1 Relatório
1.1 - O pedido
O Provedor de Justiça (doravante abreviadamente designado «Provedor») vem requerer ao Tribunal Constitucional (TC) a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos n.os 1 e 5 do artigo 3.º do Decreto-Lei 42/84, de 3 de Fevereiro - diploma este que procedeu à extinção do quadro geral de adidos (QGA) e que, através das mencionadas normas, fez integrar em serviços e organismos públicos, bem como nas empresas públicas ou nacionalizadas, os elementos do QGA que se encontrassem requisitados junto daqueles e destas -, alegando que tais normas são não apenas organicamente inconstitucionais, por o Governo carecer de competência para legislar sobre o assunto, mas também materialmente inconstitucionais, por violação dos artigos 47.º, 50.º, 53.º e 267.º da Constituição.Admitido o pedido e solicitado o Primeiro-Ministro a pronunciar-se, veio este apresentar um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros contestando o pedido do Provedor e defendendo a não inconstitucionalidade das normas impugnadas.
Não existindo qualquer obstáculo ao conhecimento do pedido, cumpre apreciá-lo e decidir.
1.2 - As razões do pedido
Os preceitos legais postos em causa no pedido são os n.os 1 e 5 do artigo 3.º do mencionado Decreto-Lei 42/84, cujo teor é o seguinte:Art. 3.º (Integração nos serviços e empresas requisitantes). - 1 - Consideram-se integrados nos organismos e serviços públicos ou nas empresas públicas e nacionalizadas, a partir de 1 de Maio de 1984, os funcionários e agentes do quadro geral de adidos que àquela data se encontrem requisitados junto daqueles há mais de seis meses.
...
5 - O regime estabelecido nos n.os 1 a 3 poderá ser igualmente aplicável aos adidos em actividade há menos de seis meses junto dos serviços e organismos requisitantes e por iniciativa destes.
Sustenta o Provedor, em primeiro lugar, que tais normas, constantes de um decreto-lei, são organicamente inconstitucionais, por invasão da competência legislativa reservada da Assembleia da República (AR), visto que o regime nelas estabelecido não está coberto pela lei de autorização legislativa que o diploma invoca (a Lei 14/83, de 25 de Agosto). São os seguintes os argumentos:
Pela Lei 14/83, o Executivo foi autorizado a legislar em matéria referente ao descongestionamento e subsequente extinção do QGA, incluindo os excedentes constituídos ao abrigo do Decreto-Lei 294/76, de 24 de Abril, e legislação complementar [alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º da citada lei];
Tal autorização visava a «adopção de medidas de aposentação obrigatória, quando for caso disso, e ainda medidas que abranjam os funcionários e agentes na situação de licença sem vencimento, nos termos do artigo 28.º do Decreto-Lei 294/76» (n.º 2 do mesmo preceito);
Todavia, o artigo 3.º do Decreto-Lei 42/84, ao proceder à pretendida extinção e consequente destino do pessoal, exorbitou do campo da falada autorização, ao determinar expressa e forçadamente a integração nas empresas públicas e nacionalizadas, cujo pessoal é regido pelo contrato individual de trabalho (artigo 30.º do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril), de pessoal com o estatuto de funcionário público;
Uma alteração tão significativa no regime de prestação de serviço não estaria, seguramente, inserida no âmbito da autorização legislativa:
O Governo não tinha poderes para retirar o estatuto de funcionário público ao pessoal adido, titular desse mesmo estatuto no QGA, e, paralelamente, impor o ingresso desse pessoal nas empresas públicas e nacionalizadas junto das quais se encontrava a prestar serviço em regime de requisição;
Enfim, ao desrespeitar os limites da autorização legislativa que lhe foi concedida, o Governo violou o disposto na alínea u) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República.
Entende ainda o Provedor que as normas em causa são também materialmente inconstitucionais, por a solução nelas contida contrariar vários preceitos e princípios constitucionais.
Os argumentos do Provedor desenvolvem-se assim:
Os funcionários públicos encontram-se em situação estatutária derivada da lei ou de regulamento e, embora esta situação jurídica objectiva seja modificável no tocante a vários aspectos (categorias, designações funcionais e letras de vencimento), ela não pode, porém, ser extinta livremente pelo legislador;
Na verdade, a modificação unilateral do estatuto funcional não pode ir ao ponto de legitimar a substituição de um estatuto profissional por outro, como no caso ocorrente, sem pelo menos dar aos interessados a faculdade de optar pelo novo estatuto, uma vez que se encontram a prestar serviço em regime de requisição, ao abrigo do qual se não pode operar a perda da qualidade de funcionário público (cf. artigo 25.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro, que reproduz o artigo 9.º do Decreto-Lei 165/82, de 10 de Maio);
Os membros do QGA tinham um estatuto de função pública, visto que o ingresso de agentes não sujeitos a regime de direito público ficou dependente da prévia atribuição, por via legal, da qualidade de trabalhador da função pública (artigo 22.º do Decreto-Lei 294/76);
Ora, o pessoal das empresas públicas rege-se pelo regime de contrato individual de trabalho, excepção feita ao pessoal das empresas que explorem serviços públicos, para o qual poderá ser definido um regime de direito administrativo (n.º 1 do artigo 30.º do Decreto-Lei 260/76), verificando-se que no caso da ANA, E. P., o artigo 6.º do Decreto-Lei 246/79, de 25 de Julho, ressalvou a situação do pessoal originário de serviços e organismos do Estado, determinando que esse pessoal exerce as suas funções em regime de requisição com direito a optar definitiva e individualmente pelo regime de contrato individual de trabalho a que está submetido o pessoal não oriundo dos serviços e organismos estatais (n.º 2 do artigo 38.º do estatuto da empresa, anexo ao referido decreto-lei);
Assim, a medida de integração ope legis de funcionários do QGA nos quadros de empresas públicas representa a supressão de um estatuto profissional com dispensa absoluta de intervenção dos interessados, sendo estes obrigados a aceitar a integração e, com ela, a perda de um estatuto (funcionário) e a aquisição de outro (trabalhador de empresa pública) submetido a regime de direito privado;
Por isso, a liberdade de escolha de uma profissão e acesso à função pública é completamente desrespeitada pelo artigo 3.º do Decreto-Lei 42/84 quando, nos seus n.os 1 e 5, impõe a integração nas empresas públicas de pessoal com o estatuto de funcionário público, prescindindo de qualquer opção dos respectivos destinatários;
Por outro lado, se o Estado se deve abster de qualquer discriminação na escolha dos eventuais candidatos a funções públicas, não poderá deixar de, por igualdade de razão, observar a proibição de despedimentos sem justa causa ou por razões ideológicas, por força do disposto no artigo 53.º;
Por isso, o direito fundamental ao exercício de funções públicas resulta ofendido pela já referida integração ope legis;
Acresce que, no que respeita à «liberdade de acesso» à função pública, a Constituição (artigo 50.º) poderá ter querido reportar-se também à voluntariedade de aceitação ou cessação de funções;
Por isso, ao determinarem a substituição do estatuto de funcionário público por outro, as mencionadas normas violam os direitos fundamentais dos cidadãos enquanto funcionários públicos (Constituição, artigos 269.º e 271.º).
Enfim, o Provedor entende que os n.os 1 e 5 do artigo 3.º do Decreto-Lei 42/84 ofendem as normas dos artigos 47.º, n.º 1, 50.º, 53.º e 266.º, n.º 1, com referência ao artigo 18.º, da Constituição, e pede, em consequência, que se declare com força obrigatória geral a inconstitucionalidade dos referidos preceitos legais.
Ouvido o Primeiro-Ministro, este pronunciou-se pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade orgânica ou material.
Quanto ao primeiro aspecto, alega, em síntese:
As normas dos n.os 1 e 5 do artigo 3.º do Decreto-Lei 42/84 são susceptíveis de conformar-se desde logo com a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º da Lei 14/83, onde se concede ao Governo autorização para legislar sobre uma adequada gestão dos recursos humanos, em particular o pleno aproveitamento dos excedentes e a sua efectiva mobilidade;
A alínea b) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 1.º da referida lei terão de enquadrar-se na política global, não parecendo razoável que se conceda uma autorização de ordem global para de seguida se procurar esvaziar o conteúdo da mesma, buscando particularidades para classificar as situações de específicas;
Assim, a integração dos referidos funcionários deve compreender-se contida na autorização legislativa, interpretando-se conjugadamente as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1.º da lei de autorização.
