Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 474/2021
Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei 38/2018, de 7 de agosto (Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa).
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Um grupo de 86 deputados à Assembleia da República, dos Grupos Parlamentares do Partido Social Democrata (PSD), do CDS-Partido Popular (CDS-PP) e do Partido Socialista (PS), veio requerer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei 38/2018, de 7 de agosto, relativa ao direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Os requerentes alegam que estas normas violam, quer as disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 43.º e do n.º 2 do artigo 18.º, quer as dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), todos da Constituição.
2 - O pedido repousa nos seguintes fundamentos:
«I. INTRODUÇÃO
1 - O direito ao reconhecimento da identidade de género não é uma inovação introduzida no ordenamento jurídico nacional pela Lei 38/2018, de 7 de agosto.
2 - A mencionada lei veio, de facto, revogar a Lei 7/2011, de 15 de março, que pela primeira vez criou em Portugal o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil.
3 - Sucede que, segundo recomendações constantes do Projeto de Investigação "A 'Lei de Identidade de Género': Impacto e Desafios da Inovação legal na Área do (Trans)Género", maio de 2016, promovido pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, através do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS-IUL), em parceria com a Associação ILGA Portugal e a LLH - The Norwegian LGBT Association, o regime da Lei 7/2011, de 15 de março, careceria de aperfeiçoamento em dois aspetos: por um lado, o reconhecimento legal da identidade de género deveria deixar de depender de um diagnóstico clínico e, por outro lado, deveria poder ser efetuado antes da maioridade.
4 - E, com efeito, a Lei 38/2018 veio introduzir as propostas constantes no referido Projeto de Investigação, como se retira, designadamente, dos respetivos artigos 5.º (Modificações ao nível do corpo e das características sexuais da pessoa menor intersexo), 6.º (Legitimidade) e 8.º (Requerimento).
5 - Sucede que a Lei 38 /2018 não se limitou a introduzir modificações no sentido de tornar mais vincada a autodeterminação da pessoa em relação a sua identidade de género, a qual seria assim desligada de qualquer diagnóstico clínico, com o propósito de "garantir uma melhor separação entre as esferas clínica e legal, assegurando assim a autonomia e autodeterminação das pessoas trans no reconhecimento legal das suas identidades".
6 - Para além disso, a Lei 38/2018 inclui ainda um artigo 12.º, sob a epígrafe "Educação e Ensino" que prevê um conjunto de normas sobre medidas no sistema educativo resultantes do regime agora adotado quanto a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e a proteção das características sexuais de cada pessoa.
7 - O presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da inconstitucionalidade das normas do artigo 12.º da Lei 38/2018 não incide, importa desde já sublinhá-lo, sobre a configuração do direito à autodeterminação da identidade de género, mas tão-somente sobre as medidas a adotar no plano da configuração do sistema educativo que o legislador se sentiu habilitado a extrair a partir do reconhecimento daquele direito.
8 - Tais medidas envolvem, como se vai demonstrar, uma violação clara da liberdade de ensino e do princípio da determinabilidade da lei.
II. OBJETO DO PRESENTE PEDIDO
9 - A norma do artigo 12.º da Lei 38/2018, de 7 de agosto, tem o seguinte texto:
"1 - O Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, nomeadamente através do desenvolvimento de:
a) Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género, expressão de género e das características sexuais;
b) Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído à nascença;
c) Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género;
d) Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa.
2 - Os estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza pública ou privada, devem garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais.
3 - Os membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação adotam, no prazo máximo de 180 dias, as medidas administrativas necessárias para a implementação do disposto no n.º 1".
10 - A disposição legal que acaba de ser transcrita suscita dificuldades de interpretação assinaláveis, sendo, aliás, algumas de tais dificuldades diretamente relevantes para as questões de constitucionalidade suscitadas no presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva de todas as normas do artigo 12.º
11 - Em qualquer caso, a leitura que mais diretamente parece resultar dos vários elementos interpretativos a ter em conta é aquela segundo a qual o artigo 12.º estabelece uma distinção entre um dever de garantir a promoção do exercício do direito a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas, através da adoção de medidas no sistema educativo, e um dever de garantir o respeito das crianças e jovens que manifestem a identidade e expressão de género, bem como o respeito das suas características sexuais.
12 - O primeiro dever - isto é, o dever de garantir a promoção do exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas - dirige-se diretamente ao Estado, que se desincumbe dele através da adoção das medidas no sistema educativo exemplificadas no artigo 12.º, n.º 1; o segundo dever, por seu turno - o dever de garantir o respeito das crianças e jovens que manifestem a sua identidade e expressão de género - dirige-se diretamente a todos os estabelecimentos de ensino e o seu conteúdo exprime-se na relação estabelecida entre tais estabelecimentos e os seus alunos.
13 - Dito de outro modo, o dever a que se reporta o artigo 12.º, n.º 1, tem como correlativo um direito a prestações do Estado; enquanto o dever a que alude o artigo 12.º n.º 2, tem como correlativo direto o direito a autodeterminação da identidade de género, entendido como um direito de liberdade, na verdade como uma dimensão do direito ao desenvolvimento da personalidade (cf. artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, e artigo 3.º, n.º 1, da Lei 38/2008).
14 - Por esta razão, o dever de regulamentação a que se refere o n.º 3 do artigo 12.º dirige-se apenas às medidas previstas no n.º 1: apenas estas carecem da interposição dos poderes públicos no que toca à concretização do dever a que dizem respeito.
15 - Sem prejuízo destas diferenças, ambos os deveres incidem sobre todos os estabelecimentos de ensino, públicos e privados.
16 - Tal acontece em relação ao dever de respeito previsto no artigo 12.º, n.º 2, na medida em que a própria disposição legal em causa o prevê expressamente; mas acontece também em relação ao dever de promoção previsto no artigo 12.º, n.º 1, na medida em que a expressão «sistema educativo» abrange todos os estabelecimentos de ensino.
17 - Trata-se, com efeito, de uma expressão com um sentido abrangente, como decorre com toda a clareza do disposto no artigo 1.º, n.º 3, da Lei 46/86, de 14 de outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), na redação em vigor. «O sistema educativo desenvolve-se segundo um conjunto organizado de estruturas e de ações diversificadas, por iniciativa e sob responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas».
18 - O resultado da exposição anterior é muito simples: em virtude do artigo 12.º da Lei 38/2018 o Estado encontra-se obrigado a promover o exercício do direito a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas, através da adoção de medidas no sistema educativo, que inclui os estabelecimentos de ensino privados.
19 - Por outras palavras, os estabelecimentos de ensino privados não estão apenas obrigados a respeitar o exercício do direito de autodeterminação da identidade de género, como decorre do artigo 12.º, n.º 2, da Lei 38/2018 e sempre resultaria, em qualquer caso, da respetiva compreensão como um direito fundamental, mas estão também obrigados a pôr em prática as medidas que o Estado venha a adotar para promover aquele mesmo direito.
20 - Ora, se o direito da autodeterminação da identidade de género se encontra hoje amplamente reconhecido - veja-se, por exemplo, a decisão do Tribunal Constitucional alemão de 10 de outubro de 2017 -, já a difusão através do sistema de ensino de uma particular conceção da identidade de género que possa estar na base desse direito deve ser vigorosamente combatida, por se mostrar incompatível com a liberdade de ensino.
III. QUESTÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE
21 - A norma do artigo 12.º da Lei 38/2018 suscita, com e feito, duas questões de constitucionalidade: (i) desde logo, a questão da violação do disposto nos artigos 43.º, n.º 3, e 18.º, n.º 3, da Constituição, na medida em que o artigo 12.º da Lei 38/2018 envolve, por um lado, uma inadmissível programação da educação pelo Estado segundo determinadas diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas e, por outro lado, a negação dessa possibilidade as escolas não públicas, sendo certo que apenas em tais escolas tal possibilidade faz sentido e é protegida constitucionalmente; (ii) adicionalmente, a questão da violação da exigência de precisão ou determinabilidade das leis, decorrente do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, e do princípio da reserva de lei parlamentar.
a) Inconstitucionalidade por violação do artigo 43.º, n.º 2, da Constituição
22 - Segundo o artigo 12.º o Estado deve promover o exercício do direito a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas, nomeadamente através do desenvolvimento de: «mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído à nascença» [artigo 12.º, n.º 1, alínea b)]; «condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género» [artigo 12.º, n.º 1, alínea c)]; «formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa» [artigo 12.º, n.º 1, alínea d)].
23 - Resulta com clareza das medidas enunciadas exemplificativamente no artigo 12.º, n.º 1, da Lei 38/2018 que as mesmas dizem respeito a promoção da manifestação da identidade de género como uma realidade unicamente assente na vontade do titular do respetivo direito, ainda que o regime legal em causa, de modo algo contraditório, atribua maior relevância a primeira manifestação da identidade de género do que a manifestações subsequentes, as quais já carecem de autorização judicial (cf. artigo 6.º, n.º 3, da Lei 38/2018).
24 - Por outras palavras, de acordo com a conceção subjacente ao regime legal aprovado pela Lei 38/2018 «o masculino e o feminino são apresentados como criações de uma maioria cultural dominante que, através de um discurso hegemónico, perpetua desigualdades sociais e promove a opressão de uma classe sexual por outra» (cf. documento em anexo "A Ideia de Escola Democrática e a Ideologia de Género: Considerações sobre as Medidas a Adotar no Sistema Educativo Previstas no Regime Jurídico do Direito a Autodeterminação da Identidade de Género", da autoria de Miguel Morgado, Nilza de Sena, Bruno Vitorino, p. 12).
25 - Em reação contra uma tal maioria cultural dominante, o «masculino e feminino tornam-se "artifícios à deriva", sujeitos a tantas interpretações e significados quantos os indivíduos que existem» e não têm outro sustentáculo senão a vontade de cada indivíduo» (cf. estudo citado, p. 13).
26 - Ora, não parece que o reconhecimento do direito a autodeterminação do género se baseie necessariamente na mencionada conceção, em vez de pressupor um mínimo de objetividade.
27 - De resto, era essa certamente a conceção subjacente ao reconhecimento do mesmo direito pela Lei 7/2011.
28 - Poderia argumentar-se que justamente a substituição da Lei 7/2011 pela Lei 38/2018, implicando um regime decididamente assente no princípio da autodeterminação, sem necessidade de qualquer diagnóstico clínico, não pode deixar de assentar na conceção culturalista ou construtivista da identidade de género.
29 - Simplesmente, ainda que assim fosse - o que de maneira alguma se demonstra, pois a ideia de conferir um mínimo de objetividade a afirmação da identidade de género poderia fazer-se por outros meios, que não o diagnóstico clínico - sempre seria irrelevante, no sentido em que o reconhecimento do direito à autodeterminação - o direito de respeitar o mesmo direito e as suas manifestações, a que se reporta o artigo 12.º, n.º 2, da Lei 38/2018 - não envolve, de modo algum, a adesão aos fundamentos que possam ser aduzidos por alguns como base para a respetiva consagração legal.
30 - Todavia, através do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 38/2018, é precisamente esse passo que o legislador veio agora encetar ao impor medidas no sistema educativo destinadas a promover a autodeterminação da identidade de género com base numa certa visão ideológica ou doutrinária que estará na base de tal autodeterminação.
31 - Essa mesma visão está necessariamente subjacente a ideia, repetidas vezes afirmada na Lei 38/2018, de que a identidade de género simplesmente se «manifesta» [cf. artigos 3.º, n.º 2, 5.º, 7.º, n.º 3, 12.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2], sem qualquer substrato objetivo que a suporte.
32 - Repare-se, aliás, que ao atribuir-se a conceção culturalista ou construtivista da identidade de género um carácter ideológico ou doutrinário, não se pretende sequer reivindicar um carácter científico para a conceção oposta, que procura ancorar em dados objetivos aquela mesma identidade.
33 - Resulta assim claro que o artigo 12.º, n.º 1, da Lei 38/2018, ao atribuir ao Estado o dever de garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas está a programar a educação segundo diretrizes filosóficas, políticas e ideológicas, violando flagrantemente o artigo 43.º, n.º 2 da Constituição, fazendo, aliás, sem qualquer justificação atendível e, por isso, violando também de modo claro os limites às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias decorrentes do artigo 18.º, n.º 2 e 3, da Constituição.
34 - Admitamos, todavia, que nada do que fica dito é verdade, isto é, que as medidas de promoção do direito a autodeterminação da identidade de género não envolvem uma programação do ensino segundo diretrizes filosóficas, políticas ou ideológicas: ainda assim sempre haveria motivos para pôr em crise o regime do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 38/2018 à luz do artigo 43.º, n.º 2, da Constituição.
35 - Com efeito, e como se viu, as medidas previstas no artigo 12.º, n.º 1, abrangem todo o sistema educativo e, desse modo, têm como destinatários não apenas as escolas públicas, mas também as escolas privadas.
36 - Ao abrangerem também as escolas privadas, as medidas em causa mostram-se suscetíveis de impedir ou condicionar a adoção de determinadas orientações religiosas ou filosóficas por parte de tais escolas.
37 - E, no entanto, como bem refere Jorge Miranda, se nas escolas públicas «o Estado deve abster-se de impor», já «nas escolas privadas deve abster-se de impedir qualquer orientação confessional».
38 - Ora, ao adotar medidas destinadas a promover o direito de autodeterminação da identidade de género com base na ideia de que esta não tem qualquer substrato objetivo, as quais visam também as escolas privadas, designadamente de orientação religiosa, o Estado estará necessariamente a impedir e obstaculizar as respetivas orientações confessionais.
39 - Ainda que as escolas em causa estejam obrigadas a respeitar o direito a autodeterminação da identidade de género, nos termos previstos no artigo 12.º, n.º 2, da Lei 38/2018, constitui uma clara violação da sua liberdade de ensino a imposição de uma conceção culturalista ou construtivista do género.
40 - O mesmo sucederia se tais escolas, para além de respeitarem a interrupção voluntária da gravidez - realizada, por opção da mulher, nas primeiras semanas de gravidez, nos termos previstos no artigo 142.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, fossem obrigadas a promover ou encarar essa forma de interrupção voluntária da gravidez não punível como manifestação de um direito da mulher a dispor do seu próprio corpo, ou como um ato moralmente neutro ou irrelevante.
41 - Não faz certamente parte dos «encargos cognitivos» dos cidadãos religiosos numa sociedade secular encarar o direito à autodeterminação da identidade de género na base de uma conceção culturalista ou construtivista, no âmbito das quais a afirmação do género prescinda por completo de pontos de apoio objetivos.
42 - Em face do exposto, deve concluir-se que o artigo 12.º, n.º 1, da Lei 38/2018, de 7 de agosto, ao estabelecer que Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas, viola a liberdade de ensino nos termos previstos nos artigos 18.º, n.º 2, e 43.º, n.º 2, da Constituição, ao envolver a programação da educação segundo diretrizes filosóficas políticas ou ideológicas, bem como a liberdade de ensino das escolas não públicas, a luz das mesmas normas constitucionais, ao impedir que estas programem a educação segundo uma determinada orientação confessional.
b) Inconstitucionalidade por violação dos princípios da determinabilidade da lei e da reserva de lei parlamentar
43 - Para além de violar os artigos 18.º e 43.º, n.º 2, da Constituição, o artigo 12.º, n.º 1, em conjugação com o n.º 3, da Lei 38/2018 viola ainda os princípios da determinabilidade da lei e da reserva de lei parlamentar.
