menor experiência), gerando desta forma a possibilidade de, a final e numa visão de conjunto, resultarem discriminações intoleráveis entre os funcionários que tenham sido alvo desta selecção.
Neste contexto, e porque se trata de formular regras restritivas de direitos, liberdades e garantias, a indeterminação da lei representa em si mesma uma solução desproporcionada face aos direitos e interesses legalmente protegidos que estão em causa, porquanto o legislador, ao quedar-se pelo enunciado de conceitos tão indeterminados quanto vagos (com efeito, os conceitos utilizados na norma 6 do artigo 2.º - capacidade, qualificação e experiência profissionais - não dispõem de um conteúdo técnico objectivo, legal ou doutrinalmente delimitado, possibilitando uma larga margem de indeterminação e subjectivismo no preenchimento do seu exacto significado), acaba por reenviar para a Administração a função essencial de preenchimento do âmbito de previsão dos preceitos em causa, daí resultando que a Administração acabará por ficar investida de poderes de violação primária, quanto à aludida disciplina, que, por definição, apenas podem caber ao legislador.
A que acresce que os elementos constantes do decreto nas normas ora em apreço não se poderão ter por suficientes quando vistas as coisas à luz da necessidade de o quadro normativo fornecer elementos de suporte de um juízo de controlo da acção da Administração por parte dos tribunais. Com efeito, em função dos critérios adiantados, será sempre muito difícil, se não mesmo impossível, que os tribunais possam sindicar de forma cabal os critérios que a Administração venha a adoptar na determinação do pessoal disponível.
Ora, quando estão em causa actos administrativo praticados ao abrigo de poderes discricionários lesivos de direitos, liberdades e garantidas, o âmbito do juízo dos tribunais não exclui a ponderação da proporcionalidade inerente às próprias decisões administrativas, assente na apreciação da adequação entre o meio adoptado e o fim prosseguido, ou seja, do «equilíbrio» do meio em relação ao fim, por forma que «não agrave excessivamente o seu destinatário» (nicht ubermassig belasten) e «não lhe exija demais» (nicht unzumutbar sein).
Um tal juízo, está bem de ver, não pode prescindir de elementos norteadores na lei que sejam suficientemente explícitos e determinados. Significa isto que, sempre que estejam em causa medidas ablativas ou restritivas de direitos, liberdades e garantias deve ter-se por constitucionalmente excluído o recurso a conceitos jurídicos indeterminados? Não se ignora, na verdade, que as questões atinentes à delimitação de poderes discricionários e à utilização, em sede legal, de conceitos jurídicos indeterminados constitui um dos capítulos mais complexos do direito administrativo e do significado da apreciação, pelos tribunais, da conduta da Administração.
Uma abordagem pormenorizada desta temática não pode ter lugar neste momento e nesta sede, em que acrescem a todas as dificuldades do tema as limitações decorrentes da natureza de um processo de fiscalização preventiva.
Sem embargo, e embora não caiba ao Tribunal, nem de perto nem de longe, definir um modelo alternativo ao agora utilizado, sempre se adiantará que a resposta à questão atrás colocada não há-de ser forçosamente afirmativa.
Se é bem verdade que, num domínio tão melindroso como este, a concessão à Administração de poderes vinculados (como resulta, em larga medida, da legislação actualmente em vigor) pode, em tese geral, ser entendida como a solução que conferirá melhores garantias aos funcionários públicos, tal não significa que, na determinação, pela Administração, do pessoal disponível não possam ser compatíveis com as garantias constitucionais soluções que lhe confiram uma certa margem de discricionariedade e de livre apreciação, designadamente quando o recurso, na lei, a tais conceitos jurídicos indeterminados não pressuponha uma rotura face ao que, pelo lastro legislativo e jurisprudencial antecedente, possa com segurança ser entendido como sendo a sua densificação normativa determinada (cf. sobre os conceitos indeterminados que se hajam convertido em determinados, Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual, cit., p. 121).
Ponto incontornável, contudo, é que o recurso a conceitos jurídicos indeterminados, mesmo do tipo classificatório (cf., sobre esta qualificação. R.
Ehrardt Soares, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955, p. 237), como fundamento de uma actuação discrionária da Administração, possa ter por suporte regras legais donde conste um mínimo de critérios objectivos que balizem a própria margem de liberdade de escolha da Administração, em termos de conferirem aos cidadãos um quadro legal claro e seguro quanto à previsibilidade das opções da Administração e de simultaneamente fornecerem aos tribunais elementos objectivos suficientes para emitirem um juízo seguro acerca da legalidade das decisões administrativas que em cada caso levaram à identificação de pessoal disponível.
Ora, são precisamente estas duas vertentes do grau de exigência de determinabilidade e precisão das leis, decorrentes da conjugação dos artigos 2.º e 18.º, n.º 3, por referência ao artigo 53.º, todos da Constituição, que as normas do artigo 2.º, n.º 6, do artigo 3.º, n.º 1, parte final, e do n.º 2 do artigo 3.º não satisfazem, pelo que são passíveis de censura jurídico-constitucional.
5.3 - Já quanto ao artigo 5.º do decreto, não se afigura ao Tribunal que o mesmo viole os aludidos princípios constitucionais. Com efeito, do que aqui se trata é de regular a transferência, para os quadros de outros serviços ou organismos, do pessoal considerado disponível, prevendo-se que as medidas de reestruturação e de racionalização a que alude o n.º 1 do artigo 2.º deverão ser conciliadas com a identificação e satisfação das necessidades de pessoal de outros serviço ou organismos (n.º 1), contemplando a forma de intervenção da DGAP nesse processo (n.º 2), a responsabilidade pelo pagamento dos vencimentos do pessoal em causa na pendência da transferência (n.º 3) e a caracterização dessa transferência - feita por urgente conveniência de serviço, podendo ser precedida de reclassificação profissional - (n.º 4), regras estas que devem ter-se por tributárias do regime geral de transferência de funcionários, constante do artigo 25.º do Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro, pelo que a esse regime haverá que recorrer para cabal preenchimento do âmbito de previsão e aplicação do artigo 5.º do decreto em apreço.
Assim sendo, este preceito não merece censura nem à luz do princípio da precisão ou determinabilidade das leis nem à luz do princípio da segurança no emprego (pois do que se trata, precisamente, é da reafectação do pessoal considerado disponível para prosseguir a sua actividade profissional).
A este juízo não obsta a circunstância de o mesmo se aplicar ao pessoal considerado como disponível em função das normas em relação às quais o Tribunal antecedentemente emitiu uma pronúncia num sentido de inconstitucionalidade, pois bastará que as aludidas regras venham a ser definidas em conformidade com a Constituição para que nenhuma sequela «por arrastamento» quanto àquela inconstitucionalidade subsista no âmbito de aplicação deste artigo 5.º 5.4 - De igual forma os artigos 11.º e 13.º não merecem censura quando cotejados com os princípios da determinabilidade das leis e da segurança no emprego.
Com efeito, o artigo 11.º limita-se a dispor que os funcionários e agentes que não forem transferidos e que não tenham optado pelas medidas de descongestionamento a que se referem os artigos 6.º a 10.º do diploma serão integrados no QEI (n.º 1), prevendo-se no seu n.º. 2 que em cada Região Autónoma será criado um QEI por diploma (regional) de adaptação do regime deste decreto às especificidades regionais, nos termos do n.º 3 do artigo 1.º, e o artigo 13.º estipula que só serão integrados no QEI os funcionários dos quadros dos serviços e organismos da administração central abrangidos pelo âmbito de aplicação do presente diploma [alínea a)] e os agentes com contrato administrativo de provimento que desempenham funções nos mesmos serviços ou organismos há mais de um ano ininterrupto [alínea b)].
As normas em causa não violam autonomamente a garantia da segurança no emprego pelas razões já atrás adiantadas e do seu articulado resultam regras claras e precisas que não sofrem de mácula do ponto de vista da Constituição.
6 - Nestes termos, o Tribunal entende dever pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma que se extrai da conjugação da parte final do n.º 1 do artigo 3.º, do n.º 2 do mesmo artigo 3.º e do n.º 6 do artigo 2.º do decreto, por violação do princípio da determinabilidade e da precisão das leis, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 3, e por referência ao artigo 53.º, todos da Constituição.
D - A questão da conformidade constitucional dos artigos 2.º, 3.º e 6.º, n.º
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1 - No n.º 3 do seu requerimento, o Presidente da República questiona a conformidade constitucional do espaço de discricionariedade dado à Administração na identificação de pessoal disponível, designadamente nos artigos 2.º, 3.º e 6.º, n.º 1, do decreto, por violação do princípio da reserva de lei e da segurança no emprego.Quanto aos artigos 2.º e 3.º, já anteriormente se assinalou a íntima ligação entre o princípio da reserva de lei e o princípio da precisão e determinabilidade das leis, pelo que verdadeiramente as questões a analisar nesta sede não possuem autonomia face ao que atrás se deixou dito.
Visto o princípio da reserva de lei em sentido formal, movemo-nos num domínio de matérias sujeito a reserva de lei, quer porque se trata de legislar em termos de restrição de direitos, liberdades e garantias, quer porque se versam matérias que relevam das competências reservadas ao Parlamento nos termos da alínea v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição («bases do regime e âmbito da função pública»), pelo que a emissão do decreto em apreço se funda na autorização legislativa constante do artigo 5.º da Lei 2/92, de 9 de Março. Neste quadro, o diploma em apreço legisla sobre bases e é simultaneamente normação de desenvolvimento em acto legislativo, respeitando, neste particular, as exigências formais do princípio da reserva de lei.
Mas, como facilmente se compreende, neste ponto o que o Presidente da República suscita é a questão da observância do princípio da reserva de lei em sentido material.
A doutrina tem-se debruçado sobre esta temática com diferentes enfoques, podendo ver-se, especialmente, Jorge Miranda («O regime dos direitos, liberdades e garantias», in Estudos sobre a Constituição, Lisboa, 1979, vol. 3.º, pp. 41 e segs.), Gomes Canotilho (Direito Constitucional, Coimbra, 1991, pp.
798 e segs.) e Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 327 e segs.).
A questão é equacionada nos seguintes termos por Vieira de Andrade (op. cit., p. 327): [...] A conformidade à lei implica que ao legislador não é permitido deixar, em concreto, à discricionariedade administrativa a definição dos limites dos direitos, liberdades e garantias.
Mas, poderá esta especial vinculação à lei ser levada ao ponto de se considerar inconstitucional a concessão de poderes discricionários à Administração neste domínio? A questão não é susceptível de ser respondida com um simples «sim» ou «não». Tudo depende, por um lado, dos direitos em causa e, relativamente a cada um deles, da zona de protecção ameaçada; por outro lado o problema coloca-se em termos diferentes, conforme se trate de uma actividade administrativa protectora, regulamentadora ou limitadora direitos fundamentais (ou mista); por último, não pode esquecer-se que a discricionariedade não significa, hoje, livre-arbítrio administrativo, tem também os seus limites, mais ou menos intensos, e que a questão é de grau de vinculação.
Pensamos que da reserva de lei decorre a necessidade de autorização legal da actuação administrativa e que esta vinculação positiva deve, em princípio, precisar, além do órgão competente e do fim, o conteúdo e a forma do acto susceptível de pôr em causa o exercício de um direito, liberdade ou garantia.
Os termos concretos da intervenção administrativa nesta matéria devem, portanto, constar da lei e não é legítimo que dependam de um juízo de oportunidade e conveniência da própria autoridade administrativa não previsível ou mensurável pelos particulares nem controlável (senão negativamente) pelos tribunais. Por outras palavras, a actividade administrativa neste domínio é, em princípio, de execução vinculada.
Por seu turno, Gomes Canotilho (op. cit., p. 805), equaciona a mesma questão nos seguintes termos:
Recolhendo uma terminologia agora corrente na doutrina, às autoridades administrativas reconhece-se um poder discrionário de decisão (Entscheidungsermeressen) e um poder discricionário de escolha (Auswahlermenessen). Significa isto que a Administração pode, numa questão, atribuir certos efeitos jurídicos, legalmente previstos mas não prescritos (exemplo: saber, ou decidir, nos termos da lei, se uma manifestação perturba o trânsito) ou escolher, dentro de várias medidas legítimas, qual a que lhe parece mais adequada. É um poder discricionário que diz respeito aos resultados jurídicos de uma norma. Todavia, já quanto à fixação dos pressupostos de facto (Tatbestandseit) e não simples [estatuição] (Rechtsfolgeseite) é inadmissível um poder discricionário da Administração.