No entendimento do Primeiro-Ministro tão-pouco se verifica qualquer das inconstitucionalidades materiais invocadas no pedido do Provedor:
Primeiro, as normas em causa não impedem que se escolha livremente uma profissão ou género de trabalho, pelo que não existe nenhuma violação do n.º 1 do artigo 47.º, o qual, de resto, permite restrições a esse direito:
Também porque as matérias das normas impugnadas e a do artigo 50.º da lei fundamental são diferentes, não pode existir qualquer conflito entre as primeiras e esta norma constitucional;
Quanto à eventual violação do artigo 53.º da lei fundamental, que estabelece a segurança no emprego, a mesma não se verificaria porque, sendo a situação de adido (artigo 16.º do Decreto-Lei 294/76, de 24 de Abril) ou a posição funcional de requisitado categorias transitórias, foi exactamente para se conseguir uma maior segurança no emprego dessa categoria de adidos que as normas em análise estabeleceram a integração;
De resto, esta medida não visa qualquer despedimento sem justa causa nem qualquer perseguição de natureza política, mas uma integração plena e efectiva dos referidos funcionários nas empresas públicas e nacionalizadas, com absoluto respeito pelo artigo 53.º da Constituição;
Finalmente, porque os preceitos do decreto-lei em apreciação em nada contrariam o interesse público nem os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, cuja melhor forma de prosseguir é com a integração dos funcionários adidos nas empresas públicas ou nacionalizadas, não existe também qualquer violação do n.º 1 do artigo 266.º da Constituição.
1.3 - Objecto do pedido
Apesar de no intróito do seu requerimento o Provedor se referir, sem mais, às «normas dos n.os 1 e 5 do artigo 3.º do Decreto-Lei 42/84», a verdade é que se torna evidente que o pedido não abrange essas normas em toda a sua extensão. Com efeito, toda a exposição e fundamentação subsequentes do Provedor indicam que só está em causa a parte dessas normas que se refere à integração dos adidos nas empresas públicas e nacionalizadas, não estando abrangidas pelo pedido as mencionadas normas na parte em que determinam a integração dos adidos nos «serviços e organismos públicos».É fácil verificar que nenhum dos argumentos do Provedor (nem sequer o argumento da inconstitucionalidade orgânica) tem algo a ver com a integração dos adidos nos serviços da Administração Pública em que se encontrem requisitados. Eles só serão eventualmente válidos para o caso de integração dos adidos nas empresas públicas e nacionalizadas: só nesses casos é que se verifica uma alteração de estatuto, visto que eles deixam de ser funcionários públicos, membros da Administração Pública, para passarem a possuir um estatuto de direito laboral comum, aliás de acordo com a natureza das empresas públicas.
Deve, assim, concluir-se que no pedido do Provedor só é questionada a parte daqueles dispositivos que consubstancia as seguintes normas:
Consideram-se integrados nas empresas públicas e nacionalizadas, a partir de 1 de Maio de 1984, os funcionários e agentes do QGA que àquela data se encontrem requisitados junto das mesmas há mais de seis meses (artigo 3.º, n.º 1);
O regime estabelecido nos n.os 1 a 3 poderá ser igualmente aplicável aos adidos em actividade há menos de seis meses junto das empresas requisitantes e por iniciativa destas (artigo 3.º, n.º 5).
Note-se que, ao suscitar a apreciação também do n.º 5 do artigo 3.º, o Provedor parece ter partido do pressuposto de que ele também é aplicável aos adidos requisitados junto de empresas públicas e nacionalizadas, mencionadas nos n.os 1, 2, alínea c), e 4. Só que isso não é evidente, pelo contrário. Na verdade, aquele n.º 5 não se refere expressamente a empresas públicas, mas apenas aos «serviços e organismos requisitantes». Ora, cotejando esse texto com o do n.º 1, torna-se evidente que a diferença está exactamente aí, na omissão da referência às «empresas públicas e nacionalizadas», mencionadas no n.º 1 ao lado dos «serviços e organismos públicos». É certo que, à primeira vista, não se vê razão para a distinção de regimes, mas é inegável que a diferença existe, tão próximos estão os textos.
Assim, o texto do n.º 5 não se aplica afinal ao caso que motiva a presente «acção de inconstitucionalidade».
Mesmo que se admitisse que a norma do n.º 5 é susceptível de ser aplicada também aos adidos requisitados junto de empresas públicas e nacionalizadas, por via analógica (e tal parece ser, salvo lapso, o entendimento do Provedor), ainda assim não é necessário considerá-la aqui autonomamente. Pois das duas uma: ou se vem a concluir que o preceito do n.º 1, na parte aqui considerada (ou seja, na parte em que abrange os elementos do QGA que se encontravam requisitados junto das empresas públicas e nacionalizadas), não é inconstitucional, e então o preceito do n.º 5 subsiste igualmente, mesmo que ele tenha âmbito idêntico ao n.º 1; ou o preceito do n.º 1 vem a ser declarado inconstitucional (na parte aqui considerada), e então tal declaração repercutir-se-ia necessariamente no n.º 5, visto que este só por referência ao n.º 1 é que poderá ser entendido de modo a abranger também as empresas públicas e nacionalizadas.
Por conseguinte, para todos os efeitos, basta proceder ceder à análise e apreciação do n.º 1 do artigo 3.º, na parte mencionada, para dar inteira satisfação ao pedido feito ao Tribunal pelo Provedor.
Note-se, finalmente, que o pedido não compreende outras normas que explicitamente prevêem a integração dos adidos nas empresas públicas ou nacionalizadas em que se encontrem requisitados. É o caso do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), segunda parte, bem como dos n.os 2, alínea c), 4 e 7 do referido artigo 3.º Poderia entender-se que isso se deve apenas a ter-se partido do pressuposto de que tais normas não possuem autonomia, estando necessariamente dependentes do n.º 1 do artigo 3.º, pelo que não poderiam deixar de ser solidárias com este, e que, se este houvesse de ser declarado inconstitucional, também aqueles preceitos seriam atingidos, ficando sem eficácia. Todavia, não é necessariamente assim, tudo dependendo da medida em que se considere que a norma do n.º 1 está aqui em causa. É problema que adiante será especialmente abordado (infra, 2.1.3).
2 Fundamentação
2.1 - Enquadramento da questão
2.1.1 - O quadro geral de adidos
Antes de se proceder à análise das questões de inconstitucionalidade aqui envolvidas importa ter em conta a origem e a evolução legislativa do QGA, a fim de facilitar o posterior desenvolvimento da argumentação.Foi o Decreto-Lei 294/76, de 24 de Abril, que criou o QGA, reunindo num único quadro todo o pessoal excedentário proveniente designadamente da descolonização, bem como da extinção, reconversão ou reorganização de serviços ou organismos administrativos ou institutos públicos, e que não foi directamente integrado em outros serviços ou organismos administrativos. O pessoal integrado no QGA mantinha a vinculação à Administração Pública, com vista à sua futura integração em outros serviços ou organismos (artigos 16.º e 17.º do referido diploma).
O QGA integrou pessoal com diversos estatutos: juntamente com os que tinham uma relação de emprego de direito público (independentemente da natureza, definitiva ou não, do vínculo) foram integrados agentes que tinham uma de direito privado (artigo 10.º do mencionado diploma). Os adidos já sujeitos a regime de direito público mantiveram no QGA a natureza da investidura que possuíam nos serviços de origem (artigo 23.º). A integração dos agentes não sujeitos a regime de direito público dependia de prévia atribuição, por via legal, da qualidade de trabalhador da função pública, sendo por isso objecto da necessária classificação (artigo 22.º).
Desvinculados do serviço ou do organismo de origem, os adidos mantiveram (ou, no caso de as não terem, adquiriram) todas as prerrogativas comuns a todo o funcionalismo público, salvo naturalmente as que pressupõem o exercício de funções (artigos 23.º e 25.º), sendo-lhes sempre contado o tempo em que permanecerem no QGA (Decreto-Lei 175/76, de 13 de Julho, artigo 8.º); o mesmo sucedia quanto aos deveres e incompatibilidades (artigos 27.º e 28.º).
