Acórdão 458/93
Processo 424/93
(plenário)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1 - Em 29 de Julho de 1993 deu entrada na secretaria do Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade formulado pelo Presidente da República, ao abrigo do artigo 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição, e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional, relativamente às normas dos artigos 2.º, n.os 1 e 3, 3.º, n.º 1 - na parte em que atribui aos Presidentes dos Governos Regionais competência para classificar definitivamente informações e documentos como segredo de Estado -, 9.º, n.os 1 e 2, 12.º, 13.º, n.os 1, 2, 3 e 4, e 14.º do decreto 129/VI da Assembleia da República, relativo a «segredo de Estado», o qual fora enviado ao ora requerente, para efeito de promulgação, a 22 de Julho do corrente ano.
Na parte inicial da fundamentação do pedido, começa o Presidente da República por pôr em relevo que a natureza excepcional do segredo de Estado impede que a sua definição legal fique na livre disposição do legislador, pelo que o âmbito desse mesmo segredo não pode ser tão amplo ou baseado em fórmulas tão vagas que legitimem uma arcana praxis que permita sonegar aos cidadãos o acesso à informação. No sentido deste entendimento, acolhe a posição expressa por Gomes Canotilho e Vital Moreira na anotação ao artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, e porque o segredo de Estado restringe direitos, liberdades e garantias, as restrições que venham a ser impostas hão-de estar sujeitas à observância dos pressupostos materiais de legitimidade constitucional das leis restritivas e, com particular rigor, dos princípios da precisão e determinabilidade da lei e da reserva de lei. Trata-se-á, assim, de um dos domínios em que seguramente a Constituição impõe, de forma clara, que as leis restritivas não possam ser indeterminadas. De facto, não só os artigos 35.º, n.º 1, e 159.º, alínea c), da Constituição obrigam a uma fixação e regulamentação clara e suficientemente densa das «excepções de segredo», como o artigo 200.º, alínea i), conjugado com o artigo 166.º, alínea f), da Constituição, impede a invocação da «excepção de segredo» como causa justificativa para a não prestação à Assembleia da República de informações referentes ao processo de construção da união europeia.
Em conformidade com este enquadramento constitucional da matéria do segredo de Estado, passam, depois, a elencar-se as dúvidas de constitucionalidade acerca das diferentes normas do decreto da Assembleia da República referidas neste requerimento:
Quanto às normas dos artigos 2.º, n.os 1 e 3, e 7.º, admite o requerente que possam vir a ser passíveis de um juízo de censura jurídico-constitucional pelas seguintes razões:
a) O artigo 2.º, ao delimitar o âmbito do segredo, faz apelo a fórmulas abertas e a conceitos vagos e indeterminados, de que poderá resultar uma excessiva indeterminação da definição e do âmbito do segredo de Estado e dos critérios de classificação a observar pelas entidades que podem conferir a classificação definitiva, em possível violação ao disposto nos artigos 2.º e 18.º, n.º 3, por referência, designadamente, aos artigos 35.º, n.º 1, 37.º, n.º 1, 38.º, n.º 2, alínea b), e 48.º, n.º 2, e também ao disposto nos artigos 159.º, alínea c), e 200.º, alínea i), conjugado com o artigo 166.º, alínea f), todos da Constituição;
b) O artigo 7.º, ao permitir que os titulares máximos dos órgãos de soberania detentores do segredo mantenham reservadas informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado, pelo tempo estritamente necessário à salvaguarda da segurança interna e externa do Estado, poderá revelar-se uma norma aberta em termos que poderão conflituar com os artigos 2.º e 18.º, n.os 2 e 3, por referência, designadamente, ao artigo 20.º e às «garantias do processo criminal» constantes do artigo 32.º, todos da Constituição.
Quanto ao artigo 3.º, n.º 1, na parte em que atribui poderes para classificar definitivamente informações e documentos como segredo de Estado aos Presidentes dos Governos Regionais, poderá o mesmo segmento não estar isento de dúvidas de constitucionalidade, porque:
a) Por um lado e na medida em que se entenda que a Constituição não admite que órgãos infra-estaduais possam classificar segredos do domínio do Estado - neste sentido se expressou o constitucionalista Jorge Miranda em declaração a uma publicação periódica (O Público, de 24 de Junho de 1993) -, a norma em apreciação, atribuindo ao presidente de um órgão regional poder em matérias constitucionalmente configuradas como tarefas e obrigações do Estado e como tal reservadas aos órgãos de soberania, poderá estar a violar, entre outros, os artigos 6.º, n.º 1, 9.º, alínea a), e 273.º da Constituição;
b) Por outro lado, poderá entender-se que a mesmo norma alarga, sem justificação material bastante, o âmbito de restrição de direitos, liberdades e garantias - entre outros, dos direitos de informação consagrados no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição - se se considerar não terem as Regiões Autónomas (v. o artigo 229.º da Constituição) poderes para a prática de actos de competência própria em qualquer das matérias que podem vir a determinar a classificação de informações e documentos como segredo de Estado, com violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da lei fundamental.
Afirma-se no requerimento que, como bem fez notar Adriano Moreira, em estudo sobre o segredo de Estado («Notas sobre o segredo de Estado», in Revista da Ciência Política, n.º 5, p. 38), a experiência das democracias estabilizadas ocidentais mostra que o equilíbrio dos poderes constitucionais pode ser afectado pelo secretismo da gestão dos assuntos públicos. Assumirá, assim, e por decorrência dessa verificação, particular acuidade a confrontação das normas constantes dos artigos 9.º, n.os 1 e 2, 12.º e 13.º, n.os 1, 2, 3 e 4, em conjugação com o artigo 14.º, todos do decreto em causa, com a Constituição:
a) Assim, poderá entender-se que o artigo 9.º, ao colocar o acesso dos órgãos de soberania aos documentos em segredo de Estado na dependência de uma autorização da entidade que conferiu a classificação definitiva, condicionada à prova da sua necessidade para o cumprimento das funções e com as limitações que vierem a ser estabelecidas (presume-se que tais limitações serão estabelecidas pela própria entidade classificadora), é susceptível de subverter o princípio constitucional da separação e interdependência entre os vários órgãos de soberania, consagrado no artigo 114.º da Constituição.
O dever do Primeiro-Ministro de informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do País [artigo 204.º, alínea c), da Constituição] pode transformar-se, inconstitucionalmente, num pedido fundamentado de autorização de acesso do Presidente da República ao Primeiro-Ministro, a um qualquer ministro ou a um Presidente de Governo Regional, que o poderão condicionar e até negar, a pretexto de que, no seu exclusivo critério, o Presidente da República dele não carece para o cumprimento das suas funções.
Também a obrigação do Governo de apresentar em tempo útil à Assembleia da República a informação referente ao processo de construção da união europeia [artigo 200.º, n.º 1, alínea i), da Constituição] se poderá transformar, de forma inconstitucional, num pedido fundamentado de autorização de acesso;
b) Do mesmo modo, será possível o entendimento de que o artigo 12.º - ao não cometer à Assembleia da República poderes efectivos de fiscalização, traduzidos numa competência própria ou, eventualmente, partilhada com outros órgãos de soberania, de acesso às informações e documentos em segredo de Estado - é susceptível não apenas de inviabilizar o disposto no artigo 165.º, alínea a), da Constituição como também de subverter até «normas chave» para a caracterização do «sistema de governo», designadamente os artigos 193.º e 194.º da Constituição, se, e enquanto, ao papel fiscalizador da Assembleia se puderem opor, nos termos do artigo 9.º do decreto, as entidades que conferem a classificação definitiva;
c) O mesmo se poderá afirmar a respeito das normas constantes do artigo 13.º, n.os 1, 2, 3 e 4, na medida em que, por si só ou conjugadas com o disposto no artigo 14.º, podem ser entendidas como estando a conferir a uma entidade - estranha à ordenação jurídico-constitucional do poder político - competências de fiscalização próprias de órgãos de soberania ou a condicionar o seu exercício, em violação do disposto, designadamente, nos artigos 113.º e 114.º da Constituição.
As normas constantes do artigo 13.º, n.º 3 [por lapso de escrita, identificado com o artigo 13.º, n.º 2], do decreto poderão ainda ser questionadas na parte em que se determina que o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo integre e presida à Comissão para a Fiscalização e na parte em que se remete para o Regimento da Assembleia da República a fixação do sistema eleitoral dos Deputados que a integram, na medida em que se entenda poderem contender, respectivamente, com as garantias constitucionais dos magistrados judiciais, fixadas no artigo 218.º da Constituição, e com o princípio de reserva de lei.
Por último, o disposto no artigo 14.º, ao não facultar a impugnação graciosa ou contenciosa dos próprios actos classificatórios e ao fazer depender a impugnação do prévio parecer da Comissão para a Fiscalização, poderá configurar uma restrição inconstitucional do direito de acesso aos tribunais (artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição).
2 - Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei do Tribunal Constitucional, limitou-se o mesmo a oferecer o merecimento dos autos.
3 - Deve, por isso, passar-se ao conhecimento dos pedidos, por não haver razões que a tal obstem.
II
A - Considerações de natureza geral
4 - A partir da 2.ª revisão constitucional, levada a cabo em 1989, o texto da lei fundamental passou a fazer referência expressa à figura do segredo de Estado.
Assim, a propósito da utilização da informática, o artigo 35.º da Constituição limitou o direito de os cidadãos tomarem conhecimento dos dados constantes de ficheiros ou registos informáticos a seu respeito, do fim a que se destinam e de poderem exigir a rectificação e actualização desses dados, ressalvando o disposto na lei sobre segredo de Estado e segredo de justiça. Também ao estabelecer os poderes dos Deputados à Assembleia da República, o artigo 159.º da Constituição consignou que a faculdade de os Deputados fazerem perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública e de obterem resposta em prazo razoável estava limitada pelo disposto na lei em matéria de segredo de Estado [alínea c)]. Em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o artigo 168.º, n.º 1, alínea r), estatui que é da exclusiva competência deste órgão legislar sobre «regime dos serviços de informação e do segredo de Estado».
5 - A inclusão em 1989 destas referências ao segredo de Estado no texto constitucional deveu-se seguramente à circunstância de, por um lado, ter sido consagrado o princípio da administração aberta na mesma revisão (artigo 268.º, n.º 2), e, por outro lado, de ter sido publicada em 1984 a Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa (Lei 30/84, de 5 de Setembro), depois complementada por outros diplomas legais: o Decreto-Lei 223/85, de 4 de Julho, que estabelece os princípios fundamentais a que deve obedecer a actividade dos serviços integrados no Sistema de Informações da República Portuguesa, bem como as regras de funcionamento do Conselho Superior de Informações e da comissão técnica que o integra; o Decreto-Lei 224/85, da mesma data, que estabelece a orgânica do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa; o Decreto-Lei 225/85, de 4 de Julho, que estabelece a orgânica do Serviço de Informações de Segurança; e, por último, o Decreto-Lei 226/85, ainda da mesma data, que reestrutura o Serviço de Informações Militares. No Decreto-Lei 223/85, disciplina-se a matéria de segredo de Estado no âmbito dos serviços integrados no Sistema de Informações da República, estabelecendo-se que «são abrangidos pelo segredo de Estado os dados e as informações cuja difusão seja susceptível de causar dano à unidade e integridade do Estado, à defesa das instituições democráticas estabelecidas na Constituição, ao livre exercício das respectivas funções pelos órgãos de soberania, à segurança interna, à independência nacional e à preparação da defesa militar do Estado» (artigo 5.º, n.º 1). E o n.º 2 do mesmo artigo prevê que o segredo de Estado incide sobre «os registos, documentos, dossiers e arquivos dos serviços de informações relativos às matérias mencionadas no número anterior, não podendo ser requisitados ou examinados por qualquer entidade estranha aos serviços, sem prejuízo do disposto nos artigos 26.º e 27.º da Lei 30/84, de 5 de Setembro» (estes artigos dispõem sobre esquemas de fiscalização, cancelamento e rectificação de dados conservados nos respectivos centros informáticos). A propósito ainda da matéria de segredo de Estado, o n.º 3 do artigo 5.º do Decreto-Lei 223/85 delimita negativamente a figura, ao dispor que não constituem, porém, «objecto de segredo de Estado as informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado, os quais devem ser comunicados às entidades competentes para a sua investigação ou instrução». Neste caso, admite-se que o Primeiro-Ministro possa «autorizar que seja retardada a comunicação pelo tempo estritamente necessário à prossecução das finalidades institucionais dos serviços» (n.º 4 do mesmo artigo e diploma).
6 - Comentando a introdução da cláusula do segredo de Estado e do segredo de justiça no n.º 1 do artigo 35.º da Constituição pela Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:
A cláusula do segredo de Estado e do segredo de justiça [...] constitui uma autorização de restrição legal do direito ao conhecimento dos dados informáticos, que naturalmente estará submetida aos competentes limites constitucionais: reserva de lei, princípio de necessidade e da proporcionalidade, etc. (cf. 18.º). Desde logo, a expressa exigência de lei proíbe que, a pretexto do segredo de Estado ou segredo de justiça, os dados pessoais sejam aqui remetidos para um simples domínio interno da «administração secreta», livre da lei, com inobservância dos princípios fundamentais de transparência, finalidade, proporcionalidade, actualidade e reserva da vida privada e familiar. Por outro lado, a definição legal de segredo de Estado e de segredo de justiça não está na livre disposição do legislador, não podendo ser tão ampla que legitime uma arcana praxis, que permita sonegar aos cidadãos o acesso aos bancos de dados pessoais.
Quanto ao segredo de Estado em particular a densificação do conceito não pode bastar-se com fórmulas vagas, como «informações de segurança», «segredos militares». [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 217.]
Os mesmos comentadores, ao analisarem o artigo 159.º da Constituição, afirmam que o Governo está funcional vinculado a fornecer respostas em tempo razoável às perguntas formuladas pelos Deputados, não estando na discricionariedade do mesmo Governo decidir se deve ou não responder a tais perguntas. Quanto à invocação do segredo de Estado, afirma-se que tal invocação «também não pode ser arbitrária, devendo a lei fixar e regular em termos densos esta 'excepção de segredo'» (Constituição, cit., p. 636).
E sobre o sentido da actual alínea r) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, Gomes Canotilho e Vital Moreira sustentam que a constitucionalização agora operada pretendeu pôr termo a uma situação em que domínios como o regime dos serviços de informações e a matéria do segredo de Estado, «de forma espúria, se arrogavam a um lugar extra constitutionem e cujo regime se encontra governamentalizado. A reserva de lei respeita tanto ao regime material como ao regime orgânico das referidas matérias» (Constituição, cit., p. 676).
7 - Após a indicação acabada de fazer sobre as referências ao instituto do segredo de Estado na versão actual da Constituição, bem se compreende que os diversos partidos políticos com assento na Assembleia da República preparassem projectos de lei disciplinadores do segredo de Estado, tanto mais que se impunha igualmente elaborar legislação ordinária sobre o acesso dos administrados aos arquivos e registos administrativos, acontecendo que o artigo 268.º, n.º 2, da Constituição ressalva do princípio da Administração aberta o disposto na lei «em matérias relativas à segurança interna e externa», bem como quanto à disciplina atinente à investigação criminal e à intimidade das pessoas.
Após a apresentação de uma proposta de lei no final da V Legislatura que não chegou a ser aprovada, logo na primeira sessão legislativa de 1991-1992 da VI Legislatura, vieram a ser apresentados quatro projectos de lei, subscritos por Deputados do Partido Socialista (projecto n.º 58/VI, in Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 15, de 25 de Janeiro de 1992), do Partido Social-Democrata (projecto n.º 181/VI, no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 47, de 1 de Julho de 1992), do Partido Comunista Português (projecto n.º 189/VI, no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 50, de 11 de Julho de 1992) e do Partido do Centro Democrático Social (projecto n.º 190/VI, publicado no mesmo número do Diário da Assembleia da República que o projecto do PCP). Sobre esses quatro projectos recaíram dois pareceres da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (publicados no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 51, de 16 de Julho de 1992).
Os quatro projectos vieram a ser discutidos conjuntamente e na generalidade no final da primeira sessão legislativa, na reunião plenária de 15 de Julho do mesmo ano (in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 16 de Julho de 1992, pp. 2897 a 2940). Submetidos a votação na generalidade na reunião plenária do dia seguinte, foram rejeitados os projectos do PS e do PCP e aprovados os do PSD e do CDS (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 90, de 17 de Julho de 1992). Na mesma ocasião, foram objecto de discussão na generalidade três projectos apresentados por Deputados do PCP, PS e PSD sobre acesso aos documentos da Administração Pública. Todos os projectos foram aprovados na generalidade.
A partir dos dois projectos aprovados na generalidade em matéria de segredo de Estado, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias elaborou um texto final, que foi aprovado em votação final global na reunião plenária de 29 de Junho de 1993, depois de terem sido rejeitados 21 requerimentos de avocação a Plenário apresentados por diferentes Deputados quanto a normas do novo articulado (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 30 de Junho de 1993, pp. 2905 a 2918).
8 - O articulado do decreto da Assembleia da República enviado ao Presidente da República para promulgação contém 17 artigos. O artigo 1.º do decreto trata do objecto do segredo de Estado, indicando que o regime respectivo «é definido pela presente lei e obedece aos princípios da excepcionalidade, subsidiariedade, necessidade, proporcionalidade, tempestividade, igualdade, justiça e imparcialidade, bem como ao dever de fundamentação» (n.º 1). O n.º 2 do artigo 1.º esclarece que «as restrições aos arquivos, processos e registos administrativos e judiciais, por razões atinentes à investigação criminal ou à intimidade das pessoas, bem como as respeitantes aos serviços de informações da República Portuguesa e a outros sistemas de classificação de matérias, regem-se por legislação própria». Finalmente, o n.º 3 do artigo 1.º exclui a aplicabilidade do regime de segredo de Estado «quando, nos termos da Constituição e da lei, a realização dos fins que ela visa seja compatível com formas menos estritas de reserva de acesso à informação».