Abordando a mesma temática, Sérvulo Correia (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, cit., pp. 338 e segs.) entende que a questão «do nível de discricionariedade admissível» é condicionada pela natureza da função sobre que incide, segundo o princípio de que «em matéria de reserva de acto legislativo, à concessão de discricionariedade deve presidir o critério da densificação da norma na medida do possível e da sua abertura para o mínimo incomprimível de margem de livre decisão» (op. cit., p. 340).
Movendo-se no quadro de um método tópico, o autor toma como ponto de partida os fundamentos da reserva de lei (a função garantística, a função de indirizzo e a função da salvaguarda da prossecução do interesse público e da racionalidade administrativa) e sublinha que «outro critério que porventura poderá colher alguns frutos será o de estabelecer um paralelismo, no âmbito das matérias sob reserva de acto legislativo, entre o grau permitido de regulamentação executiva e o de execução da lei através de actos administrativos no exercício de poderes discricionários», para concluir que, «definido um imperativo de densidade, provenha ele da reserva geral de norma jurídica ou da reserva de acto legislativo, a consequência é a da inconstitucionalidade do preceito que conceda poderes discricionários que não respeitem os mínimos exigíveis de determinabilidade dos efeitos de direito e dos pressupostos» (op. cit., p. 340).
Feita esta breve digressão por algumas das mais significativas posições doutrinárias e estabelecido, a final, o nexo entre a relevância do princípio da reserva de lei e o princípio da determinabilidade ou precisão das leis, fácil se torna concluir que o «espaço de discricionariedade» deixado à Administração pela imprecisão e vacuidade dos critérios de selecção do pessoal disponível, constantes do n.º 6 do artigo 2.º, da parte final do n.º 1 do artigo 3.º e do n.º 2 do mesmo artigo 3.º, conduz de igual forma à censura constitucional dos aludidos preceitos também na óptica do princípio da reserva de lei em sentido material, precisamente pelos fundamentos atrás aduzidos quando da análise da observância do princípio da precisão ou determinabilidade das leis.
De igual forma, o Tribunal entende que os demais preceitos daqueles dois artigos não merecem censura no enfoque do princípio da reserva de lei por razões paralelas às que os isentaram de tal censura quando vistos na perspectiva do princípio da precisão ou da determinabilidade das leis.
2 - Situação diversa é a do n.º 1 do artigo 6.º do decreto, que só vem questionado pelo requerente à luz do princípio da reserva de lei (cotejado com o princípio da segurança no emprego).
Neste preceito prevê-se que o pessoal considerado disponível, nos termos do artigo 3.º, possa optar por medidas excepcionais de descongestionamento (aposentação voluntária, pré-aposentação, desvinculação da função pública, mediante indemnização, e licença sem vencimento, por tempo indeterminado), desde que integrado nas categorias e carreiras a fixar por despacho do Ministro das Finanças.
Assim sendo, no fundo o que preceito determina é que, em função da especial sobrecarga de pessoal em determinadas categorias ou carreiras, cuja reintegração na actividade se afigure, por isso, particularmente difícil, o Ministro das Finanças, por despacho genérico, possa «abrir» a esses funcionários a via de soluções enunciadas nas diferentes alíneas do n.º 1 da norma em apreço.
Compreende-se que a tipificação das categorias e carreiras que integrarão o pessoal autorizado a optar por estas medidas excepcionais de descongestionamento só possa ocorrer em momento posterior ao da determinação do universo de pessoal disponível existente na Administração, solução que decorre da necessidade de tomar opções quanto à forma de gestão e de afectação do pessoal disponível, tanto mais relevante quanto se passa a prever uma forma de gestão centralizada desse pessoal.
Tudo consiste, pois, em saber se a estatuição legal se deve ter por suficiente face aos valores que estão em jogo e às consequências decorrentes da decisão que cabe ao Ministro das Finanças tomar.
O pessoal que vier a ser considerado como disponível tem, nos termos do artigo 4.º, um dos seguintes destinos: ou é transferido para o quadro de outros serviços ou organismos públicos, ou opta pelas medidas de descongestionamento previstas no artigo em análise ou ingressa no QEI.
A transferência é figura nitidamente encarada como preferencial na economia do diploma, como resulta do n.º 1 do artigo 5.º, onde se impõe a conciliação das medidas previstas no n.º 1 do artigo 2.º com a identificação e satisfação das necessidades de pessoal de outros serviços ou organismos públicos.
Caso não tenha lugar essa transferência, o pessoal considerado disponível teria como destino inelutável a integração no QEI, onde, permanecendo durante 12 meses na situação de disponibilidade, acabaria por poder optar, nos termos do artigo 22.º do decreto, pelos mecanismos de descongestionamento previstos nos artigos 6.º a 10.º do mesmo diploma.
Ora, as medidas excepcionais de descongestionamento referidas neste artigo 6.º, nas carreiras e categorias que o Ministro fixar, acabam por ser uma antecipação, por um ano, de um direito que assistiria ao funcionário disponível que fosse integrado no QEI e nele permanecesse durante 12 meses na situação de disponibilidade.
Neste contexto, pode-se afirmar que o princípio da reserva de lei em sentido material exige que a volição primária conste de acto legislativo, o que efectivamente parece suceder. É a lei (o decreto em apreço) que determina quais as medidas de descongestionamento, em que é que elas consistem e quais os pressupostos para a opção dos funcionários.
É também a lei que determina o universo de pessoal a que tais medidas se aplicam, os funcionários e agentes que tenham sido identificados como disponíveis, nos termos do artigo 3.º do decreto, cuja formulação há-de corresponder ao constitucionalmente exigido.
O que é deixado à Administração, nesta sede, é tão-somente a definição das categorias e carreiras onde a opção do trabalhador pelas medidas de descongestionamento pode constituir uma alternativa, voluntariamente assumida, à integração pura e simples no QEI.
Trata-se, por isso, de uma pluralização das vias de resposta, que são facultadas aos funcionários e agentes, à situação de serem colocados na disponibilidade e integrados no QEI.
Neste contexto, e porque se refere a uma opção voluntária do trabalhador, não se vislumbra que a solução em causa contenda com o princípio da segurança no emprego.
De igual forma, a margem de decisão deixada à Administração, e consubstanciada na determinação em concreto das carreiras e categorias onde a opção voluntária dos disponíveis pode anteceder a inelutável integração no QEI, deve ter-se por constitucionalmente admissível, por que compreendida na liberdade de conformação da gestão de recursos humanos que assiste ao Governo enquanto órgão superior da Administração Pública.
3 - Nestes termos, o Tribunal pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma que se extrai do n.º 6 do artigo 2.º conjugado com a parte final do n.º 1 do artigo 3.º e com o n.º 2 do mesmo artigo 3.º, por violação do princípio da reserva de lei, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 18.º, n.º 3, por referência ao artigo 53.º, todos da Constituição.
O Tribunal decide ainda não se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 6.º do decreto quando confrontada com o princípio da reserva de lei e da segurança no emprego.
E - A questão da conformidade constitucional dos artigos 2.º, n.º 2, e 28.º,
n.º 3
1 - O Presidente da República suscita a questão da desconformidade constitucional do disposto no n.º 2 do artigo 2.º e no n.º 3 do artigo 28.º do decreto em apreço, quando confrontados com o princípio da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático e com o princípio da segurança no emprego (n.º 5 do pedido).Considerando o primeiro daqueles preceitos, nele se dispõe que o pessoal que se encontre de licença, nos termos do artigo 78.º do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro, será considerado disponível no caso de todos os lugares da respectiva categoria terem sido extintos ao abrigo das medidas de reestruturação e racionalização da Administração previstas no n.º 1 do mesmo artigo 2.º A questão de constitucionalidade colocada pelo Presidente da República reconduz-se, assim, a saber se esta solução afecta a garantia de segurança no emprego e se onera de modo intolerável as expectativas dos funcionários que estejam de licença, nas modalidades previstas no artigo 78.º do Decreto-Lei 497/88.
Sobre o princípio da protecção da confiança escreveu-se no Acórdão 287/90 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 20 de Fevereiro de 1990):
A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:
a) Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
Os dois critérios completam-se, como é, de resto, sugerido pelo regime dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na «onerosidade», isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade da vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.
Não há, com efeito, um direito à não frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradouras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime de casamento, de arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes.
Igualmente no Acórdão 303/90 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Dezembro de 1990), o Tribunal teve ocasião de afirmar que no princípio do Estado de direito democrático está, «entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.
Por isso, a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica [cf. Acórdãos da Comissão Constitucional n.os 463 e 437, de 13 de Janeiro de 1983 e 26 de Janeiro de 1982 (apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983), 78 (ibid., de 23 de Agosto de 1983) e 133 (o primeiro também no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 314, p. 141), parecer da mesma Comissão n.º 27/79 (Pareceres da Comissão Constitucional, 9.º vol., p. 115) e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 11/83, 10/84, 17/84, 86/84, 89/84 e 93/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º vol., p. 11, 2.º vol., p. 285, ibid., p. 375, 4.º vol., p. 253, ibid., p. 153)].
Consoante se referiu no dito Acórdão deste Tribunal n.º 17/84, 'o cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado levará a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas. [...]'.
Daí que se possa falar em que os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor.
Mas se não obstante esse alcance normação posterior vier, acentuada ou patentemente, alterar o conteúdo dessas situações, é evidente que a confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico ficará fortemente abalada, frustrando a expectativa que detinham da anterior tutela conferida pelo 'direito' (cf. o citado Acórdão 86/84)».
Nestes termos, cumpre averiguar se o regime decorrente do n.º 2 do artigo 2.º do decreto produz uma frustração intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva de expectativas dos seus destinatários em molde a tê-lo por contrário ao princípio da protecção da confiança, enquanto corolário do princípio do Estado de direito democrático, o que passa, naturalmente, pela comparação deste regime com o que o antecede.
Nos termos do Decreto-Lei 497/88, o funcionário na situação de licença sem vencimento de longa duração só poderia regressar ao serviço ao fim de um ano nessa situação (artigo 82.º, n.º 1) e, no caso de a respectiva categoria haver sido, entretanto, revalorizada ou extinta, assistir-lhe-ia, em caso de regresso, o direito a ser integrado na categoria resultante da revalorização ou noutra categoria desde que equivalente à que possuia à data do início da licença (artigo 82.º, n.º 3).
Contudo, se durante a aludida licença tivesse ocorrido a reestruturação ou a extinção do serviço a que o funcionário em causa pertencia e se as atribuições desse serviço tivessem sido conferidas a um outro, então o regresso do funcionário para esse outro serviço dependia de uma apreciação prévia da necessidade de tal recrutamento de acordo com a política de gestão de efectivos (artigo 82.º, n.º 4).
Neste quadro, quando a extinção do serviço não desse lugar à transferência das respectivas atribuições para outro serviço ou quando o reingresso não pudesse ter lugar nos termos previstos nos n.os 3 e 4 atrás referenciados, então o funcionário podia reingressar na função pública mas na qualidade de excedente, tendo apenas o direito a perceber remuneração quando fosse colocado pelo serviço competente para a gestão de excedentes (artigo 82.º, n.º 5), mantendo-se, enquanto se encontrasse a aguardar vaga ou colocação nos termos daquele n.º 5 na situação de licença sem vencimento (artigo 82.º, n.º 6).
De acordo com o diploma ora em apreço, os funcionários que se encontrem de licença sem vencimento de duração prolongada, nos termos do artigo 78.º do Decreto-Lei 497/88 e que venham a ser considerados disponíveis nos termos do n.º 2 do artigo 2.º do decreto não parecem ficar impossibilitados de continuar na situação em que anteriormente se encontravam, uma vez que, de acordo com o disposto na alínea d) do artigo 17.º do decreto, o pessoal integrado no QEI, e durante o tempo em que aí se mantiver, pode «encontrar-se numa das situações de licença consagradas na legislação sobre férias, faltas e licenças aplicável à função pública, em geral, ou na prevista no artigo 10.º do presente decreto-lei, sem prejuízo, neste último caso, do condicionalismo estabelecido no artigo 22.º».