44 - Com efeito, a delimitação das medidas a tomar pela Administração ao abrigo das diversas alíneas do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 38/2018 é manifestamente imprecisa e ambígua.
45 - A indicação, a título de exemplo, de algumas matérias - que devem ser objeto de medidas administrativas a adotar pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação adotam, no prazo máximo de 180 dias, de acordo com o artigo 12.º, n.º 3, elencadas nas alíneas do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 38/2018 é elucidativa:
- Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género, expressão de género e das características sexuais;
- Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído a nascença;
- Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género;
- Informação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa.
46 - A verdade é que o artigo 12.º da Lei 38/2018 é excessivamente vago e ambíguo sobre os limites e contornos das «medidas de prevenção e de combate», «mecanismos de deteção e intervenção», «condições para uma protecção adequada», ou sobre «formação adequada» que revestem uma indiscutível importância na perspetiva dos destinatários das medidas em causa, incluindo as escolas privadas.
47 - Devido a sua indeterminação, o artigo 12.º, n.º 1 e 3, não oferece uma medida jurídica apta a fixar orientações com densidade suficiente para balizar a adoção pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação das medidas administrativas a adotar no prazo de 180 dias.
48 - Tal indeterminação, além de tornar imprevisível, a luz da lei, o conteúdo das medidas que os mencionados membros do Governo devem adotar, também não permite um controlo jurisdicional da sua legalidade adequado a importância da matéria em causa.
49 - Estando em causa disciplina de sentido restritivo quanto ao exercício de direitos, liberdades e garantias, tanto por parte das escolas não públicas, como dos respetivos alunos - e, por conseguinte, matéria de reserva de lei parlamentar ao abrigo do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1 alínea b), da Constituição -, aquela indeterminação não é compatível com a exigência de precisão ou determinabilidade das leis, decorrente do. princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
50 - A este propósito são relevantes as considerações feitas no Acórdão 285/92, posteriormente reiteradas na jurisprudência deste Tribunal:
«[A] questão da relevância do princípio da precisão ou determinabilidade das leis anda associada de perto a do princípio da reserva de lei e reconduz-se a saber se, num dado caso, o âmbito de previsão normativa da lei preenche ou não requisitos tidos por indispensáveis para se poder afirmar que o seu conteúdo não consente a atribuição a Administração, enquanto executora da lei, de uma esfera de decisão onde se compreendem elementos essenciais da própria previsão legal, o que, a verificar-se, subverteria a ordem de repartição de competências entre o legislador e o aplicador da lei. [...]
Reconhece-se, sem dificuldade, que o princípio da determinabilidade ou precisão das leis não constitui um parâmetro constitucional "a se", isto é, desligado da natureza das matérias em causa ou da conjugação com outros princípios constitucionais que relevem para o caso. Se é, pois, verdade que inexiste no nosso ordenamento constitucional uma proibição geral de emissão de leis que contenham conceitos indeterminados, não é menos verdade que há domínios onde a Constituição impõe expressamente que as leis não podem ser indeterminadas, como é o caso das exigências de tipicidade em matéria penal constantes do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, e em matéria fiscal (cf. artigo 106. da Constituição) ou ainda enquanto afloramento do princípio da legalidade (nulla poena sine lege) ou da tipicidade dos impostos (null taxation without law).
Ora, atento o especial regime a que se encontram sujeitas as restrições aos direitos, liberdades e garantias; constante do artigo 18.º da Constituição, em especial do seu n.º 3, e em articulação com a 13.º princípio da segurança jurídica inerente a um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), forçoso se torna reconhecer que, em função de um critério ou princípio da proporcionalidade a que deverão estar obrigadas as aludidas restrições, uma vez que está em causa a garantia constante do artigo 53. da Constituição [no caso vertente, a garantia constante do artigo 43.º, n.º 2], o grau de exigência de determinabilidade e precisão da lei há-de ser tal que garanta aos destinatários da normação um conhecimento preciso, exato e atempado dos critérios legais que a Administração há-de usar, diminuindo desta forma os riscos excessivos que, para esses destinatários, resultariam de uma normação indeterminada quanto aos próprios pressupostos de atuação da Administração; e que forneça a Administração regras de conduta dotadas de critérios que, sem jugularem a sua liberdade de escolha, salvaguardem o núcleo essencial» da garantia dos direitos e interesses dos particulares constitucionalmente protegidos em sede de definição do âmbito de previsão normativa do preceito (Tatbestand); e finalmente que permitam aos tribunais um controlo objetivo efetivo da adequação das concretas atuações da Administração face ao conteúdo da norma legal que esteve na sua base e origem.»
51 - Ora, é dessa precisão ou determinabilidade que carecem os n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei 38/2018, que se reportam ao conteúdo das medidas a adotar pelo Governo no sistema educativo, abrangendo as escolas privadas e cooperativas, as quais estabelecerão limites à sua programação da educação segundo a orientação confessional que pretendam livremente adotar.
52 - Tais normas são, deste modo, inconstitucionais, por violação do princípio da determinabilidade da lei, corolário do princípio do Estado de direito democrático, e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea b), ambos da Constituição, por referência a liberdade de ensino consagrada no artigo 43.º, n.º 2, do mesmo normativo.
Nestes termos consideram os signatários que as normas do artigo 12.º, n.os 1 e 3, da Lei 38/2018, de 7 de agosto, violam (i) o disposto nos artigos 43.º, n.º 3, e 18.º, n.º 3, da Constituição, ao envolverem, por um lado, uma inadmissível programação da educação pelo Estado segundo determinadas diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas e, por outro lado, a negação dessa possibilidade as escolas não públicas, sendo certo que apenas em tais escolas tal possibilidade faz sentido e é protegida constitucionalmente; as mesmas normas violam ainda (ii) ao envolverem, por um lado, uma inadmissível programação da educação pelo Estado segundo determinadas diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas e, por outro lado, a negação dessa possibilidade as escolas não públicas, sendo certo que 'apenas em tais escolas tal possibilidade faz sentido e é protegida constitucionalmente; as mesmas normas violam ainda (ii) a exigência de precisão ou determinabilidade das leis, decorrente do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, e o princípio da reserva de lei parlamentar decorrente das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 165.º n.º 1, alínea b), ambos da Constituição, por referência a liberdade de ensino consagrada no artigo 43.º, n.º 2, do mesmo normativo.
Nessa medida, requer-se a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas em causa, constante do artigo 12.º, n.os 1 e 3, da Lei 38/2018 com as legais consequências».
O pedido vem acompanhado de um texto subscrito pelos Senhores Deputados Miguel Morgado, Nilza de Sena e Bruno Vitorino, intitulado «A ideia de escola democrática e a ideologia de género: considerações sobre as medidas a adotar no sistema educativo previstas no regime jurídico do direito a autodeterminação da identidade de género».
3 - Notificado, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos. Enviou ainda uma nota técnica, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, relativa aos trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei 38/2018, de 7 de agosto, a qual não se pronuncia sobre as questões de constitucionalidade colocadas pelos requerentes.
4 - Discutido em Plenário o memorando previsto no artigo 63.º da LTC e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver no âmbito do presente processo, cabe agora proferir a decisão.
II - Fundamentação
5 - Com origem na Proposta de Lei 75/XIII, a Lei 38/2018, de 7 de agosto (Lei da Identidade e Expressão de Género, referida adiante pela sigla «LIEG»), teve como finalidade precípua adequar o regime jurídico da mudança de sexo e de nome próprio no registo civil a dois instrumentos internacionais. Por um lado, a Resolução do Parlamento Europeu, de 28 de setembro de 2011, sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de género nas Nações Unidas, que convidou a Comissão Europeia e a Organização Mundial de Saúde a «retirar os transtornos de identidade de género da lista de transtornos mentais e comportamentais e a velar por uma reclassificação não-patologizante nas negociações sobre a 11.ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11)». Por outro lado, a Resolução 2048 (2015) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, sobre discriminação contra pessoas transgénero na Europa, que recomenda aos Estados-Membros o reconhecimento jurídico da identidade de género através de procedimentos de mudança da menção do sexo e alteração de nome próprio caracterizados pela celeridade, transparência e acessibilidade, e baseados na autodeterminação, assim como a abolição da esterilização e de outros tratamentos médicos, incluindo a apresentação de um diagnóstico de saúde mental, como requisitos legais para aquele procedimento (v. o n.º 6.2. da Resolução).