O artigo 2.º contempla o âmbito do segredo de Estado, indicando que são abrangidos pelo mesmo «os documentos e informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é susceptível de pôr em risco ou de causar dano à independência nacional, à unidade e integridade do Estado e à sua segurança interna ou externa» (n.º 1). Este artigo acha-se questionado pela entidade requerente, pelo que será analisado mais à frente.
O artigo 3.º indica as entidades competentes para classificar o segredo de Estado, versando o artigo 4.º a matéria de desclassificação.
O artigo 5.º estabelece o dever de fundamentação quanto à classificação de documentos submetidos ao regime de segredo de Estado, bem como à desclassificação, impondo a indicação dos «interesses a proteger e [d]os motivos ou [d]as circunstâncias que a justificam».
O artigo 6.º regula a duração do segredo, ao passo que o artigo 7.º, também questionado, trata da salvaguarda da acção penal, prevendo a faculdade de reserva temporária das informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado.
Os artigos 8.º e 9.º regulam a protecção dos documentos classificados e o acesso a documentos em segredo de Estado, respectivamente.
O artigo 10.º estabelece o dever de sigilo que recai sobre funcionários e agentes do Estado e quaisquer pessoas que, em razão das suas funções, tenham acesso a matérias classificadas e o artigo 11.º refere-se à legislação penal e disciplinar aplicável quando ocorra a violação do dever de sigilo e de guarda e conservação de documentos.
Os artigos 12.º e 13.º versam a fiscalização da aplicação do regime do segredo de Estado. O primeiro estabelece que a fiscalização do regime cabe à Assembleia da República, «nos termos da Constituição e do Regimento». O segundo cria uma entidade pública independente a quem cabe zelar pelo cumprimento desta lei, a qual funciona junto da Assembleia da República.
O artigo 14.º disciplina a impugnação graciosa ou contenciosa do acto que indefira o acesso a qualquer documento com fundamento em segredo de Estado, condicionando tal impugnação ao prévio pedido e à emissão de parecer da Comissão para a Fiscalização.
O artigo 15.º estabelece um regime transitório para as classificações de documentos como segredo de Estado anteriores a 25 de Abril de 1974.
O artigo 16.º dispõe sobre regulamentação e casos omissos, estatuindo o seguinte:
Sem prejuízo de o Governo dever regulamentar a matéria referente aos direitos e regalias dos membros da Comissão para a Fiscalização, nos casos omissos e, designadamente, no que diz respeito a prazos, aplica-se o disposto na Lei do Acesso aos Documentos da Administração.
O artigo 17.º, por último, estabelece uma vacatio legis de 30 dias para este diploma a contar da data da sua publicação.
B - A questão de constitucionalidade dos n.os 1 e 3 do artigo 2.º do decreto
9 - Como atrás se referiu, o Presidente da República começa por acentuar no seu requerimento a natureza excepcional do segredo de Estado, a qual considera impedir que a sua definição legal fique na livre disposição do legislador, apoiando-se no ensino de Gomes Canotilho e de Vital Moreira, os quais sustentam - em passo da sua anotação à Constituição que foi já transcrito - que o âmbito do segredo de Estado não pode ser tão amplo ou baseado em fórmulas tão vagas que legitimem uma arcana praxis que permita sonegar aos cidadãos o acesso à informação. E, depois de acentuar que o segredo de Estado implica a restrição de direitos, liberdades e garantias, devendo por isso a sua disciplina - na medida em que consagre restrições e direitos fundamentais - estar sujeita à observância dos pressupostos materiais de legitimidade constitucional das leis restritivas e, com particular rigor, dos princípios da precisão e determinabilidade da lei e da reserva de lei, afirma o Presidente da República que os artigos 35.º, n.º 1, e 159.º, alínea c), da Constituição obrigam a uma fixação e regulamentação clara e suficientemente densa das «excepções de segredo». Decorre do que afirma a mesma entidade, seguindo ainda o entendimento de Gomes Canotilho e de Vital Moreira, que o sentido da introdução no texto da Constituição pela 3.ª revisão constitucional, levada a cabo pela Lei Constitucional 1/92, de 25 de Novembro, da alínea i) do artigo 200.º, conjugada com a alínea f) do artigo 166.º, tem como consequência impossibilitar a invocação da «excepção de segredo» pelo Governo como causa justificativa para a não prestação à Assembleia da República de informações referentes ao processo de construção da união europeia, solução constitucional que confirmará a anterior afirmação acerca da necessária observância pelo legislador nesta matéria dos princípios de precisão e determinabilidade de lei e de reserva de lei.
Arrancando desta leitura do texto da Constituição, começa o Presidente da República por suscitar a dúvida sobre se o artigo 2.º, n.os 1 e 3, do decreto sub judicio, ao delimitar o âmbito do segredo de Estado com recurso «a fórmulas abertas e a conceitos vagos e indeterminados», não estará a violar os artigos 2.º e 18.º, n.º 3, da Constituição, por referência, designadamente, aos artigos 35.º, n.º 1, 38.º, n.º 2, alínea b), 48.º, n.º 2, 159.º, alínea c), e 200.º, alínea i), conjugado com o artigo 166.º, alínea f), todos da Constituição. Ainda segundo a afirmação do requerente, o recurso a conceitos vagos e indeterminados poderá dar origem a «uma excessiva indeterminação da definição e do âmbito do segredo de Estado e dos critérios de classificação a observar pelas entidades que podem conferir a classificação definitiva».
10 - Subordinado à epígrafe «Âmbito do segredo», dispõe este artigo 2.º do decreto:
1 - São abrangidos pelo segredo de Estado os documentos e informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é susceptível de pôr em risco ou de causar dano à independência nacional, à unidade e integridade do Estado e à sua segurança interna e externa.
2 - O risco e o dano referidos no número anterior são avaliados caso a caso em face das suas circunstâncias concretas, não resultando automaticamente da natureza das matérias a tratar.
3 - Podem, designadamente, ser submetidos ao regime de segredo de Estado, mas apenas verificado o condicionalismo previsto nos números anteriores, documentos que respeitem às seguintes matérias:
a) As que são transmitidas, a título confidencial, por Estados estrangeiros ou por organizações internacionais;
b) As relativas à estratégia a adoptar pelo País no quadro de negociações presentes ou futuras com outros Estados ou com organizações internacionais;
c) As que visam prevenir e assegurar a operacionalidade e a segurança do pessoal, dos equipamentos, do material e das instalações das Forças Armadas e das forças e serviços de segurança;
d) As relativas aos procedimentos em matéria de segurança na transmissão de dados e informações com outros Estados ou com organizações internacionais;
e) Aquelas cuja divulgação pode facilitar a prática de crimes contra a segurança do Estado;
f) As de natureza comercial, industrial, científica, técnica ou financeira que interessam à preparação da defesa militar do Estado.
Durante a discussão parlamentar, vários Deputados criticaram veementemente o projecto do PSD, na parte correspondente ao n.º 3 do artigo 2.º do mesmo, antecedente do n.º 2 do artigo 2.º do decreto em apreciação, imputando à formulação acolhida nas seis alíneas que o compunham o risco de uma total imprecisão e indeterminação do âmbito do segredo de Estado. Suscitaram particulares críticas às fórmulas das alíneas b) e f), na redacção desse projecto, que se transcreve:
Art. 2.º - 1 - ...
2 - ...
3 - Podem, designadamente, ser submetidas a segredo de Estado, mas apenas verificado o condicionalismo previsto nos números anteriores, as matérias seguintes:
...
b) As relativas a estratégia a adoptar pelo País no quadro de negociações presentes ou futuras com outros Estados ou com organizações internacionais;
...
f) As de natureza comercial, industrial, científica, técnica ou financeira que interessam à preparação da defesa militar do Estado ou cuja divulgação pode comprometer gravemente a competitividade do País nos planos económico e tecnológico, ou causar importantes prejuízos aos interesses do País.
11 - Para situar com rigor os termos em que foi discutido na generalidade o projecto do PSD nesta parte, importa referir brevemente quais as soluções preconizadas pelos outros três projectos em discussão.
O projecto n.º 58/VI, subscrito por Deputados do PS, indicava no seu artigo 3.º que constituam «segredos de Estado todas as informações, objectos ou documentos cuja revelação não autorizada cause grave dano à ordem constitucional e independência nacional e à segurança externa e interna do Estado». O projecto n.º 189/VI, apresentado por Deputados do PCP, estabelecia como regra geral a subordinação do Estado e da Administração Pública ao princípio impreterível da duplicidade dos actos, excepcionando-se «matérias cujo conteúdo, nos termos constitucionais e legais, constituam segredo de Estado» (artigo 2.º, n.º 2). O artigo 6.º deste projecto, por seu turno, indicava o âmbito do segredo de Estado, propondo que só pudessem constituir matéria do mesmo «as informações, documentos e objectos cujo conhecimento e cuja divulgação sejam susceptíveis de causar grave dano à ordem jurídica constitucional, à independência e à segurança externa e interna do Estado democrático». Por último, o projecto n.º 190/VI, subscrito por Deputados do CDS, previa que só pudessem «ficar abrangidos pelo regime de segredo de Estado factos, documentos que se lhe refiram ou actos concretos dos agentes do Estado cuja divulgação não autorizada seja susceptível de causar dano irreparável à integridade dos interesses fundamentais do Estado Português e à manutenção da ordem pública» (artigo 2.º, n.º 1), esclarecendo-se, no n.º 2, que o segredo de Estado «apenas protege processos identificados pelo seu objecto e nunca é aplicável a áreas abstractamente definidas».
O projecto do PSD considerava no seu preâmbulo perigosa para os direitos, garantias e liberdades uma cláusula geral de definição de segredo de Estado, sem uma qualquer exemplificação contretizadora do âmbito do mesmo, criticando, por isso, a solução acolhida no projecto n.º 58/VI (PS), o primeiro que fora apresentado na nova legislatura:
Explicitando melhor, dir-se-á que [...] uma lei reguladora, como acontece com o projecto de lei do PS, que apenas afirma que «constituem segredo de Estado todas as informações, objectos ou documentos cuja revelação não autorizada cause grave dano à ordem constitucional, à independência nacional e à segurança externa e interna do Estado», se mostra de tal maneira ampla que não garante o requisito essencial da restrição do segredo como pressuposto da defesa da regra fundamental da transparência.
Devem, por isso, rejeitar-se outras formulações nesse sentido e procurar-se na definição do conteúdo das matérias reservadas o máximo de rigor restritivo como única forma de salvaguardar o princípio da excepcionalidade do segredo. [In Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 47, de 1 de Julho de 1992, p. 919.]
Considerando, porém, que, em abstracto, todas as matérias cujo conhecimento possa pôr em risco ou causar dano à independência nacional, à unidade, à integridade do Estado e à sua segurança interna e externa são susceptíveis de atingir estes valores, importaria deixar claro através da norma do n.º 3 do artigo 2.º do projecto - na afirmação dos Deputados do PSD proponentes - que um conjunto de tais matérias «é definido como padrão ou núcleo restritivo, tornando, por isso, mais apertada a exigência na classificação fora da norma padrão, ao mesmo tempo que esta apenas intervém quando se atinjam os valores tutelados no n.º 1» (ibidem).
12 - Durante a discussão na generalidade, debateu-se a licitude da utilização de exemplos padrão, destinados a densificar o conceito de segredo de Estado. O Deputado João Amaral, por exemplo, negou que a utilização de exemplos padrão pudesse delimitar o conceito de segredo de Estado, afirmando que a densificação obtida por tal técnica, na explicitação das intenções dos seus autores, acabaria por «enriquecer» «o âmbito do segredo de Estado com matérias e situações que não cabem na cláusula geral e se acrescentam a ela» (in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 16 de Julho de 1992, p. 2899). O Deputado Alberto Martins defendeu a solução do projecto do PS, de afirmação de uma cláusula genérica próxima do texto constitucional, considerando que a solução não acarretaria perigos de abuso, dado o conjunto restrito de entidades com competência para classificar definitivamente documentos como segredo de Estado e «um acervo institucional rigoroso e preciso de controlos do segredo de Estado: [...] a comissão de acesso aos documentos e registos administrativos; [...] o tribunal administrativo; [...] os tribunais judiciais em geral e [...] o controlo político da Assembleia da República e do Presidentte da Assembleia da República» (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2912). O Deputado José Magalhães, por seu turno, censurou aos Deputados do PSD o terem avançado «com o segredo de Estado em condições proibitivas, generalizadas, sem controlo e com as famosas cláusulas padrão, que são um prodígio de ambiguidade e que dão, como é evidente, para tudo, e, sobretudo, sem controlos práticos, não há controlo jurisdicional, não há controlo parlamentar efectivo, não há controlo algum de qualquer instância independente» (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2914). O Deputado Narana Coissoró pôs em causa a alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do projecto do PSD, considerando a sua formulação demasiado lata, exemplificando a sua crítica aos modelos ou exemplos padrão com o caso do Tratado de Maastricht:
Ora, se, amanhã, o CDS, como partido da oposição, apresenta uma estratégia a seguir pelo País, relativamente à união europeia, ao Tratado de Maastricht ou ao princípio da subsidiariedade, em que está em causa a independência nacional - quanto ao princípio da subsidiariedade do Tratado de Maastricht entendemos que está em causa a independência nacional e a integridade do Estado, dissemo-lo publicamente e por isso é que pedimos o referendo -, se nós apresentarmos uma estratégia de negociação e o Governo a adoptar, somos obrigados a manter isso como segredo de Estado? E se eu disser a um jornalista que a estratégia do CDS, para não causar dano à independência nacional e para efeitos do Tratado de Maastricht, é esta, este jornalista, ou eu, vamos presos?
E, quanto à alínea f) do mesmo número e artigo, o referido Deputado formulou a seguinte pergunta:
Quando VV. Exas. dizem que são segredo de Estado as informações de carácter comercial que podem causar importantes prejuízos aos interesses do País, está-se, ou não, a confundir o interesse de uma empresa com o interesse do País? Se, amanhã, uma empresa tiver um segredo comercial que ela julgue que é fundamental para o País, deve o Estado garantir este segredo através do aparelho do segredo de Estado? [...] onde é que está então o respeito pelo mercado? Ou seja, em que medida é que o segredo comercial pode ser protegido pelo aparelho de Estado? [In Diário da Assembleia da República, cit., p. 2916.]
Respondendo a estas críticas, tiveram ocasião o Ministro da Justiça e a Deputada Margarida Silva Pereira de defender a bondade da técnica dos exemplos padrão. Afirmou o primeiro:
[...] o sistema da norma padrão resultou justamente dos movimentos democráticos do direito, que vieram, por esta via, considerar exemplificativamente aquelo que, em determinadas circunstâncias, poderia ser reconduzido à classificação das chamadas normas abertas e que, na perspectiva do segredo de Estado, se consideram normas propícias, não à transparência, como é óbvio, mas à ampliação do segredo, como é evidente. E aí começa o n.º 3 [do artigo 2.º do projecto do PSD] por afirmar que «podem» e, portanto, não são, não devem, não têm de ser, «designadamente» e, portanto, a título de exemplo, «ser submetidas a segredo de Estado, mas apenas verificado o condicionalismo previsto nos números anteriores». Isto é, se, em cada caso concreto, perante as circunstâncias do caso, a sua divulgação pública puser em risco ou causar dano à independência nacional, à segurança interna ou externa do Estado, podem então ser classificadas de segredo estas matérias. [Diário da Assembleia da República, cit., p. 2922.]
E a segunda repetiu, no final do debate, que havia perigos óbvios na utilização pelo legislador de uma noção lacónica de segredo de Estado, perigos que aconselhavam a técnica dos exemplos padrão, «uma conquista intelectual dos juristas que encabeçaram a primeira linha da defesa da legalidade e dos direitos fundamentais», citando José de Sousa Brito a este propósito - «é uma forma de combinar a essencialidade da descrição com a sua maior concretização a técnica legislativa dos exemplos de regra: a enumeração exemplificativa de hipóteses de menor generalidade que acompanham a regra mais geral». E concluiu sobre esta questão:
Repita-se: a dimensão da regra, da tão controversa regra, que o projecto do PSD contém não deve constituir factor de alarme, antes de segurança para quem se confronte com esta polémica matéria. [Diário da Assembleia da República, cit., p. 2963.]
13 - Uma análise das posições tomadas no debate parlamentar na generalidade dos quatro projectos de lei em matéria de segredo de Estado mostra que os críticos da solução preconizada pelos Deputados do PSD se baseavam não só no risco por eles denunciado de alargamento do âmbito do segredo de Estado através dos exemplos padrão, em especial dos constantes da transcrita alínea f) do n.º 3 do artigo 2.º desse projecto, como principalmente na ausência de um mecanismo, tido por eficaz, de controlo dos actos de classificação. Na verdade, nesse projecto estabelecia-se que a Assembleia da Repúblcia fiscalizava o regime do segredo de Estado, nos termos da Constituição e do seu Regimento, devendo este último estabelecer «os mecanismos necessários ao exercício da competência prevista no número anterior, com salvaguarda dos interesses que o segredo de Estado visa proteger» (artigo 11.º, n.º 2). Não se previa aí qualquer forma de fiscalização jurisdicional dos actos de classificação nem tão-pouco a criação de uma entidade pública independente com competências fiscalizadoras nessa matéria. A solução de confiar a fiscalização do regime do segredo de Estado à Assembleia da República era então sustentada pelo Ministro da Justiça com base na ideia de que «se o que está em jogo na decisão da Comissão para a Fiscalização [prevista noutros projectos de lei] é saber se um documento, cuja divulgação põe em causa ou não a independência nacional, poderá ser entregue a uma comissão que não responde politicamente por uma decisão de tal gravidade. E se amanhã decide que a divulgação de um documento não põe em causa a independência nacional e, no concreto, se vem a provar que isso aconteceu? Quem responde politicamente por esta decisão?» (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2923). E nesta mesma intervenção, o Ministro da Justiça negava que pudesse haver recurso contencioso da decisão de classificação de um documento como segredo de Estado, implicitamente aceitando que se tratava de um acto político sem controlo jurisdicional, havendo os tribunais de intervir apenas «para, em cada caso concreto, em que alguém seja, eventualmente, acusado de ter violado o segredo de Estado, terem então, em suprimento de intervenção final, a possibilidade de fazer a sindicância quanto a essa classificação, não para dizerem se está em jogo ou não a independência nacional, mas para definirem a culpa concreta da pessoa acusada de ter violado o segredo de Estado» (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2924).