Donde resulta que se no regime em vigor o funcionário que se encontrasse na situação de licença sem vencimento de longa duração e cuja categoria fosse extinta, caso não pudesse regressar ao serviço em categoria equivalente à que possuía no início dessa licença, sempre teria de regressar na qualidade de excedente (situação que, no decreto em apreço, é considerada como «disponível»), então, à face do regime previsto no decreto em apreço, o regresso na qualidade de disponível no caso de serem extintos todos os lugares da respectiva categoria não pode ser tido como introduzindo uma modificação onerosa do seu estatuto que frustre expectativas legítimas alicerçadas no regime antecedente.
Do exposto ressalta que não se podem ter por violados nem o princípio da confiança nem o princípio da segurança no emprego por força do regime aplicável aos funcionários em licença sem vencimento de longa duração nos termos e condições previstos no n.º 2 do artigo 2.º do decreto.
2 - Quanto à norma do artigo 28.º, n.º 3, ela reporta-se à contagem do tempo de serviço na situação de disponibilidade dos funcionários e agentes que se encontrassem nos QEIs criados pela legislação anterior e que resulta revogada do artigo 29.º do decreto em apreço.
Com efeito, em virtude do preceito em análise, o tempo de disponibilidade decorrido ao abrigo de situações constituídas no domínio do Decreto-Lei 43/84 relevará para efeitos de aposentação obrigatória do pessoal integrado nos anteriores QEIs que venha a ser integrado no novo QEI centralizado a que alude o artigo 11.º do projecto.
O artigo 21.º, n.º 1, do decreto dispõe que «será obrigatoriamente aposentado sem submissão a junta médica o pessoal do QEI que possua mais de 20 anos de serviço, independentemente da idade, e permaneça na situação de disponibilidade durante dois anos seguidos ou três interpolados».
A questão de constitucionalidade suscitada pelo Presidente da República implica, pois, que se apure se a contagem do tempo de serviço na disponibilidade decorrente da integração do pessoal nos anteriores QEIs, ao relevar para a aposentação obrigatória, constitui uma oneração inadmissível dos direitos e expectativas desse pessoal.
Nos termos do regime anterior, o pessoal (excedente) que integrasse os QEIs seria obrigatoriamente aposentado desde que reunisse os requisitos constantes do n.º 1 do artigo 34.º, do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro, e cumulativamente se encontrasse na situação de disponibilidade há mais de dois anos seguidos ou interpolados, aposentação obrigatória essa que se verificaria sem qualquer bonificação.
O n.º 1 do artigo 34.º do referido Decreto-Lei 41/84, dispunha que poderiam aposentar-se, por sua iniciativa e independentemente de submissão a junta médica, os funcionários e agentes que contassem mais de 60 anos de idade e 20 anos de serviço [alínea a)] ou que reunissem 30 anos de serviço independentemente da idade [alínea b)].
Assim, nesse regime, os excedentes, integrados nos QEIs, que tivessem mais de 60 anos de idade e 20 anos de serviço ou mais de 30 anos de serviço, neste caso independentemente da respectiva idade, e, além disso, se encontrassem na situação de disponibilidade há mais de dois anos seguidos ou interpolados seriam aposentados obrigatoriamente, com uma pensão correspondente aos anos de serviço que nessa altura contassem, ou seja, sem direito a qualquer bonificação.
O decreto em apreço altera estas condições, prescindindo de qualquer critério quanto à idade e fazendo depender apenas do requisito do tempo de serviço (20 anos) a produção do efeito obrigatório da aposentação, desde que o disponível se encontre nessa situação há mais de dois anos seguidos ou três interpolados.
Independentemente de qualquer juízo que se pudesse eventualmente fazer em função dos reflexos neste preceito do disposto no artigo 21.º do decreto, de que não cabe agora aqui curar em função do pedido, o que está em causa é tão-somente saber se para o fim previsto, o da aposentação obrigatória, e qualquer que seja o seu concreto regime normativo, a contagem do tempo de disponibilidade verificado ao abrigo da legislação anterior ofende onerosamente e de forma insustentável ou inadmissível as expectativas do pessoal abrangido pelo âmbito de previsão normativa do n.º 3 do artigo 28.º O Tribunal entende que não há ofensa do princípio da confiança cotejado com o princípio da segurança no emprego.
Com efeito, o que está em jogo nesta norma é apenas dar um destino ao pessoal excedente à luz do regime anterior, que é revogado pelo presente diploma. E para esse pessoal, integrado nos anteriores QEIs, perfilava-se já no seu horizonte profissional que o tempo de permanência nessa situação contasse para efeitos de aposentação obrigatória.
O relevo conferido, para tal fim, àquele tempo de disponibilidade constituído e contado ao abrigo da legislação revoganda, tomado apenas enquanto tal, e mesmo que configure uma situação de retroactividade imprópria ou retrospectividade, não se pode ter como desconforme à lei fundamental, porquanto não se afigura nem intolerável, nem arbitrário nem excessivamente oneroso em termos de afectação das expectativas dos aludidos funcionários e agentes.
Dito isto, não se ignora que os concretos condicionalismos em que opera a aposentação obrigatória são também alterados pelo artigo 21.º do decreto em apreço (em termos de maior oneração quanto aos pressupostos de idade e tempo de serviço e em termos mais favoráveis quanto ao número de anos interpolados na disponibilidade e quanto à previsão de uma bonificação de 20%), mas, como já se disse, não é a propósito do artigo 28.º, n.º 3, na específica dimensão questionada pelo Presidente da República, que caberá apreciar a legitimidade constitucional dessa alteração.
3 - Nestes termos, o Tribunal entende não dever pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas do n.º 2 do artigo 2.º e do n.º 3 do artigo 28.º do decreto em apreço, quando confrontadas com o princípio da protecção da confiança e da segurança no emprego.
F - A questão da inconstitucionalidade consequencial de outros artigos
1 - O Presidente da República entende que a verificar-se violação dos princípios da precisão ou determinabilidade das leis, da segurança no emprego e da reserva de lei, a invalidade dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, n.º 1, 11.º e 13.º «comunicar-se-á, de forma consequencial, a todas as normas do projecto de diploma em apreço que não assentem numa base contratual».
Contudo, um tal pedido improcede porquanto as coisas não têm de passar-se assim, ao menos em princípio, em sede de fiscalização preventiva.
Com efeito, pronunciando-se o Tribunal Constitucional pela inconstitucionalidade de normas nesta sede, está o Presidente da República vinculado a tal pronúncia em termos de exercício do correspondente veto, nos termos do artigo 279.º, n.º 1, da Constituição, devolvendo o diploma ao órgão que o tiver aprovado, para efeitos de expurgo ou reformulação das normas consideradas inconstitucionais (artigo 279.º, n.os 2 e 3).
Sendo este o procedimento constitucionalmente previsto, carece de sentido a identificação de «inconstitucionalidades consequenciais» porquanto tal procedimento não teria nenhum efeito útil no que concerne a um processo legislativo em que sobreveio uma pronúncia de inconstitucionalidade em sede de fiscalização preventiva.
É que o ulterior expurgo ou reformulação, consoante for a opção do órgão autor do diploma, das normas em crise, em termos constitucionalmente adequados, convalidará, por si só, o regime das demais normas do decreto em apreço na parte em que poderiam padecer de qualquer vício que lhes houvesse sido «comunicado» pelas normas que, neste momento, se mostram desconformes à Constituição.
2 - Pelo que o Tribunal entende não ter lugar, neste momento e nesta sede, qualquer pronúncia acerca da inconstitucionalidade consequencial de outras normas do decreto em apreço.
G - A questão da inconstitucionalidade orgânica de todas as normas do
decreto, por vício do procedimento legislativo da Lei 2/92.
1 - Neste ponto do pedido (n.º 6) o Presidente da República coloca dúvidas sobre o procedimento legislativo que conduziu à aprovação das normas contidas no artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei 2/92, de 9 de Março, na medida em que, versando sobre legislação do trabalho, tais normas não tenham sido sujeitas a apreciação pública, nos termos do disposto nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, o que, «a verificar-se, configurará inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento legislativo, a qual não deixará de afectar, de forma derivada ou reflexa, todas as normas do projecto de decreto-lei em questão».
Já atrás, quando da apreciação da terceira questão prévia suscitada pelo Primeiro-Ministro (cf. supra, II, C) se equacionou a presente problemática, bem como os termos e o alcance da sua relevância no quadro deste processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Para sua apreciação importa ter em linha de conta que o primitivo relator do processo, antes mesmo da resposta do Primeiro-Ministro, havia determinado que se oficiasse ao Presidente da Assembleia da República para que este informasse se tinha sido feita qualquer consulta pública a propósito na norma do artigo 5.º da Lei 2/92.
Em 26 de Junho de 1992, o Presidente da Assembleia da República enviou um ofício, que se encontra junto aos autos, onde se referia, na parte que ora interessa, que «a Assembleia da República promoveu, em cumprimento do disposto nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, a apreciação pública prévia do artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei 2/92, tendo, para o efeito, consultado as seguintes entidades:
Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado;
Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local;
Comissão Negociadora Sindical da Função Pública;
FESAP.».
O Primeiro-Ministro, na sua resposta, fez juntar também cópia dos ofícios dirigidos pelo Presidente da Assembleia da República às referidas entidades.
2 - Tem o Tribunal entendido, embora com votos de vencido, que as leis de autorização legislativa estão sujeitas à audição prévia prevista nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
Sem embargo, aos dados da questão ora em causa importa acrescentar que o decreto em apreço, no seu preâmbulo, refere que «o presente diploma foi, nos termos do Decreto-Lei 45-A/84, de 3 de Fevereiro, antecedido de audição das organizações sindicais».
Ora, assim sendo, e sem prejuízo do que o Tribunal tem afirmado quanto à audição pública referente a normas contidas em autorizações legislativas, tendo o diploma autorizado sido submetido a apreciação prévia pelas organizações sindicais, será de concluir que o desiderato substantivo do disposto nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, no que à matéria em causa se refere, se encontra plenamente consumido pela audição promovida pelo Governo quanto ao decreto ora em análise, pelo que neste momento desnecessário se torna já apurar os termos e o alcance da audição relacionada com a lei de autorização legislativa, a Lei 2/92, de 9 de Março.
3 - Tanto basta, pois, para que o Tribunal não se pronuncie pela inconstitucionalidade das normas do decreto em apreço quando equacionadas à luz dos requisitos dos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), ambos da Constituição.
H - A questão da conformidade constitucional dos artigos 6.º, n.º 1, alínea
b), 8.º e 21.º do decreto face ao artigo 5.º da Lei 2/92.
1 - A Lei 2/92, de 9 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 1992, contém, no seu artigo 5.º, sob a epígrafe «Regime jurídico», um preceito cujo n.º 1 se transcreve por ser o que releva como parâmetro da questão a seu respeito levantada pelo Presidente da República:
1 - Prosseguindo na via de aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública, fica o Governo autorizado a legislar no sentido de:
a) Rever os critérios de constituição e o regime jurídico dos excedentes, o seu estatuto e o respectivo sistema de gestão para, através da sua racionalização, diversificação e gestão centralizada, se assegurar um melhor aproveitamento do pessoal e o mais largo espectro possível de saídas profissionais;
b) Definir mecanismos selectivos de descongestionamento da função pública, por iniciativa do trabalhador, mediante a alteração do sistema de licenças, o pagamento de indemnizações e a alteração do limite de idade para aposentação.
O requerente entende que as normas dos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), 8.º e 21.º do decreto em apreço parecem não respeitar o âmbito da autorização legislativa contida no transcrito artigo 5.º da Lei 2/92, pelo que estariam em desconformidade com o disposto na alínea v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.
As normas em causa versam sobre a pré-aposentação enquanto medida excepcional de descongestionamento [artigo 6.º, n.º 1, alínea b)] e sobre o seu regime jurídico (artigo 8.º) e ainda sobre a aposentação obrigatória (artigo 21.º).