A LIEG estabelece o regime jurídico do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. O diploma compreende cinco capítulos. O primeiro capítulo contém disposições genéricas sobre o conteúdo do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, do direito à proteção das características sexuais das pessoas e a proibição de discriminação em função do exercício daqueles direitos (artigos 1.º a 5.º). O segundo capítulo incide sobre o procedimento de alteração da menção do sexo no registo civil, caracterizado como forma de obter o reconhecimento jurídico da identidade de género (artigos 5.º a 10.º). O terceiro capítulo diz respeito a medidas de proteção do direito à autodeterminação da identidade de género no sistema de saúde (artigo 11.º) e no sistema educativo (artigo 12.º). O quarto capítulo regula os meios de defesa do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género (artigos 13.º a 18.º). Do quinto e último capítulo constam normas transitórias e revogatórias.
A Lei 38/2018, de 7 de agosto, é mais abrangente do que a Lei 7/2011, de 15 de março, relativa à mudança de sexo e de nome próprio no registo civil - a «lei antiga» de que constava o regime precedente -, destacando-se a esse propósito três importantes alterações. Em primeiro lugar, a consagração expressa do direito à autodeterminação de identidade de género e de expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, sem prejuízo do entendimento do legislador - atento o teor do n.º 1 do artigo 3.º - de que os mesmos são largamente recondutíveis aos direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da personalidade e à identidade pessoal expressamente consagrados no texto constitucional. Em segundo lugar, o procedimento de alteração da menção do sexo no registo civil sofreu alterações de grande monta: eliminou-se a subordinação do procedimento à apresentação de um relatório elaborado por uma equipa multidisciplinar de sexologia clínica comprovando o diagnóstico de perturbação de identidade de género (artigo 3.º da lei antiga) e permitiu-se expressamente a sua utilização por menores, com idade compreendida entre os 16 e os 18 anos (n.º 2 do artigo 7.º), desde que o seu consentimento seja livre e esclarecido - o que pode ser demonstrado perante o conservador do registo civil mediante a apresentação de relatório clínico atestando a sua capacidade de decisão. Em terceiro lugar, incumbiu-se o Estado de adotar medidas de proteção do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, concretamente através do Serviço Nacional de Saúde (artigo 11.º) e em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo que integram o sistema educativo (artigo 12.º).
6 - Os requerentes não pretendem a fiscalização das normas que consagram e conformam o direito à autodeterminação da identidade de género, nem as que respeitam ao seu «reconhecimento jurídico» através da mudança da menção do sexo no registo civil por decisão do requerente. «O presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da inconstitucionalidade - escrevem - das normas do artigo 12.º da Lei 38/2018 não incide, importa desde já sublinhá-lo, sobre a configuração do direito a autodeterminação da identidade de género». Ao invés, o pedido incide somente sobre as normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º, que respeitam a medidas de proteção no sistema educativo, excluindo-se a contida no n.º 2, que impõe aos estabelecimentos de ensino (públicos e privados) a obrigação de garantir que «as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais.» O n.º 1 do artigo 12.º prevê a adoção de medidas no sistema educativo que «promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas» e o n.º 3 autoriza e vincula os «membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação» a adotar, no prazo de 180 dias, as «medidas administrativas necessárias para a implementação do disposto no n.º 1.»
Vale a pena reproduzir os preceitos legais de que constam as normas sindicadas:
Artigo 12.º
Educação e ensino
1 - O Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, nomeadamente através do desenvolvimento de:
a) Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género, expressão de género e das características sexuais;
b) Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído à nascença;
c) Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género;
d) Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa.
2 - [...]
3 - Os membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação adotam, no prazo máximo de 180 dias, as medidas administrativas necessárias para a implementação do disposto no n.º 1.
Segundo os requerentes, os preceitos transcritos suscitam duas questões de constitucionalidade. Em primeiro lugar, uma questão de violação da proibição da programação ideológica do ensino pelo Estado e da liberdade de programação do ensino particular, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 43.º da Constituição, uma vez que entendem que as disposições em causa refletem uma «particular conceção da identidade de género», de tipo «culturalista» e «construtivista», denominada - por remissão para certos trechos do texto da autoria de três deputados que acompanha o pedido - como «ideologia de género». Em segundo lugar, uma questão de violação «da exigência de precisão ou determinabilidade das leis» e do «princípio da reserva de lei parlamentar», uma vez que «o artigo 12.º, n.º 1 e 3, não oferece uma medida jurídica apta a fixar orientações com densidade suficiente para balizar a adoção pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação das medidas administrativas a adotar no prazo de 180 dias.»
Apesar de o pedido apresentar as questões por esta ordem, há toda a propriedade e conveniência em começar a apreciação pela segunda questão. Isto porque, se o regime legal - como afirmam os requerentes - for indeterminado ao ponto de ser imprevisível o «conteúdo das medidas a adotar» e impossível o «controlo jurisdicional da sua legalidade», dificilmente terá densidade suficiente para a formulação de juízos firmes e ponderados sobre a matéria a que respeita a primeira questão de constitucionalidade, pelo menos na medida em que esta se não resolva num plano de elevada abstração. Com efeito, se a definição do conteúdo das «medidas de proteção» tem lugar, não no nível do diploma legal que as prevê, mas no nível administrativo para o qual este reenvia a sua regulamentação, os n.os 1 e 3 do artigo 12.º não consubstanciam tanto um regime material quanto uma norma de competência. Nesse caso, a principal questão de constitucionalidade que a este respeito se pode suscitar é a de saber se o objeto do reenvio ou o âmbito da competência - o exato domínio, quer isto dizer, confiado ao poder administrativo - integra uma das modalidades constitucionais de reserva de lei formal.
7 - Importa começar por esclarecer o conceito de reserva de lei formal relevante para efeitos do presente processo, tendo em conta a instabilidade de significação, na tradição do direito público europeu, de termos como «princípio da legalidade», «reserva de lei», «reserva material», «reserva formal», «função legislativa», «lei em sentido material» e «lei em sentido formal». A jurisprudência constitucional não tem sido alheia a essa instabilidade terminológica, ampliada pela singularidade do nosso sistema de atos legislativos.
Por vezes, a expressão «reserva de lei formal» tem sido usada pelo Tribunal Constitucional para denotar os domínios de vida em que se admite a regulação primária de certa matéria através de regulamento administrativo habilitado por lei - os denominados «regulamentos independentes», designadamente aqueles a que se refere a última parte do n.º 6 do artigo 112.º da Constituição -, por oposição aos domínios de vida, referidos então como estando sob reserva de lei material, em que se exige que tal regulação conste do próprio ato legislativo. É esse o alcance da seguinte passagem do Acórdão 75/2010:
«[O] grau mínimo da escala é atingido na dimensão de reserva de lei meramente formal - aqui a necessidade de lei prévia habilitante serve apenas o objectivo de dar cumprimento ao princípio da precedência da lei, tornando assim possíveis os regulamentos independentes - e o grau máximo nas matérias sob reserva legal material: nos casos em que a Constituição prevê que só através de lei pode regular-se determinada matéria, a lei não pode delegar tal competência à actividade regulamentar, pelo que os únicos regulamentos admitidos são os regulamentos estritamente executivos e instrumentais.»