A situação de adido era naturalmente de carácter transitório, visando a integração em outros serviços ou organismos públicos (artigos 16.º e 23.º, n.º 1). Todavia enquanto isso não sucedesse e se mantivessem no QGA, os adidos poderiam encontrar-se em uma de duas situações:
a) Na disponibilidade, mantendo-se inactivos;
b) Em actividade, quer no próprio QGA (frequência de cursos de formação de aperfeiçoamento, ou destacamento noutros serviços), quer fora do quadro, mediante requisição ou comissão de serviço (artigos 29.º, 32.º e 35.º do Decreto-Lei 294/76 e Decreto-Lei 389/78, de 12 de Dezembro).
É de sublinhar que o adido não podia recusar-se a passar à situação de actividade, sob pena de abandono do lugar (artigo 35.º do Decreto-Lei 294/76).
Aqui interessa acompanhar particularmente a figura da requisição. Os adidos requisitados não abandonavam o QGA e mantinham aí a respectiva categoria;
gozavam no serviço utilizador de todas as regalias dos lugares que ocupavam;
eram pagos pelos serviços ou organismos utilizadores (artigos 29.º, n.º 3, e 36.º).
A requisição era feita por tempo indeterminado, sendo os requisitados remunerados pelo serviço requisitante, salvo casos especiais previstos na lei, em que as remunerações poderiam ser encargo do QGA (Decreto-Lei 389/78, artigo 2.º).
Inicialmente, não estava prevista a actividade de adidos fora dos serviços administrativos do Estado. Mas logo o Decreto-Lei 615/76, de 27 de Junho, veio permiti-la nas empresas públicas e nas «pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública administrativa», designadamente ao abrigo da figura da requisição.
Entre as formas previstas na lei para que o pessoal pertencente ao QGA deixasse de estar integrado nele conta-se a integração nos serviços e organismos administrativos, em vaga de categoria igual ou equivalente (ou, em certos casos, superior) à que os adidos possuíam no QGA (Decreto-Lei 294/76, artigos 39.º, 41.º e seguintes). O adido não podia, em princípio, recusar a integração, equivalendo a recusa a abandono de lugar (artigo 46.º). Os adidos providos em lugares dos quadros ou além dos quadros de serviços ou organismos públicos não poderiam tomar posse sem prévio pedido de exoneração do QGA (Decreto-Lei 819/76, de 12 de Novembro, artigo 5.º).
Posteriormente, veio a ampliar-se a possibilidade de integração de adidos em empresas públicas ou privadas, bem como em instituições de segurança social, pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública administrativa e organismos de coordenação económica, desde que a pedido do próprio adido, e sem prejuízo da qualidade de subscritor da Caixa Geral de Aposentações (Decreto-Lei 175/78, de 13 de Julho, artigo 4.º).
A partir de certa altura, vários diplomas vieram determinar a integração global e automática dos adidos nos serviços ou organismos em que se encontrassem em actividade. Foi assim que o Decreto-Lei 179/80, de 3 de Junho, fez integrar nos quadros da administração local os adidos que aí se encontrassem requisitados ou em comissão de serviço, bem como dos que viessem a encontrar-se nessas situações; o Decreto-Lei 182/80, da mesma data, efectuou a mesma operação em relação aos serviços e organismos da administração central dotados de quadros de pessoal, e o Decreto-Lei 422/80, de 30 de Setembro, veio aplicar a mesma solução aos adidos em actividade junto dos serviços e organismos administrativos que não dispunham de quadros aprovados por lei, bem como junto dos organismos de coordenação económica.
Finalmente, o Decreto-Lei 42/84, em causa no presente processo, veio estender a mesma solução aos adidos que se encontravam requisitados em empresas públicas ou nacionalizadas. É essa situação que é impugnada pelo Provedor de Justiça.
2.1.2 - O regime jurídico do pessoal das empresas públicas
Nos termos do artigo 30.º do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, que contém o regime geral das empresas públicas, as relações de trabalho regem-se pela lei do contrato individual de trabalho, salvo no caso das empresas que prestem serviços públicos, para as quais poderão ser previstos regimes de direito administrativo.
Existe, assim, um regime regra que é fácil enunciar: os trabalhadores das empresas públicas compartilham do regime jurídico dos trabalhadores das empresas privadas e não do regime da função pública. Aliás, esse princípio veio a sofrer poucas excepções, pois é bem escasso o número de empresas públicas cujo regime de trabalho foge à regra (cf. J. A. Lourenço, O Regime de Trabalho nas Empresas Públicas, Coimbra, 1984). Acresce que, mesmo nesses casos contados, não vigora integralmente o regime jurídico da função pública. Assim, no caso da Caixa Geral de Depósitos, a respectiva Lei Orgânica determina que o pessoal está sujeito ao regime jurídico do funcionalismo público, mas com as modificações exigidas pela natureza específica da empresa, e que incidem em matéria de admissões, acessos, categorias e vencimentos, bem como quanto ao regime disciplinar (cf.
Decreto-Lei 48953, de 5 de Abril de 1969 com a redacção do Decreto-Lei 461/77, de 7 de Novembro); no caso dos CTT, o primitivo regime de direito público previsto no estatuto da empresa (Decreto-Lei 49368, de 10 de Novembro de 1969) e contido na Portaria 706/71, de 18 de Dezembro, «veio a ser profundamente alterado, no sentido de uma significativa aproximação com o regime jurídico do contrato individual de trabalho, pela portaria de regulamentação de trabalho dos CTT, publicada na 1.ª série do BTE, n.º 28, de 1977» (J. A. Lourenço, ob. cit., p. 236); na Radiodifusão Portuguesa só os trabalhadores oriundos da antiga Emissora Nacional mantêm o regime de direito público que lhes era próprio; na empresa pública Aeroportos e Navegação Aérea (ANA, E. P.) o respectivo estatuto prevê a existência de um estatuto do pessoal próprio, valendo, para além dele, o regime jurídico do contrato individual de trabalho (cf. artigo 7.º do Decreto-Lei 246/79, de 25 de Julho); finalmente, na própria empresa pública Indústrias Nacionais de Defesa, E. P. - INDEP, o estatuto do pessoal civil obedecerá, em princípio, ao regime de contrato individual de trabalho (Decreto-Lei 515/80, de 31 de Outubro, artigos 42.º e seguintes).
Importa ainda sublinhar que, mesmo no caso das empresas em que o regime de pessoal possui características de direito público, a verdade é que esse pessoal não está propriamente integrado na função pública, nem os trabalhadores são legalmente considerados como funcionários públicos.
Resta, todavia, saber se a resposta à questão da constitucionalidade das normas do Decreto-Lei 42/84 aqui em causa há-de variar conforme a integração dos adidos se tenha operado em empresas públicas com regime de trabalho de direito privado ou com um regime de direito público.
2.1.3 - Sentido e alcance das normas em causa
As normas impugnadas pelo Provedor têm dois destinatários: por um lado, os adidos que são integrados; por outro lado, as empresas que os integram.
Aqueles são integrados automaticamente, passando à qualidade de trabalhadores das empresas em que se encontram colocados na situação de requisitados; as empresas passam a ser titulares de relações de trabalho com os integrados. Os efeitos produzem-se na esfera jurídica de ambos os destinatários independentemente da sua vontade. Só não sucede assim quanto às empresas «que comprovem de forma inilidível que, por força de medidas de racionalização, em curso ou previsíveis, vai verificar-se a criação de excedentes de pessoal» (n.º 4 do artigo 3.º do referido diploma). Quanto aos adidos não se prevê nenhuma excepção; nem se exige o seu assentimento e é irrelevante a sua oposição.
No presente processo, as normas questionadas estão em causa não naquilo em que obrigam as empresas públicas a integrar os adidos nos seus quadros, mas sim naquilo em que obrigam os adidos a integrarem-se nos quadros das empresas públicas. É, aliás, por isso que o pedido não abrange as normas da alínea c) do n.º 2 e do n.º 4, que se referem explicitamente aos deveres das empresas decorrentes da obrigação de integração dos adidos.