2 - Nesta sede, o que está em causa é saber em que medida é que a norma autorizatória contempla, no seu objecto, extensão e sentido, o regime jurídico da pré-aposentação contido nas disposições conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 8.º do decreto em apreço e a alteração do regime da aposentação obrigatória do pessoal considerado como disponível, contido no artigo 21.º do diploma sub judice.
Na sua resposta, o Primeiro-Ministro entende que os normativos em causa encontram fundamento habilitador bastante na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 2/92, porque «os três preceitos em causa referem-se expressamente ao pessoal disponível, estabelecendo os contornos da respectiva posição jurídica a Administração: ou seja, o seu regime jurídico». Acrescentando que «a presente dúvida apenas poderia radicar um entendimento precipitado que infundadamente reconduzisse estas matérias ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 2/92. Mas já se percebeu que não é assim.
As diversas alíneas que integram o n.º 1 desse artigo 5.º referem-se a (e autorizam) intervenções legislativas autónomas entre si. Esta conclusão decorre, com imparável limpidez, da contraposição entre a alínea a) e as demais alíneas. E mesmo a eventual conexão entre as alíneas a) e b) não pode, sob pena de ineliminável contradição, infirmar tal conclusão» (sublinhados no original).
Finalmente, o Primeiro-Ministro afirma que, «muito embora se imponha o reconhecimento de que, a ser necessária autorização legislativa, esta existe e foi correctamente executada, é questionável a inclusão desta matéria - dispositivos específicos relacionados com a aposentação - na reserva de lei da Assembleia da República» (sublinhados no original).
3 - Considerando por ora apenas o caso da pré-aposentação, resulta da alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 2/92 que o Governo ficou habilitado a legislar sobre «mecanismos selectivos de descongestionamento da função pública, por iniciativa do trabalhador», os quais compreendem a «alteração do sistema de licenças, o pagamento de indemnizações e a alteração do limite de idade para aposentação».
Na economia do decreto em apreço torna-se claro que a pré-aposentação, de par com a aposentação voluntária, a desvinculação da função pública, mediante indemnização, e a licença sem vencimento por tempo indeterminado constituem, nos termos da epígrafe e do corpo do n.º 1 do artigo 6.º, «medidas excepcionais de descongestionamento da função pública», pelo que será de entender que, embora a situação da pré-aposentação, de todo em todo inovatória, não venha expressamente prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º da lei de autorização, ela deve ter-se por compreendida no âmbito e sentido da autorização contida no citado preceito, porquanto, além de ser reconduzível, como se viu, ao conceito amplo de «mecanismos selectivos de descongestionamento da função pública», ela traduz-se em soluções jurídicas que, no seu essencial, podem ter-se por subsumíveis ao regime da aposentação voluntária, para cuja regulação a aludida alínea b) constitui instrumento habilitador bastante.
Pelo que, em resposta ao requerido pelo Presidente da República quanto à questão da inconstitucionalidade orgânica dos preceitos acabados de apreciar, o Tribunal conclui que as normas dos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 8.º do decreto em apreço não extravasam o sentido da autorização legislativa contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 2/92, de 9 de Março.
4 - Quanto ao artigo 21.º, o Presidente da República suscita também, e apenas, a questão da sua inconstitucionalidade orgânica, pelo que só desta, nesta sede e neste momento, se irá efectivamente tratar, o mesmo é dizer que cumpre ao Tribunal em primeira linha apurar se a norma do citado artigo 5.º da Lei 2/92 habilitava o Governo a modificar elementos essenciais do regime de aposentação obrigatória do pessoal considerado disponível.
A argumentação do Primeiro-Ministro, na sua resposta, a este respeito, assenta, no essencial, na ideia de que o título habilitador para emissão da norma do artigo 21.º não será a alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 2/92, mas sim a alínea a) do mesmo preceito, na parte em que autoriza o Governo a legislar sobre o «estatuto» dos excedentes.
Mas esta argumentação não procede.
Com efeito, a autorização contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 2/92, abrangendo «o regime jurídico dos excedentes, o seu estatuto e o respectivo sistema de gestão», subordina-se, no seu conjunto, à finalidade consagrada na parte final do preceito, a saber, «assegurar um melhor aproveitamento do pessoal e o mais largo espectro possível de saídas profissionais». Ora, não parece crível que em tais finalidades se possa incluir a «aposentação obrigatória», de que cura o artigo 21.º E tanto é assim que o legislador da Lei 2/92 curou de tratar autonomamente, na alínea b) do mesmo preceito, daquelas situações que, pela sua específica natureza, devem ser entendidas como «extravasando» o sentido da autorização contida na precedente alínea a), nela contemplando, entre outros, um título habilitador específico para a aposentação voluntária, que assim não foi tida como elemento intrínseco do «estatuto» dos disponíveis, com o alcance que a este conceito se pode dar em função da formulação da alínea a). Ora, se a «aposentação voluntária» não se pode ter por compreendida no aludido conceito de «estatuto», muito menos o poderá ser a «aposentação obrigatória».
Pelo que será de entender que o legislador governamental carecia de habilitação para regular o regime da aposentação obrigatória dos disponíveis.
5 - Mas, assim sendo, cumpre analisar o argumento que, a título de obiter dictum, o Primeiro-Ministro invoca na sua resposta, ou seja, o de que «é questionável a inclusão desta matéria - dispositivos específicos relacionados com a aposentação - na reserva de lei da Assembleia da República».
Na realidade, a reserva de competência parlamentar em primeira linha chamada à colação pelo Presidente da República é a consagrada na alínea v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, referente «às bases do regime e âmbito da função pública».
Como é sabido, a «reserva de bases» não equivale a uma reserva de regime jurídico e, embora não sendo, de facto, pacífica a determinação das matérias que, em cada caso, hão-de ter-se por compreendidas no conceito de «bases», sempre será de entender que essa reserva de «bases» representa uma dimensão normativa, em extensão, inferior à da reserva integral das volições primárias compreendidas num regime jurídico de matérias constantes do elenco do artigo 168.º da Constituição.
A este propósito escrevem Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., Coimbra, 1985, pp. 197-198:
O alcance da reserva de competência legislativa da AR não é idêntico em todas as matérias. Importa distinguir três níveis:
a) um nível mais exigente, em que toda a regulamentação legislativa da matéria é reservada a AR - é o que ocorre na maior parte das alíneas [do artigo 168.º da Constituição];
b) um nível menos exigente, em que a reserva da AR se limita ao regime geral [alíneas d), e), h) e p) (na numeração decorrente da revisão constitucional de 1982)], ou seja, em que compete à AR definir o regime comum ou normal da matéria, sem prejuízo, todavia, de regimes especiais, que podem ser definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas Assembleias Regionais);
c) finalmente, um terceiro nível, em que a competência da AR é reservada apenas no que concerne às bases gerais do regime jurídico da matéria [als. f), g), n) e u)].
O segundo e o terceiro níveis são bastante distintos, pelo menos quando considerados em abstracto: naquele, a AR deve definir todo o regime geral ou comum, sem prejuízo dos regimes especiais [...] enquanto no terceiro nível a AR apenas tem de definir as bases gerais, podendo deixar para o Governo o desenvolvimento legislativo do regime jurídico (do regime geral e dos especiais a que haja lugar). Não é fácil definir senão aproximadamente o que deve entender-se por bases gerais. Seguro é que deve ser a AR a tomar as opções político-legislativas fundamentais, não podendo limitar-se a simples normas de remissão ou normas praticamente em branco.
A solução da questão que ora apreciamos depende, assim, de saber se o preceito em causa (o artigo 21.º) comporta uma dimensão normativa susceptível de se integrar na categoria genérica de «bases» do regime e âmbito da função pública.
A resposta a esta questão há-de ser necessariamente afirmativa.
Com efeito, o artigo 21.º do decreto em apreço visa substituir a norma do artigo 16.º, n.º 2, do Decreto-Lei 43/84, que dispunha que «os excedentes que reúnam os requisitos constantes do n.º 1 do artigo 34.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro, e cumulativamente se encontrem na situação de disponibilidade há mais de dois anos, seguidos ou interpolados, serão obrigatoriamente aposentados, sem direito a bonificação».
Esta norma havia sido emitida no uso da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei 14/83, de 25 de Agosto, cujo artigo 1.º tinha a seguinte redacção:
Artigo 1.º
Objecto, sentido e extensão
1 - O Governo é autorizado a legislar:a) Em matéria referente ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de medidas de emprego da função pública e a uma adequada gestão dos seus recursos humanos, em particular o pleno aproveitamento dos excedentes e a sua efectiva mobilidade, podendo a aplicação de tais medidas ser alargada à administração local;
b) Em matéria referente ao descongestionamento e subsequente extinção do quadro geral de adidos, incluindo os excedentes constituídos ao abrigo do Decreto-Lei 294/76, de 24 de Abril, e legislação complementar.
2 - A autorização a que se refere a alínea a) do n.º 1 visa a reformulação da matéria contida nos Decretos-Leis n.os 164/82, 165/82, 166/82, 167/82, 168/82 e 171/82, todos de 10 de Maio, no sentido de obter uma melhor descentralização, racionalização, simplificação burocrática e desconcentração do aparelho administrativo do Estado.
3 - A autorização a que se refere a alínea b) do n.º 1 visa a adopção de medidas de aposentação obrigatória, quando for caso disso, e ainda medidas que abranjam os funcionários e agentes na situação de licença sem vencimento nos termos do artigo 28.º do Decreto-Lei 294/76.
Deste confronto resulta que a norma ora em apreço visa alterar, em elementos essenciais, o regime anteriormente vigente, o qual havia sido, por seu turno, emitido com base numa credencial parlamentar que expressamente identificava a especificidade do mecanismo da aposentação obrigatória.
Com efeito, o preceito ora em crise altera os pressupostos da aposentação obrigatória, substituindo o mecanismo alternativo previsto no Decreto-Lei 41/84 - mais de 60 anos de idade e 20 de serviço/30 anos de serviço independentemente da idade - por um mecanismo único de aposentação obrigatória aos 20 anos de serviço, alterando também os pressupostos quanto à duração da situação de disponibilidade para os vertentes efeitos - antes bastavam dois anos, seguidos ou interpolados; no sistema do decreto passarão a ser necessários os mesmos dois anos seguidos mas já três interpolados e finalmente aditando uma bonificação ao cálculo da pensão (de 20% sobre o quantitativo da pensão correspondente ao número de anos de serviço efectivamente prestados, até ao limite máximo da respectiva pensão).
Do exposto resulta que, em função da matéria em causa, a de cessação terminal e definitiva do vínculo laboral do pessoal disponível, da alteração do essencial dos seus pressupostos jurídicos e do aditamento de um princípio inovatório (o da bonificação) onde, na legislação revoganda, vigora um princípio de sinal oposto (o da ausência de bonificação), o Tribunal conclui que o preceito em causa reentra efectivamente no âmbito das «bases do regime e âmbito da função pública» sem que para tal se vislumbre credencial parlamentar bastante no artigo 5.º da Lei 2/92.
Pelo que o preceito do artigo 21.º do decreto viola o disposto na alínea v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, sendo, por isso, organicamente inconstitucional.
IV
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma que se extrai da conjugação do artigo 3.º, n.º 1, parte final, com o n.º 2 do mesmo artigo e o n.º 6 do artigo 2.º do decreto registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n.º 171/92, por violação dos princípios de determinabilidade da lei e da reserva de lei, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 18.º, n.º 3, por referência ao artigo 53.º, todos da Constituição;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 21.º do mesmo decreto, por violação do disposto na alínea v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição; c) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das demais normas do diploma em apreço.
Lisboa, 22 de Julho de 1992. - António Vitorino - Mário de Brito - Luís Nunes de Almeida - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Armindo Ribeiro Mendes - Antero Alves Monteiro Dinis - Vítor Nunes de Almeida [vencido quanto às alíneas a) e b) da decisão, conforme declaração de voto que junto] - Bravo Serra [vencido quanto às alíneas a) e b) da decisão pelo essencial das razões constantes da declaração de voto junta pelo primitivo relator, Exmo.
Conselheiro Vítor Nunes de Almeida] - Messias Bento [vencido quanto às alíneas a) e b) pelo essencial das razões aduzidas na declaração de voto do primitivo relator, Exmo. Conselheiro Vítor Nunes de Almeida] - Fernando Alves Correia [vencido quanto às alíneas a) e b) da decisão, pelo essencial dos fundamentos constantes da declaração de voto do primitivo relator, Exmo.