Ora, a versão aprovada pela Assembleia da República e que se acha vertida no decreto em apreciação afastou-se neste ponto do projecto do PSD, admitindo, a par de uma fiscalização política da Assembleia da República, a criação de uma Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, entidade pública independente a funcionar junto daquela Assembleia, «a quem cabe zelar pelo cumprimento das disposições da presente lei» (artigo 13.º, n.º 1), competindo-lhe «apreciar as queixas que lhe sejam dirigidas sobre dificuldades ou recusa no acesso a documentos e registos classificados como segredo de Estado e sobre elas emitir parecer». Além disso, previu expressamente a impugnação graciosa ou contenciosa do acto de indeferimento de acesso a qualquer documento com fundamento em segredo de Estado, apontando para a natureza administrativa do acto de recusa de acesso (artigo 14.º).
Pode, por isso, concluir-se que as críticas dirigidas aos exemplos padrão tinham a ver fundamentalmente com o risco de alargamento do instituto, insusceptível de qualquer fiscalização por órgão administrativo independente ou pelos tribunais.
14 - Na votação final global, alguns dos requerimentos de avocação a Plenário da votação na especialidade do artigo 2.º foram justificados pelos seus autores pelos riscos de alargamento e de banalização da classificação como segredo de Estado, nomeadamente por força do grande número de entidades com poderes de classficação definitiva e as invocadas ambiguidades do sistema de controlo aprovado (intervenções dos Deputados António Filipe, José Magalhães, Alberto Martins e Alberto Costa, no Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 30 de Junho de 1993, a pp. 2905, 2906, 2914, 2015 e 2916).
O teor das críticas formuladas centrou-se, porém, predominantemente nas soluções constantes dos artigos 13.º e 14.º do texto preparado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, soluções mantidas nos artigos 13.º e 14.º do decreto.
15 - O relato detalhado dos trabalhos parlamentares agora feito destinou-se a pôr em confronto os modelos de delimitação do âmbito do segredo de Estado propugnados nos diferentes projectos.
É altura de indicar, embora de forma sumária, algumas soluções acolhidas em outras ordens jurídicas.
Em matéria de segredo de Estado, a orientação tradicional dos diferentes Estados era a de deixar à discricionariedade do executivo a fixação do âmbito deste segredo, limitando-se a lei penal a sancionar os actos de violação de segredo de Estado, sem curar em regra de o definir, muito embora os Códios Penais incluíssem diferentes tipos criminais relacionados com a violação da segurança interna ou externa do Estado (crimes de traição, espionagem, inteligências com o estrangeiro para provocar a guerra, campanha contra o esforço de guerra, etc.). Constitui paradigma desta amplitude máxima do segredo de Estado a orientação acolhida no Official Secrets Act britânico (de 1911-1939), cuja secção 2.ª constitui uma disposição da maior amplitude, abrindo uma «plétora» de cerca de 2000 diferentes ilícitos (a catch-all clause), que abrange um número vastíssimo de situações em que é imposto o dever de sigilo a funcionários públicos e a terceiros quanto a factos, documentos e informações reservados, segundo decisão do executivo, solução que só é socialmente suportável dada a ampla discricionariedade no exercício da acção penal (sobre esta lei e as tentativas de reforma, v. E. C. S. Wade e A. W. Bradly, Constitucional and Administrative Law, 10.ª ed., Londres e Nova Iorque, 1985, pp. 567 e seguintes; Martin Minogue, Documents on Contemporary Bristish Government, I, Cambridge, 1977, pp. 567 e seguintes). Também nos Estados Unidos da América, a matéria de classificação de documentos confidenciais é regulada por regulamentos do executivo elaborados pelo Presidente:
Para retirar informação do público e da imprensa, o Presidente dos EUA goza de poderes para classificar informação e para restringir o acesso a tal material.
Só existiu a partir da 1.ª Guerra Mundial um sistema de classificação organizada, e nessa altura somente para os departamentos militares. A classificação foi alargada aos departamentos civis pelo Presidente Truman em 1951, e desde então tem sido mantida por uma série de regulamentos do executivo (Executive orders). O sistema de classificação nunca foi autorizado por lei, embora o Congresso tenha em muitas ocasiões reconhecido o estatuto decorrente da classificação por remissão [de leis].
A classificação da informação da segurança nacional está actualmente disciplinada pela Executive Order 12356, emitida pelo Presidente Reagan em 2 de Abril de 1982. O regulamento dispõe que a informação de segurança nacional será classificada em um de três níveis: «muito secreto» («cuja revelação não autorizada pode esperar-se razoavelmente que seja susceptível de causar um prejuízo excepcionalmente grave à segurança nacional»); «secreto» («prejuízo sério») e «confidencial» («prejuízo»). O regulamento estabelece os procedimentos de classificação e de desclassificação. Limita igualmente o acesso à informação classificada àqueles cuja «fidelidade tenha sido [determinada] pelos responsáveis máximos do serviço ou pelos agentes designados, desde que tal acesso seja essencial à execução de finalidades governamentais autorizadas e de natureza legítima». [Abraham D. Sofaer, «National Security and Leaks: The Government's Authority to Discipline Itself», in Free Speech and National Security, obra colectiva editada por Shimon Shetreet, Dordrecht, Boston e Londres, 1990, p. 68.]
Em anos recentes, em países do continente europeu, diferentes soluções têm sido adoptadas para delimitar, através da lei, a sujeição ao regime de segredo de Estado de documentos e informações da Administração Pública, nomeadamente tendo em vista as consequências gravosas, para os direitos fundamentais dos cidadãos, do secretismo oficial. Tais leis recorrem normalmente a noções de carácter geral de segredo de Estado, que envolvem uma ampla margem de discricionariedade na sua aplicação.
Assim, e confinando-nos a países membros da Comunidade Económica Europeia, indicar-se-á o caso da Itália, onde a matéria se acha regulamentada pela Lei 801, de 24 de Outubro de 1977. Nos termos do artigo 12.º desta lei, estão cobertos pelo segredo de Estado «aos actos, documentos, informações, actividades e tudo aquilo cuja difusão seja susceptível de causar dano à integridade do Estado democrático, às relações ou acordos internacionais, à defesa das instituições previstas na Constituição como seu fundamento, ao livre exercício das funções dos órgãos constitucionais, à independência do Estado e à defesa militar do Estado» (cf. Silvano Labriola, Le Informazioni per la Sicurezza dello Stato, Milão, 1978, pp. 84 e seguintes; do mesmo autor, voc. «Segreto di Stato», in Enciclopedia del Diritto, vol. XLI, Milão, 1989, pp. 1029 e seguintes). O n.º 2 deste artigo 12.º da lei italiana exclui, porém, do âmbito do segredo de Estado os factos respeitantes à subversão da ordem constitucional. Esta lei veio a ser publicada na sequência de duas decisões do Tribunal Constitucional (sentenças n.os 82, de 6 de Abril de 1976, e 86, de 24 de Maio de 1977), visando a primeira um caso de recusa de prestação de informações aos tribunais por autoridades militares, com base no segredo militar, e a segunda uma situação de determinação da autoridade política competente para autorizar ou recusar autorização a um funcionário para depor como testemunha, havendo o risco de o depoimento incidir sobre o segredo de Estado.
Na Espanha, na fase imediatamente anterior à entrada em vigor da Constituição de 1978, foi publicada uma lei que alterou a lei de 1968 sobre segredo de Estado (Lei 48/78, de 7 de Outubro de 1978, que alterou a Lei 9/68, de 5 de Abril de 1968). Segundo o artigo 2.º da lei então modificada, «poderão ser declaradas 'matérias classificadas' os assuntos, actos, documentos, informações, dados e objectos cujo conhecimento por pessoas não autorizadas possa causar dano ou pôr em risco a segurança e a defesa do Estado» (v. Germán Gómez Orfanel, «Secreto de Estado y Publicidade en Espãna», in Estado e Direito, n.º 1, Outubro/Novembro de 1987-1988, p. 34; sobre esta matéria, Fernando Sainz Moreno, «Secreto e Información en el Derecho Público», in Estudios sobre la Constitución Espaãnola, Homenaje al Professor Eduardo García de Enterria, III, Madrid, 1991, pp. 2895 e seguintes). A classificação de documentos requer um acto formal, comporta dois níveis «secreto» e «reservado» e compete exclusivamente ao Conselho de Ministros ou à Junta dos Chefes de Estado-Maior. A relação de assuntos e matérias de segredos oficiais foi estabelecida, com carácter genérico, quanto às matérias que devem ser classificadas como secretas e às que devem ser classificadas como reservadas, por um acordo do Conselho de Ministros de 28 de Novembro de 1986, publicado no jornal oficial (cf. F. Sainz Moreno, estudo citado, pp. 2896-2897).
Em França, a protecção das informações que afectam a defesa nacional ou a segurança do Estado está regulada por normas administrativas e penais. No plano administrativo, o Decreto 81-514, de 12 de Maio de 1981, regula a matéria de segredo de Estado e proíbe a todas as pessoas a difusão de informações respeitantes a tais domínios, estabelecendo três níveis de protecção («très secret défense», aplicável às informações cuja divulgação pode causar dano à defesa nacional no que respeita às prioridades governamentais em matéria de defesa; «secret défense», aplicável às informações cuja divulgação pode prejudicar a defesa nacional e a segurança do Estado; «confidentiel défense», aplicável às informações que não têm, elas próprias, um carácter secreto, mas cujo conhecimento pode conduzir à divulgação de um segredo que afecte a defesa nacional ou a segurança do Estado). O primeiro nível de classificação é da competência apenas do Primeiro-Ministro; os segundo e terceiro níveis, da competência dos ministros. Os tribunais não podem exigir a apresentação de documentos cobertos pelo segredo de Estado (sobre a legislação francesa e a prática francesa, em especial a relevância do segredo de Estado face ao Parlamento e aos tribunais, v. a detalhada referência de F. Sainz Moreno, estudo citado, pp. 2955 a 2958, n.º 100; A. de Laubadère, J. C. Venezia e Y. Gaudemet, Traité de Droit Administratif, t. I, 11.ª ed., Paris, 1990, p. 581). A relevância do segredo de Estado, no que toca à defesa nacional e à segurança pública, para negar o acesso dos administrados aos arquivos da Administração pode implicar a intervenção da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, prevista na Lei 78-753, de 17 de Julho de 1978.
Na Alemanha, não existe uma regulamentação legal em matéria de segredo de Estado, admitindo a jurisprudência a legitimidade constitucional do privilégio que o executivo tem de manter secretas certas actividades, do domínio da defesa e da segurança, muito embora seja discutida a extensão desse privilégio, nomeadamente face ao Parlamento (cf. Hans Joachin Mengel, «Die Auskunftsverweigerung der Executive gegenüber parlamentarische Untersuchungsausschüssen», in Europäische Grundrechte Zeitschrift, 1984, pp. 97-103, e F. Sainz Moreno, estudo citado, pp. 2951-2952, n.º 98).
16 - É altura, pois, de decidir se procedem as dúvidas suscitadas pelo Presidente da República quanto aos n.os 1 e 3 do artigo 2.º do decreto sub judicio.
Entende-se que tais normas não se acham afectadas de inconstitucionalidade, não se mostrando violados os artigos 2.º e 18.º, n.º 3, da Constituição, por referência aos artigos 35.º, n.º 1, 37.º, n.º 1, 38.º, n.º 2, alínea b), 48.º, n.º 2, 159.º, alínea c), e 200.º, alínea i), conjugado com o artigo 166.º, alínea f), da Constituição.
Não se põe em causa que o segredo de Estado pode funcionar como restrição ao exercício de liberdades e direitos fundamentais, como sejam o direito de acesso dos cidadãos aos dados constantes de ficheiros ou registos informáticos a seu respeito (artigo 35.º, n.º 1, da Constituição), a liberdade de informação, na sua vertente do «direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações» (artigo 37.º, n.º 1, da lei fundamental), a liberdade de imprensa, em especial no que toca ao direito «dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso a fontes de informação» [artigo 38.º, n.º 2, alínea b), da Constituição], o direito de os cidadãos serem «esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos» (artigo 48.º, n.º 2, da lei fundamental).
Tão-pouco se nega que o direito dos Deputados a obterem respostas do Governo a perguntas por eles formuladas, sem prejuízo do disposto na lei sobre segredo de Estado, possa ser afectado pelo modo como venha a ser interpretada e aplicada esta última lei. Neste caso, porém, a verdade é que a própria Constituição consagrou expressamente a restrição ao exercício dos poderes dos Deputados por força do regime do segredo de Estado, isto sem prejuízo dos poderes que cabem à Assembleia da República, enquanto assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses (artigo 150.º da Constituição), de fiscalização do Governo e da Administração [cf. artigo 165.º, alínea a), da Constituição]. Face a esta genérica competência de fiscalização da Assembleia da República, enquanto órgão de soberania, bem se compreende que a 3.ª revisão constitucional haja consagrado a competência de «acompanhar e apreciar, nos termos da lei, a participação de Portugal no proceso de construção da união europeia», [artigo 166.º, alínea f), da Constituição], impondo ao Governo a obrigação de «apresentar, em tempo útil, à Assembleia da República, para efeito do disposto na alínea f) do artigo 166.º, informação referente ao processo de construção da união europeia» [artigo 200.º, alínea i)]. Tratou-se de explicitar a coordenação de actividades do órgão parlamentar e do executivo para um eficaz exercício das respectivas competências. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a introdução em 1992 da alínea i) no artigo 200.º da Constituição inseriu-se «no movimento de reacção contra a crescente desparlamentarização do processo político dos Estados membros, com o consequente agravamento do défice democrático» (Constituição, cit., p. 774), apontando a norma, conjugada com a nova alínea f), do artigo 166.º «também para a restrição, neste domínio, da invocação, pelo Governo, do 'segredo de Estado' como causa justificativa para a não prestação de informações que lhe forem solicitadas pela Assembleia da República ou que estava jurídico-constitucionalmente obrigado a fornecer» (ibidem).
Simplesmente, não se afigura exigível, num domínio plurifacetado como é o do segredo de Estado, que o legislador não possa recorrer a cláusulas gerais, com exemplificações, contendo conceitos com relativa indeterminação. No Acórdão 278/92, da 1.ª Secção deste Tribunal (in Diário da República, 2.ª série, n.º 286, de 12 de Dezembro de 1992, pp. 11754 e seguintes), que versou igualmente matéria de segredo de Estado, no domínio do processo penal, em processo de fiscalização concreta, o Tribunal acolheu expressamente a posição de Gomes Canotilho de considerar que a Administração, dotada de «discricionariedade», se acha vinculada directamente pelas normas consagradoras dos direitos, liberdades e garantias, constituindo estas últimas, em si, medidas de valoração quando a Administração tem de densificar conceitos indeterminados, como o de segredo de Estado (cf. Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 1991, p. 598).
17 - O princípio da precisão ou determinabilidade das leis implica que o legislador elabore normas jurídicas claras, suceptíveis de interpretação que conduza a um sentido inequívoco, e que tenham a suficiente densidade, de forma a constituírem uma medida jurídica capaz de alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos, traduzindo uma norma de actuação para a Administração, possibilitando, como norma de controlo, a fiscalização de legalidade e a defesa dos direitos e interesses protegidos (ensino de Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 376 e seguintes, acolhido no Acórdão 285/92 do Tribunal Constitucional, no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 188, de 17 de Agosto de 1992, pp. 2962 e seguintes).
Ora, no decreto em presença, bem pode dizer-se que o legislador cumpriu de forma constitucionalmente admissível os imperativos decorrentes do princípio da precisão ou determinabilidade das leis, não se apartando do que se viu ser a orientação de alguns ordenamentos jurídicos que estão próximos do português (caso, por exemplo, dos ordenamentos italiano e espanhol). De facto, lendo conjugadamento os artigos 1.º e 2.º do decreto, alcança-se que:
O regime de segredo de Estado é definido pelo presente diploma, obedecendo aos princípios da excepcionalidade, subsidiariedade (cf. n.os 2 e 3 do artigo 1.º e n.º 3 do artigo 9.º), necessidade, proporcionalidade, tempestividade, igualdade, justiça e imparcialidade, bem como ao dever de fundamentação;
São abrangidos pelo segredo de Estado os documentos e informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é susceptível de pôr em risco ou de causar dano à independência nacional, à unidade e integridade do estado e à sua segurança interna e externa;
O risco e o dano eventualmente decorrente do conhecimento por pessoas não autorizadas de certos documentos e informações respeitantes aos domínios indicados têm de ser avaliados casuisticamente (caso a caso, em face das suas circunstâncias concretas), não resultando automaticamente da natureza das matérias a tratar;
Os documentos que podem ser submetidos ao regime de segredo de Estado, mas apenas em função da referida avaliação casuística e com referência aos domínios indicados, podem respeitar a um conjunto de matérias enumeradas exemplificativamente (as transmitidas, a título confidencial por Estados estrangeiros ou por organizações internacionais; as relativas à estratégia a adoptar pelo País no quadro de negociações presentes ou futuras com outros Estados ou organizações internacionais; as que visam prevenir e assegurar a operacionalidade e a segurança do pessoal, dos equipamentos, do material e das instalações das Forças Armadas e das forças e serviços de segurança; as relativas aos procedimentos em matéria de segurança na transmissão de dados e informações com outros Estados ou com organizações internacionais; aquelas cuja divulgação pode facilitar a prática de crimes contra a segurança do Estado; as de natureza comercial, industrial, científica, técnica ou financeira que interessam à preparação da defesa militar do Estado);
As matérias indicadas a título exemplificativo, por serem as mais frequentes na prática secular dos Estados soberanos (id quod plerumque accidit), reconduzem-se a um ou mais dos quatro domínios indicados [por exemplo, as constantes das alíneas a) e b) têm a ver com a unidade e integridade do Estado e a sua segurança interna ou externa; as das alíneas c) e d) têm a ver com a independência nacional, a unidade e integridade do Estado, a sua segurança interna e externa; a da alínea e), com a segurança interna e externa do Estado, etc.].