É conveniente recorrer a outra nomenclatura para esta distinção, que respeita a duas das três gradações do princípio da legalidade administrativa. O nível menos exigente, que pressupõe um poder regulamentar diretamente fundado em disposições constitucionais, é o princípio da preferência de lei, segundo o qual a validade de normas regulamentares depende da sua compatibilidade com as normas legais. O nível seguinte, aquele a que na passagem transcrita se atribui a expressão «reserva de lei meramente formal», diz respeito ao que nela também se refere como o princípio da precedência de lei, nos termos do qual o poder regulamentar tem de ser autorizado por lei que fixe a competência objetiva e subjetiva do seu exercício - uma lei dita de habilitação. O nível mais exigente - «sob reserva de lei material», na terminologia do citado aresto - é o da reserva de lei propriamente dita, segundo a qual o regime material tem de constar de um ato legislativo, ou seja, de lei em sentido formal. Neste último sentido, deve falar-se em reserva de lei formal.
A expressão «reserva de lei material», nesta ordem de considerações, não diz respeito ao tipo de ato normativo de que consta um regime, mas a uma exigência quanto ao seu conteúdo: a de que se trate de normas jurídicas no sentido clássico de regras gerais, abstratas, prospetivas e determinadas. É neste sentido que, no direito constitucional português e na generalidade das democracias constitucionais, mais comummente se fala de uma exigência de legalidade a propósito da definição dos crimes e das penas, da liquidação e cobrança de impostos e da intervenção restritiva nos direitos fundamentais: tais manifestações ablativas do poder público têm de estar «tipificadas» ou «prefiguradas» em normas jurídicas, regras de direito ou leis em sentido material. O facto de também se impor que as normas nesses domínios de vida constem de atos legislativos - de leis em sentido formal - é uma exigência de ordem diversa, que já não diz respeito ao seu conteúdo, mas à competência para a sua emissão e à forma que deve revestir. A reserva de lei material é uma garantia do destinatário de atos concretos do poder público, mormente punitivos, tributários ou restritivos. A reserva de lei formal prende-se com a repartição de competências entre o poder legislativo e o poder administrativo. Trata-se de dimensões distintas e cindíveis do princípio da legalidade como reserva de lei, de tal modo que pode haver atos normativos que observam a exigência de reserva de lei material sem constituírem leis em sentido formal - caso dos regulamentos administrativos - e atos legislativos que observam a exigência de reserva de lei formal sem constituírem leis em sentido material - assim, por exemplo, nas leis individuais e concretas. Por isso, quando se fala de «legalidade criminal», «legalidade fiscal» ou «reserva de lei», importa distinguir qual das dimensões do princípio da legalidade - formal ou material - está em causa. Como se explica no Acórdão 680/2014:
«A Constituição da República Portuguesa consagra, em matéria fiscal, o princípio da legalidade, o qual se desdobra, por um lado, na reserva de lei formal e, por outro, na reserva de lei material. A reserva de lei formal postula que, nas matérias fiscais abrangidas pela mesma, a normação deve constar de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei emitido na sequência de autorização legislativa daquele órgão (cf. o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição. Já a reserva de lei fiscal em sentido material, correspondente ao princípio da tipicidade (Tatbestandsmässigkeit), exige que a lei defina, relativamente a cada imposto, a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (cf. o artigo 103.º, n.º 2, da Constituição).»
A distinção é também aflorada no Acórdão 285/92, a propósito das diferentes refrações do princípio da determinabilidade das leis, quando se contrapõe a legalidade como garantia do cidadão perante os atos individuais e concretos do poder público - designadamente, contra o abuso de conceitos indeterminados e o excesso de poder discricionário nas leis restritivas de direitos, liberdades e garantias - com a repartição de competência para a emissão de normas a que respeita propriamente a reserva de lei formal.
Sobre a primeira, lê-se no referido aresto:
«Atento o especial regime a que se encontram sujeitas as restrições aos direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 18.º da Constituição, em especial do seu n.º 3, e em articulação com o princípio da segurança jurídica inerente a um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), forçoso se torna reconhecer que [...] o grau de exigência de determinabilidade e precisão da lei há-de ser tal que garanta aos destinatários da normação um conhecimento preciso, exato e atempado dos critérios legais que a Administração há-de usar, diminuindo desta forma os riscos excessivos que, para esses destinatários, resultariam de uma normação indeterminada quanto aos próprios pressupostos de atuação da Administração; e que forneça à Administração regras de conduta dotadas de critérios que, sem jugularem a sua liberdade de escolha, salvaguardem o "núcleo essencial" da garantia dos direitos e interesses dos particulares constitucionalmente protegidos em sede de definição do âmbito de previsão normativa do preceito (Tatbestand); e finalmente que permitam aos tribunais um controlo objetivo efetivo da adequação das concretas atuações da Administração face ao conteúdo da norma legal que esteve na sua base e origem.»
A ideia de uma reserva de lei formal surge noutra passagem da decisão, a propósito da competência legislativa da Assembleia da República:
«Visto o princípio da reserva de lei em sentido formal, movemo-nos num domínio de matérias sujeito a reserva de lei, quer porque se trata de legislar em termos de restrição de direitos, liberdades e garantias, quer porque se versam matérias que relevam das competências reservadas ao parlamento nos termos da alínea v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição («bases do regime e âmbito da função pública»), pelo que a emissão do decreto em apreço se funda na autorização legislativa constante do artigo 5.º da Lei 2/92, de 9 de Março.»
8 - O Tribunal tem por vezes usado os termos reserva de lei «formal» e «material» ainda num outro sentido. É o caso do Acórdão 161/99, em que se lê o seguinte:
«[P]ara além das matérias cuja regulamentação tem, toda ela, que constar de lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada [...] existem outras cuja disciplina inicial e primária também só por acto legislativo pode ser regulada. Nelas, o regulamento só pode conter normação secundária e subsequente. Fala-se, a este propósito, em reserva de lei material.».
Trata-se aqui de uma distinção que releva sobretudo da singularidade de, no direito constitucional português, o Governo ter competência legislativa originária em matérias não reservadas à Assembleia da República (alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição). Ora, nesse domínio não reservado - em que a competência é concorrencial e os atos têm o mesmo valor (n.º 2 do artigo 112.º) - pode falar-se, com maior propriedade, em reserva de função legislativa, por oposição a reserva de lei parlamentar, quer seja para significar os casos em que a matéria é expressamente reservada a ato legislativo - como o desenvolvimento dos princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis, segundo o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição; a transposição de atos jurídicos da União Europeia pelo Governo em matéria em que disponha de competência legislativa, atento o teor do n.º 8 do artigo 112.º; ou as remissões constitucionais para a lei no domínio da competência legislativa concorrencial (v.g., artigos 60.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, 63.º, n.º 5, 85.º, n.º 2 e 86.º, n.os 2 e 3) -, quer seja para expressar a ideia de que, para além da reserva de lei parlamentar, há matérias cuja regulação primária, pela sua relevância, não pode ser reenviada para regulamento, inscrevendo-se na esfera própria da função legislativa.
No citado Acórdão 161/99, entendeu-se o seguinte:
«Seria, na verdade, inadmissível que uma matéria com a importância do processo administrativo, que desempenha uma função instrumental relativamente ao direito de acesso à via judiciária, com o qual tem, por isso, íntima conexão, pudesse ser disciplinada por um regulamento independente, que é um regulamento editado na sequência de um acto legislativo que, para cumprir a exigência constitucional da primariedade ou da precedência de lei, apenas define "a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão" (cf. artigo 115.º, n.º 7, da Constituição).»