Conselheiro Vítor Nunes de Almeida] - José Manuel Cardoso da Costa (vencido quanto às alíneas a) e b) pelo essencial das razões aduzidas na declaração de voto do primitivo relator, Exmo. Conselheiro Vítor Nunes de Almeida) - [Tem voto de vencida da Sr.ª Conselheira Maria da Assunção Esteves quanto às alíneas a) e b) da decisão, a qual não assina por não estar presente. - António Vitorino].
Declaração de voto
Votei vencido quanto às alíneas a) e b) da decisão constante do acórdão tirado nos presentes autos essencialmente pelos fundamentos que constavam do projecto de acórdão que, como relator, apresentei e que passo a expor.
A) A norma relativa aos critérios materiais mínimos de identificação do
pessoal disponível
1 - Pela decisão constante da alínea a), o Tribunal decidiu «pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma que se extrai da conjugação do artigo 3.º, n.º 1, parte final, com o n.º 2 do mesmo artigo e o n.º 6 do artigo 2.º do decreto registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n.º 171/92, por violação dos princípios da determinabilidade da lei e da reserva de lei, decorrentes dos artigos 2.º e 18.º, n.º 3, por referência ao artigo 53.º, todos da Constituição».Importa situar no âmbito de previsão do diploma em apreço o conjunto normativo identificado como violador dos princípios constitucionais indicados.
2 - O decreto agora parcialmente inconstitucionalizado visa racionalizar o emprego dos recursos humanos da Administração Pública, estabelecendo no que à matéria da decisão tomada respeita o seguinte regime jurídico:
No n.º 1 do artigo 2.º definem-se as situações que podem dar origem à identificação de pessoal disponível, reportando-se as três primeiras alíneas a funcionários (prevendo a extinção de serviços ou organismos públicos, a adopção de medidas de racionalização de estruturas ou redefinição de missões daqueles serviços ou organismos, com alteração dos quadros do pessoal e simples alterações destes quadros se considerados desajustados às necessidades permanentes de serviço) e a última aos agentes da Administração que, por não integrarem qualquer quadro, podem vir a ser reconhecidos como «existindo em número excessivo ou qualitativamente desajustado» e devam ser dispensados;
Nos casos das alíneas a) e b) do n.º 1, pode prever-se a transferência total ou parcial das responsabilidades do serviço ou organismo extinto para outro, podendo então determinar-se que tais medidas sejam acompanhadas da integração nos quadros dos novos serviços do pessoal necessário para a realização de tais responsabilidades, vindo dos serviços extintos ou reestruturados;
O n.º 6 do artigo 2.º refere como critério para tal transição de funcionários o da «melhor adequação entre as exigências inerentes ao conteúdo funcional dos postos de trabalho correspondentes aos lugares a prover e a capacidade, qualificação e experiência profissionais do pessoal abrangido»;
Definidas por este modo as situações legais que podem originar disponíveis, o artigo 3.º do diploma vem dizer quem é que, na sequência da verificação de alguma das situações definidas, pode ser considerado disponível. E o critério essencial é o do n.º 1 do preceito que estabelece ser considerado disponível o pessoal dos serviços ou organismos abrangidos pelas medidas de racionalização referidas no artigo anterior que «seja tido por desocupado ou subutilizado, por deixar de satisfazer as necessidades permanentes dos serviços» ou por «não reunir as habilitações literárias e ou profissionais indispensáveis à consecução das atribuições dos respectivos serviços ou organismos»;
O n.º 2 do preceito concretiza tais critérios mandando atender para o efeito da consideração de tal pessoal como disponível à menor adequação entre as exigências inerentes ao conteúdo funcional dos postos de trabalho a prover e a sua capacidade, qualificação e experiência profissionais.
3 - Deste regime jurídico resulta que para as medidas de racionalização que provocarem a extinção dos serviços ou a alteração dos quadros de pessoal acompanhada de transferência do pessoal será transferido para os novos serviços o pessoal que se revele ser o mais adequado para realizar as exigências dos postos de trabalho a prover, pela sua capacidade, qualificações e experiência profissionais.
Pelo contrário, o pessoal que revelar menor adequação no respeitante às exigências acabadas de referir, por não ter habilitações literárias e ou profissionais indispensáveis ou por revelar menor capacidade, menores qualificações e experiência profissionais será considerado como disponível.
De acordo com o n.º 3 do artigo 3.º, o pessoal que vier a ser considerado disponível pela aplicação dos critérios referidos deve constar de uma lista nominativa aprovada por despacho devidamente fundamentado do membro do Governo competente (que há-de ser aquele de cujas determinações vierem a ser tomadas as medidas geradoras de disponíveis), despacho esse que, obrigatoriamente, mencionará os critérios utilizados e que deve ser publicitado nas instalações dos serviços afectados ou comunicado directamente aos interessados sempre que ausentes na situação de licença.
4 - O acórdão, nesta parte, veio a concluir no sentido de que é violadora da Constituição uma norma «extraída da conjugação do artigo 3.º, n.º 1, parte final, com o n.º 2 do mesmo artigo e o n.º 6 do artigo 2.º do decreto» em apreciação. Ou seja, uma norma com o seguinte teor: «Não reunir as habilitações literárias e ou profissionais indispensáveis à consecução das atribuições dos respectivos serviços ou organismos e o critério da menor adequação do pessoal tido por desocupado ou subutilizado, devido a medidas de racionalização de serviços ou organismos, para, face à sua capacidade, qualificações ou experiência profissionais, responder às exigências inerentes ao conteúdo funcional dos postos de trabalho correspondentes aos lugares a prover» viola os princípios da determinabilidade da lei e da reserva de lei decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 18,º, n.º 3, por referência ao artigo 53.º, todos da Constituição.
Discordei e continuo a discordar frontalmente desta conclusão que se contém na alínea a) da decisão.
Desde logo, parece-me perfeitamente ilegítimo que, envolvendo a decisão três normas autónomas embora entre si relacionadas, se tenha inconstitucionalizado uma norma «extraída» dos referidos preceitos sem que a decisão tenha precisado o respectivo conteúdo, na medida em que é possível estabelecer-se para um tal tipo de decisão um conteúdo razoavelmente variado, dependendo do modo e da forma como se fizer a «conjugação» decisória mencionada.
Assim, do teor da decisão em causa não se fica a saber se a norma do n.º 6 do artigo 2.º, enquanto critério específico para a transição de funcionários de um serviço extinto para outro que assumiu as respectivas atribuições, se mantém válida ou não, porquanto parece decorrer da decisão tomada que a norma «extraída» só é inconstitucional na medida em que tal resulta da conjugação do n.º 1, in fine, do artigo 3.º com o n.º 2 desse preceito e o n.º 6 do artigo 2.º Acresce, por outro lado, que a norma considerada inconstitucional terá violado «os princípios da determinabilidade da lei e da reserva de lei decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 18.º, n.º 3, por referência ao artigo 53.º, todos da Constituição», ou seja, se bem entendo esta «conjugação», violada ficou a exigência de uma densificação legal bastante, para que, tratando-se como se trata de matéria de direitos dos trabalhadores da função pública, quer estes, quer a Administração Pública, quer os tribunais possam definir com certeza suficiente os respectivos direitos, densificação essa que deverá constar de lei (e não de qualquer outro acto legislativo) e terá de ter sempre como referência o princípio da segurança no emprego (artigo 53.º).
5 - Entendo, como disse, não se verificar qualquer violação quer de cada um dos princípios constitucionais referidos e considerado de per si quer da respectiva conjugação ensaiada no acórdão.
Vejamos.
O princípio da precisão e determinabilidade das leis que se vem fazendo decorrer do princípio do Estado de direito democrático pode configurar-se como um princípio de segurança jurídica que, em conjugação com outros princípios constitucionais, procura tutelar o sentido da confiança dos cidadãos relativamente aos direitos, posições jurídicas e relações estruturadas em leis vigentes das quais devem decorrer os efeitos jurídicos nelas previstos e assentes em pressupostos tão concretizados quanto seja possível, por forma que se torne simples a definição das situações jurídicas protegidas e o controlo jurisdicional das mesmas.
Na formulação de Gomes Canotilho (in Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 1991, p. 376) este princípio há-de reconduzir-se às seguintes linhas:
1) Exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto.
2) Exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de:
Alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos;
Constituir uma norma de actuação para a Administração;
Possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos.
Há, porém, que compreender que, na concepção do Estado de direito democrático, o princípio da determinabilidade, entendido como Bestimmtheitsgebot da doutrina alemã (cf. Frank Rottman, «Der Vorbehalt des Gesetzes und die Grundrechtlichen Gesetzsvorbehalt», in Europaische Grundrechte Zeitschrift, ano 12, fasc. 11, 1985, pp. 277 e segs.), haverá de conceber-se como imposição de tipicização, pelo que os standards de determinabilidade podem variar segundo as matérias reguladas, sendo facilmente compreensível que se coloquem maiores exigências de tipicização quando o legislador regula a formação da estrutura organizativa e jurídico-administrativa e bem assim quando tem de conformar os meios de actuação da Administração do que quando se trata de definir as finalidades desta ou de delimitar conceitos indeterminados ou imprecisos.
Em qualquer caso, o essencial é que da normação emitida se possam retirar os traços essenciais da concepção do legislador sobre a matéria regulada, por forma que os destinatários de tal normação possam nela assentar, com segurança, os seus projectos de vida próprios e que os tribunais possam efectuar o controlo da aplicabilidade de tal normação sempre que acerca dela surgirem conflitos entre os particulares ou entre estes e a Administração.
Como refere o Prof. Rogério Soares (no seu artigo «A propósito de um projecto legislativo:
o chamado Código de Procedimento Administrativo Gracioso», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 115, n.º 3695, 1982-1983, p. 41):
Ninguém quer, pois, negar que a criação de legislação limitadora do executivo possa ser um meio para contribuir para a realização do Estado de direito. O que, todavia, não pode deixar de acentuar-se é que, em primeiro lugar, a realização de um Estado de direito material não tem apenas a ver com a legalidade da Administração. Em segundo lugar, que o ideal do Estado de direito não se vai alcançando com soluções quantitativas de aumento de preceitos que vinculam a Administração, mas que postula, no que toca ao segundo poder, a criação de garantias de que ele seja um instrumento de realização do bem comum, entendido na perspectiva fundamental da dignidade da pessoa humana. [Sublinhado agora.] Ora, o princípio da determinabilidade acha-se, com efeito, consagrado constitucionalmente em matéria penal (artigo 29.º, n.º 1, da Constituição) e também em matéria fiscal (artigo 106.º da Constituição), quer como princípio de legalidade (nulla poena sine lege) quer como princípio da tipicidade dos impostos (nulla vectigallia sine lege; null taxation without law).
Fora destes domínios falar-se em princípio constitucional de precisão e determinabilidade das leis como decorrência do Estado de direito democrático há-de significar, como se referiu, que as leis hão-de ser inteligíveis quer quanto à sua previsão quer quanto à sua provisão e que a disciplina delas constante há-de conter, por forma suficientemente concretizada, os elementos essenciais do respectivo regime jurídico, de tal forma que os destinatários (sejam eles os particulares, a Administração ou os órgãos de controlo, v. g., os tribunais) possam, uns, assentar nela os seus actos ou decisões públicas e particulares e, os outros, fiscalizar a actuação dos primeiros.
O que vale por dizer que em tal princípio não vai implicada uma exigência de perfeição das leis.
E nem poderia ir, ao menos quando se fizer apelo a esse princípio para servir de parâmetro autónomo de constitucionalidade.
É que às instâncias de controlo de constitucionalidade cabe apenas expurgar o respectivo ordenamento jurídico do «não direito» e não do «mau direito» ou do direito imperfeito.
6 - Na decisão de que discordo, o princípio da determinabilidade das leis vem conectado com o princípio da reserva de lei no âmbito dos direitos, liberdades e garantias.