Acresce a isto que são instituídos mecanismos de fiscalização dos actos de aplicação da lei, nos seus artigos 13.º e 14.º, os quais visam permitir, ainda que de modo parcelar, um controlo sobre o modo como os órgãos de soberania densificam os conceitos indeterminados constantes dos artigos 1.º e 2.º, em especial quanto aos actos de recusa de acesso a documentos classificados.
18 - Conclui-se, assim, no sentido de que não sofrem de insconstitucionalidade os n.os 1 e 3 do artigo 2.º do decreto em apreciação.
C - A questão de constitucionalidade do artigo 7.º do decreto
19 - Dispõe este artigo 7.º, subordinado à epígrafe «Salvaguarda da acção penal»:
As informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado devem ser comunicados às entidades competentes para a sua investigação, não podendo ser mantidos reservados, a título de segredo de Estado, salvo pelo titular máximo do órgão de soberania detentor do segredo e pelo tempo estritamente necessário à salvaguarda da segurança interna e externa do Estado.
O Presidente da República questiona apenas a constitucionalidade da parte final deste artigo, ou seja, a possibilidade de manter reservados a título de segredo de Estado, por período transitório (pelo tempo estritamente necessário à salvaguarda da segurança interna e externa do Estado), as informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado, manutenção de reserva que é da competência do titular máximo do órgão de soberania detentor do segredo. Segundo o requerente, a parte final deste artigo 7.º poderá revelar-se «uma norma aberta em termos que poderão conflituar com os artigos 2.º e 18.º, n.os 2 e 3, por referência, designadamente, ao artigo 20.º e às 'garantias do processo criminal' constantes do artigo 32.º, todos da Constituição».
20 - Como se referiu atrás (II, A, n.º 5), existe já no nosso ordenamento jurídico e no que toca aos serviços integrados no Sistema de Informações da República Portuguesa, uma norma de teor idêntico à da parte final do artigo 7.º deste decreto. Trata-se do n.º 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei 223/85, a qual confere ao Primeiro-Ministro a faculdade de autorizar o retardamento da comunicação de informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado «pelo tempo estritamente necessário à prossecução das finalidades institucionais dos serviços».
Qualquer destas normas parece ter sido inspirada pelos n.os 4 e 5 do artigo 9.º da lei italiana de 1978, disposição que «regula a relação entre as actividades de informação para a segurança e exercício da acção penal, prescrevendo a obrigação dos directores dos serviços [de informação] (não de qualquer sujeito que a eles pertença) de fornecer aos competentes órgãos de polícia judiciária as informações e os elementos de prova relativos aos factos configuráveis como crimes. O sucessivo n.º 5 prevê que o cumprimento da obrigação possa ser retardado, por determinação do ministro competente e com o explícito consentimento do Presidente do Conselho, quando tal seja estritamente necessário para a prossecução das finalidades institucionais dos serviços» (Silvano Labriola, artigo citado, Enciclopedia del Diritto, XLI, p. 1033; do mesmo autor, Le Informazioni, pp. 168 e seguintes). Na opinião maioritária da doutrina italiana, tal retardamento da denúncia não pode qualificar-se como acto político, não podendo sequer qualificar-se como modalidade atípica de segredo de Estado, estando sujeito, por isso, ao limite de que não constitua aplicação sub-reptícia do segredo de Estado. Labriola sustenta, por outro lado, que tal retardamento não pode ser legitimamente prolongado, quando dele derive um prejuízo irreparável ao exercício da acção penal, provocando a correspondente responsabilidade comum dos sujeitos que participarem nessa decisão (director dos serviços de informação, ministro e Presidente do Conselho de Ministros).
21 - Para o correcto entendimento da norma em apreciação, importa atentar em que a referência ao titular máximo do órgão de soberania detentor do segredo de Estado visa limitar o poder de decidir a reserva das informações e elementos probatórios respeitantes a factos indiciários da prática dos aludidos crimes ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e, eventualmente, ao Presidente da Assembleia da República. Atendendo a que no decreto em apreciação há outras entidades com o poder de classificar documentos e informações como segredo de Estado, a título definitivo ou provisório (ministros, Presidentes dos Governos Regionais e Governador de Macau; Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e os directores dos serviços do Sistema de Informações da República), parece manifesto que o artigo 7.º, parte final, pretendeu afastá-los da possibilidade de determinarem tal reserva.
22 - No decurso dos debates parlamentares, a solução constante do n.º 2 do artigo 7.º do projecto do PSD, reproduzida sucessivamente no artigo 7.º, parte final, do texto da Comissão e, hoje, no artigo 7.º do decreto em apreciação, foi objecto de críticas por parte de alguns parlamentares. Assim, o Deputado Mário Tomé perguntou ao Deputado Fernando Condesso se, tendo em conta o que estava a acontecer com um caso pendente em tribunal criminal (o caso GAL), «e com o impedimento de pôr em Tribunal os elementos da DINFO, ou se o n.º 2 do artigo 7.º [do projecto do PSD] não visa legalizar esta prática e se isso não limita a soberania dos tribunais» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 16 de Julho de 1992, p. 2915). O interpelado negou que tal fosse a intenção dos proponentes, adiantando tratar-se tão-só «de um problema de dilatação ou não da participação crime, que, tendo a ver com os interesses gerais a proteger nesse domínio, não tem a carga que lhe pretende dar» (mesmo Diário da Assembleia da República, p. 2918). Na reunião em que se fez a votação final global, os Deputados António Filipe e José Magalhães requereram a avocação a Plenário da votação na especialidade do artigo 7.º do texto da Comissão. O primeiro considerou que se tratava de «disposição de extrema gravidade, pois parte do princípio de que, face a indícios conhecidos ou a meios de prova relativos a crimes contra a segurança do Estado, existem entidades melhor colocadas para a salvaguarda dessa segurança do que as entidades competentes para a investigação criminal e que essas entidades são os mais altos valores de cargos políticos» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 30 de Junho de 1993). O segundo Deputado considerou, na fundamentação oral do seu requerimento de avocação, que a norma em causa era inconstitucional, por atribuir a órgãos de soberania «o poder de bloquear o normal funcionamento dos tribunais e dos órgãos de prevenção e repressão criminal, ocultando-lhes provas de crimes e facultando-lhes uma proibição de investigar verdadeiros e próprios delitos». E acrescentou mais quatro razões pelas quais a norma em apreciação seria inconstitucional: a circunstância de abranger todos os crimes susceptíveis de serem praticados por titulares de órgãos do Poder, podendo, assim, inviabilizar a efectivação do disposto na própria lei sobre crimes de responsabilidade dos ministros e dos outros órgãos de soberania e violar, assim, a separação de poderes constitucionalmente consagrada; o facto de o articulado abranger ainda outros crimes, em relação aos quais a ideia de retenção e de impedimento da acção criminal é igualmente aberrante e de graves efeitos (como, por exemplo, os crimes relativos a fraudes eleitorais e de recensemaneto); em seguida, a circunstância de a lei convidar «o Primeiro-Ministro e outros órgãos do Estado a constituírem-se em órgãos de segurança, investigando em pré-inquérito factos criminosos que retêm, possibilita ainda que, com essa obstrução, haja situações de crime continuado, destruição de provas, novas acções criminosas com a mesma origem e impede ou pode impedir acções de prevenção efectuadas pelos órgãos constitucionais de conbate ao crime»; por último, tal norma pressuporia a existência de outros meios «não especificados para combater crimes contra a segurança do Estado que não a investigação criminal, fazendo renascer a 'razão de Estado' e a 'garantia administrativa' como elementos legitimadores de entorses ao pleno cumprimento daquilo que decorre da legalidade democrática» (Diário da Assembleia da República, cit., pp. 2911-2912).
23 - Considera-se que não são procedentes as dúvidas de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da República quanto à parte final do artigo 7.º do decreto em apreciação.
Embora tal norma introduza uma restrição a diferentes disposições constitucionais em matéria de processo criminal, a verdade é que tal restrição se acha justificada pela necessidade de salvaguardar outros valores e interesses constitucionais protegidos, nomeadamente a independência do País, a integridade do seu território, a segurança interna e externa da comunidade política [cf. artigos 1.º, 2.º, 3.º, 5.º, n.º 3, 9.º, alínea a), e 273.º, n.º 1, da Constituição]. A primeira parte do artigo 7.º do decreto estabelece a obrigação de comunicação das informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado às entidades competentes para a sua investigação, confirmando, assim, ser claramente ilícita qualquer forma de ocultação da prática de tais crimes. A parte final da mesma disposição, porém, admite que, temporariamente, possam ser mantidos reservados tais elementos de prova e informações, a título de segredo de Estado, mas tal reserva tem de ser determinada pelo titular máximo do órgão de soberania detentor do segredo, isto é, na prática, o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro - são estas, de facto, as entidades que detêm competências constitucionais em domínios onde podem surgir segredos de Estado com maior frequência [v. os artigos 137.º, alíneas a) e e), 141.º, 185.º, 193.º, 194.º, n.º 1, 200.º, alíneas f) e g), 202.º, alíneas d), f) e g), e 204.º, n.º 1, todos da Constituição] - «e pelo tempo estritamente necessário à salvaguarda da segurança interna e externa do Estado».
Dados os apertados condicionalismos estabelecidos, considera-se que a restrição introduzida ao dever de imediata denúncia da prática de um crime não viola os princípios da necessidade e de proporcionalidade, não aniquilando os direitos conferidos pelas regras de processo criminal contidas no artigo 32.º da Constituição, em especial os assegurados aos arguidos no âmbito do processo criminal, nem sendo suspectível de criar o risco de estabelecer uma encapotada «garantia administrativa», de que seriam beneficiários certos agentes do Estado (membros das forças de segurança, nomeadamente). Tão-pouco se pode sustentar que a possibilidade de retardamento da denúncia contemplada pela norma em apreciação possa abranger todos os crimes contra a segurança do Estado, como tais previstos e qualificados no Código Penal, havendo certos crimes contra a realização do Estado de direito (por exemplo, a coacção de eleitor ou a violação do segredo de escrutínio) que, manifestamente, não devem ser considerados «crimes contra a segurança do Estado» no contexto deste artigo, não podendo, por isso, o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro determinar a reserva das informações e dos elementos probatórios respeitantes à prática desses crimes, o que já poderia traduzir uma consideração desproporcionada e ilícita da chamada «razão de Estado» e, nessa medida, se revelaria contrário à Constituição.
Conclui-se, assim, que não sofre de inconstitucionalidade a parte final do artigo 7.º do decreto, não se mostrando violados os artigos 18.º, n.º 2, com referência ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1, 2 e 4, todos da Constituição.
D - A questão da constitucionalidade do artigo 3.º, n.º 1, do decreto, na parte em que inclui entre os titulares do poder de classificação definitiva de documentos os presidentes dos governos regionais.
24 - Dispõe o n.º 1 do artigo 2.º do decreto em apreciação, sob a epígrafe «Classificação de segurança»:
A classificação como segredo de Estado nos termos do artigo anterior é da competência do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, dos ministos, dos Presidentes dos Governos Regionais e do Governador de Macau.
O Presidente da República formula dúvidas quanto à parte do n.º 1 do artigo 3.º que atribui competência para classificar definitivamente documentos e informações como segredo de Estado aos Presidentes dos Governos Regionais da Madeira e dos Açores: por um lado e na medida em que se entenda que a Constituição não admite que órgãos infra-estaduais possam classificar segredos no domínio de Estado - tal como o faz o constitucionalista Jorge Miranda -, a norma em apreciação poderá violar, entre outros, os artigos 6.º, n.º 1, 9.º, alínea a), e 273.º da Constituição, ao atribuir ao presidnete de um órgão regional poder em matérias constitucionalmente configuradas como tarefas e obrigações do Estado e como tal reservadas aos órgãos de soberania; por outro lado, seria defensável o entendimento de que a referida norma alarga, sem justificação material bastante, o âmbito de restrição de direitos, liberdades e garantias - entre outros, dos direitos de informação consagrados no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição - se se considerar não terem as Regiões Autónomas (v. artigo 229.º da Constituição) poderes para a prática de actos de competência própria em qualquer das matérias que podem vir a determinar a classificação de informações e documentos como segredo de Estado, com violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da lei fundamental.
25 - O projecto apresentado por Deputados do PSD conferia competência para a classificação a título definitivo de documentos e informações como segredo de Estado apenas ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República e aos mesmbros do Governo (artigo 3.º, n.º 2). Admitia, porém, que, por razões de urgência, tal classificação pudesse ser determinada, a título provisório, entre outros, pelos Presidentes dos Governos Regionais [artigo 3.º, n.º 4, alínea c)]. Idêntica solução era admitida pelo projecto n.º 58/VI (PS), no seu artigo 7.º, n.º 1, alínea c). No projecto n.º 189/VI (PCP), os Presidentes dos Governos Regionais podiam propor às entidades competentes a classificação como segredo de Estado de certos documentos ou informações (artigo 9.º, n.º 1), admitindo-se que, por razões de urgência fundamentadas, estas entidades, entre outras, pudessem proceder à classificação provisória de informações, por um prazo máximo de quarenta e oito horas (artigo 9.º, n.º 2).
Apenas o projecto de Deputados do CDS previa que a qualificação da matéria como segredo de Estado pudesse ser feita a título definitivo pelos Presidentes dos Governos Regionais, isto é, no mesmo plano do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República e do Primeiro-Ministro, de acordo com as respectivas atribuições (artigo 3.º, n.º 1). No debate de apreciação dos projectos na generalidade, o Deputado Narana Coissoró explicou que o projecto por si subscrito retirava aos chefes militares a faculdade de qualificação como segredo de Estado «para total garantia da subordinação das Forças Armadas ao poder político», do mesmo passo que alargava «aos Presidentes dos Governos Regionais nas matérias específicas das suas atribuições como própria consequência do regime autonómico constitucionalmente consagrado». Em jeito de parêntesis, este Deputado aproveitou para responder à questão posta por um Deputado do PS, esclarecendo que não se devia atribuir tal poder de qualificação aos Ministros da República, «uma vez que eles têm assento no Conselho de Ministros da República, fazem parte do Governo e uma vez que a autoridade do Primeiro-Ministro encobria a confidencialidade que, porventura, os Ministros da República pudessem ter» Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 16 de Julho de 1992, p. 2919).
Foi no texto elaborado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que surgiu a inclusão dos Presidentes dos Governos Regionais no elenco das entidades com poderes de classificação a título definitivo (artigo 3.º, n.º 1). Tal solução suscitou fortes críticas da parte dos Deputados António Filipe e Alberto Martins. O primeiro considerou que se tratava de solução absurda a atribuição de competências em matéria de classificação aos Presidentes dos Governos Regionais, afirmando que se tratava de «consagrar um verdadeiro 'segredo de região' a coberto da protecção que será dada às matérias a classificar como segredo de Estado», transcendendo tal poder, «de uma forma grosseira, o quadro de poderes que a Constituição lhes confere» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 30 de Junho de 1993, pp. 2907-2908). O segundo Deputado considerou que esta solução significava «poder retirar a participação plena da República soberana em matéria a que a Região Autónoma tem acesso primeiro, mas que, num segundo momento, poderia furtar, uma vez que tem esse poder, ao controlo da República». Acrescentou ainda o mesmo parlamentar que a concessão desse poder e a sujeição dos actos dos Presidentes dos Governos Regionais «a controlo da Comissão para a Fiscalização cominaria uma situação que, para nós, é pulverizadora dos controlos constitucionais e, na prática, incapaz de um controlo e de uma fiscalização efectiva» (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2909).
A bancada do PSD, através da voz do Deputado Guilherme Silva, justificou a solução adoptada pela Comissão com base na autonomia regional consagrada na Constituição, considerando que não seria na incidência da administração regional que se devia ver a competência dos Presidentes desses órgãos, «mas nas vertentes de participação nacional e internacional em representação dessas Regiões, designadamente, como vem especificado na Constituição, a participação, através dos seus Presidentes, em negociações de tratados e convenções internacionais». Além disso, os Presidentes dos Governos Regionais eram membros do Conselho Superior de Defesa Nacional e do Conselho de Estado, detendo, assim, «competências que estão para além da simples direcção administrativa da Região e, portanto, é nesta vertente de Estado constitucional que se tem de ver esta competência» (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2909). A esta posição contrapôs o Deputado Alberto Martins a afirmação de que «o segredo de Estado é uma função de soberania», afirmando que «só por razões de guerrilha política ela foi atribuída, em termos definitivos, aos Presidentes dos Governos Regionais» (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2910). A fundamentação mais precisa da posição nesta matéria consta de declaração de voto subscrita por três Deputados do PS, publicada no mesmo Diário da Assembleia da República, a p. 2918.
26 - Entende este Tribunal que padece de inconstitucionalidade a solução de conferir aos Presidentes dos Governos Regionais o poder de classificar a título definitivo documentos e informações como segredo de Estado.
Tal inconstitucionalidade decorre do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 9.º, alínea a), e 273.º da Constituição.