Por conseguinte, na apreciação do pedido aqui em causa não interessa sequer abordar a questão de legitimidade da obrigação imposta às empresas públicas; só interessa considerar a questão da obrigação imposta aos adidos.
A questão é, no fundo, apenas esta: é constitucionalmente lícito que o Estado faça integrar os adidos nos quadros das empresas públicas sem o seu assentimento? 2.2 - A questão da inconstitucionalidade orgânica 2.2.1 - O problema O Provedor alega que as mencionadas normas são inconstitucionais por violação da alínea u) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP, visto que a autorização legislativa invocada não abarcaria o assunto sobre que elas versam.
Todavia, a questão de saber qual o alcance da Lei 14/83 só tem interesse se se verificar que a matéria dos preceitos questionados do Decreto-Lei 42/84 tem por objecto matéria da reserva da competência legislativa da AR, sobre a qual o Governo só pudesse legislar se devidamente autorizado pela AR.
Há, assim, dois problemas para resolver:
a) Saber se tal matéria integra as «bases do regime e âmbito da função pública», que tal é o teor da referida norma constitucional;
b) No caso de resposta afirmativa, saber se o Governo estava ou não autorizado pela AR a legislar sobre o assunto.
2.2.2 - Sentido e alcance da alínea u) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP
Consiste este primeiro problema em saber se o regime constante das normas questionadas cabe ou não nas «bases do regime e âmbito da função pública».
O Provedor não aborda explicitamente este problema, parecendo dar, à partida, por adquirido que isso se verifica. Por seu lado, o Primeiro-Ministro não contesta esse entendimento, parecendo igualmente dar isso por pressuposto, limitando-se a argumentar que a lei de autorização legislativa habilitava o Governo a legislar sobre a matéria.
A verdade é que quer o Governo quer a AR - o primeiro ao solicitar a autorização legislativa e a segunda ao dá-la - pressupuseram claramente que as matérias aí abrangidas (incluam ou não a especialmente contida nas normas em questão) caem na esfera da competência legislativa relativamente reservada da AR.
Há boas razões para não divergir desse entendimento. É certo que não é possível definir com rigor a fronteira entre o que constitui e o que não constitui as «bases do regime e âmbito da função pública», sendo certo, aliás, que não existe ainda nenhum diploma que sistematize organicamente tais «bases».
Seguramente, porém, que entre as bases do regime da função pública há-de contar-se o saber se e em que condições é que o Estado pode retirar aos seus funcionários o estatuto da função pública.
De duas uma: ou existe uma lei quadro do regime da função pública aprovada pela AR (ou pelo Governo, mediante autorização), e então toda a legislação governamental posterior se deve conformar com ela, sob pena de inconstitucionalidade orgânica; ou não existe tal lei quadro, e então todas as normas que, pela natureza e relevância das soluções que contenham, afectem aspectos que hajam de ser considerados como integrantes das bases do regime da função pública terão de ser aprovadas pela AR ou mediante autorização sua.
Sucede que não existe tal lei quadro da AR. E também não existe nenhuma lei da AR que proteja a possibilidade de desfuncionalização dos funcionários públicos, mediante a sua transferência para organizações não pertencentes à Administração Pública propriamente dita.
Uma tal solução não poderá ser definida pelo Governo sem autorização legislativa para o efeito. Resta então saber se a Lei 14/83 dava tal cobertura.
2.2.3 - O sentido e alcance da Lei 14/83
Dizia o artigo 1.º dessa lei:
Artigo 1.º (Objecto, sentido e extensão).
1 - O Governo é autorizado a legislar:
a) Em matéria referente ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de medidas de emprego da função pública e a uma adequada gestão dos seus recursos humanos, em particular o pleno aproveitamento dos excedentes e a sua efectiva mobilidade, podendo a aplicação de tais medidas ser alargada à administração local;
b) Em matéria referente ao descongestionamento e subsequente extinção do quadro geral de adidos, incluindo os excedentes constituídos ao abrigo do Decreto-Lei 294/76, de 24 de Abril, e legislação complementar.
2 - A autorização a que se refere a alínea a) do n.º 1 visa a reformulação da matéria contida nos Decretos-Leis n.os 164/82, 165/82, 166/82, 167/82, 168/82 e 171/82, todos de 10 de Maio, no sentido de obter uma melhor descentralização, racionalização, simplificação burocrática e desconcentração do aparelho administrativo do Estado.
3 - A autorização a que se refere a alínea b) do n.º 1 visa a adopção de medidas de aposentação obrigatória, quando for caso disso, e ainda medidas que abranjam os funcionários e agentes na situação de licença sem vencimento nos termos do artigo 28.º do Decreto-Lei 294/76.
Alega o Provedor que o regime do Decreto-Lei 42/84, na parte que aqui está em causa, não se encontra coberto pela alínea b) do n.º 1 e pelo n.º 3 deste preceito da lei de autorização. Responde o Primeiro-Ministro que tal regime cabe seguramente na norma da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2, que é de carácter geral.
Analisando a estrutura da lei de autorização, tudo aponta para a existência de duas autorizações distintas, referidas a cada uma das alíneas a) e b) do n.º 1, as quais são depois explicitadas respectivamente nos n.os 2 e 3. Não existe nenhuma relação de generalidade/especialidade entre os dois conjuntos de normas. A autorização contida na alínea b) do n.º 1 e no n.º 3 não é uma autorização especial face a uma autorização de carácter geral supostamente contida na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2. Basta comparar o teor dos textos para verificar que é diferente o objecto de uma e outra das autorizações e que o âmbito da autorização contida na alínea a) do n.º 1 e explicitada no n.º 2 - que poderemos designar por autorização A1 - não tem nada a ver directamente com a alínea b) do n.º 1, explicitada no n.º 3 (autorização A2).
Aliás, nenhuma hermenêutica poderia apoiar uma solução que resolva o conflito entre uma norma geral e uma especial, sacrificando esta em favor da ilimitada eficácia daquela. A tese do Governo redundaria no puro e simples aniquilamento da segunda autorização legislativa (a que aqui importa), como se ela não existisse. Ora, como claramente resulta da letra dos textos, cada uma das alíneas do n.º 1 tem uma função normativa específica.
Assim, não pode a autorização concedida na alínea a) do n.º 1 (delimitada no n.º 2) ser invocada para abranger as normas referidas do Decreto-Lei 42/84, o qual só pode reclamar-se da autorização concedida na alínea b) (delimitada no n.º 3).
Por conseguinte, a autorização A1 não pode ser invocada para alargar o âmbito da autorização A2. Só esta é que se refere à extinção do QGA e só com referência a ela é que se pode averiguar se há ou não cobertura para o regime que veio a constar do decreto-lei, na parte que aqui interessa.
Aliás, mesmo que se entendesse que a autorização A2 é apenas uma especificação da autorização A1, a verdade é que nem por isso esta podia ser invocada para ampliar o sentido daquela. Mesmo que a autorização A2 fosse uma particularização da autorização A1, ela teria de ter uma função própria:
justamente a de limitar essa autorização particular aos precisos termos em que ela é concedida, ou seja, aos termos conjugados da alínea b) do n.º 1 e do n.º 3.
Com efeito, também não se pode considerar a alínea b) do n.º 1 separadamente do n.º 3. Aquela norma não é nada sem esta; é esta que dá o sentido àquela. A alínea b) do n.º 1 apenas delimita o objecto («matéria») sobre o qual o Governo é autorizado a legislar; o n.º 3 define o sentido em que o Governo fica autorizado a legislar {«a autorização a que se refere a alínea b) do n.º 1 visa [...]»}. Ora, nos termos da Constituição as autorizações legislativas tem de indicar não apenas o objecto, mas também o sentido da autorização legislativa (artigo 168.º, n.º 2). O n.º 3 integra necessariamente autorização legislativa, juntamente com a alínea b) do n.º 1; sem aquele, esta não preencheria os requisitos constitucionais, pois seria uma autorização em branco quanto ao sentido. Portanto, o Decreto-Lei 42/84 só poderá ter-se por devidamente autorizado se ele encontrar suficiente abrigo no conjunto daqueles dois preceitos.
Interessa, por isso, saber qual é o alcance desses preceitos, de modo a averiguar se eles podem dar cobertura ao Decreto-Lei 42/84, na parte aqui em causa.