Ora, ao analisar-se a determinabilidade referiram-se já as exigências de densidade suficiente da regulamentação legal, enquanto manifestação do princípio do Estado de direito. A reserva de lei, nesta perspectiva, significa precisamente que a referida «densidade suficiente» não pode ser deixada para disciplina normativa de nível regulamentar, a qual representará, por isso mesmo, o exercício de poderes próprios da função administrativa.
O princípio da reserva ou da prevalência de lei impõe, assim, que nas matérias reservadas não intervenha uma outra fonte normativa diferente da lei e que, cabendo a esta o estabelecimento do regime em causa, não pode a lei delegar a sua competência a uma outra qualquer fonte normativa.
Relacionada a reserva de lei com o artigo 18.º, n.º 3, da Constituição («as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir um carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais»), tem-se entendido que, nesta dimensão, o princípio se dirige «contra o próprio legislador: só a lei pode restringir direitos, liberdades e garantias, mas a lei só pode estabelecer restrições se observar os requisitos constitucionalmente estabelecidos» (Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 801), não se limitando neste domínio, e segundo o autor citado, a possuir «apenas uma dimensão garantística em face das restrições de direitos; ela assume também uma dimensão conformadora, concretizadora» (ibidem).
Importa, finalmente, salientar que estes dois princípios constitucionais não são invocados para fundamentar a pronúncia de inconstitucionalidade por forma totalmente autónoma, mas «por referência ao artigo 53.º da Constituição», ou seja ao princípio da segurança no emprego.
7 - Este preceito tem a seguinte formulação constitucional:
É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.
Com o sentido de que o conceito de «trabalhadores subordinados» compreende também os trabalhadores que desenvolvem a sua actividade em submissão a uma relação de emprego público, vem sendo reconhecido de uma forma generalizada que, no que ao regime jurídico dos direitos fundamentais respeita, os trabalhadores da função pública se equiparam aos trabalhadores submetidos a contrato individual de trabalho.
O legislador pode por isso considerar a relação de emprego público enquadrada nos parâmetros gerais da relação jurídica de trabalho, mas há-de sempre ter em conta as especialidades e as particulares exigências que decorrem da específica natureza da actividade pública em que aquela primeira relação se insere.
Com efeito, o funcionário público - conceito que compreende os «trabalhadores da Administração Pública» e outros «agentes do Estado e outras entidades públicas» (cf. artigo 269.º, n.º 1, da Constituição) -, pelo simples facto do seu provimento definitivo na função pública, adquire automaticamente uma estatuto funcional típico relativamente à respectiva relação de emprego, o qual integra um conjunto próprio de direitos e regalias e de deveres e responsabilidades que o distingue do emergente das relações típicas dos contratos (privados) por conta de outrem.
Ora, a garantia constitucional da segurança no emprego não pode deixar de abranger também os funcionários públicos, não podendo o Estado dispensar livremente os seus funcionários nem podendo a extinção ou remodelação de serviços constituir, só por si, motivo adequado para uma tal dispensa.
Mas o princípio da segurança no emprego visa, em primeira linha, o direito do trabalhador à manutenção do seu emprego, ou seja, a proibição de despedimento ou cessação da relação de emprego sem justa causa ou por motivos ideológicos ou políticos, não se podendo, em princípio, considerar como violado por uma mera alteração do estatuto do trabalhador da Administração Pública - o que vale por dizer que tal princípio não pode ser entendido de forma tão ampla que signifique o direito a uma total imodificabilidade da relação de emprego na função pública.
Efectivamente, estando os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e de outras entidades públicas exclusivamente ao serviço do interesse público, tal como ele é definido, nos termos da lei, pelos órgãos competentes da Administração (artigo 269.º, n.º 1, da Constituição), o seu estatuto, derivado da lei, enquanto situação jurídica objectiva, será aquele que em cada momento for legitimamente fixado pela entidade competente.
Só que, como parece claro, não pode a administração alterar os aspectos essenciais do estatuto dos seus trabalhadores por tal forma que o mesmo se torne irreconhecível ou se transforme num estatuto profissional diferente, sem que ao menos se dê a esses trabalhadores a faculdade de, continuando ao serviço da mesma entidade empregadora, optarem por outras soluções legalmente consagradas.
No caso em apreço, o princípio da segurança no emprego há-de ainda ter em atenção o particular estatuto do pessoal a que o diploma em análise se destina, uma vez que este pessoal tem desde 1982 um estatuto próprio e muito especificado e que se passa a definir em traços largos.
8 - O Decreto-Lei 167/82, de 10 de Maio, «define os condicionalismos que podem dar origem à constituição e gestão de efectivos excedentários da função pública e os critérios que deverão obedecer a sua gestão e recolocação», considerando como tais as medidas de racionalização que «conduzirem a situações de desocupação ou subutilização do pessoal», podendo este transitar para outros serviços ou organismos ou constituir excedente de pessoal.
Os critérios que este diploma estabelece para a transição «devem ter em atenção a necessidade de garantir a melhor adequação entre as características e qualificações profissionais de cada um dos funcionários e agentes abrangidos e as exigências inerentes aos postos de trabalho a prover» - algo de pelo menos tão indeterminado como o que se estabelece no diploma em apreço -, devendo a preocupação referida ser assegurada, «sempre que possível, mediante o recurso à última classificação de serviço ou, no caso de não existir, ao resultado do concurso para a respectiva categoria» (artigo 3.º, n.º 2).
Na constituição de excedentes, o critério é o das «qualificações determinadas nos termos do número anterior», e, em caso de igualdade, preferem os tarefeiros, depois os prestadores eventuais de serviços, os assalariados e contratados além do quadro e o pessoal do quadro em último lugar e, havendo empate dentro de cada alínea, haveria de recorrer à menor antiguidade na categoria, na carreira e na função, por forma sucessiva (n.os 2 e 4).
A passagem à actividade do pessoal excedentário decorria de acordo com o mesmo critério (qualificações, aferida também pela última classificação de serviço ou pelo concurso para a categoria), sendo os critérios de desempate invertidos.
Em termos de remuneração, os excedentes mantinham durante um ano o direito ao vencimento por inteiro e depois o direito ao vencimento de categoria, bem como aos subsídios e diuturnidades.
9 - Em 1984 foi publicado o Decreto-Lei 43/84, que contém o regime que o diploma inconstitucionalizado se propunha revogar.
Aqui, as situações que podem dar origem a excedentes são identificadas por forma em tudo similar às do anterior diploma legal, sendo as possibilidades de aproveitamento do pessoal acrescidas da possibilidade de utilização de instrumentos de mobilidade e os critérios para o caso da transição para outros serviços e da mobilidade são praticamente idênticos aos da normação anterior (características e qualificações profissionais avaliadas pela última classificação de serviço ou, se não existir, pelo lugar no concurso para a categoria, passando a existir para a constituição de excedentes apenas o critério da antiguidade - menor para a entrada e maior para a saída da qualificação de excedentes).
No que respeita aos direitos dos excedentes, designadamente aos vencimentos, o diploma de 1984 mantinha aos excedentes o vencimento por inteiro e as regalias que acrescem ao vencimento e previa-se a possibilidade de o excedente pedir a aposentação voluntária e também a aposentação obrigatória desde que o funcionário ou agente se encontrasse há mais de dois anos seguidos ou interpolados na situação de disponibilidade e tivesse 60 anos de idade e 20 de serviço ou 30 anos de serviço, independentemente da idade (artigo 16.º).
O regime jurídico dos excedentes no que respeita aos vencimentos viu logo a «generosidade» do diploma de 1984 reduzida em 1986 pela Lei 9/86 (Lei do Orçamento para 1986), de 30 de Abril (artigo 9.º), que no seu n.º 9 determinou que o pessoal integrado nos QEIs auferisse a partir do 30.º dia 90% do vencimento, redução esta mantida para o ano de 1987 (Lei 49/86, de 31 de Dezembro). Em 1988 (Lei 2/88, de 26 de Janeiro - Orçamento do Estado para 1988), o vencimento foi reduzido a 90% após os primeiros 30 dias seguidos ou interpolados de inactividade e a 80% e 70% do vencimento a partir do 120.º e do 210.º dias de inactividade, respectivamente (artigo 15.º, n.º 8). No respeitante à aposentação, o limite de tempo de serviço para a voluntária foi pela mesma fixado em 15 anos de serviço, sem cuidar da idade, e em 40 anos de idade e 10 anos de serviço (artigo 15.º, n.º 4). Regime semelhante a este foi mantido pela Lei 114/88, de 30 de Dezembro, para o ano de 1989.
Pela Lei 101/90, de 21 de Dezembro (Orçamento do Estado para 1990), o vencimento dos excedentes foi reduzido a cinco sextos da remuneração mensal a partir do 30.º dia seguido ou interpolado de inactividade e a 70% e 60% do vencimento a partir dos 120.º e 240.º dias, respectivamente. Esta situação foi mantida para 1991 pela Lei 65/90, de 28 de Dezembro, quanto ao vencimento (artigo 18.º).
Na Lei 2/92, de 9 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 1992, o vencimento do pessoal considerado excedente foi fixado durante os primeiros 30 dias de inactividade no seu valor global, montante que se reduzirá para cinco sextos a partir do 31.º dia até aos 180 dias seguidos ou interpolados de inactividade e a 70% e 60% a partir, respectivamente, dos primeiros seis meses e um ano seguidos ou interpolados de inactividade.
10 - No diploma em apreço, depois de estabelecidas as situações geradoras de disponíveis e dos critérios definidores de tal pessoal, deve assinalar-se a centralização da gestão do pessoal disponível (artigo 25.º) e a introdução inovatória de medidas de descongestionamento da função pública, para além da aposentação voluntária (artigo 7.º), sendo o QEI único o destino do pessoal residual que não for transferido nem integrado em outros serviços e que não optar por qualquer medida de descongestionamento.
A remuneração do pessoal do QEI na disponibilidade é a mesma que fora já fixada na Lei 2/92 e antes nas Leis n.os 101/90 e 65/90, só que com respeito a diferentes períodos de tempo (120 e 240 dias e 180 e 360 dias).
Na passagem à actividade do pessoal disponível, depois de se equacionarem as diversas formas que pode revestir e a respectiva contagem de tempo, o decreto enuncia os critérios a que se tem de atender e que são as qualificações profissionais e a adequação aos serviços a desempenhar - artigo 18.º, n.º 5 - norma esta que aparece desenquadrada do seu contexto depois da pronúncia de inconstitucionalidade de idênticos critérios para a consideração do pessoal desocupado ou desutilizado como disponível, e que os autores da norma terão de rever após tal pronúncia.
Para além das formas normais de cessação da relação empregatícia da função pública (Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro, artigos 28.º a 30.º) a saída do QEI obtém-se pelo regresso à actividade ou pela recusa, não aceite como fundamentada, de passagem à actividade, que é considerada insubordinação grave ou grave desinteresse, para efeitos disciplinares, nos casos de regresso à actividade nos distritos de Lisboa e Porto e quando haja subsídios de deslocação ou incentivos de fixação à periferia.
No artigo 28.º do diploma, para além da prevalência das normas do diploma e das referências ao QEI unificado, estabelecida-se uma norma de transição: no n.º 3 mandava-se contar para efeitos de aposentação obrigatória o tempo de disponibilidade do pessoal nos QEIs anteriores ao decreto.
11 - Feita a análise dos princípios constitucionais considerados na decisão como violados e dos critérios que se considerou serem violadores daqueles princípios, importa concluir sobre se se verificam ou não as violações indiciadas.
Respondo convictamente pela negativa.
Desde logo, de nenhuma das disposições do diploma resulta a perda do emprego sem justa causa ou por motivos ideológicos e ou políticos, como aliás é reconhecido no acórdão...
E também não decorre de qualquer das disposições do decreto que o estatuto do funcionário público se transforme num «estatuto diminuído», isto é, que afecte por tal forma os direitos, liberdades e garantias desses funcionários que torne a respectiva situação como não reconduzível ainda à função pública.
Assim e concretizando: no que se refere ao vencimento, o diploma prevê para os funcionários disponíveis em situação de não prestação efectiva de serviço uma redução do vencimento base, cujas percentagens remontam já à Lei 65/90, de 28 de Dezembro, e foram reafirmadas pela Lei 2/92, com modificação da sua incidência no tempo apenas.