Na verdade, o artigo 6.º, n.º 1, da Constituição estatui que o Estado é unitário, embora respeitando na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da Administração Pública. Não afecta a natureza unitária do Estado a qualificação como regiões autónomas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, a qual implica a existência de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio (n.º 2 do mesmo artigo 6.º). Ainda que se considere que Portugal é um Estado regional (nesse sentido, Fernando Amâncio Ferreira, As Regiões Autónomas na Constituição Portuguesa, Coimbra, 1980, pp. 14 e seguintes; em sentido diverso, v. Pedro Machete, «Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXXIII, n.os 1 e 2, Janeiro/Junho de 1991, pp. 173 e seguintes; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 90-91), a matéria de segredo de Estado é uma matéria que diz respeito exclusivamente aos órgãos de soberania e à República, visto caber ao Estado «garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam» [artigo 9.º, alínea a), da Constituição]. Constituem, de facto, limites à autonomia regional da Madeira e dos Açores a soberania, a unidade política do Estado e o interesse nacional, explicitando a Constituição que a «autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição» (artigo 227.º, n.º 3).
Como resulta do próprio decreto em apreciação, o regime do segredo de Estado abrange os documentos e informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é susceptível de pôr em risco ou de causar dano à independência nacional, à unidade e integridade do Estado e à sua segurança interna e externa. Trata-se, pois, de um meio de tutela de interesses próprios de um Estado soberano, tendo de ser avaliados, em última análise, pelos órgãos de soberania. Ora, a Constituição atribui ao Estado, no seu artigo 273.º, a obrigação de assegurar a defesa nacional, a qual tem por objectivos «garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade contra qualquer agressão ou ameaça externa».
Não procedem, por isso, os argumentos avançados no debate parlamentar para defender a solução em apreciação. A circunstância de os Presidentes dos Governos Regionais participarem em órgãos políticos nacionais cuja composição se acha prevista na Constituição [é o caso do Conselho de Estado - cf. artigo 145.º, alínea e), da lei fundamental] ou estabelecida na lei [caso do Conselho Superior de Defesa Nacional - cf. artigo 274.º, n.º 1, da Constituição, e Lei de Defesa Nacional, Lei 29/82, de 11 de Dezembro, artigo 46.º, n.º 1, alínea f)] não os transforma automaticamente em titulares de órgãos da República e, muito menos, em órgãos de soberania. Por outro lado, a circunstância de as Regiões Autónomas poderem «participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que directamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes» [artigo 229.º, n.º 1, alínea s), da Constituição], não lhes atribui um poder de celebração de tatados internacionais autónomo e independente, o qual apenas cabe ao Estado, através dos seus órgãos de soberania [no caso português, a negociação de convenções internacionais cabe constitucionalmente ao Governo - artigo 200.º, alínea b), da lei fundamental]. Não pode, assim, justificar-se a atribuição aos Presidentes dos Governos Regionais a faculdade de classificar, de forma definitiva, como segredo de Estado certos documentos e informações, dada a sua posição subordinada na matéria. Bastará consultar os Estatutos Político-Administrativos das duas Regiões Autónomas para confirmar que os respectivos órgãos não dispõem de competência em matérias de segurança interna ou externa do Estado (cf. os artigos 2.º, n.º 1, 32.º e 33.º do Estatuto dos Açores e 2.º, n.º 1, 29.º e 30.º do Estatuto da Madeira).
27 - Nem se poderá invocar, para sustentar um juízo de conformidade constitucional, o disposto no artigo 114.º, n.º 2, da Constituição, visto que o decreto em apreciação não regula uma qualquer forma de segredo regional, específico de cada uma das Regiões Autónomas, mas antes o segredo de Estado, em matérias de segurança nacional. Tão-pouco pode a lei «delegar» a favor das Regiões Autónomas competências próprias de soberania, sob pena de violação do artigo 113.º da Constituição.
Acrescente-se, para concluir, que nem os Estados federais (como os Estados Unidos da América e a República Federal Alemã), nem os Estados regionais (como é o caso da Itália e da Espanha) prevêem a atribuição de quaisquer competências de natureza primária a entidades infra-estaduais (Estados federados ou regiões) em matéria de segredo de Estado, o que se revela bem sintomático da reserva da soberania sobre esta matéria.
28 - Sofre, pois, de inconstitucionalidade o artigo 3.º, n.º 1, do decreto, na parte questionada pela entidade requerente, mostrando-se violados dos artigos 6.º, n.º 1, 9.º, alínea a), e 273.º da lei fundamental.
Alcançada esta conclusão, torna-se despiciendo analisar a dúvida posta pela entidade requerente sobre se a norma em apreciação viola também os princípios da necessidade e proporcionalidade, nos termos referidos.
E - A questão de constitucionalidade das normas constantes dos artigos 9.º, n.os 1 e 2, 12.º e 13.º, n.os 1, 2, 3 e 4, em conjugação com o artigo 14.º, todos do decreto.
29 - Recorda-se que o Presidente da República afirma, em jeito introdutório à colocação de dúvidas de constitucionalidade quanto às indicadas normas, que a experiência das democracias estabilizadas ocidentais mostra que o equilíbrio dos poderes constitucionais pode ser afectado pelo secretismo da gestão dos assuntos públicos. Na sequência deste entendimento, considera que o artigo 9.º do decreto 129/VI da Assembleia da República, ao colocar o acesso dos órgãos de soberania aos documentos em segredo de Estado na dependência de uma autorização da entidade que conferiu a classificação definitiva, condicionada à prova da sua necessidade para o cumprimento das funções e com as limitações que vierem a ser estabelecidas (presumindo-se que tais condições e limitações serão estabelecidas pela própria entidade classificadora), é susceptível de subverter o princípio constitucional da separação e interdependência entre os vários órgãos de soberania, consagrado no artigo 114.º da Constituição.
Para exemplificar os termos em que esta dúvida é colocada, figura dois casos de relações entre diferentes órgãos de soberania. No primeiro caso, trata-se das relações entre Presidente da República e Governo da República ou Governo Regional: pergunta-se se o dever do Primeiro-Ministro de informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política externa [artigo 204.º, alínea c), da Constituição] não poderá transformar-se, inconstitucionalmente, num pedido fundamentado de autorização de acesso do Presidente da República ao Primeiro-Ministro, a um qualquer ministro ou a um Presidente de Governo Regional, que o poderão condicionar e até negar, a pretexto de que, no seu exclusivo critério, o Presidente da República dele não carece para o cumprimento das suas funções. No segundo caso, contempla as relações entre o Governo e a Assembleia da República, admitindo que o regime constante, a partir da 3.ª revisão constitucional, dos artigos 166.º, alínea f), e 200.º, n.º 1, alínea i), da Constituição possa ser subvertido por força do regime de segredo de Estado, podendo a informação do Governo prevista no último destes artigos ser transformada, inconstitucionalmente, num pedido fundamentado de autorização de acesso.
Incidindo a sua atenção sobre o artigo 12.º do decreto, considera que pode suscitar-se a dúvida sobre se, não sendo cometidos à Assembleia da República poderes efectivos de fiscalização, traduzidos numa competência própria ou, eventualmente, partilhada com outros órgãos de soberania, de acesso às informações e documentos em segredo de Estado, não se revelará susceptível de inviabilizar o artigo 165.º, alínea a), da Constituição, como até de subverter «normas chave» para a caracterização do «sistema de governo», designadamente os artigos 193.º e 194.º, se, e enquanto, ao papel fiscalizador da Assembleia da República se puderem opor, nos termos do artigo 9.º do decreto, as entidades que conferem a classificação definitiva.
Também quanto às normas dos primeiros quatro números do artigo 13.º do decreto, individualmente consideradas ou em conjugação com o artigo 14.º, é formulada a dúvida de constitucionalidade sobre se não se poderá entender estarem a conferir a uma entidade estranha à ordenação jurídico-constitucional do Poder competência de fiscalização própria de órgãos de soberania ou a condicionar o seu exercício, em violação do disposto nos artigos 113.º e 114.º da Constituição.
30 - Os artigos do decreto 129/VI onde se acham as normas questionadas pela entidade requerente dispõem o seguinte:
Artigo 9.º
Acesso a documentos em segredo de Estado
1 - Apenas têm acesso a documentos em segredo de Estado, com as limitações e formalidades que venham a ser estabelecidas, as pessoas que dele careçam para o cumprimento das suas funções e que tenham sido autorizadas.
2 - A autorização referida no número anterior é concedida pela entidade que conferiu a classificação definitiva e, no caso dos ministros, por estes ou pelo Primeiro-Ministro.
3 - A classificação como segredo de Estado de parte de documento, processo, ficheiro ou arquivo não determina restrições de acesso a partes não classificadas, salvo na medida em que se mostre estritamente necessário à protecção devida às partes classificadas.
Artigo 12.º
Fiscalização pela Assembleia da República
A Assembleia da República fiscaliza, nos termos da Constituição e do seu Regimento, o regime do segredo de Estado.
Artigo 13.º
Comissão de fiscalização
1 - É criada a Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, a quem cabe zelar pelo cumprimento das disposições da presente lei.
2 - A Comissão para a Fiscalização é uma entidade pública independente, que funciona junto da Assembleia da República e dispõe de serviços próprios de apoio técnico e administrativo.
3 - A Comissão é composta pelo Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, que preside, e por dois Deputados, sendo um do grupo parlamentar do maior partido que apoia o Governo e outro de grupo parlamentar de partido da oposição, a eleger pelo período da legislatura, nos termos a fixar pelo Regimento da Assembleia da República.
4 - Compete à Comissão aprovar o seu regulamento e apreciar as queixas que lhe sejam dirigidas sobre dificuldades ou recusa no acesso a documentos e registos classificados como segredo de Estado e sobre elas emitir parecer.
5 - Nas reuniões da Comissão participa sempre um representante da entidade que procede à classificação.
Artigo 14.º
Impugnação
A impugnação graciosa ou contenciosa de acto que indefira o acesso a qualquer documento com fundamento em segredo de Estado está condicionada ao prévio pedido e à emissão de parecer da Comissão para a Fiscalização.
31 - Importa começar por analisar os sistemas de acesso e fiscalização do regime de segredo de Estado que constavam dos diferentes projectos de lei apresentados na matéria.
No projecto n.º 58/VI (PS), o artigo 4.º estabelecia que as matérias classificadas como reservadas (único nível previsto no regime de segredo de Estado) não afectavam «a competência dos órgãos de soberania Presidente da República, Assembleia da República e tribunais, os quais terão acesso a toda a informação que lhe respeitam nos termos da Constituição e segundo os procedimentos adequados». A competência para classificar informações e documentos era atribuída apenas ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República, ao Primeiro-Ministro e a cinco ministros aí indicados. Os órgãos da Administração Pública tinham de elaborar e afixar publicamente as listas de documentos cujo acesso era vedado e limitado, após parecer da Comissão de Acesso aos Documentos e Registos Administrativos (CADRA) - artigo 9.º Esta Comissão tinha competência para apreciar as queixas sobre a dificuldade ou recusa no acesso a documentos e registos, bem como para dar parecer obrigatório quer sobre as propostas de classificação de documentos quer sobre as soluções legislativas ou regulamentares relativas ao acesso aos documentos e registos (artigo 10.º).
No projecto n.º 181/VI (PSD), previam-se apenas poderes de fiscalização da Assembleia da República, nos termos da Constituição e do seu Regimento (artigo 11.º). Em matéria de acesso, o artigo 9.º deste projecto estava redigido em termos idênticos ao artigo 9.º do decreto em apreciação.
No projecto n.º 189/VI (PCP), o artigo 4.º estabelecia que a aplicação do regime de segredo de Estado não podia opor-se ao exercício das competências dos órgãos de soberania, designadamente dos tribunais, nem pôr em causa a sua separação ou interdependência ou restringir o acesso a toda a informação que lhes respeitasse, nos termos da Constituição e através dos mecanismos apropriados. Só poderiam classificar informações, documentos ou objectos como segredo de Estado o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministo, «nos termos e limites das respectivas atribuições» (artigo 8.º). Impunha-se o dever às entidades classificadoras de prestarem regularmente informações à Assembleia da República «sobre a classificação de quaisquer matérias como segredo de Estado e da respectiva fundamentação» (artigo 14.º). O artigo 15.º deste projecto esclarecia que o disposto nesse articulado não podia prejudicar o exercício das competências próprias da Assembleia da República nem os poderes dos Deputados estabelecidos na Constituição e na lei» (artigo 15.º).
Por último, o projecto n.º 190/VI (CDS) previa que as entidades com competência para classificar segredos de Estado (Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro e Presidentes dos Governos Regionais) determinassem, caso a caso, as pessoas que podiam tomar conhecimento das matérias consideradas como segredo de Estado, exercendo o dever de diligência sobre o seu conhecimento e utilização (artigo 6.º, n.º 1). A fiscalização do regime de segredo de Estado era confiada à Assembleia da República (artigo 9.º).
32 - Durante o debate parlamentar que incidiu sobre os quatro projectos de lei, as matérias de acesso aos documentos classificados e de fiscalização ocupam boa parte dos trabalhos, discutindo-se as vantagens e inconvenientes da pura fiscalização política pelo órgão parlamentar ou da existência de uma comissão especializada de natureza consultiva, a par do recurso aos tribunais (v. as intervenções do Deputado José Magalhães no Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 16 de Julho de 1992, pp. 2915 e 2926; do Deputado Narana Coirssoró, no mesmo Diário da Assembleia da República, pp. 2919-2920 e 2939; do Ministro da Justiça, no mesmo Diário da Assembleia da República, pp. 2923-2924, 2929-2930, 2932 e 2934; do Deputado Alberto Martins, no mesmo Diário da Assembleia da República, p. 2932; da Deputada Margarida Silva Pereira, no mesmo Diário da Assembleia da República, p. 2936).
Foi no debate de 29 de Junho de 1993 que o Deputado Alberto Costa, ao justificar a solicitada avocação pelo Plenário do n.º 2 do artigo 9.º do texto da Comissão, suscitou a questão de que o preceito estava afectado de inconstitucionalidade:
Este artigo está redigido em termos tais que inculca inconstitucionalidade que: o poder de não autorizar acesso a documentos classificados pode ser usado pelo Primeiro-Ministro para vedar segredo ao Presidente da República e à Assembleia da República, bem como aos tribunais, ilimitada e indiscriminadamente; o Presidente da República pode invocar segredo de Estado para recusar a outros órgãos de soberania acesso a informações de que «careçam para cumprimento das suas funções» (uma vez que o acesso é anunciado no n.º 1 como ficando dependente de autorização, mesmo que necessário para funções); os Deputados podem ver negado em absoluto o acesso a documentos que o Presidente da Assembleia da República tenha classificado como segredo de Estado (secretamente ou não); os Presidentes dos Governos Regionais podem recusar aos órgãos de soberania acesso a documentos por regionalmente considerados segredo de Estado. [Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, pp. 2913-2914.]
No mesmo debate e nas fundamentações de outros requerimentos de avocação, foram postas em causa soluções respeitantes à fiscalização do regime de segredo de Estado pela Assembleia da República e à criação da Comissão para a Fiscalização regulada no artigo 13.º do texto da Comissão (intervenções dos Deputados Alberto Martins, António Filipe e Alberto Costa, no mesmo Diário da Assembleia da República, pp. 2914 e 2915).
33 - Em termos de direito comparado, as questões mais complexas em matéria de acesso a documentos ou informações classificadas como segredo de Estado têm a ver com a possibilidade de os órgãos parlamentares poderem exigir do executivo o levantamento da interdição de acesso. Também os tribunais pretendem frequentemente ter acesso a informações e documentos classificados como segredo de Estado, nomeadamente quando se trata da requisição de elementos probatórios documentais ou da prestação de depoimentos por testemunhas vinculadas pelo dever de sigilo decorrente do regime do segredo de Estado.
No que toca às relações entre executivo e Parlamento, a Constituição espanhola de 1978 prevê, no seu artigo 109.º, que as «Câmaras e as suas comissões poderão obter, através dos respectivos presidentes, a informação e auxílio que precisem do Governo e dos seus departamentos e de quaisquer autoridades do Estado e das comunidades autónomas». Pode, assim, considerar-se que vai mais longe do que acontece em Portugal, onde a Constituição limita o dever de resposta do Governo às perguntas dos Deputados, ao ressalvar o disposto na Lei do Segredo de Estado. A verdade, porém, é que, ao nível regimental, se prevê que o Governo Espanhol se possa abster, por razões fundadas no direito, de não prestar certas informações. O comum das Constituições não regula expressamente estes deveres de cooperação, embora, na prática, se venham a encontrar tais regimes ao nível do direito parlamentar legislado. E é usual também, nos Estados onde existe legislação sobre segredo de Estado, tal legislação regular as condições de acesso dos órgãos parlamentares ou de comissões especializadas à matéria coberta por esse segredo. É o que acontece no direito italiano, onde se prevêem possibilidades de acesso das Câmaras à matéria de segredo de Estado, desde que haja acordo do Governo. Em situações de falta de acordo, cabe à comissão parlamentar de controlo, composta por quatro deputados e por quatro senadores, submeter o diferendo a cada uma das câmaras para as consequentes valorações políticas (artigo 11.º, n.º 4, da Lei de 1977 - cf. Silvano Labriola, Le Informazione, cit., pp. 228 e seguintes; F. Sainz Moreno, estudo citado, pp. 2952 e seguintes). Nos direitos francês, alemão e inglês, existe uma prática generalizada de que o acesso dos respectivos Parlamentos a matérias de segredo de Estado depende sempre da anuência do executivo, não havendo soluções normativas de imposição da vontade do órgão parlamentar sobre o executivo (cf. os dados constantes do estudo citado de Sainz Moreno, pp. 2951 e seguintes, e, sobre a situação britânica, o que referem E. C. S. Wade e A. W. Bradley, ob. cit., pp. 563 e seguintes). Mas existem posições doutrinais que entendem não ser constitucionalmente legítimo aos governos negar informação classificada aos parlamentos, em todas as circunstâncias.