A letra dos preceitos aponta claramente para uma resposta negativa. Não existe aí nenhuma referência directa ou indirecta, expressa ou implícita, à ideia de desfuncionalização dos adidos que se encontrassem requisitados por empresas públicas ou nacionalizadas.
Poderia, aliás, dizer-se que não se vislumbra também qualquer referência à ideia de integração dos adidos nos próprios serviços e organismos da Administração Pública. Mas quanto a esse ponto - que, de resto, não está em causa no pedido do Provedor - as coisas são bem diferentes. Por um lado, no caso de extinção de um quadro de funcionários, constitui solução normal reparti-los por outros serviços ou organismos. Aí não se dá perda do estatuto de funcionário público, continuando os adidos a ser funcionários do Estado.
Por outro lado, a verdade é que essa faculdade foi expressamente mencionada na justificação de motivos apresentada pelo Governo perante a AR.
Na sua fundamentação do pedido de autorização legislativa, no ponto respeitante aos adidos, o Secretário de Estado da Administração Pública afirmou que as medidas propostas tinham por objecto:
A obrigatoriedade da integração de adidos e excedentes que satisfaçam necessidades permanentes dos serviços e organismos em que exerçam actividade;
A extinção do QGA através de medidas que definam, em termos finais, o destino a dar aos funcionários e agentes, adidos ou excedentes na situação de disponibilidade, que, pelas suas características profissionais e pelo prazo decorrido desde que ingressaram no QGA (por vezes há mais de cinco anos), se revelem de difícil ou impossível colocação, ainda que por recurso a processos de reconversão profissional;
Finalmente, a clarificação selectiva da situação dos adidos e excedentes - nomeadamente, quanto a estes, os provindos do IARN - que se encontrem na situação de licença sem vencimento e por tempo indeterminado (isto é, regresso à actividade em determinado prazo com garantia de integração ou aposentação obrigatória). (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, III Legislatura, 1983, 1.ª sessão, n.º 19, p. 744.) Respondendo a uma pergunta de um deputado, o Secretário de Estado repetiu a mesma ideia:
Quanto à extinção do QGA e quanto ao destino do seu pessoal, já afirmei, mas repito, que nele existem as seguintes situações: há pessoal na disponibilidade, isto é, pessoal que se encontra teoricamente sem trabalhar nem no sector público nem no sector privado. São cerca de 1600 e, verificando-se que são efectivamente incolocáveis, serão aposentados; há pessoal na actividade, isto é, pessoal que está a trabalhar nos diversos serviços de Estado mas que ainda não está integrado nos quadros desses serviços. Esse pessoal será integrado nos quadros desses serviços, alterando-se para o efeito os mesmos quadros, e que são, em 11 de Julho, 3100, e há pessoal com licença sem vencimento, isto é, pessoal nessa situação, mas a trabalhar na actividade privada, e que são 1200. Quanto a estes, ser-lhes-á dado um prazo para regressarem à actividade e, se o não fizerem, serão aposentados. (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, III Legislatura, 1983, 1.ª sessão, n.º 20, p.
754; itálicos acrescentados.) Daqui decorre claramente que nos trabalhos preparatórios nunca se referiu a possibilidade de transferência dos adidos de Administração Pública para as empresas públicas e que esse facto é tanto mais relevante quanto o princípio de integração dos adidos foi reiteradamente afirmado quanto aos serviços e organismos administrativos.
De resto, como se sublinhou já (supra, 2.1.1), a integração automática dos adidos nos serviços administrativos em que se encontrassem requisitados já estava há muito prevista na lei. Basta referir o Decreto-Lei 182/80, de 3 de Junho, que fez integrar nos «serviços e organismos da administração central os funcionários adidos em actividade junto dos mesmos à data da publicação do presente diploma», e que determinou igualmente a integração dos adidos que posteriormente viessem a ser colocados nos mesmos serviços ou organismos, «com efeitos a partir do início do ano seguinte ao da colocação».
O Decreto-Lei 422/80, de 30 de Setembro, veio ampliar esse regime, aplicando-o aos organismos de coordenação económica e aos serviços e organismos públicos que não dispunham de quadros aprovados por lei.
O que é essencialmente novo no Decreto-Lei 42/84 é a integração automática dos adidos que se encontrassem requisitados nas empresas públicas. Com efeito, anteriormente, a lei apenas previra a integração de adidos nas empresas públicas (bem como em empresas privadas e outras entidades privadas) desde que mediante solicitação do próprio (artigo 4.º do Decreto-Lei 175/78, de 13 de Julho). Ora, a diferença - e diferença essencial - do regime do diploma aqui em apreço está em que a integração nas empresas públicas e nacionalizadas é automática, independentemente de solicitação ou assentimento do interessado. Mas é justamente esse regime essencialmente inovatório que não encontra nenhuma referência expressa ou implícita na lei de autorização.
As leis de autorização devem ser interpretadas como quaisquer outras leis, recorrendo-se, designadamente, aos critérios do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, nos termos do qual «não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso».
Comentando este preceito, dizem Pires de Lima e Antunes Varela que «[...] o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei», (Código Civil Anotado, 1.º vol., 3.ª ed., p. 58).
Ora, reconstituindo o «pensamento legislativo» através dos trabalhos preparatórios, verifica-se que nunca foi feita referência à integração em empresas públicas ou nacionalizadas. Todas as referências dizem respeito a «serviços e organismos», sendo que esta expressão abrange apenas os serviços administrativos da administração directa e indirecta do Estado.
Só que a integração nas empresas públicas não tem o mesmo valor que a integração em serviços ou organismos administrativos. E, mesmo que se pudesse admitir que para determinar esta o Governo não precisava de autorização, já o mesmo não pode entender-se em relação àquela. Tendo em conta o seu alcance e significado, não poderia o Governo prescrevê-la sem autorização da AR. Não a pediu, pelo que não a obteve. Ao legislar sobre a matéria sem a necessária autorização, o Governo invadiu assim a competência legislativa reservada da AR. As normas questionadas são por isso inconstitucionais.
2.3 - A questão da inconstitucionalidade material
2.3.1 - Alcance e sentido das normas em causa
Não oferece dúvidas a determinação do sentido e alcance das normas cuja constitucionalidade vem impugnada. Parece evidente que os elementos do QGA, que eram funcionários do Estado, passam a ser considerados, por efeito directo da lei, trabalhadores das empresas nas quais se encontrassem requisitados.
Que os adidos possuíam o estatuto do funcionalismo público é inquestionável, como se viu (cf. supra, 2.1.1). É certo que o QGA foi constituído também por agentes que não eram funcionários públicos (cf. artigo 17.º do Decreto-Lei 294/76, de 24 de Abril). Todavia, o ingresso no QGA dos agentes não sujeitos a regime de direito público dependia, necessariamente, de prévia atribuição, por via legal, da qualidade de trabalhador da função pública (artigo 22.º, n.º 1, do mencionado diploma), com todas as consequências inerentes (cf. artigos 25.º a 28.º desse diploma).
É igualmente inquestionável que, ao serem «integrados» em empresas públicas ou nacionalizadas, os adidos adquirem o estatuto jurídico dos respectivos trabalhadores, o qual, como atrás se anotou (supra, 2.1.2) é, por via de regra, o regime geral do contrato de trabalho (cf. Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, artigo 30.º).
Deste modo, com a integração dos adidos nas empresas públicas e nacionalizadas operam-se dois efeitos jurídicos: os adidos perdem o estatuto de funcionário público, deixando de ser mesmo servidores do Estado, por efeito de acto unilateral deste; os adidos passam a estar vinculados a uma relação de trabalho com as empresas em que se encontravam a trabalhar, isto por efeito directo da lei, independentemente da sua vontade. Noutros termos:
as normas questionadas determinaram a perda do estatuto de funcionário público e, concomitantemente, a vinculação dos interessados a uma relação de trabalho com terceiros. Os interessados perderam um estatuto funcional e foram adstritos a outro; deixaram de estar vinculados à Administração para passarem a trabalhadores de uma empresa pública, mas em regime de direito privado.
Os problemas de inconstitucionalidade que este regime suscita reportam-se a dois pontos:
a) Possibilidade de o Estado retirar unilateralmente o estatuto de funcionário a servidores seus, desvinculando-se, portanto, das respectivas obrigações;
b) Possibilidade de a lei impor a alguém um vínculo laboral com terceiros, independentemente da sua vontade.