A Constituição impõe que os regulamentos independentes revistam a forma de decreto regulamentar (n.º 6 do artigo 112.º), tal se devendo ao facto, não apenas de estes serem assinados pelo Primeiro-Ministro (n.º 3 do artigo 201.º) - ao contrário das portarias ou dos despachos dos membros do Governo -, como ainda - ao contrário do que sucede também com as resoluções do Conselho de Ministros com conteúdo normativo - de carecerem da promulgação do Presidente da República [alínea b) do artigo 134.º] e implicarem recurso obrigatório do Ministério Público para o Tribunal Constitucional em caso de recusa de aplicação de norma (n.º 3 do artigo 280.º). Estes traços de regime aproximam os decretos regulamentares, em boa medida, do regime constitucional dos decretos-leis; mas há certas qualidades procedimentais, relevantes do ponto de vista da legitimidade democrática e da separação de poderes, que só estes possuem. Com efeito, ao contrário dos decretos regulamentares, os decretos-leis, mormente em matéria de competência legislativa concorrencial, devem ser aprovados em Conselho Ministros [alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º], estão sujeitos a apreciação parlamentar (artigo 169.º) e podem ser objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade [alínea g) do artigo 134.º]. Daí que no citado aresto se afirme que, quanto a certas matérias de «importância», a regulação primária tenha de constar de decreto-lei, em vez de decreto regulamentar devidamente habilitado, devendo falar-se a esse respeito de uma reserva de função legislativa, cujo fundamento pode porventura reconduzir-se, sem prejuízo da relevância neste domínio de princípios constitucionais estruturantes, a uma certa interpretação do n.º 5 do artigo 112.º da Constituição
A favor da existência de uma reserva dessa natureza, pode ler-se no Acórdão 398/2008:
«[D]o princípio contido no n.º 5 do artigo 112.º da CRP decorre uma proibição (de reenvios normativos para regulamentos praeter legem) que, para além de incidir directamente sobre o âmbito da conformação do legislador ordinário, limitando-o, reflecte a intenção do regime aprovado em 1982: a de conferir uma outra, e mais intensa, tutela constitucional à reserva da função legislativa - enquanto delimitação daqueles domínios de vida que só podem ser regulados por actos legislativos com exclusão de quaisquer outras fontes normativas -, «reserva» essa que, em última análise, decorre do princípio mais vasto do Estado de direito (que, recorde-se, só veio a ser consagrado pelo texto da Constituição a partir de 1982).»
Em sentido aparentemente diverso, no Acórdão 519/2018 entendeu-se que uma «lei reenviante» apenas se encontra «sujeita aos limites constitucionais da reserva de lei (artigos 164.º e 165.º da CRP)», de modo tal que:
«[N]o âmbito da proibição estabelecida no n.º 5 do artigo 112.º da CRP não se incluem as remissões normativas que consistem no facto de a lei remeter para normas regulamentares executivas ou complementares da disciplina por ela estabelecida. A proibição constitucional compreende apenas os reenvios normativos que se traduzem nos chamados «regulamentos delegados» ou «autorizados» (proibição dos regulamentos modificativos, suspensivos ou revogatórios das leis).»
A reserva de lei formal admite, assim, um sentido estrito, em que tem o alcance de reserva de lei parlamentar ou de decreto-lei autorizado, neste último caso apenas nas matérias e nos termos previstos no artigo 165.º da Constituição, e um sentido mais amplo, cuja existência como princípio geral na ordem constitucional portuguesa não é isenta de dúvidas, como reserva de função legislativa. Em ambos os casos, a reserva de lei traduz-se na proibição - ou, mais rigorosamente, na desautorização -, quer da invasão pelo poder regulamentar da esfera reservada ao legislador, quer do reenvio legislativo para o poder regulamentar da matéria sob reserva. Claro está que a reserva de lei formal em sentido estrito - a reserva de lei parlamentar - constitui um regime especial, fundado nos artigos 164.º e 165.º da Constituição, em relação a um putativo princípio mais geral e largamente implícito que respeita a toda a função legislativa. Nas matérias que aqueles preceitos enunciam, a Constituição desautoriza, não apenas a regulação por decreto-lei simples, como - a fortiori - por regulamento administrativo; e a desautorização constitucional opera simultaneamente contra a Administração Pública - vedando a invasão da reserva - e contra a Assembleia da República - impedindo o reenvio da regulação.
Como se afirma no Acórdão 538/2015:
«O princípio da reserva de lei parlamentar assume, como se sabe, no ordenamento jurídico-constitucional português um duplo significado: por um lado, proíbe a administração de invadir as matérias reservadas sem autorização expressa do legislador parlamentar, dotado de uma maior intensidade de legitimação democrática; por outro, proíbe que o legislador delegue na administração poderes regulamentares relativamente a quaisquer aspetos pertencentes à disciplina normativa primária, circunscrevendo o âmbito de atuação normativa da administração a aspetos técnicos ou secundários, sob a forma de regulamentos de execução - como é o caso.»
O que se retira deste excurso preliminar sobre o conceito constitucional de reserva de lei é que importa, antes de mais, determinar se a matéria reenviada pela conjugação dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da LIEG para despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação viola alguma das disposições constitucionais a respeito da competência legislativa reservada da Assembleia da República. Trata-se de saber se os preceitos legais em causa não reenviam para o poder regulamentar matéria sob reserva de lei parlamentar. O problema situa-se, como é bom de ver, no domínio mais estrito da reserva de lei formal: a competência legislativa reservada ao Parlamento. Para tratá-lo da forma mais adequada, porém, importa firmar alguns pontos de apoio sobre o regime constante dos artigos 164.º e 165.º da Constituição.
9 - Ao contrário do que sucede na generalidade das democracias constitucionais, no nosso sistema constitucional, como se referiu, o Governo tem competência legislativa originária [alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º] e os atos legislativos da sua autoria - os decretos-leis - têm, por via de regra, o mesmo valor que as leis em sentido próprio (n.º 2 do artigo 112.º). Ora, sendo a regra geral do nosso sistema a da competência legislativa concorrencial da Assembleia da República e do Governo, não admira que a Constituição disponha expressamente sobre o domínio reservado ao legislador parlamentar, através de uma técnica com dois elementos essenciais. Por um lado, a identificação das matérias reservadas, umas sujeitas a reserva absoluta (artigo 164.º), e por isso da exclusiva competência da Assembleia da República, e outras a uma reserva relativa (artigo 165.º), sobre as quais Governo pode legislar, mas apenas sob autorização parlamentar concedida nos termos regulados nos n.os 2 a 4 do artigo 165.º da Constituição. Por outro lado, através da definição do alcance da reserva, numa gradação que compreende três níveis: um nível mais exigente, em que toda a disciplina legislativa da matéria é reservada à Assembleia da República; um nível menos exigente, em que a reserva de competência legislativa daquele órgão se limita ao regime geral; e um nível mínimo, em que a competência reservada cinge-se às bases gerais ou bases do regime da matéria (v., entre muitos outros, os Acórdãos n.os 3/89, 285/92, 793/2013, 538/2015 e 157/2018).
A disposição expressa das matérias e dos níveis da competência legislativa reservada ao órgão parlamentar torna, não apenas largamente redundante, como até mesmo inconciliável com a arquitetura constitucional do poder legislativo, o recurso a uma ideia de essencialidade como critério geral da reserva de lei. A «teoria da essencialidade» (Wesentlichkeitstheorie), desenvolvida pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha a partir da decisão de 1972 sobre direitos fundamentais dos reclusos (BVerfGE 33, 1), teve como ponto de partida a circunstância de a Lei Fundamental de Bona não consagrar nenhuma cláusula geral de reserva de lei, limitando-se a remeter para lei federais, leis gerais ou fundamentos legais a regulamentação, concretização e restrição de alguns direitos fundamentais - v.g., artigos 2.º(2) («estes direitos [à vida, integridade física e liberdade] só podem ser restringidos por lei»), 4.º(3) («[a] matéria [da objeção de consciência ao serviço militar] será regulada por uma lei federal») e 5.º(2) («[e]stes direitos [à liberdade de opinião, artística e científica] têm por limites as disposições das leis gerais»).
Daí emergiram duas grandes questões.