34 - É altura de abordar as questões postas pelo Presidente da República relativamente às normas questionadas.
Considerar-se-ão separadamente as situações das relações entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, por um lado, e as relações da Assembleia da República com o Governo, por outro, abordando os exemplos que são indicados no pedido e que traduzem a dúvida de constitucionalidade formulada pelo Presidente da República.
O decreto sub judicio não contém qualquer norma específica sobre acesso a documentos e informações classificadas como segredo de Estado por parte dos titulares máximos de órgãos de soberania que não hajam determinado a classificação (solução diversa consta da legislação espanhola sobre segredo de Estado, na versão de 1978, em que se prevê que a declaração de matérias classificadas não afectará o Congresso dos Deputados nem o Senado, os quais terão sempre acesso a toda a informação que solicitem, na forma que for determinada nos respectivos regulamentos e, se necessário, em sessões secretas - artigo 10.º, n.º 2).
De tal ausência de norma resulta que esse acesso se há-de fazer de harmonia com o disposto no artigo 9.º, n.º 2, do decreto em apreciação, pois o n.º 1 do mesmo artigo contém uma expressão da máxima extensão («pessoas»), que seguramente abrange também os titulares de órgãos de soberania, na ausência de norma especial sobre a matéria.
De facto, não pode interpretar-se restritivamente o disposto no artigo 9.º, n.os 1 e 2, como são sendo aplicável aos órgãos de soberania e seus titulares, pois a intenção do legislador, conforme resulta dos trabalhos preparatórios referidos, foi a de abranger todas as pessoas sem excepção. No mesmo sentido se pode indicar a ausência de norma especial para estes casos no decreto, diferentemente do que sucede na lei italiana ou na norma acima indicada da lei espanhola. Esta ideia é igualmente reforçada pelo disposto no n.º 2 do artigo 9.º, pois que se prevê aí que a autorização para acesso a documentos ou informações classificados pelos ministros possa ser dada por estes ou pelo Primeiro-Ministro, solução que parece apontar para que o legislador pretendeu regular potenciais situações de conflito entre membros do Governo em caso de denegação de acesso a documentos classificados por um certo ministro, a qual funciona tanto no plano interno do Governo como no plano exterior a este último.
O sistema de governo acolhido na Constituição vigente não autoriza que, com referência às pessoas do Presidente da República e do Primeiro-Ministro, possa ser aplicado o quadro de soluções legais preconizado no artigo 9.º, n.os 1 e 2, do decreto em apreciação, quando qualquer dessas entidades pretenda ter acesso a documentos classificados por entidade diversa. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, o Presidente da República detém uma legitimidade e uma estabilidade institucional singulares no contexto dos órgãos titulares do poder político por ser «o primeiro dos órgãos de soberania na respectiva ordenação constitucional (artigo 113.º), eleito directamente por sufrágio popular e por maioria exigente (artigos 124.º e 129.º), tendo um mandato mais longo do que o da legislatura parlamentar (artigos 131.º e 147.º), imune à destituição ou à revogação do mandato (artigos 131.º e seguintes)» (Os Poderes do Presidente da República, Coimbra, 1991, p. 27). Mas o Governo, sendo embora responsável perante o Presidente da República, por quem é nomeado, não é chefiado pelo Presidente da República, sendo o Primeiro-Ministro o chefe do executivo, com competências políticas próprias (artigo 204.º, n.º 1, da Constituição).
Na verdade, o artigo 123.º da Constituição estabelece que o Presidente da República «representa a República Portuguesa, garante a independência nacional e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, comandante supremo das Forças Armadas». O artigo 136.º da lei fundamental estabelece o quadro de competências quanto a outros órgãos, onde avulta o poder de nomear o Primeiro-Ministro e de demitir o Governo, bem como o de presidir ao Conselho Superior de Defesa Nacional. Cabe-lhe ainda o poder de declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, observado o disposto nos artigos 19.º e 141.º [artigo 137.º, alínea d), da Constituição], ou o de se pronunciar sobre todas as emergências graves para a vida da República. E o Presidente da República dispõe também de competências no que respeita às relações internacionais (artigo 138.º da Constituição).
O sistema de governo acolhido na Constituição dá um relevante papel ao Governo, definindo-o esta última como o órgão de condução da política geral do País e o órgão superior da Administração Pública (artigo 185.º). A lei fundamental consagra a responsabilidade do Governo perante o Presidente da República e a Assembleia da República (artigo 193.º), estabelecendo o artigo 194.º n.º 1, que o Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República. As competências do Governo em matéria política são vastas (artigo 200.º da Constituição), cabendo ao Primeiro-Ministro a direcção da política geral do Governo e a obrigação de informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do País [artigo 204.º, n.º 1, alíneas a) e c)].
Não é, assim, possível, à face da Constituição, que uma lei ordinária vede ao Presidente da República o acesso a documentos classificados como segredo de Estado pelo Primeiro-Ministro, por um ministro ou por outra entidade competente, e idêntica afirmação se pode sustentar quando seja o Primeiro-Ministro a pretender acesso a um documento classificado pelo Presidente da República ou por outra entidade. Importa considerar, por exemplo, que, atribuindo a Constituição competência ao Presidente da República para exercer as funções de comandante supremo das Forças Armadas [artigos 123.º e 137.º, alínea a)], há-de ele ter acesso a documentos classificados como secretos pelo Ministro da Defesa, sem ter de pedir autorização a este ou ao Primeiro-Ministro, como o exigem os n.os 1 e 2 do artigo 9.º do decreto, e, muito menos, de correr o risco de ver indeferido esse pedido, o que poderia abrir uma grave crise política.
Consequências mais aberrantes da solução do decreto ocorreriam se o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro pudessem ver denegado o acesso a documentos classificados por um Presidente do Governo Regional. O juízo de inconstitucionalidade atrás formulado quanto à inclusão dos Presidentes dos Governos Regionais entre as entidades com competência de classificação definitiva impede, porém, que se tenha de considerar autonomamente este caso.
Relativamente às relações entre a Assembleia da República e o Governo em matéria de segredo de Estado, não pode afirmar-se de forma peremptória que o sistema do governo acolhido pela Constituição impõe que o órgão parlamentar tenha de ter acesso, de forma ilimitada, às informações e documentos classificados como segredo de Estado pelo Presidente da República ou pelos membros do Governo.
É que, como se viu, a alínea c) do artigo 159.º da Constituição expressamente dispõe que o poder de os Deputados fazerem perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública e de obterem resposta daquele em prazo razoável fica limitado pelo disposto na lei em matéria de segredo de Estado («salvo o disposto [...]»). Esta ressalva parece inspirada pelo próprio modo de funcionamento do órgão parlamentar e pela publicidade que é inerente às suas actividades, a qual se compadece dificilmente com as exigências de reserva em matéria de segredo de Estado.
Mas se é verdade que a Constituição admite a oponibilidade pelo executivo do segredo de Estado face aos Deputados, com o que o Governo fica eximido ao dever constitucional de lhes fornecer resposta às respectivas perguntas em prazo útil, há-de entender-se que tal oponibilidade se deve compatibilizar com as restantes disposições constitucionais pertinentes. Bastará recordar que à Assembleia compete a aprovação de convenções internacionais que versem matéria da sua competência reservada, bem como de tratados de paz, de defesa, de amizade, de rectificação de fronteiras, ou respeitantes a assuntos militares, ou ainda respeitantes à participação do País em organismos internacionais [cf. artigo 164.º, alínea j), da Constituição], o que implica necessariamente que o Governo possa ter de, em certas circunstâncias, facultar documentos classificados como segredo de Estado para o exercício dessas competências à Assembleia ou a comissões especializadas dela (o Regimento da Assembleia da República, na versão resultante da Resolução da Assembleia da República n.º 4/93, publicada no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 51, de 2 de Março de 1993, prevê a possibilidade de a comissão competente, quando se trate de discutir a aprovação de tratados, poder funcionar em reuniões secretas a pedido do Governo - artigo 211.º, n.º 2). E considerações idênticas se poderão fazer quanto a outras competências que a Assembleia da República tem de exercer em situações de necessidade constitucional, nomeadamente quando tenha de deliberar sobre a autorização e confirmação da declaração de estado de sítio ou de estado de emergência ou, no limite, quando tenha de deliberar sobre a autorização solicitada pelo Presidente da República para declarar a guerra a outro Estado. No exercício de tais competências, é concebível que hajam de ser disponibilizados documentos ou informações cobertos pelo segredo de Estado, o que implicará que tal divulgação seja feita com cautelas que excluam a normal publicidade inerente aos trabalhos parlamentares.
O mesmo acontecerá quando a Assembleia da República tenha de acompanhar ou apreciar, «nos termos da lei», a participação de Portugal no processo de construção da união europeia [artigo 166.º, alínea f), da Constituição], uma vez que nenhuma destas disposições de natureza especial ressalva o disposto na lei em matéria de segredo de Estado.
Acrescente-se que, no que respeita a cada um dos Deputados da Assembleia da República, também se considera que o disposto no artigo 9.º do decreto lhes seja aplicável, como a qualquer outro cidadão. Os Deputados podem pedir ao Presidente da República ou ao Primeiro-Minsitro - independentemente de qualquer deliberação do Plenário da Assembleia da República ou de uma sua comissão especializada - que lhes seja permitido o acesso a informação ou documento classificado como segredo de Estado, devendo então invocar a necessidade de tal acesso para o cumprimento das suas funções. Em caso de denegação do acesso com fundamento na ressalva prevista na parte final da alínea c) do artigo 159.º da Constituição, é sustentável que o Deputado, tal como qualquer outro cidadão, possa recorrer à Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado e, eventualmente, impugnar graciosa ou contenciosamente a denegação de acesso, nos termos dos artigos 13.º e 14.º do decreto. Sendo a entidade classificante o Presidente da Assembleia da República, as relações entre este e os Deputados haverão de ser reguladas no âmbito da própria Assembleia, sem prejuízo da aplicação do disposto na lei sobre segredo de Estado.
35 - Impõe-se, assim, a conclusão de que os n.os 1 e 2 do artigo 9.º sofrem de inconstitucionalidade no segmento aplicável aos pedidos de acesso formulados pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro, relativamente a informações ou documentos classificados definitivamente por entidades diferentes da solicitante, por violação do disposto nos artigos 113.º, n.º 2, e 114.º, n.º 1, com referência ao disposto nos artigos 123.º, 136.º, 137.º, 138.º, 185.º, 200.º e 204.º, n.º 1, todos da Constituição.
36 - Relativamente ao disposto no artigo 12.º do decreto, não é possível formular um juízo de inconstitucionalidade. Esta disposição limita-se a estabelecer que a Assembleia da República fiscaliza, nos termos da Constituição e do seu Regimento, o segredo de Estado. Ora, o artigo 159.º, alínea c), da Constituição mostra que o Governo pode opor o disposto na Lei do Segredo de Estado para justificar a sua abstenção de prestação de informações solicitadas por Deputados. O sistema de governo acolhido na Constituição não impede - diferentemente do que se viu acontecer nas relações recíprocas do Presidente da República e do Primeiro-Ministro - que, em certas circunstâncias, a Assembleia da República não possa ultrapassar a barreira do segredo de Estado sem a anuência do Governo ou do próprio Presidente da República. Mas ainda assim, a Constituição confere competências políticas de fiscalização à Assembleia da República, competências que pressupõem uma apreciação política por este órgão do comportamento da entidade que opôs o segredo de Estado. A ser assim, o artigo 12.º do decreto nada mais faz do que traduzir, no domínio do segredo de Estado, o que dispõem os artigos 165.º e 166.º da Constituição, não podendo falar-se de uma falta de «poderes efectivos de fiscalização» que acarretasse a inconstitucionalidade desse artigo 12.º, nomeadamente por subversão do disposto nos artigos 193.º e 194.º da lei fundamental.
37 - Finalmente, não pode, por isso, dizer-se que o disposto no artigo 13.º, n.os 1, 2, 3 e 4, por si só ou conjugado com o artigo 14.º do decreto, seja inconstitucional, por violação dos artigos 113.º e 114.º da Constituição. Trata-se da criação naquele artigo 13.º de uma entidade pública independente, com funções consultivas, junto da Assembleia da República, a qual visa apreciar as queixas dos cidadãos e de outros interessados relativamente às dificuldades ou recusa no acesso a documentos e informações classificados como segredo de Estado, devendo dar parecer sobre as mesmas, contando com a participação nas suas reuniões de um representante da entidade que procedeu à classificação (n.º 5 do mesmo artigo 13.º). Dada a sua posição de órgão independente a funcionar junto da Assembleia da República, os pareceres que vier a dar não poderão pôr em causa as relações constitucionais entre os órgãos de soberania.
F - A questão da constitucionalidade do artigo 13.º, n.º 3, do decreto
38 - O Presidente da República questiona ainda a constitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 13.º do decreto 129-VI da Assembleia da República (por lapso indicada como n.º 2) a um duplo título: por um lado, põe em dúvida que o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo possa presidir à Comissão para a Fiscalização prevista no número anterior desse artigo, expressamente qualificada como entidade pública independente, atendendo às garantias constitucionais dos magistrados judiciais fixadas no artigo 218.º da Constituição; por outro lado, admite que a remissão feita na norma em análise para o Regimento da Assembleia da República, no que toca à fixação do sistema eleitoral dos Deputados que a integram, possa contender com o princípio de reserva de lei.
39 - Como se referiu anteriormente, o actual artigo 13.º do decreto corresponde ao artigo 13.º do texto elaborado pela Comissão. Na reunião do Plenário da Assembleia da República em que se procedeu à votação final global deste texto, o Deputado Alberto Costa, em justificação de um pedido de avocação deste artigo 13.º, considerou que a Comisão para a Fiscalização não constituiria um órgão independente, mas um órgão anómalo e inconstitucional, composto pela requisição compulsiva do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, com preterição das garantias constitucionais dos magistrados, por um Deputado da maioria «e por um Deputado da oposição escolhido pelo PSD, com violação das regras constitucionais que limitam os poderes da maioria e protegem as minorias, assegurando a representação proporcional e a autonomia de escolha de representantes [...]» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, p. 2915; este Deputado formulou ainda críticas tendentes a mostrar a inconstitucionalidade da solução a outros títulos). Críticas idênticas foram formuladas pelo Deputado António Filipe (Diário da Assembleia da República, cit., p. 2915).
40 - Considera-se que são procedentes as dúvidas de constitucionalidade formuladas pela entidade requerente quando questiona a possibilidade de o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, mantendo-se no exercício destas funções, desempenhar o cargo de presidente da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado.
Desde logo, uma interpretação literal do n.º 3 do artigo 218.º da Constituição poderia acarretar a inconstitucionalidade da norma do artigo 13.º, n.º 3, do decreto, nessa parte. Ao dispor que «os juízes em exercício não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada, salvo as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas, nos termos da lei», a lei fundamental parece impor um princípio de dedicação exclusiva, aplicável a todos os juízes, e não apenas aos juízes dos tribunais judiciais, que pressupõe que o exercício da judicatura é uma actividade profissional a tempo inteiro, incompatível com o exercício de quaisquer outras funções (salvas certas funções de docência) ou com o desempenho de quaisquer outros cargos públicos ou privados (nesse sentido, v. o comentário de Gomes Canotilho e Vital Moreira, autores que consideram provável que a expressão «função pública» esteja empregada nesse número «num sentido amplo abrangendo também os cargos públicos» - Constituição, cit., p. 824).
Mas ainda que se interprete o n.º 3 do artigo 218.º da Constituição de uma forma menos restritiva, considerando que a Constituição não quis proibir o desempenho de cargos em órgãos públicos de natureza independente por juízes em exercício de funções - questão que aqui se deixa inteiramente em aberto -, nem assm se salva a constitucionalidade da parte em apreciação do n.º 3 do artigo 13.º do decreto. É que, na verdade, trata-se da criação de um órgão independente com funções de natureza jurídico-administrativa, criado para apreciar queixas dos cidadãos, cujo presidente é também o presidente do supremo tribunal que vai ter competência para conhecer dos recursos de contencioso administrativo necessariamente instruídos com o parecer da mesma Comissão. Competindo ao Supremo Tribunal Administrativo o julgamento dos recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas em matéria de denegação de acesso a documentos por causa de segredo de Estado, a circunstância de ser elemento decisivo na apreciação do recurso contencioso o parecer subscrito pelo Presidente desse Supremo Tribunal, parecer para cuja elaboração pode ter havido acesso da Comissão ao próprio teor do documento classificado, implica que possa ficar afectada a independência do tribunal, com violação do artigo 206.º da Constituição, sem prejuízo de o presidente de ambos os órgãos se considerar impedido de presidir à conferência no órgão jurisdicional.
Quer dizer, o exercício em acumulação das funções de presidente da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado e do Supremo Tribunal Administrativo afecta, de forma inconstitucional, a independência do referido Tribunal.
41 - Tem igualmente de considerar-se inconstitucional a norma em apreciação (n.º 2 do artigo 13.º do decreto), na parte respeitante à composição da referida Comissão para a Fiscalização, no que se refere à eleição dos Deputados que a integram.
Na verdade, a Comissão para a Fiscalização insere-se no regime do segredo de Estado, tendo de ser criada por lei. Ora, no que toca à sua composição, a norma questionada indica que integram tal Comissão o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo e dois Deputados, «sendo um do grupo parlamentar do maior partido que apoio o Governo e outro de grupo parlamentar de partido da oposição».
Resulta desta formulação da lei que não fica suficientemente determinada a composição da Comissão, no que toca a um dos membros oriundos do Parlamento, pois se relega para o Regimento da Assembleia a regulamentação da escolha dos Deputados, no que se refere ao membro «de grupo parlamentar da oposição».