Limitando assim a problemática da inconstitucionalidade material, considera-se liminarmente afastada qualquer ligação com os artigos 50.º e 266.º, n.º 1, da Constituição, cuja violação também é invocada no requerimento do Provedor. Quanto ao primeiro, parece evidente que ele tem por objecto o direito de acesso a cargos públicos - e não, propriamente, à função pública -, sendo, portanto, totalmente alheios às questões que aqui se levantam. Quanto ao artigo 266.º, n.º 1, também não se vê qualquer relevância directa para a problemática que aqui interessa.
2.3.2 - O direito à segurança no emprego e o estatuto da função pública
As normas questionadas, na parte respeitante aos elementos do QGA requisitados em empresas públicas e nacionalizadas, traduzem-se em o Estado romper unilateralmente a relação funcional com os funcionários públicos envolvidos, os quais, de qualquer modo, se vêem privados do seu estatuto de funcionário. Tem razão o Provedor quando sublinha que se verifica a «perda da relação de serviço público».
São por isso legítimas duas questões:
a) Pode o Estado, unilateralmente, romper a relação de emprego com os seus funcionários? b) Em qualquer caso, pode ele, unilateralmente, retirar-lhe o estatuto de funcionário público? A primeira questão envolve directamente o artigo 53.º da Constituição, que garante a segurança no emprego, proibindo expressamente os despedimentos sem justa causa. Com efeito, em relação aos adidos que foram «transferidos» para as empresas públicas, o Estado desfez-se deles, rompeu o vínculo jurídico com eles. Em certo sentido, despediu-os. É certo que, do mesmo passo, transferiu-os para as empresas públicas onde se encontravam requisitados, mas a verdade é que as empresas públicas são entidades diversas do Estado e, embora entes públicos, não pertencem à Administração Pública em sentido próprio. Juridicamente, a questão é clara: o Estado dispensou esses funcionários. Estes estavam vinculados ao Estado e deixaram de o estar por vontade unilateral deste.
Ora, essa dispensa ope legis afronta directamente o direito à segurança no emprego. O Estado não pode dispensar livremente os seus funcionários. Nem a extinção ou remodelação de serviços pode constituir motivo adequado para isso. Pode dar lugar à transferência para outros serviços ou organismos públicos, à criação de excedentes inactivos, etc., mas não pode justificar de modo algum a dispensa dos atingidos, fora dos processos constitucionalmente admitidos.
Não podendo dispensar livremente os seus funcionários, o Estado também não pode livremente retirar-lhes o seu estatuto específico.
Com efeito, o funcionário público detém um estatuto funcional típico quanto à relação de emprego em que está envolvido, estatuto este que consiste num conjunto próprio de direitos e regalias e de deveres e responsabilidades que o distinguem da relação de emprego típica das relações laborais comuns (de direito privado).
Esse estatuto adquire-se automaticamente com o próprio acesso à função pública, passando a definir a relação específica de emprego que o funcionário mantém com o Estado-Administração. Ora, a garantia constitucional da segurança no emprego não pode deixar de compreender também a garantia de que o empregador não pode transferir livremente o trabalhador para outro empregador ou modificar substancialmente o próprio regime da relação de emprego, uma vez estabelecida.
Não se vê como é que pode deixar de ser incompatível com esse direito à função pública a dispensa, unilateralmente decretada pelo Estado, de um certo número de funcionários públicos, pela simples razão de eles serem excedentários e de se encontrarem por acaso a trabalhar fora da Administração na situação de requisitados.
É verdade que, perdendo o estatuto de funcionários, eles não se viram, todavia, privados de emprego. O que importa, porém, é que é outra a entidade à qual ficam vinculados, não é a mesma relação de emprego, nem é idêntico o estatuto funcional. Perderam as garantias e regalias específicas do estatuto da função pública (e viram-se, entre outras coisas, privados do direito à carreira).
Ao dispensar certos funcionários do QGA, transferindo-os para as empresas públicas em que se encontravam na situação de requisitados, as normas em apreciação privaram-nos da qualidade de funcionários, infringindo assim o seu direito à função (que, de resto, não é mais do que uma garantia específica de estabilidade e de segurança no emprego quanto aos funcionários públicos).
Não procede, contra isto, o argumento de que os adidos não são afectados na segurança do emprego, tanto mais que passam de uma situação transitória e precária (a de adido requisitado) para uma situação estável e consistente. O que há que comparar é, porém, a segurança e as prerrogativas do regime da função pública ao serviço do Estado, de um lado, e as do regime de direito privado numa empresa pública, do outro lado. Basta pensar na possibilidade de extinção das empresas públicas, com o consequente despedimento colectivo, para se obter uma flagrante imagem da diferença entre os dois estatutos (o Estado, esse, não se extingue).
Resta, porém, saber se a conclusão a que se chegou quanto à ilegitimidade da cessação do estatuto da função pública nos termos previstos nas normas em causa é válida para todos os adidos, qualquer que fosse a assistência do respectivo vínculo à função pública. É que, importa recordá-lo, os adidos mantiveram no QGA o vínculo que anteriormente possuíam. Foram integrados no QGA não apenas os funcionários com vínculo definitivo, mas também os que o não tinham. Na legislação do QGA existem vários afloramentos dessa diferença de estatuto. Assim, o artigo 40.º do Decreto-Lei 294/76 refere-se aos «agentes que no QGA possuem investidura definitiva ou vitalícia»; do mesmo modo, o artigo 2.º do Decreto-Lei 422/80, de 30 de Setembro, menciona também «os funcionários que no QGA possuem nomeação definitiva» justamente para lhes reconhecer o direito de recusarem a integração em organismos ou serviços administrativos que não dispusessem de quadros aprovados por lei, continuando portanto vinculados ao QGA.
A questão que surge é a de saber se a protecção contra a cessação do estatuto de funcionário público não deve beneficiar apenas os titulares de vínculo definitivo. A resposta tem de ser negativa.
Com efeito, há que distinguir dois momentos, completamente distintos: um é o da integração no QGA, outro é o da desvinculação do QGA. Quanto ao primeiro, pode, na verdade, discutir-se se à categoria de adido deveriam ou não ter acesso os funcionários sem vínculo definitivo. Comentando este ponto, um autor escreveu:
Em bom rigor, tal situação [a de adido] só deveria abranger os funcionários com investidura definitiva, ou, quando muito, aqueles com vocação para tal (isto é, os investidos provisoriamente). Os primeiros porque possuem direito ao lugar, só dele podendo ser destituídos por motivo disciplinar; e os segundos porque têm uma expectativa jurídica nesse sentido. Mas a lei tem adoptado uma orientação marcadamente social, abrangendo assim os agentes com vínculo precário. (J. Alfaia, Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público, Coimbra, 1985, p. 173.) Qualquer que deva ser o juízo acerca desse ponto, a verdade, porém, é que o Estado não dispensou os agentes sem vínculo definitivo tornados excedentários, antes lhes permitiu o ingresso no QGA. Ora, adido é, por definição, o funcionário ou agente que, sendo excedentário, se acha desvinculado do serviço origem, «mantendo, todavia, o vínculo à Administração Pública, com vista, fundamentalmente, à sua integração noutros serviços ou organismos» (artigo 16.º do Decreto-Lei 594/76). Ao permitir o ingresso no QGA mesmo aos agentes sem vínculo definitivo, o Estado absteve-se de os dispensar, integrou-os na Administração Pública e criou-lhes expectativas fundadas de virem a ser integrados noutros serviços ou organismos, mantendo naturalmente aquele vínculo. Nesses termos, não pode o Estado vir, posteriormente, frustrar essas expectativas, cassando-lhes o estatuto de funcionário público e fazendo-os integrar, sem o seu assentimento, nos quadros de entidades exteriores à Administração Pública. A tal se opõe, se não o mencionado direito à segurança no emprego, seguramente o princípio do Estado de direito democrático, na medida em que ele interdita violações grosseiras do princípio de confiança.
Em qualquer caso, resta saber se, mesmo que não estivesse vedado ao Estado privar essa categoria de adidos do estatuto da função pública, lhe era lícito impor-lhes uma relação de trabalho com outrem sem o seu assentimento. É o problema que de seguida se abordará.