Em primeiro lugar, a de saber se as referências meramente pontuais à lei deveriam ser interpretadas como aplicações de um princípio geral de reserva de lei, ainda que implícito, ou como um regime de reservas especiais ou parciais. Em segundo lugar, se a reserva geral de lei - a admitir-se que a ordem constitucional acolhe implicitamente tal princípio - constituía uma reserva material total (Totalvorbehalt) ou uma reserva apenas do essencial, constituindo neste caso um aggiornamento do conceito de reserva de lei (Eingriffsvorbehalt) herdado da tradição do direito público do período da monarquia dualista. A jurisprudência constitucional seguiu este último caminho (v., entre muitos acórdãos, BVerfGE 45, 400 [1977]; BVerfGE 78, 249 [1988]; BVerfGE 98, 218 [1998]; BVerfGE 116, 24 [2006]; e BVerfGE 150, 1 [2018]), invocando a ideia de «essencialidade» simultaneamente para estender a reserva de lei ao domínio das «relações especiais de poder» (v.g., função pública, forças armadas, estabelecimentos prisionais e sistema educativo) e a outros domínios de vida dela subtraídos pelas noções oitocentistas de «matéria de lei» - como as de «liberdade e propriedade», «status negativus» ou «eficácia externa» - e limitar o seu alcance de forma a prevenir a sobrecarga do parlamento com decisões de escassa relevância política e possibilitar o exercício de um poder regulamentar comensurável com a magnitude e a complexidade da atividade administrativa contemporânea.
A «teoria da essencialidade» opera, pois, como um sucedâneo jurisprudencial de um regime constitucional de reserva de lei parlamentar; mais do que um critério de decisão, trata-se de uma orientação geral paulatinamente sedimentada e concretizada através de vários critérios no acervo decisório do Tribunal Constitucional Federal. As suas principais funções são aquelas que, no direito constitucional português, encontram-se em larga medida asseguradas pelo regime da reserva de lei parlamentar que consta dos artigos 164.º e 165.º da Constituição: a delimitação das matérias sob reserva de lei e a determinação do nível de regulação legal correspondente. Com efeito, ao contrário do que sucede com a Lei Fundamental de Bona, o texto constitucional português responde diretamente ao problema de saber que domínio se encontra reservado à lei parlamentar - ou, quando tal seja possível, a decreto-lei autorizado. Por outras palavras, a reserva de certa matéria ao legislador parlamentar e a determinação do alcance da mesma - reserva total, regime geral ou bases do regime - exprime um juízo constitucional sobre a respetiva essencialidade. Nas matérias sob reserva total de lei, em particular, como o Tribunal Constitucional há muito vem afirmando, «só é permitida a intervenção do legislador, ou a do Governo, quando munido de autorização legislativa. O regulamento [...] só é permitido quando for de simples execução» (Acórdão 74/84).
De resto, a disposição da reserva de lei formal é mesmo um elemento indispensável de um sistema de atos legislativos como o nosso, visto que só assim se pode restringir o âmbito de aplicação da regra geral da competência legislativa concorrente. Note-se que, na ausência de previsão constitucional de uma reserva de lei parlamentar de âmbito definido, o Governo poderia exercer a competência legislativa própria para emitir regulação primária e revogar livremente legislação parlamentar em quaisquer matérias, o que, para além de gerar uma tensão latente no funcionamento do sistema político, sobretudo quando o executivo não gozasse de apoio maioritário na Assembleia da República, degradaria a função parlamentar a um tal ponto que ficariam seriamente comprometidos o respeito pelo princípio da separação de poderes e a legitimidade democrática da ordem jurídica. Por isso, a «teoria da essencialidade», nos moldes abrangentes em que se desenvolveu extramuros, é estranha ao nosso sistema, em que a matéria e o alcance da reserva de lei parlamentar são reguladas no texto constitucional. Mas pode ainda assim - como adiante veremos (ponto 12) - desempenhar um papel subsidiário de grande relevância na densificação das margens de alguns conceitos nucleares do regime constitucional, como os de «reserva total» e «execução das leis».
10 - Apesar de ter sido aprovada ao abrigo da alínea c) do artigo 161.º da Constituição - a norma de competência legislativa genérica da Assembleia da República -, a LIEG é inequivocamente uma lei em matéria de «direitos, liberdades e garantias», objeto da reserva de competência legislativa parlamentar, ainda que meramente relativa, consagrada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Com efeito, o diploma «estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características» (artigo 1.º) e reconduz o exercício deste(s) direito(s) ao livre desenvolvimento da personalidade e à identidade pessoal do titular, que são objeto de direitos fundamentais expressamente consagrados no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição e inseridos no catálogo de direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I. A LIEG, em boa verdade, é toda ela uma lei em matéria de direitos, liberdades e garantias, uma vez que se destina a regulamentar o exercício de um direito fundamental com essa natureza. Acresce que o artigo 12.º, de que constam as normas impugnadas pelos requerentes, ao estabelecer o regime do exercício destes direitos em todos os níveis e ciclos de estudo do sistema educativo - compreendendo instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas (n.º 3 do artigo 1.º da Lei 46/86, de 14 de outubro [Lei de Bases do Sistema Educativo]) -, se projeta, em maior ou menor medida, sobre a liberdade de aprender e ensinar, consagrada no n.º 1 do artigo 43.º da Constituição. Ora, a reserva de lei nesta matéria abrange todo o regime. Como se explica no Acórdão 538/2015:
«Em matéria de direitos, liberdades e garantias [...] a reserva material de lei assume[-se] como uma reserva global ou integral. Dito de outra forma: a exclusão da intervenção regulamentar nos termos supra propostos não se refere apenas às restrições a direitos, liberdades e garantias, mas a toda a regulamentação destes direitos, independentemente de se pretender instituir um regime mais restritivo ou ampliativo do que o já existente. Trata-se de reconhecer domínios normativos em que a posição funcional do princípio da legalidade da administração visa, sobretudo, dar acolhimento às exigências decorrentes do princípio democrático, não se limitando a exigências garantísticas ou de racionalidade da atividade administrativa (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 248/86, 307/88, 327/92, 128/00, 255/02, 289/04 e 620/07).»
Importa enfatizar dois aspetos, ambos aflorados no excerto transcrito, quanto ao alcance da reserva de lei neste domínio. Em primeiro lugar, não se confunde com a reserva de lei material no regime das restrições aos direitos, liberdade e garantias a que se referem os n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. A reserva de lei formal - no sentido estrito de reserva de lei parlamentar - que consta da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º abrange toda a matéria dos direitos e não apenas as restrições de direitos. Como se lê no Acórdão 248/86: «[M]esmo na parte em que [...] não contenha uma verdadeira restrição ao direito de livre expressão do pensamento [...] verifica[-se] a inconstitucionalidade, pois a própria regulamentação de direitos, liberdades e garantias deve ser feita por lei ou com base em lei, não podendo ficar para regulamentos [...] mais do que "pormenores de execução"» (no mesmo sentido, entre muitos outros, v. os Acórdãos n.os 161/99, 128/00, 255/02, 280/2017 e 73/2019). Assim, do facto de a LIEG não restringir - antes regulamentar o exercício de - um direito de liberdade, não se pode retirar que extravasa o domínio da reserva de lei formal, de modo a tornar indispensável indagar se, no uso do poder regulamentar para que reenvia o n.º 3 do artigo 12.º do diploma, os membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação não terão necessariamente de emitir normas restritivas de outros direitos, liberdades e garantias e se, sendo esse o caso, se pode dizer que a norma de competência tem ela própria um alcance restritivo de direitos. Do ponto de vista da reserva de lei formal, todo esse raciocínio é ocioso: a matéria reservada é a dos direitos e não a das restrições.