A solução consagrada no artigo 13.º, n.º 3, é indeterminada, pois deixa para o Regimento o estabelecimento das regras de natureza substantiva - e não meramente procedimental - do modo de designação do terceiro membro, Deputado de «grupo parlamentar da oposição», regras essas que têm de considerar-se como normação primária sobre a composição da Comissão. É que não se estabelece na norma legal qualquer critério substantivo quanto à determinação do modo de escolha do Deputado da oposição. Basta pensar que pode acontecer, nos termos regimentais, que fique na disponibilidade da maioria parlamentar a escolha simultânea do grupo parlamentar da oposição e do próprio Deputado a eleger, ao contrário do que acontece com o Deputado da maioria governamental, o qual deve pertencer, necessariamente, e nos termos da lei, ao «maior partido que apoia o Governo». Por isso, esse critério é manifestamente substantivo e tem, portanto, de ser estabelecido por lei, já que a Comissão para a Fiscalização dispõe de competências com relevância externa à própria Assembleia.
O artigo 13.º, n.º 2, nesta parte opera, pois, uma deslegalização, remetendo a integração do regime legal, no que toca à fixação de parte das regras substantivas respeitantes a eleição do terceiro membro da Comissão (Deputado de partido da oposição), para o Regimento da Assembleia da República. Viola, assim, o princípio da reserva de lei, não só material como formal [v. o artigo 168.º, n.º 1, alínea r), da Constituição, conjugado com o artigo 115.º, n.º 5, do mesmo diploma].
G - A questão da constitucionalidade do artigo 14.º do decreto
42 - Como última questão de constitucionalidade, suscita o Presidente da República a dúvida sobre se o disposto no artigo 14.º, ao não facultar a impugnação graciosa ou contenciosa dos próprios actos classificatórios e ao fazer depender qualquer dessas impugnações de prévio parecer da Comissão para a Fiscalização, poderá configurar uma restrição inconstitucional do direito de acesso aos tribunais (artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição).
43 - Revertendo aos trabalhos parlamentares, referiu-se atrás que os projectos de lei apresentados por Deputados do PSD e do CDS estabeleciam uma forma de fiscalização do regime de segredo de Estado de natureza exclusivamente política.
Foi só no texto elaborado pela Comissão, e que foi sujeito a votação final global pelo Plenário da Assembleia da República, que surgiu a previsão da impugnação graciosa ou contenciosa dos actos de indeferimento de acesso a qualquer documento com fundamento em segredo de Estado. Nos pedidos de avocação formulados pelos Deputados António Filipe e José Magalhães, afirmou-se que a disposição se achava afectada de inconstitucionalidade. O primeiro destes parlamentares sustentou que a exigência de prévia apresentação de um pedido à Comissão para a Fiscalização e da emissão de um parecer desta, parecer que não tinha previsto na lei qualquer prazo para a sua elaboração, constituía «uma limitação inconstitucional ao acesso dos cidadãos à impugnação judicial dos actos que violem os seus direitos» (Diário a Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 30 de Junho de 1993, p. 2916). O segundo Deputado considerou o artigo 14.º (do texto da Comissão) inconstitucional não só pela razão avançada pelo Deputado António Filipe como ainda porque «a norma em causa só faculta recurso dos actos que recusem acesso a documentos mas não em relação a actos de classificação, eles próprios, que eventualmente cheguem ao público, porque em regra serão secretos, como, por exemplo, o recurso por Deputados de acto classificatório do Presidente da Assembleia da República, o que restringe inconstitucionalmente o direito de recurso» (mesmo Diário da Assembleia da República, p. 2916).
44 - Comerçar-se-á pela primeira questão colocada pelo Presidente da República: sofrerá a norma do artigo 14.º do decreto de inconstitucionalidade por não prever impugnação judicial do acto de classificação de documento ou informação como segredo de Estado?
A resposta a esta questão implica que se determine se o acto de classificação definitiva previsto no decreto em apreciação tem natureza administrativa ou, pelo contrário, se deve configurar-se como acto político, não sindicável por via jurisdicional.
No âmbito da lei italiana de 1977, a doutrina tem considerado que o acto de classificação (apposizione) tem a natureza de uma providência administrativa destinada a individualizar ou concretizar as normas legais ou regulamentares sobre segredo de Estado. Na regulamentação vigente, o acto de classificação é determinado por autoridades administrativas, no quadro de regulamentos emanados do Presidente do Conselho e dos Ministros do Interior e da Defesa sendo discutido na doutrina se deve ser fundamentado (cf. Silvano Labriola, artigo citado, pp. 1031-1032). Em contrapartida, o acto de oposição (opposizione), acto de confirmação do segredo em relação às legítimas pretensões de acesso de autoridades públicas, nomeadamente as judiciárias, às informações cobertas pelo segredo de Estado, é considerado um acto de natureza política, que só pode ser praticado pelo Presidente do Conselho de Ministros, em prazo estabelecido na lei. Tal acto é definitivo, insusceptível de qualquer impugnação, muito embora deva ser comunicado pelo autor às câmaras parlamentares, permitindo a apreciação política do mesmo pelas instâncias parlamentares.
O decreto 129/VI, em apreciação, regula a matéria de modo diverso do da lei italiana. O acto de classificação definitiva só pode ser praticado por titulares de órgãos de soberania ou de órgãos constitucionais àqueles equiparados mediante um juízo de natureza política, insusceptível de fiscalização pelos tribunais. A intervenção de um número relativamente restrito de entidades hierarquicamente subordinadas aos titulares de órgãos constitucionais só pode ocorrer para a prática de actos de classificação de segurança de natureza provisória, por razões de urgência, os quais caducam em prazo curto, se não forem ratificados pelas entidades com competência para a prática de actos de classificação definitiva (artigo 3.º, n.os 2 a 4, do decreto). Só se prevê uma fiscalização política da actuação dos órgãos constitucionais elencados (artigos 12.º e 13.º do decreto).
Não se considera constitucionalmente censurável a solução adoptada neste ponto pela normação em análise. Na densificação do conceito constitucional de segredo de Estado, os titulares dos órgãos constitucionais estão vinculados pela Constituição e pelos direitos, liberdades e garantias individuais nela consignados, mas o entendimento político sobre as implicações da divulgação de certo documento ou informação não tem de ser sujeito a um juízo fiscalizador por um órgão judicial (embora possa sê-lo: nesse sentido dispõe o Freedom of Information Act norte-americano, prevendo a possibilidade de acesso do juiz in camera ao próprio documento ou informação - v. o texto desta lei in Gregorio Arena, L'Acesso ai Documenti Amministrativi, Bolonha, 1991, pp. 347 e seguintes; cf. R. Pierce, S. Shapiro e Paul Verkuil, Administrative Law and Process, Mineola, 1985, pp. 441 e seguintes). Não se mostra, assim, violado o artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, na medida em que a própria Constituição confere indiscutível relevância político-constitucional ao segredo de Estado, como resulta das diferentes referências ao instituto [artigos 35.º, n.º 1, 159.º, alínea c), e 168.º, n.º 1, alínea r)].
45 - No que toca à segunda questão de constitucionalidade posta pelo Presidente da República no seu requerimento, considera-se que a norma em causa igualmente não sofre de inconstitucionalidade.
Essa norma condiciona a impugnação graciosa ou contenciosa do acto de indeferimento do acesso a qualquer documento com fundamento em segredo de Estado ao prévio pedido de intervenção de um órgão público independente e à emissão do seu parecer, o qual se reveste de natureza obrigatória mas não vinculativa para a entidade que denegou o acesso, dado o silêncio do decreto em apreciação sobre o respectivo regime (v. o artigo 98.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei 442/91, de 15 de Novembro).
Em especial na vertente que tem a ver com a impugnação contenciosa de actos administrativos de denegação de acesso a documentos anteriormente classificados como segredo de Estado (artigo 9.º, n.º 2, do decreto), considera-se que a exigência de obtenção de um prévio parecer não vinculativo da Comissão para a Fiscalização não se configura como uma restrição desproporcionada ao previsto nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição, violadora do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da lei fundamental, apesar de o artigo em apreciação não estabelecer qualquer regime específico quanto aos prazos de interposição de recurso contencioso (solução diversa é a da lei francesa sobre acesso dos cidadãos aos arquivos da Administração, na medida em que impõe o prazo de um mês para a «Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos» emitir o parecer sobre o acto de recusa de acesso, o qual é comunicado à autoridade que denegou o acesso para reconsiderar a situação, sendo o prazo de interposição de recurso contencioso prorrogado para ter em conta a notificação do administrado por parte da autoridade administrativa - artigo 7.º da Lei 78-753).
Não obstante o artigo 13.º do decreto não referir qualquer prazo para a emissão de parecer da Comissão, tem de atender-se à remissão feita no artigo 16.º do decreto para o disposto na Lei do Acesso aos Documentos da Administração. Aí se pode ler que, sem prejuízo do regulamento que vier a ser publicado pelo Governo sobre a matéria referente aos direitos e regalias dos membros da Comissão para a Fiscalização, «nos casos omissos e, designadamente, no que diz respeito a prazos» se aplica o disposto nessa lei.
A Assembleia da República aprovou na mesma data (29 de Junho de 1993) os decretos sobre segredo de Estado (n.º 129/VI) e sobre acesso aos documentos da Administração (n.º 125/VI). Segundo informação obtida junto da Assembleia da República, este último decreto foi já promulgado como lei em 28 de Julho do corrente ano e referendado em 3 de Agosto, aguardando publicação no jornal oficial. Ora, analisando o disposto no decreto 125/VI (o texto foi facultado pelo serviços da Assembleia da República), verifica-se que a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) tem o prazo legal de 30 dias para efectuar o «relatório de apreciação da situação», em caso de reclamação de um interessado contra o acto de indeferimento expresso ou tácito do requerimento de acesso a documentos da Administração (artigo 16.º, n.º 2).
É certo que não estabelece o decreto em apreciação, directamente ou por remissão para a Lei do Acesso aos Documentos da Administração, que os pareceres da Comissão para a Fiscalização, quando favoráveis ao peticionário ou queixoso, devem ser acatados ou, pelo menos, devem implicar uma nova apreciação do pedido pela autoridade com competência para deferir o acesso. Tão-pouco resulta da disciplina laconicamente enunciada nos artigos 13.º e 16.º do decreto 129/VI que a intervenção da Comissão para a Fiscalização se destina primariamente a conseguir uma composição não jurisdicional de conflitos entre o interessado no acesso ao documento ou informação classificados e a Administração Pública ou o órgão constitucional decidente (se houvesse tal expectativa de composição não jurisdicional do diferendo, poder-se-ia ser tentado a recorrer ao disposto no artigo 205.º, n.º 4, da Constituição para legitimar a exigência de prévio parecer, muito embora tal recurso estivesse destinado ao fracasso, dada a indisponibilidade dos direitos fundamentais em jogo - sobre o sentido do aditamento deste número na 2.ª revisão constitucional, v. o que escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição, cit., p. 793).
Apesar disso, a imposição desta solicitação a uma estrutura extrajurisdicional, de natureza consultiva, não prejudica de forma desproporcionada a interposição de recurso no contencioso administrativo, por se entender que o parecer em causa tem de ser emitido pela Comissão para a Fiscalização no prazo de 30 dias e, na falta desse parecer, o requerente pode sempre recorrer a tribunal, ficando prorrogado o prazo para interposição do recurso contencioso (v. um afloramento desta solução no artigo 99.º, n.º 3, do Código de Procedimento Administrativo). No Acórdão 56/85, da 1.ª Secção deste Tribunal, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., p. 495, afirmou-se ser certo que o direito de acesso aos tribunais não podia ser «interpretado de modo absoluto, como impedindo toda e qualquer regulamentação de acesso aos tribunais, designadamente de cariz processual ou administrativo». E acrescentou-se que «o que o preceito em causa [artigo 20.º, n.º 2, da Constituição, correspondente hoje ao n.º 1 do mesmo artigo] não admite decerto é que o acesso aos tribunais seja condicionado ou limitado por prévia e inultrapassável decisão de uma mera autoridade administrativa, precisamente sobre o litígio em causa; autoridade essa, aliás, que, no caso concreto, e em obediência à ordem hierárquica, pode recusar tomar a referida decisão [...]». Ora, no caso vertente, pelas razões expostas, entende-se que há possibilidade de ultrapassar a falta de emissão de parecer, caso ocorra.
Nestes termos, conclui-se pela não inconstitucionalidade do artigo 14.º do decreto, na vertente em que condiciona a impugnação contenciosa ao pedido e obtenção prévia de parecer da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, desde que observados os condicionalismo expostos, não se mostrando violado o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, com referência aos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da lei fundamental.
III
46 - Deste modo e em conclusão, decide o Tribunal Constitucional:
a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade dos n.os 1 e 3 do artigo 2.º do decreto 129/VI da Assembleia da República;
b) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do artigo 7.º do mesmo decreto;
c) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do artigo 3.º, n.º 1, do decreto, na parte que contempla os Presidentes dos Governos Regionais, por violação dos artigos 6.º, n.º 1, 9.º, alínea a), e 273.º da Constituição;
d) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º do decreto, mas apenas quando aplicáveis ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, nos casos em que estas entidades solicitem o acesso a documentos classificados a título definitivo por outras entidades, por violação dos artigos 113.º, n.º 2, e 114.º, n.º 1, da Constituição, com referência aos artigos 123.º, 136.º, 137.º e 138.º, quanto ao Presidente da República, e com referência aos artigos 185.º, 193.º, 194.º, n.º 1, 200.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, quanto ao Primeiro-Ministro, sendo também todos estes artigos da Constituição;
e) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do disposto no artigo 12.º do decreto;
f) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas dos n.os 1 a 4 do artigo 13.º, por si só ou conjugados com o artigo 14.º do decreto, enquanto criam um órgão público independente de fiscalização da aplicação da Lei do Segredo de Estado;
g) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 13.º do decreto, na parte em que contempla o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, por violação do artigo 206.º da Constituição;
h) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 13.º do decreto, na parte respeitante à eleição de um dos Deputados que integram a composição da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado - de grupo parlamentar de partido da oposição -, por violação do princípio de reserva de lei, com referência aos artigos 168.º, n.º 1, alínea r), e 115.º, n.º 5, da Constituição;
i) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do artigo 14.º deste decreto, na parte em que não prevê a impugnação contenciosa do acto de classificação definitiva de documentos e informações como segredo de Estado;
j) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do mesmo artigo 14.º - na parte em que exige o pedido e obtenção do prévio parecer da Comissão para a Fiscalização prevista no artigo 13.º do mesmo diploma como condição para impugnação do acto contencioso de denegação de acesso a documento ou informação classificados -, quando interpretado no sentido de que o requerente pode interpor recurso contencioso se a Comissão para a Fiscalização não emitir o parecer previsto no n.º 3 do artigo 13.º do decreto no prazo legal.
Lisboa, 12 de Agosto de 1993. - Armindo Ribeiro Mendes - Antero Alves Monteiro Dinis - Alberto Tavares da Costa - Luís Nunes de Almeida (vencido apenas quanto à fundamentação da pronúncia de inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 13.º, na parte em que contempla o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos da declaração de voto junta) - Maria da Assunção Esteves (vencida quanto à norma do artigo 9.º, nos termos da declaração de voto junta) - Vítor Nunes de Almeida [vencido quanto às alíneas d) e h) da decisão, nos termos da declaração de voto junta] - José Manuel Cardoso da Costa (com a declaração junta).
Declaração de voto
Votei a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 13.º do decreto, na parte em que contempla o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, com fundamento diverso do perfilhado no acórdão.
Tenho por seguro que o n.º 3 do artigo 218.º da Constituição fixa a regra da dedicação exclusiva dos juízes, pelo que, em regra, não podem acumular o exercício da judicatura com o desempenho de qualquer outro cargo público.
Contudo, não me parece que a lei fundamental tenha pretendido inviabilizar a possibilidade de juízes integrarem - máxime, presidindo-os - os denominados órgãos de Administração independentes (basta pensar na Administração eleitoral), onde a presença de juízes constitui, exactamente, uma garantia da independência desses órgãos. É que, em tais casos, é ainda na qualidade de juízes que eles os integram; pode dizer-se que a participação em tais órgãos independentes como que constitui um prolongamento do exercício da função jurisdicional.
Só que deste entendimento resulta, necessariamente, que a designação dos juízes que devem integrar os referidos órgãos independentes há-de ser efectuada, quer directamente (como acontece, por exemplo, com a Comissão Nacional de Eleições) quer indirectamente (como no caso das comissões de apuramento eleitoral, nas eleições da Assembleia da República ou dos órgãos das autarquias locais), pelo órgão competente para a nomeação e colocação dos juízes, nos termos do preceituado no artigo 219.º da Constituição, e não por qualquer outra entidade, designadamente o legislador. - Luís Nunes de Almeida.
Declaração de voto
Não votei a tese do acórdão relativa ao artigo 9.º, n.os 1 e 2, do decreto 129/VI da Assembleia da República [conclusão d)]. Com os seguintes fundamentos:
Nas normas do artigo 9.º, n.os 1 e 2, distinguem-se dois níveis ou âmbitos de regulação: um tem que ver com o acesso a documentos em segredo de Estado pelos titulares de órgãos de soberania e com a emergência de mecanismos de responsabilidade política; o outro tem que ver com o acesso dos particulares (ou de entidades investidas nessa qualidade) e com a emergência das garantias de recurso contencioso.
A autorização para o acesso representa-se como a necessidade lógica da classificação do segredo de Estado por diferentes entidades. O acesso mostra-se constitucionalmente inevitável, em certos casos (relações entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro) ou susceptível de uma prévia ponderação política, em outros casos (relações entre a Assembleia da República e o Governo, por exemplo). Mas nas relações entre os órgãos de soberania, é sempre para um plano de responsabilidade política que se remete a autorização ou denegação do acesso.