2.3.3 - Uma relação de trabalho forçada
As normas em apreciação determinam que os elementos do QGA que se encontravam requisitados junto das empresas públicas ou nacionalizadas sejam (artigo 3.º, n.º 1) «integrados» nessas mesmas empresas (ou possam sê-lo, por iniciativa delas, no caso de lhes ser aplicável o n.º 5 daquele preceito). Em qualquer caso, não está prevista a concordância dos interessados (sendo aqui irrelevante a das próprias empresas...). Eles ver-se-ão vinculados, por efeito directo da lei (ou por vontade unilateral da empresa em causa, no caso de ser aplicável o n.º 5), a uma empresa pública ou nacionalizada com a qual não estabeleceram nenhum contrato de trabalho.
É certo que eles se encontravam a trabalhar já nessas empresas, mas não tinham uma relação de emprego com elas, antes continuavam a ser funcionários do Estado, integrados no QGA, visto que a requisição não alterava o seu estatuto funcional (cf. supra, 2.1.1). É ainda verdade que a situação de requisição também não dependia da aceitação do interessado; todavia, tratava-se de uma situação provisória, que não envolvia uma alteração substancial do estatuto da sua relação de emprego.
Nestes termos, tem de considerar-se que a mencionada integração nas empresas públicas e nacionalizadas se traduz, para todos os efeitos, numa relação de trabalho forçada. É-o não porque os interessados sejam obrigados a mantê-la (pois é evidente que podem pôr-lhe termo, nos termos gerais da lei do contrato de trabalho), mas seguramente porque eles se vêem vinculados a uma relação de trabalho que não contrataram, que lhes foi criada por via de lei e, em qualquer caso, à margem da sua vontade, e que têm de manter sob pena de ficarem desempregados.
As coisas poderiam figurar-se de maneira diversa se pudesse estender-se que os interessados apenas são «transferidos» de um «organismo ou serviço público» para uma empresa pública ou nacionalizada, não havendo, portanto, solução de continuidade na relação de emprego. Todavia, não é manifestamente esse o caso. Não se trata da mesma relação de emprego, mas sim de uma outra, aliás qualitativamente diferente da anterior. Há a cessação de uma e a criação de outra nova.
O interessado não é tido nem achado quanto à extinção da primeira nem quanto à criação da segunda. Há ainda aqui uma diferença: é que, se pode bastar a vontade de uma das partes para pôr termo a uma relação de emprego, já não é concebível a criação de uma relação de emprego sem o concurso da vontade do próprio trabalhador. Ora, no caso da chamada «integração» dos elementos do QGA nas empresas públicas e nacionalizadas falta, pelo menos, a vontade dos próprios funcionários a «integrar».
Uma tal integração forçada contende flagrantemente com a liberdade de trabalho, a qual não implica apenas o direito de escolher o local e o tipo de trabalho, mas também o direito de só mediante vontade própria encontrar em relação de emprego por conta de outrem. É certo que a liberdade de trabalho não se encontra autónoma e explicitamente reconhecida na Constituição. Mas ela não pode deixar de constituir elemento integrante do próprio princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º), entrando a constituir pressuposto e parte integrante do programa normativo de direitos fundamentais como o direito ao trabalho (artigo 59.º, n.º 1) e, sobretudo, a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º, n.º 1).
De acordo com esses princípios e direitos fundamentais, o único meio idóneo por que uma pessoa se pode vincular a uma relação de trabalho por conta de outrem é o contrato de trabalho. Mas é isso precisamente que a norma em apreciação ofende, ao integrar funcionários do QGA em empresas públicas ou nacionalizadas prescindindo de qualquer concordância da sua parte.
Isto é válido mesmo para os casos das empresas com regimes de trabalho de direito público, pois mesmo que o ex-adido viesse a continuar sujeito a um regime semelhante ao que detinha enquanto funcionário público, a verdade é que sempre perde essa qualidade, passando a depender de uma entidade juridicamente distinta. Como se mostrou anteriormente (supra, 2.1.2), mesmo no caso das empresas públicas sujeitas a um regime de trabalho de direito público os trabalhadores não são verdadeiramente funcionários públicos. De qualquer forma, não estão integrados na Administração Pública. Também eles se vêem transferidos, sem o seu assentimento, para outra entidade empregadora e submetidos a uma nova relação de emprego à revelia da sua vontade.
3 - Efeitos da declaração de inconstitucionalidade
De acordo com a Constituição, a declaração de inconstitucionalidade de qualquer norma em sede de fiscalização sucessiva abstracta tem força obrigatória geral e produz efeitos desde a entrada em vigor da norma em causa (artigos 281.º e 282.º). Todavia, como dispõe o artigo 282.º, n.º 4, o Tribunal poderá restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade quando a segurança jurídica, razões de equidade ou um interesse público de excepcional relevo assim o exigirem. Importa, por isso, verificar se, neste caso, ocorrem razões que exijam tal limitação de efeitos.
A declaração de inconstitucionalidade da norma em causa determina a reposição, com efeitos retroactivos (isto é, desde o início), da situação existente à data da integração dos adidos nas empresas públicas em que se encontravam requisitados. Recuperam a condição de funcionários públicos; o tempo entretanto decorrido conta como tempo de serviço na função pública;
tudo se passa como se tivessem continuado na situação de requisitados, com os efeitos acima descritos (supra, 2.1.1). É certo que, tendo o diploma em causa procedido à extinção do QGA, não podem os interessados regressar a esse quadro; todavia, esse mesmo diploma criou um novo quadro de excedentes, chamado «quadro de efectivos interdepartamentais», justamente para enquadrar o remanescente dos adidos que não foram integrados ou aposentados nos termos desse diploma (Decreto-Lei 42/84, artigo 9.º).
Sendo estas as consequências essenciais da declaração de inconstitucionalidade, nada impõe, portanto, uma limitação dos respectivos efeitos.
Já poderia pensar-se que a declaração de inconstitucionalidade só deveria ter efeitos em relação àqueles adidos que não tenham concordado com a sua integração nas empresas públicas em que se encontravam requisitados.
Todavia, imediatamente se terá de concluir que não existe nenhum critério objectivo para saber quem concordou e quem não concordou. A verdade é que as normas em causa excluíam qualquer manifestação de vontade, pelo que o silêncio dos interessados não pode considerar-se como assentimento.
Nem sequer se pode argumentar não ser justo fazer regressar à condição de funcionário público aqueles adidos que efectivamente não o desejam e que preferem a integração nas empresas públicas em que se encontravam requisitados. Com efeito, a declaração de inconstitucionalidade das normas que ope legis os integraram não impede que eles recorram à faculdade que o acima referido Decreto-Lei 175/78, de 13 de Julho, de há muito lhes proporcionava, ou seja, a de se fazer integrar, por sua iniciativa, nas empresas públicas em que se encontrem requisitados (cf. supra, 2.1.1). Mesmo que pudesse entender-se que tal diploma tinha sido revogado pelo Decreto-Lei 42/84, aqui em causa, sempre aquele seria agora repristinado pela declaração de inconstitucionalidade deste, tal como dispõe o artigo 282.º, n.º 1, in fine, da Constituição. De resto, como as normas aqui em apreço só são declaradas inconstitucionais na parte em que integram automaticamente os adidos sem o seu consentimento - e não na parte em que obrigam as empresas públicas a integrá-los (cf. supra, 2.1.3) -, fica até afastada qualquer hipótese de os adidos que quiserem ser integrados serem impedidos de o fazer por oposição das empresas respectivas. Sendo assim, consideram-se devidamente acautelados os interesses dignos de protecção: a declaração de inconstitucionalidade das normas questionadas elimina a integração forçada dos adidos; os interessados poderão, todavia, se o desejarem, utilizar a faculdade de se fazerem integrar nas empresas em que se achavam requisitados.
Em todo o caso, se porventura a declaração de inconstitucionalidade viesse a implicar a necessidade de qualquer providência normativa, incumbirá naturalmente ao legislador (que não ao Tribunal) adoptá-la.