Aliás, se se fizer o confronto com os trabalhadores privados quando abrangidos pela suspensão do seu contrato de trabalho, a situação é semelhante. Estes trabalhadores, mantendo, tal como os disponíveis, as regalias inerentes ao trabalho desenvolvido, percebem durante a suspensão do trabalho uma remuneração que não pode ser inferior ao salário mínimo nacional garantido para o respectivo sector e que pode atingir o máximo de dois terços da respectiva remuneração mensal ilíquida (Decreto-Lei 388/89, de 2 de Novembro), sendo este máximo preenchido por compensação salarial a suportar em partes iguais pela entidade empregadora e pelo Gabinete de Gestão do Fundo de Desemprego.
Nos termos do diploma em apreço, o que de pior podia resultar para os disponíveis, na situação de disponibilidade, isto é, de não prestação efectiva de qualquer trabalho durante dois anos seguidos ou três interpolados nem de sujeição, durante este período de tempo, a qualquer acção de reconversão profissional, era a obrigação de reforma, no caso de terem mais de 20 anos de serviço.
Todavia, mesmo nesta hipótese, o Estado assegurava ao trabalhador o percebimento de uma pensão de reforma correspondente ao número de anos efectivamente prestados e fazia-lhe acrescer uma bonificação de 20%, ou seja, quem tivesse apenas 20 anos de serviço completo era reformado como se tivesse cumprido 24 anos de serviço.
Porém, esta situação extrema apenas ocorreria se o funcionário ou agente, decorridos 12 meses de integração no QEI, não tivesse optado por uma das várias medidas de descongestionamento da função pública previstas no diploma em apreço e que abrangiam desde a aposentação voluntária, a partir dos 20 anos de serviço, e desde os 30 com direito a bonificação de 20%, que dava a totalidade da pensão, até à desvinculação da função pública com direito a indemnização, passando pela pré-aposentação e pela licença sem vencimento por tempo indeterminado.
Dispunha, assim, o diploma em apreço de um conjunto de medidas que permitem afirmar que da sua aplicação não resultava afectado, em nenhuma medida, o princípio da segurança no emprego.
12 - Seria, porém, violado o princípio da determinabilidade e o da reserva de lei, como se conclui na decisão? Esta questão tem a ver com os critérios materiais legalmente estabelecidos para a consideração do pessoal dos serviços e organismos afectados por medidas de racionalização de que resulte pessoal desocupado ou subutilizado.
No caso da legislação ainda em vigor (Decreto-Lei 43/84), o critério para os casos de transição do pessoal para os serviços que absorverem as atribuições dos serviços extintos e de utilização de instrumentos de mobilidade era o de «garantir a melhor adequação entre as características e as qualificações profissionais do pessoal abrangido e as exigências inerentes aos postos de trabalho a prover» - critério correspondente, em geral, ao do n.º 6 do artigo 2.º do decreto em apreço -, sendo certo que o diploma de 1984 determinava que tal preocupação «deverá ser assegurada, sempre que possível, mediante o recurso à última classificação de serviço ou, no caso de não existir, ao resultado do concurso para a respectiva categoria» (artigo 3.º, n.º 2).
Na constituição de excedentes, o diploma de 1984 mandava atender, sucessivamente, à menor antiguidade na categoria, na carreira e na função pública.
Na passagem à actividade dos excedentes mandava-se recorrer, sucessivamente, à maior antiguidade no QEI, na categoria, na carreira e na função pública.
Parece claro que se quiser levar a cabo uma verdadeira política de racionalização dos recursos humanos, com uma eficaz gestão do emprego na função pública, por forma a obter o máximo de realizações com o mínimo de pessoal, os critérios baseados na antiguidade só muito dificilmente poderão permitir realizar uma tal finalidade.
Terá sido, por isso, que o decreto em apreciação o abandonou.
Mas do facto de tal critério ter sido posto de lado no diploma em apreço não pode concluir-se que inexistam nas normas em causa quaisquer critérios ou que os existentes sejam vagos e inconcludentes e, por isso, imprestáveis para servirem como critérios legais mínimos de constituição de excedentes.
Assim, para o efeito da transição do pessoal considerado disponível para todos os serviços públicos que absorvam o pessoal vindo ou de serviços ou organismos extintos ou sujeitos a medidas de racionalização, o critério a observar é o da melhor adequação entre as exigências inerentes ao conteúdo funcional dos postos de trabalho correspondentes aos lugares a prover e a capacidade, qualificação e experiência profissionais do pessoal abrangido.
Entre esta formulação e a da lei de 1984 a diferença a reter é a de que em 1984 a «preocupação de adequação» devia ser assegurada, «sempre que possível», através da última classificação de serviço ou do resultado do concurso e agora faz-se apelo à «capacidade, qualificação e experiência profissionais do pessoal».
Admitindo que os critérios agora vazados no texto do decreto não são tão concretizados como os que constam da legislação em vigor, o certo é que se está perante critérios materiais, embora indeterminados, alguns dos quais a doutrina qualifica como conceitos classificatórios (isto é, conceitos cujo conteúdo, apesar de não se apresentar imediatamente ao intérprete, é possível fixar objectivamente com recurso à experiência comum ou a conhecimentos científicos ou técnicos de um certo ramo do saber - cf. Rogério Soares, Lições de Direito Administrativo, policopiadas, da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto, sem data, p. 59) e que são particularmente aptos à realização da finalidade primacial do diploma que é a de melhorar o nível de prestação de serviços da Administração Pública, pela maior eficiência na gestão dos recursos humanos e financeiros a ela afectados.
A capacidade profissional corresponde ao conceito de «aptidão profissional» e reporta-se à exigência de que o funcionário deve ter o conjunto de conhecimentos indispensáveis ao exercício do cargo com competência e ao domínio o mais perfeito possível dos problemas que em tal exercício possam surgir.
A qualificação profissional corresponde, em primeira linha, às habilitações que o funcionário deve dispor para poder preencher o lugar e, depois, à apreciação hierárquica anual (notação) que os superiores fazem da forma como o funcionário desenvolve a respectiva actividade e que vem a traduzir-se num resultado perfeitamente concretizado (nota derivada da pontuação obtida pela consideração de vários itens) e que corresponde ao anterior sistema de classificação de serviço.
A experiência profissional corresponde à soma de conhecimentos que cada funcionário acaba por adquirir à medida que vai progredindo na sua carreira e que pode resultar quer do exercício da respectiva actividade quer da frequência de meios de formação exteriores mas do interesse da actividade desenvolvida.
De acordo com a Portaria 642-A/83, de 1 de Junho, que dá execução ao previsto no regime geral de classificação de serviço da função pública (Decreto Regulamentar 44-B/83, de 1 de Junho), a avaliação dos funcionários faz-se através da quantificação, em fichas de notação, dos valores atribuídos quantitativamente à consideração dos seguintes elementos de apreciação, valorados segundo diferentes gradações de efectiva realização:
qualidade e quantidade de trabalho, conhecimentos profissionais, adaptação e aperfeiçoamento profissional, iniciativa, criatividade, responsabilidade e capacidade de direcção e de coordenação, relações humanas no trabalho e espírito de equipa.
Assim, os elementos referidos na lei (n.º 6 do artigo 2.º) constituem, do meu ponto de vista, indubitavelmente, elementos integradores de critérios materiais suficientemente concretizados e concretizáveis, que podem, sem margem para dúvidas, servir de medida para os funcionários - que a eles ficariam sujeitos - e para a própria Administração, que os aplicaria, por eles se orientando nas decisões que houvesse de tomar, designadamente no que se refere a esta matéria de transferência de pessoal ou de geração de disponíveis devido a medidas de racionalização.
Trata-se de critérios servíveis também para os tribunais que fossem eventualmente chamados a sindicar os actos que, com base neles, a Administração tivesse praticado.
13 - Tudo quanto ficou dito relativo às medidas de transferência de pessoal para outros serviços que absorvam o pessoal oriundo dos serviços extintos ou racionalizados poderia repetir-se no que se refere à consideração do pessoal não transferido para outros serviços e que, por isso, vai ter de ser considerado disponível. Com uma diferença apenas: aqui, o critério já não é o da melhor adequação, mas antes e ao invés, o da menor adequação entre as exigências inerentes ao conteúdo funcional dos postos de trabalho correspondentes aos lugares a prover e a capacidade, a qualificação e a experiência profissionais do pessoal em causa.
Como bem se compreende, uma vez transferidos e colocados em outros serviços ou organismos públicos os funcionários mais capazes, mais qualificados e mais experientes, os que não foram abrangidos serão aqueles que não dispõem de tais credenciais e que, por isso, vão ficar verdadeiramente na situação de disponível. Num tal caso, o critério só poderia ser o inverso do utilizado na operação anterior de transferência e ou integração em serviços ou organismos existentes.
Porém, o facto de se inverter o sinal, isto é, de se considerarem os elementos identificadores do pessoal disponível na perspectiva da menor adequação, nem por isso o critério deixa de ser concreto, material e controlável, uma vez que os elementos que o integram são os mesmos, só que considerados na perspectiva oposta à que foi tomada em consideração na outra operação de transferência de pessoal.
14 - Importa ainda referir que, uma vez definidos os critérios de identificação do pessoal como disponível, o diploma em apreço determina que tal pessoa conste de uma lista nominativa que deverá ser aprovada por despacho devidamente fundamentado do membro do Governo que for competente - e que não pode deixar de ser o membro do Governo que tomou as medidas geradoras de pessoal disponível -, devendo tal despacho mencionar ainda os critérios que foram utilizados na selecção e ser publicitado quer nos serviços quer junto dos interessados, se ausentes na situação de licença.
Com esta norma fica claramente possibilitado o controlo jurisdicional da actuação do Governo na identificação do pessoal considerado disponível.
Concluo, assim, que considero acharem-se cumpridas as exigências do princípio da precisão e da determinabilidade das leis, pois há-de ter-se por suficientemente densificada a lei que permite alicerçar posições jurídicas dos cidadãos, serve de base para a actuação da Administração dentro da legalidade e possibilita a fiscalização de tal actuação e a defesa judicial dos direitos e interesses dos cidadãos. Não existe, pois, nas normas que vimos analisando, qualquer elemento que permita afirmar a violação dos princípios constitucionais conjungadamente invocados para a pronúncia de inconstitucionalidade constante da alínea a) da decisão tomada no presente acórdão.
B) A norma relativa à aposentação obrigatória
15 - Na decisão de que me afasto foi também considerada como inconstitucional a norma do artigo 21.º do decreto em apreço pela qual se determinava que seria obrigatoriamente aposentado o pessoal do QEI que, tendo mais de 20 anos de serviço, independentemente da idade, viesse a permanecer na disponibilidade durante dois anos seguidos ou três interpolados (n.º 1), estabelecendo-se no n.º 2 do preceito que a pensão a atribuir a tal pessoal corresponderia ao número de anos de serviço efectivamente prestados, acrescendo uma bonificação de 20% do respectivo quantitativo até ao limite máximo da respectiva pensão.
Aqui, o fundamento da inconstitucionalização foi a violação do disposto na alínea v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, ou seja, a falta de cobertura do diploma pela lei de autorização legislativa (a Lei 2/92 de 9 de Março), pelo que, não estando a norma coberta pela referida autorização, estava o Governo a legislar em matéria da reserva legislativa da Assembleia da República, daí resultando a inconstitucionalidade orgânica da norma.
Defendi no meu projecto de acórdão que a norma em causa respeitava a lei autorizadora e, por isso, nenhuma inconstitucionalidade se verificava relativamente ao artigo 21.º Continuo a entender que assim é na verdade, como de seguida procurarei demonstrar.
Porém, mesmo que se entenda que assim não sucede, isto é, que efectivamente o diploma em apreço não respeita a lei de autorização, todavia nem por isso se poderá desde logo concluir e sem mais que a norma é inconstitucional, face à jurisprudência que a este respeito o Tribunal Constitucional tem desenvolvido em anteriores acórdãos (v. g., desde o aresto sobre a colocação na disponibilidade do pessoal diplomático e o primeiro acórdão sobre a Reserva Ecológica Nacional: Acórdão 142/85, in Diário da República, 2.ª série, de 7 de Setembro de 1985, e Acórdão 334/91, in Diário da República, 2.ª série, de 20 de Novembro de 1991).