O acórdão dá conta dos dois níveis de regulação do artigo 9.º e chama também à esfera do político a caracterização das relações do primeiro nível, quanto ao acesso ao segredo de Estado. Mas deriva de tais premissas uma tese que se me afigura improcedente.
A regulação do acesso aos documentos em segredo de Estado convive sem contradição com as normas constitucionais que organizam as relações entre os órgãos de soberania. É a própria tese do acórdão a apontar para que aí o acesso não é (não deve ser) imediato em todos os casos.
A autorização prevista nas normas em apreço não afasta qualquer ideia de interdependência dos órgãos de soberania, argumento que decorre da invocação, naquela mesma tese, da norma do artigo 114.º, n.º 1, da Constituição. Concretiza antes o desiderato constitucional de que a interdependência é a «estabelecida na Constituição» e não se opõe sem limites à liberdade do legislador em matéria de segredo de Estado [cf. Constituição da República Portuguesa, artigo 159.º, alínea c)].
Necessária que se revele a autorização mesmo neste plano das relações entre órgãos de soberania, dela não pode derivar-se para o caso das relações entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro uma solução de inconstitucionalidde. Quando muito, deve o intérprete conformar o seu sentido e alcance ao que a Constituição dispõe em matéria de ordenação e cooperação institucional entre os dois órgãos.
Afasto-me ainda do momento da fundamentação que reconhece aos Deputados o poder de recorrer contenciosamente de actos de denegação de acesso aos documentos em segredo quando o solicitem no exercício das suas funções. Os Deputados não são aí investidos na qualidade de particulares, pelo que não estão legitimados para o recurso contencioso. A recusa tem aí uma natureza política e faz emergir uma responsabilidade que é exclusivamente política. - Maria da Assunção Esteves.
Declaração de voto
Dissenti da posição maioritária do Tribunal, não acompanhando o juízo de censura por inconstitucionalidade que recaiu sobre os n.os 1 e 2 do artigo 9.º do decreto em apreço, enquanto aplicáveis ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, e sobre a norma do n.º 3 do artigo 13.º do diploma, na parte respeitante à eleição de um dos Deputados que integram a composição da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, pelas razões que passo a expor sucintamente.
1 - O presente acórdão declara a inconstitucionalidade do artigo 9.º, n.os 1 e 2, do diploma sobre o segredo de Estado, enquanto considerou tais normas aplicáveis ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, nos casos em que essas entidades solicitem o acesso a documentos classificados a título definitivo por outras entidades, por ter considerado violados os artigos 113.º, n.º 2, e 114.º, n.º 1, da Constituição, com referência ao artigo 123.º, 136.º e 137.º e 138.º, por parte do Presidente da República, e aos artigos 185.º, 193.º, 194.º, n.º 1, 200.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, quanto ao Primeiro-Ministro.
O acórdão entende que o diploma em causa «não contém qualquer norma específica sobre acesso a documentos e informações classificados como segredo de Estado por parte dos titulares máximos dos órgãos de soberania que não hajam determinado a classificação», e partindo de tal «omissão», conclui que, contendo a norma do n.º 1 do artigo 5.º do diploma uma «expressão de máxima extensão» («pessoas») aí estão também abrangidos os titulares máximos dos órgãos de soberania.
Daqui parte o acórdão para a afirmação de que «não pode interpretar-se restritivamente o disposto no artigo 9.º, n.os 1 e 2, como não sendo aplicáveis aos órgãos de soberania e seus titulares, pois a intenção do legislador, conforme resulta dos trabalhos preparatórios referidos, foi a de abranger todas as pessoas sem excepção [...]».
Depois, conclui-se pela inconstitucionalidade das normas na medida em que a exigência do percurso legal previsto no diploma para acesso a documentos classificados não se compagina quer com o sistema de governo acolhido na Constituição, quer com os poderes do Presidente da República também ali previstos.
Ora, subscrevendo integralmente as considerações do acórdão relativas ao sistema de governo e aos poderes do Presidente da República, não posso deixar de discordar da conclusão que delas o acórdão extrai.
É que tais considerações, juntamente com o reconhecimento inequívoco de que o diploma em apreço não contém uma norma expressa sobre o acesso a documentos classificados de segredo de Estado por parte dos titulares máximos dos órgãos de soberania (o acórdão refere-se apenas às relações entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, mas parece-me que, por uma questão de princípio de igualdade de tratamento, não pode deixar-se de fora o Presidente da Assembleia da República), levam-me necessariamente a uma conclusão diversa.
O legislador entendeu que tal matéria não poderia nunca constar de lei ordinária dada a delicadeza das situações que qualquer regulamentação da mesma poderia suscitar.
Isto é, a Lei do Segredo de Estado é intencionalmente omissa sobre tal matéria, uma vez que não introduziu nela uma norma específica.
Daqui resulta que nunca poderá ver-se no preceito do n.º 1 uma norma que permite considerar quer o Presidente da República quer o Primeiro-Ministro, quer também, como eu entendo, o Presidente da Assembleia da República, como «pessoas» para efeitos de aceder a documentos classificados como segredo de Estado.
Tal norma há-se sempre e tão-somente referir-se a pessoas que não sejam titulares máximos de órgãos de soberania.
Aliás, não se pode aceitar nem compreender bem como é que uma mera alusão aos trabalhos preparatórios da lei possa permitir a afirmação peremptória de que a «intenção do legislador foi a de abranger todas as pessoas sem excepção», intenção esta que impossibilita uma interpretação restritiva do preceito em causa.
De facto, não podemos deixar de chamar aqui à colação o ensinamento do Prof. Doutor Manuel de Andrade (in Ensaio sobre a Teoria de Interpretação das Leis, Coimbra, 1963, p. 145), que expressamente refere que «está hoje rejeitada a obsoleta concepção que, identificando o legislador com o redactor da lei, dava a tais discussões e opiniões quase a autoridade de uma interpretação autêntica».
E mais adiante, refere que, «quando muito [os trabalhos preparatórios], podem valer como indício de certa vontade legislativa, mas devem ser utilizados com cautela e circunspecção».
Ora, mesmo que tal intenção resultasse da discussão (e no texto do acórdão a fls. 74 e 75 apenas se transcrevem considerações de um Deputado da oposição que não votou a lei), o certo é que não está o intérprete, de todo em todo, vinculado a tais posições.
Assim, é para mim manifesto que o texto do artigo 9.º, n.os 1 e 2, não quis, intencionalmente, incluir entre as «pessoas» que carecem do acesso a documentos classificados como segredo de Estado para o cumprimento das suas funções os titulares máximos dos órgãos de soberania.
Estes titulares não podem estar abrangidos pela norma em causa, pois, como se acentua no acórdão, tal solução poderia trazer consequências aberrantes.
Entendo, por isso, que as normas em causa devem ser lidas como não abrangendo os titulares máximos dos órgãos de soberania (Presidente da República, Primeiro-Ministro e Presidente da Assembleia da República), uma vez que a negação, por qualquer deles enquanto autoridade classificatória de documentos sobre segredo de Estado, do acesso de um dos outros titulares a tais documentos não poderia deixar de abrir uma grave crise política institucional, que evidentemente não poderia ser evitada ou ultrapassada pelo recurso à Comissão para a Fiscalização ou ao Supremo Tribunal Administrativo.
Assim, em vez de concluir pela inconstitucionalidade da lei, basta-me fazer uma leitura excludente da norma, interpretando-a no sentido de que nunca os titulares máximos dos órgãos de soberania poderiam ser considerados como «pessoas» para os efeitos do n.º 1 do artigo 9.º em causa, pelo que a previsão de tal norma nunca os poderia abranger.
Efectivamente, as pessoas a quem possa ser consentido o acesso a documentos em segredo de Estado não podem deixar de ser apenas aquelas sobre as quais os titulares dos três órgãos de soberania referidos têm poderes de natureza hierárquica ou semelhante ou simplesmente terceiros, porque é de pressupor que a responsabilidade última - ainda que por hipótese meramente política - resultante de um exercício incorrecto desse acesso recairá sobre quem o autorizou.
Esta interpretação, que bem pode ser considerada restritiva, não pode ser afastada por qualquer posição assumida, nos trabalhos preparatórios, que não podem, decididamente, condicionar a interpretação objectiva da norma por quem tem o poder e o dever de a fazer, em conformidade com os correctos princípios interpretativos do sentido da norma.
A própria inserção sistemática das normas em causa inculca a posição que sustentei, quando, nos dois artigos imediatamente seguintes, o legislador institui um regime que tem por destinatários, em primeira linha, funcionários e agentes do Estado.
Aliás, a violação de qualquer segredo por titular de cargo político está prevista e é punida pela lei reguladora dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos (cf. artigo 27.º da Lei 34/87, de 16 de Julho). Não havendo razão para poder entender-se que se terá pretendido derrogar essa lei, será legítimo concluir que o termo «pessoas» não pretende, decidida e definitivamente, abranger os titulares máximos dos órgãos de soberania.
Não me pronunciaria, assim, pela inconstitucionalidade das normas dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º do decreto em apreço.
2 - Também não acompanhei a maioria no que se refere ao juízo que incidiu sobre o n.º 3 do artigo 15.º do diploma em apreço, na parte em que se declarou a inconstitucionalidade da norma relativa à eleição de um dos Deputados que integram a composição da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, por violação do princípio da reserva de lei [artigos 165.º, n.º 1, alínea r), e 115.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa].
Trata-se aqui da designação dos vogais da Comissão para a Fiscalização, criada pelo artigo 15.º do diploma em apreço, tendo o acórdão decidido que «a solução consagrada no artigo 13.º, n.º 3, é indeterminada, pois deixa para o Regimento o estabelecimento das regras de natureza substantiva - e não meramente procedimental - do modo de designação do terceiro membro, Deputado de grupo parlamentar da oposição, por a lei não estabelecer qualquer critério substantivo quanto à determinação do acordo de escolha do Deputado em causa.
Ora, entendo que a lei, ao prever que a Comissão em causa seja composta por um presidente e dois deputados, sendo estes designados um do grupo parlamentar do maior partido que apoia o Governo e o outro de «grupo parlamentar da oposição», cumpriu a normação primária que a reserva de lei lhe exigia para a constituição de uma comissão de fiscalização, entidade que não é constitucionalmente imposta.
Isto é, na lei não se regula, de todo em todo, o modo de escolha dos dois Deputados: isto é matéria a regular através de Regimento da Assembleia da República, uma vez que o processo de designação dos elementos em causa não constitui parte necessária de disciplina substantiva de segredo de Estado - única que está sujeita a reserva de lei - artigo 165.º, n.º 1, alínea r), da Constituição da República Portuguesa.
Nem se aceita que do facto de na lei se ter consignado que, no caso de o Governo estar suportado por mais de um partido, o Deputado que integrará a Comissão seria do «grupo parlamentar do maior partido que apoia aquele Governo» tal corresponda a um critério substantivo, pois podia identicamente constar de norma do Regimento. Mas compreende-se que, estando em causa o segredo de Estado - matéria que na sua maior parte respeita a área de competência do Governo - deva, por isso, a ser posta em causa tal matéria, aceitar-se que o Deputado a eleger saia do partido que maior suporte dá ao mesmo Governo.
Já não me pareceria legítimo que o legislador viesse a fixar qualquer critério relativamente a Deputado pertencente aos partidos da oposição.
Se assim o fizesse, estaria a cometer uma verdadeira e própria violação do «estatuto da oposição», na medida em que iria intervir numa área relativamente à qual o legislador se tem de manter afastado, sob pena de ingerência ilegal em tal domínio.
As formas de organização dos partidos que integram a oposição (parlamentar) ao Governo, designadamente a escolha de quem deve representar o conjunto dos partidos da oposição, é uma das áreas privilegiadas do domínio parlamentar, e o respeito que o legislador ordinário deve guardar perante a autonomia da organização e funcionamento da Assembleia da República, na qual se considera integrada a organização e funcionamento da referida oposição parlamentar ao Governo, sempre lhe imporiam que não devesse estabelecer quaisquer critérios para escolha de um Deputado de «grupo parlamentar da oposição», para além deste próprio e único critério, que é o que respeita a independência e o estatuto de igualdade dos partidos que integram tal oposição.
Conclui-se assim que o legislador cumpriu toda a normação primária necessária ao indicar que o terceiro membro da Comissão para a Fiscalização deveria pertencer a um grupo parlamentar da oposição.
A forma como o referido membro venha a ser eleito só pode respeitar à organização específica da Assembleia da República entendida como englobando a própria organização da oposição parlamentar e do conjunto dos partidos que a integram, sendo o local próprio para resolver tal questão o Regimento da Assembleia da República.
Existindo na nossa Constituição o expresso reconhecimento do direito de oposição democrática (artigo 117.º), traduzido na existência de uma oposição parlamentar com funções constitucionais, e podendo afirmar-se a existência de uma reserva de Regimento, que se faz acompanhar de uma reserva de competência absoluta [cf. artigo 178.º, alínea a), da Constituição], se a lei viesse dispor sobre qualquer critério de designação de um deputado de «grupo parlamentar da oposição», não poderia deixar de se reconhecer que tal reserva seria ilegitimamente restringida e aquele reconhecimento de uma oposição independente seria cerceado com a predeterminação legal da origem partidária do tal elemento da Comissão para a Fiscalização.
Não votei, por isso e nesta parte, o acórdão, pois não considero que a norma em causa esteja afectada por qualquer inconstitucionalidade. - Vítor Nunes de Almeida.
Declaração de voto
Tendo acompanhado quase na íntegra a fundamentação e as conclusões do precedente acórdão, ressalvo, no entanto, o seguinte (para além de um ou outro passo ou inciso mais específico ou de pormenor daquela fundamentação, de cuja indicação prescindo, brevitatis causa):
1 - Também sufrago o ponto de vista de que o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 9.º do decreto parlamentar em apreço não deve considerar-se aplicável ao Presidente da República ou ao Primeiro-Ministro; como acompanho, de resto, a ideia de que já o acesso pela Assembleia da República a documentos ou informações cobertos pela classificação de segredo de Estado não pode pôr-se nos mesmos termos (e há-de sê-lo, certamente, em termos muito mais restritos ou apertados) que para aqueles outros titulares de órgãos de soberania.
Daqui, porém, não retiraria a consequência da inconstitucionalidade dos preceitos referidos, na parte em que o Tribunal a decretou. E isso, por fazer desses preceitos uma leitura diferente, a saber, a de que neles não se pretende abranger ou regular a questão do acesso, pelos três órgãos de soberania ou seus titulares supracitados, aos documentos classificados. A tanto me conduz, desde logo, o teor do n.º 1 (que fala simplesmente em «pessoas» que pretendam aceder àqueles documentos); e, depois, o ilogismo da solução, nomeadamente se vista em conjunto com o disposto nos artigos 13.º e 14.º Penso, de resto, e pelo que em especial toca ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro e seu relacionamento mútuo no tocante ao acesso a segredos de Estado, que essa é uma matéria ou uma questão que só pode situar-se num plano político, ou político-constitucional, e há-se considerar-se inacessível a uma regulamentação legal.
As razões expostas são bastantes, a meu ver, para afastarem os argumentos que, em contrário da leitura aqui feita dos preceitos em causa, se aduzem no acórdão. Mas não deixarei de acrescentar, a respeito de um desses argumentos - o que tem a ver com a referência da parte final do n.º 2 do artigo 9.º -, que o significado de tal referência não tem de ligar-se necessariamente à possibilidade da ocorrência de conflitos entre membros do Governo acerca do acesso a documentos classificados, e que nem esse será o seu primário sentido.
Posto isto, cumpre-me ainda dizer que, em todo o caso, já convenho na afirmação do acórdão relativa à aplicabilidade aos Deputados, individualmente considerados, do regime do artigo 9.º, n.os 1 e 2, e do artigo 13.º Mas tenho, sim, fundas e sérias reservas (para não dizer mais, por agora), quanto a que aqueles, enquanto tais (isto é, nessa sua qualidade e função), possam também prevalecer-se da faculadade aberta pelo artigo 14.º - isto porque me interrogo sobre se o instituto do recurso contencioso é meio idóneo e que possa estender-se à solução de um diferendo, afinal «político», entre membros de órgãos de soberania.
2 - Por outro lado - e agora quanto ao n.º 3 do artigo 13.º do decreto em apreço - sobra-me alguma dúvida quanto ao julgamento de inconstitucionalidade que recaiu sobre a parte desse preceito relativa à de signação do membro da Comissão para a Fiscalização proveniente de grupo parlamentar da oposição. Essa dúvida radica quer no facto de o preceito já conter, apesar de tudo, alguma indicação sobre esse ponto, quer na circunstância de ser idêntica, afinal, a maioria exigida para a aprovação de normas legais comuns e de normas regimentais. Seja como for, votei a decisão, nessa parte.
Já não a votei, porém, no que toca ao julgamento de inconstitucionalidade da parte do preceito, agora em causa, relativa à atribuição da presidência da Comissão ao Presidente do Supremo Tribunal Administrativo. E isso por duas razões: em primeiro lugar, porque, entendendo embora que no artigo 218.º, n.º 3, da Constituição se estabelece um princípio de dedicação exclusiva dos juízes, não creio que tal princípio deva ser lido em termos de precludir por inteiro a possibilidade de juízes em exercício serem designados para integrar órgãos públicos de natureza independente, justamente como garantia da independência dos mesmos; e, em segundo lugar, porque, na situação concreta em presença, para tornear a dificuldade decorrente da coincidência entre o presidente da Comissão e o do órgão jurisdicional competente para apreciar o recurso contencioso previsto no artigo 14.º do decreto, bastaria fazer funcionar uma óbvia regra de impedimento: penso que desse modo ficaria perfeitamente salvaguardada a independência daquele órgão jurisdicional. - José Manuel Cardoso da Costa.