4 Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional acorda em declarar inconstitucional o preceito do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei 42/84, de 3 de Fevereiro, na parte em que determinou a integração nas empresas públicas ou nacionalizadas dos funcionários e agentes do quadro geral de adidos junto das quais se encontravam requisitados sem o seu assentimento.Tribunal Constitucional, 6 de Maio de 1986. - Vital Moreira - Antero Alves Monteiro Diniz - Mário de Brito - Raul Mateus - António Luís Correia da Costa Mesquita - José Magalhães Godinho - Messias Bento (com declaração de voto) - José Manuel Cardoso da Costa (subscrevo o acórdão com a declaração anexa e vencido parcialmente) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
Votei o acórdão no entendimento de que a fundamentação aduzida quanto à inconstitucionalidade material comporta o sentido que a seguir se aponta:1 - Aqueles que fazem do exercício de funções públicas a sua profissão, ingressando nos quadros da Administração para aí «fazer carreira», têm, entre nós, sido nomeados, em regra, vitaliciamente. Gozam, por isso, do direito ao lugar, o que significa que só podem dele ser privados mediante processo criminal ou disciplinar. Só factos especialmente graves aí apurados constituem, pois, «justa causa de despedimento».
Essa garantia de estabilidade significa que o direito ao lugar subsiste mesmo quando a lei suprime o cargo que o funcionário está a exercer, mas mantém o quadro a que ele pertence ou os serviços em que se acha integrado. E significa ainda que, no caso de serem extintos os próprios serviços ou todo o quadro, a Administração deve procurar integrar os funcionários na situação de disponibilidade, com o ordenado por inteiro, enquanto não houver vaga onde eles sejam colocados - salvo, naturalmente, quando se trate de funcionários cuja nomeação não seja vitalícia [cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, Coimbra, 1980, pp. 758 e segs.; cf. também artigo 138.º do Estatuto do Funcionalismo Ultramarino (Decreto 46982, de 27 de Abril de 1966) e artigos 33.º e 34.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro].
Os funcionários públicos acham-se, assim, unidos à Administração por um vínculo que traz consigo a «vocação para a vitaliciedade» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Fevereiro de 1965, citado por Marcello Caetano no Manual de Direito Administrativo).
2 - Esta vocação para a vitaliciedade não é, porém, uma garantia constitucional.
Aliás, mesmo quanto aos juízes, a Constituição de 1976 deixou de dizer, como fazia a de 1933, que eles são vitalícios e inamovíveis, para tão-só afirmar que são inamovíveis (cf. artigo 119.º da Constituição de 1933 e artigo 221.º, n.º 2, da lei fundamental de 1976).
Não se achando constitucionalmente garantida a vitaliciedade, o direito de acesso à função pública, garantido pelo n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, não se analisa, pois, num direito a uma nomeação para o exercício de funções públicas em especiais condições de estabilidade.
3 - A integração dos funcionários do QGA nas empresas públicas, operada pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 42/84, de 3 de Fevereiro, não é um despedimento, nem a ele se assimila. Tratou-se, isso sim, da imposição de uma «troca» de um lugar de funcionário público por um lugar numa empresa pública. Ou seja: fez-se cessar o vínculo que ligava os funcionários ao Estado e impôs-se-lhes o seu ingresso no sector público empresarial.
Portanto, com a edição da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 42/84, o legislador violou de forma intolerável (demasiado acentuada) a confiança que depositavam na tutela jurídica certos funcionários - precisamente aqueles que tinham sido nomeados (ou integrados) com a expectativa de vitaliciedade.
Eram, na verdade, funcionários em cujo estatuto se inscrevia a certeza de que só a prática de factos de especial gravidade, apurados em processo criminal ou disciplinar, constituía «justa causa de despedimento» (cf. Marcello Caetano, ob. cit., p. 760) e, agora viram ser elevada a essa categoria, isto é, à categoria de «justa causa» - embora para o efeito da sua «transferência» para o sector empresarial do Estado - uma mera situação objectiva e conjuntural, ou seja, a dificuldade de lhes encontrar colocação nos quadros da função pública.
Ora, se o legislador, quando houver de definir as bases do regime da função pública, puder preencher o conceito de «justa causa de despedimento» com situações do tipo da apontada - coisa que aqui não está em discussão -, o que seguramente ele não poderá fazer é atingir, com legislação desse tipo, quem, sendo já funcionário, goze de um estatuto como o que se deixou descrito. A esses não pode o legislador, sem inconstitucionalidade, «cassar» tal estatuto e impor uma relação de trabalho numa empresa pública. Se o fizer, viola o princípio do Estado de direito democrático, pois, como se escreveu no Acórdão deste Tribunal n.º 86/84 (Diário da República, 2.ª série, de 2 de Fevereiro de 1985), «a ideia de Estado de direito postula, seguramente, um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que, juridicamente, lhes são criadas».
Messias Bento.
Declaração de voto
1 - Também entendo que a regulamentação objecto de análise no acórdão precedente integra as «bases do regime da função pública» e que a sua emissão pelo Governo carecia, por isso, de uma autorização legislativa. A tal respeito, compartilho, designadamente, o entendimento, que no acórdão se faz, do alcance da reserva parlamentar do art. 168.º, n.º 1, alínea u), da Constituição.Simplesmente, penso que a necessária autorização estava concedida pelo artigo 1.º, n.º 1, alínea b), da Lei 14/83. É que - ao contrário do que se decidiu - julgo que nesse preceito, independentemente da disposição subsequente do n.º 3 do mesmo artigo, já se indicava o sentido da autorização conferida pela Assembleia da República ao Governo, e não apenas o respectivo objecto. Na verdade, de tal preceito não resultava unicamente que o Governo ficava autorizado a legislar em matéria do «quadro geral de adidos»;
resultava, além disso, que poderia fazê-lo em vista do «descongestionamento e subsequente extinção» desse quadro. Assim, o que o n.º 3 veio acrescentar foi tão-só uma explicitação ou esclarecimento desse «sentido», no respeitante à possibilidade de se adoptarem inclusivamente «medidas de aposentação obrigatória» e as outras nele referidas.
Ora, esse «sentido» da autorização, decorrente logo da supracitada alínea b) do n.º 1, cobre perfeitamente, a meu ver, a emissão de uma norma ou regulamentação visando a integração nos quadros de empresas públicas de funcionários e agentes do QGA: também essa é uma medida conducente, decerto, ao descongestionamento e extinção de tal quadro.
Por essa razão não votei o acórdão no tocante à inconstitucionalidade orgânica do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 42/84.
2 - Já votei, porém, a inconstitucionalidade material do mesmo preceito, entendendo a fundamentação a esse propósito desenvolvida no acórdão em termos semelhantes aos explicitados na declaração de voto do Exmo.
Conselheiro Messias Bento.
Também penso que o problema gira essencialmente em torno do carácter vitalício (ou tendencialmente vitalício do estatuto dos «funcionários» públicos, carácter esse que decorre ou é assegurado pela lei (que não pela Constituição), e que é posto em causa, relativamente aos funcionários e agentes incluídos no QGA (isto é, a pessoas que detinham, em certo momento, um estatuto com aquele carácter), pela norma em apreço. E posto em causa porque o estatuto laboral, resultante para tais funcionários e agentes da sua integração nos quadros de empresas públicas, não se reveste da mesma natureza tendencialmente «vitalícia» (usando a expressão para referir globalmente as diferenças que intercedem, em sede de «segurança do emprego», entre o estatuto da função pública e o estatuto laboral comum). Vejo aí, na verdade, uma quebra dos «direitos adquiridos» por esses funcionários e agentes, menos consentânea com o princípio da protecção da confiança, que é uma das notas essenciais do Estado de direito.
Eis os termos em que acompanho o acórdão, no tocante à inconstitucionalidade material. Devo dizer, no entanto, que, fazendo-o pela razão fundamental que fica explicitada, não foi sem alguma reserva que votei a extensão dessa inconstitucionalidade mesmo relativamente, por um lado, aos funcionários e agentes do QGA que antes da integração nesse quadro não tinham a qualidade de «funcionários» (com provimento vitalício) e, por outro lado, àqueles de tais funcionários e agentes que tenham sido integrados em empresas públicas, onde tal situação possa ocorrer, com um estatuto laboral substancialmente equiparável (sob o ponto de vista que aqui importa) ao da função pública.
José Manuel Cardoso da Costa.