16 - Vejamos primeiro os argumentos que me levam a concluir pela inexistência de autorização legislativa.
O artigo 5.º da Lei 2/92 concedia autorização ao Governo para legislar no sentido de:
a) Rever os critérios de constituição e o regime jurídico dos excedentes, o seu estatuto e o respectivo sistema de gestão para, através da sua racionalização, diversificação e uma gestão centralizadas, se assegurar um melhor aproveitamento do pessoal e o mais largo espectro possível de saídas profissionais;
b) Definir mecanismos selectivos de descongestionamento da função pública, por iniciativa do trabalhador, mediante alteração do sistema de licenças, o pagamento de indemnizações e alteração do limite de idade para aposentação.
De acordo com o preceituado no artigo 168.º, n.º 1, alínea v), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre «bases do regime e âmbito da função pública».
Assim, o Governo só poderá legislar em tal matéria se dispuser de uma autorização legislativa adequada - artigo 168.º, n.º 1, e artigo 201.º, n.º 1, alínea b), ambos da Constituição.
Por força do n.º 2 do artigo 168.º, as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização.
Em regra, a autorização legislativa não deve vincular de tal forma o Governo que a este não reste outra alternativa senão a de decidir se dele faz uso ou não. Na autorização deverá ver-se um programa normativo, pois a norma autorizadora tem de exprimir o que deverá ser regulado, dentro de que âmbito material e o objectivo que deve servir a normação a editar.
Os diplomas emitidos ao abrigo de uma lei de autorização legislativa devem manter-se dentro dos limites definidos por aquela lei, sob pena de, não o fazendo, se verificar inconstitucionalidade por o Governo invadir a reserva de competência da Assembleia da República.
A conformidade da norma do artigo 21.º do decreto tem de ser averiguada face à alínea a) do artigo 5.º da Lei 2/92, e não face à alínea b), uma vez que nesta apenas se referem mecanismos de descongestionamento da iniciativa do trabalhador, quando a norma se reporta à aposentação obrigatória.
Ora, pela alínea a), o Governo dispunha de autorização para «rever os critérios de constituição, o regime jurídico dos excedentes [agora designados «disponíveis»], o seu estatuto e o respectivo sistema de gestão».
No diploma de 1984 existia uma norma com perfil semelhante - o artigo 16.º, n.º 2, que, por remissão para o n.º 1 do artigo 34.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro, norma relativa à aposentação voluntária, impunha a reforma obrigatória do pessoal disponível se tivesse 60 anos de idade e 20 de serviço ou só com 30 anos de serviço, independentemente da idade, desde que se encontrasse na situação de excedente há mais de dois anos seguidos ou interpolados, sendo expressamente afastada qualquer bonificação da pensão.
A norma do artigo 21.º do decreto respeita o âmbito da autorização legislativa na medida em que esta permitia ao Governo legislar sobre o estatuto dos então designados «excedentes» e agora «disponíveis».
O estatuto de um dado conjunto de funcionários há-de conter, para ser completo, todo o respectivo regime organizacional e jurídico, desde as condições de ingresso, aos direitos e deveres, ao desenvolvimento das respectivas carreiras até às diversas formas de cessação do vínculo empregatício, umas das quais, no que ao funcionalismo público respeita, é a aposentação.
Esta, segundo o respectivo estatuto, pode ser ordinária e extraordinária, consoante o seu fundamento, e voluntária ou obrigatória, consoante deriva da iniciativa do funcionário ou lhe é imposta pela lei ou por imposição da autoridade competente.
No caso dos disponíveis e antes dos excedentes, já fazia parte do respectivo estatuto quer a consideração da aposentação voluntária tal como da aposentação obrigatória, pelo que, visando o diploma em apreço a uniformização e a centralização para o efeito de uma gestão racional de todo o pessoal da função pública que passar a integrar, como disponível, o quadro de efectivos interdepartamentais (QEI), não se vê que a autorização legislativa concedida ao referir-se expressamente a uma revisão do estatuto dos disponíveis, não pode deixar de entender-se como autorizando a modificação dos limites de idade para a aposentação obrigatória, sendo compreensível a referência da alínea b) à alteração da idade na medida em que se tratava de inovar relativamente à pré-aposentação, figura inexistente na legislação em vigor.
Tem por isso de considerar-se incluída no estatuto do pessoal disponível integrado no QEI uma norma como a do artigo 21.º, em que se prevê - como já antes se previa a aposentação obrigatória como forma de cessação do vínculo de tal pessoal à Administração Pública, embora com condicionalismos diversos do que os previstos para a aposentação do comum dos funcionários públicos, tal como aliás já acontecia no regime em vigor e que o decreto em apreço pretendia revogar.
17 - Mas, como antes se referiu, mesmo que se não entenda que a norma do artigo 21.º do decreto em apreço respeite o âmbito do sentido de autorização, o certo é que nem por isso se pode concluir que tal norma esteja afectada do vício que o acórdão lhe assaca de inconstitucionalidade orgânica.
Vejamos porquê.
Na reserva da competência legislativa da Assembleia da República estão «as bases do regime e âmbito da função pública», ou seja, segundo uma jurisprudência que vinha já da Comissão Constitucional (cf. pareceres n.os 22/79 e 12/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 9.º, p. 48, e 19.º, p. 119, respectivamente) cabia na competência reservada da Assembleia legislar sobre «o estatuto geral da função pública, aquilo que é comum e geral a todos os funcionários e agentes», aí se compreendendo, designadamente, «a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, de complexos de direitos e deveres funcionais que valem, em princípio, para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, fornecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado»; diversamente, já pertencia à competência legislativa governamental a «concretização» desse estatuto geral, a sua «complementação, execução e particularização», ou seja, «quer o desenvolvimento de tais princípios, quer a sua aplicação e adaptação aos sectores que exijam um regime particular específico, especial ou até excepcional».
Se esta era a jurisprudência anterior à revisão constitucional, após 1982, o Tribunal tem vindo a entender que «na imediata dependência de um debate e decisão parlamentares encontra-se apenas, e compreensivelmente, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulamentação [da função pública], dos princípios reitores ou orientadores - princípios estes que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar», apontando a reserva legislativa da Assembleia nesta matéria para a formulação de uma lei quadro da função pública (cf. Acórdão 142/85).
Mas o facto de não existir tal lei quadro - isto é, de não estarem os princípios básicos fundamentais que deverão reger esta matéria plasmados num único diploma legislativo - não deve impedir o Governo de legislar dentro da sua competência, desde que respeite as bases do regime jurídico da função pública existentes em diplomas dispersos.
Com efeito, o facto de não existir uma tal lei quadro ou lei de bases da função pública não implica necessariamente que não existam consagrados em legislação avulsa «princípios básicos fundamentais» e, existindo, pode deles extrair-se a existência de verdadeiras bases em sentido constitucional susceptíveis de regulamentação (cf. Acórdão 152/92, ainda inédito).
Tem, assim, o Tribunal vindo a admitir que na falta de uma lei de bases ou de lei quadro que preencha o conteúdo da reserva legislativa da competência da Assembleia da República pode o Governo editar normas que não contendam com os princípios básicos fundamentais que regem a matéria, ou seja, não poderá o Governo, a pretexto da inexistência de tal normação básica, editar normas que «viessem substituir, modificar ou derrogar as bases efectivamente existentes» (cf. Acórdão 142/85).
Ora, no que respeita à aposentação na função pública, constam os princípios fundamentais que regulam tal matéria do Estatuto da Aposentação (aprovado pelo Decreto-Lei 498/72, de 9 de Dezembro, e alterado pelo Decreto-Lei 191-A/79, de 25 de Junho), prevendo-se nos artigos 36.º a 41.ª as diversas formas de aposentação (ordinária e extraordinária; voluntária e obrigatória, no sentido já antes definido).
O que importa agora apurar, para saber se a emissão de uma norma como a do artigo 21.º invade ou não a reserva legislativa da Assembleia da República, é se com ela se substitui, se modifica ou derroga alguma base (em sentido) constitucional existente.
Já se concluiu que na legislação ainda em vigor (recte, no artigo 16.º, n.º 2, do Decreto-Lei 43/84, de 3 de Fevereiro) existe uma norma de conteúdo similar da norma do artigo 21.º; por outro lado, o Estatuto da Aposentação conhece também a figura da aposentação obrigatória. Por isso, nada se vem agora inovar, a não ser relativamente à idade de aposentação e ao tempo de serviço considerado necessário para se impor a aposentação obrigatória ao pessoal considerado disponível e que se encontre no QEI há mais de dois anos seguidos ou três interpolados: antes exigia-se que o pessoal excedente tivesse mais de 60 anos de idade e 20 anos de serviço ou apenas 30 anos de serviço independentemente da idade e a situação de disponível durante dois anos seguidos ou interpolados; agora exige-se apenas que o disponível possua mais de 20 anos de serviço, independentemente da idade, e com a permanência no QEI antes referida.
Nem se invoque, a este respeito, como base violável o n.º 1 do artigo 34.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro, na medida em que esta norma, se puder servir de «base constitucional» de algo, será da aposentação voluntária, de que expressamente cuida, e nunca da aposentação obrigatória, que é a que está aqui em causa.
Porém, de acordo com o próprio Estatuto da Aposentação - que contém os princípios básicos fundamentais desta matéria - o Governo pode fixar, em diplomas especiais, limites de idade e de tempo de serviço inferiores aos referidos para o regime geral da aposentação do comum do funcionalismo público, regimes especiais estes que prevalecerão sobre o regime geral. É o que resulta inequivocamente do estabelecido no artigo 37.º, n.º 3, do Estatuto da Aposentação (Decreto-Lei 498/72, de 9 de Dezembro, na redacção do artigo 1.º do Decreto-Lei 191-A/79, de 25 de Junho).
Tem, assim, de concluir-se que o Governo, ao editar o artigo 21.º do decreto, nem sequer precisava de se prevalecer da autorização legislativa concedida pela Lei 2/92, pois podia modificar não só a idade mas também o tempo de serviço para efeitos de aposentação obrigatória, no uso da sua competência legislativa própria de aplicação e de particularização do regime geral da aposentação ao sector dos disponíveis, sem que com isso pudesse ser acusado de invadir a competência legislativa reservada da Assembleia da República.
Portanto, ainda aqui não me foi possível acompanhar o acórdão, pois votei a posição agora exposta quanto à jurisprudência do Tribunal no Acórdão 197/91 (in Diário da República, 2.ª série, de 13 de Setembro de 1991).
C) A inconstitucionalidade formal da Lei 2/92, de 9 de Março
18 - Um último ponto importa definir. A decisão constante do acórdão, correctamente, nada refere sobre o que no texto se escreveu sobre a dúvida levantada neste particular aspecto pelo Presidente da República.
Tendo chegado no projecto de acórdão que elaborei a uma conclusão idêntica - inexistência de qualquer irregularidade procedimental da Lei 2/92 -, todavia os fundamentos dessa conclusão eram diversos dos que o acórdão veio a acolher.
Assim, importa referir que - como resulta dos votos que apus aos Acórdãos n.os 64/91 e 372/91, in Diário da República, 1.ª série - A, de 11 de Abril e 7 de Novembro de 1991, respectivamente - não subscrevo a posição do próprio Tribunal quando entende que as leis de autorização legislativa estão obrigadas ao cumprimento das formalidades previstas nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 52.º, n.º 2, alínea a), da Constituição
audição prévia das associações
sindicais e das comissões de trabalhadores.Mas, para além disso, no caso em apreço, e após a diligência feita junto da Assembleia da República, entendi que estava feita a demonstração de que tinha ocorrido a audição prévia exigida por parte das associações sindicais, sendo certo que no que respeita à audição das comissões de trabalhadores estas só têm o direito de participação garantido relativamente às que desenvolvem a sua actividade em empresas e não na área função pública (cf.
Acórdão 22/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., t. I, p. 71).
De acordo com o exposto, acompanho a conclusão - de que a Lei 2/92, de 9 de Março, não sofre do vício de eventual inconstitucionalidade formal por vício procedimental -, mas com fundamentos diversos dos constantes do acórdão.
Por todas as razões que ficam desenvolvidas, não acompanhei a decisão constante das alíneas a) e b) do Acórdão. - Vítor Nunes de Almeida.