Em segundo lugar, note-se que a reserva de lei não abrange apenas as dimensões defensivas ou negativas dos direitos, liberdade e garantias; sem prejuízo de nos direitos fundamentais dessa categoria predominar a função de defesa da pessoa contra os atos ablativos do poder público, a matéria reservada é a dos direitos como um todo, na sua complexidade estrutural, abrangendo não apenas deveres estatais de abstenção, como também deveres de proteção e deveres de promoção. No Acórdão 75/2010, chegou a dizer-se que a reserva de lei abrange até mesmo as dimensões estritamente objetivas dos direitos de liberdade: «[A] posição do Tribunal segundo a qual a norma do artigo 24.º, n.º 1, da CRP, protege a vida humana intra-uterina como valor ou bem objectivo, sem concomitante atribuição de um verdadeiro direito subjectivo fundamental, não retira ao regime jurídico sobre a interrupção voluntária da gravidez o carácter de disciplina normativa em matéria de direitos, liberdades e garantias, para efeitos de delimitação do âmbito de reserva de lei.» Outra é a questão de saber se a extensão da reserva de lei a direitos fundamentais de «natureza análoga» aos direitos, liberdade e garantias - que o Tribunal Constitucional há muito vem admitindo no que respeita, pelo menos, ao «núcleo essencial» dos direitos em causa (v., entre muitos, os Acórdãos n.os 373/91, 128/00, 289/04 e 75/2013) -, não incide exclusivamente sobre a dimensão defensiva destes. Nesse domínio, por definição não expressamente regulado, parece incontornável a invocação de ideias gerais sobre a estrutura dos direitos fundamentais e critérios de essencialidade da reserva de lei. Pelo contrário, tratando-se de direitos, liberdades e garantias, a reserva abrange expressamente todas as dimensões do direito em causa.
O n.º 1 do artigo 12.º prevê a adoção pelo Estado de medidas no sistema educativo que «promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas». A noção de que compete ao poder público «promover o exercício» de direitos de liberdade parece ser uma extravagância. É ponto assente que a liberdade religiosa não implica um correlativo dever estatal de promoção do proselitismo ou que o direito de deslocação não implica um correlativo de estatal de promoção do nomadismo; na verdade, quaisquer medidas de promoção com esse sentido consubstanciariam um desrespeito pela autonomia individual e uma violação do pluralismo mundividencial que todos os direitos, liberdade e garantias comportam. Porém, compreende-se que o legislador, ao usar esta expressão, tenha tido em vista a promoção das condições do exercício do direito no sistema educativo, sobretudo se tivermos em conta que, não sendo a escola um universo anómico e solipsista, e sendo a autodeterminação da identidade de género uma realidade em larga medida relacional - que reclama o reconhecimento pelos demais membros da comunidade de uma afirmação de identidade e personalidade do titular -, o seu exercício efetivo depende da verificação de condições que não se inscrevem nos ritmos de vida habituais e da adoção de medidas que cabe ao poder público assegurar.
Saber se esses deveres de prestação têm conteúdo exclusivamente positivo ou se não compreendem também deveres de abstenção, que no caso dos estabelecimentos de ensino públicos sempre seriam correlativos de uma dimensão defensiva do direito, é uma questão irrelevante em face do alcance do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. A circunstância de o artigo 12.º regular o exercício de um direito de liberdade em todos os níveis do sistema educativo constitui, em boa verdade, razão suficiente para se concluir que a matéria está sob reserva total de lei parlamentar. Com efeito, reitere-se que «[a] própria regulamentação (e não apenas a restrição) dos direitos, liberdades e garantias - como também se escreveu no Acórdão 174/93 - tem de ser feita por lei, ou então com base na lei, mas sempre em termos de aos regulamentos da Administração não poder caber mais do que o estabelecimento de meros pormenores de execução». Assim, importa tratar a questão de saber se o poder regulamentar para o qual reenvia o n.º 3 do artigo 12.º da LIEG, destinado a adotar as «medidas administrativas necessárias para a implementação do n.º 1», diz respeito unicamente a «pormenores de execução» que não contendem com a «exclusiva competência da Assembleia da República» para a «emissão de normação primária» (Acórdão 195/89) neste domínio.
11 - A jurisprudência constitucional sobre reserva de lei é constante no sentido de que, mesmo nas matérias sob reserva total, se admite a edição de regulamentos de «simples execução» ou de «mera execução», ao abrigo da alínea c) do artigo 199.º da Constituição, que comete ao Governo, no exercício da função administrativa, a competência para «[f]azer os regulamentos necessários à boa execução das leis.» No Acórdão 307/88, que segue a orientação fixada no Acórdão 74/84, distingue-se, em termos que têm sido sistematicamente reiterados nos arestos posteriores (v., entre muitos outros, os Acórdãos n.os 397/92, 397/93, 289/2004 e 538/2015), este poder de regulamentação executiva de um outro poder, por natureza excluído em matéria de direitos, liberdades e garantias, de regulamentação independente:
«[A] reserva de lei em matéria de direitos, liberdades e garantias constitui] um dos limites do poder regulamentar, porquanto a Administração não poderá editar regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa reserva, com ressalva dos regulamentos executivos, isto é, aqueles que se limitam a esclarecer e precisar o sentido das leis ou de determinados pormenores necessários à sua boa execução».
O conceito de «regulamento de execução» sugerido por esta jurisprudência é francamente restritivo. Trata-se de normas sem conteúdo inovatório algum em relação ao diploma legal que se destinam a regulamentar. A sua função - denotada pela expressão constitucional, «boa execução das leis» - é a de garantir a uniformidade da aplicação da lei pelos órgãos administrativos e contribuir para a segurança jurídica dos particulares, o que é tanto mais importante quanto menor seja a clareza e precisão das disposições legais. As normas regulamentares, neste sentido, podem ser úteis, mas não são necessárias, porque a lei é materialmente autossuficiente; ou são apenas necessárias para a boa execução - não para a execução sic et simpliciter - da lei.
Numa leitura um pouco mais aberta, consentida ainda pela jurisprudência constitucional, admite-se que os regulamentos podem ir além da lei que executam - nas matérias, bem se entenda, sob reserva total - no sentido de conterem normas técnicas ou outros pormenores de que dependa a plena exequibilidade do regime legal. Tudo o mais é «normação primária» (Acórdão 195/89) reservada ao ato legislativo. Esta orientação pode cristalizar-se através do seguinte teste: se, perante a questão de saber qual o regime material relativo a um certo sector ou objeto incluído na matéria reservada, a resposta encontra-se também em instrumentos regulamentares, é certo que estes extravasam o universo restrito da «mera execução» ou «simples execução», invadindo a reserva de lei. Dito de outro modo, centrado na lei e não no regulamento, se aquela reenvia para este algum aspeto do regime material a que respeita, de modo que a descrição desse regime não dispensa a referência a normas regulamentares, estaremos perante uma violação, pelo próprio legislador, da reserva de lei formal.
Ora, é evidente que o regime jurídico relativo aos deveres estatais de promoção das condições do exercício, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, a que respeitam os n.os 1 e 3 do artigo 12.º da LIEG, está bem longe de ser materialmente completo ou autossuficiente. Pelo contrário, trata-se de uma espécie de «regime-quadro» - constante do n.º 1 - que devolve ao poder regulamentar - mediante o n.º 3 - uma margem amplíssima de discricionariedade para a definição do conteúdo das medidas de proteção ou promoção do exercício dos direitos em causa.
A indeterminação do regime releva essencialmente de três aspetos.
Em primeiro lugar, os tipos de medidas previstos no n.º 1 do artigo 12.º são exemplificativos, como decorre do uso do advérbio «nomeadamente», o que evidencia o carácter aberto da regulação legal do objeto do preceito - «medidas de proteção» em matéria de «educação e ensino». Em segundo lugar, os tipos de medidas previstos nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 12.º são fortemente indeterminados, quer seja porque os conceitos que os traduzem são muito vagos - destacando-se, neste aspeto, a previsão na alínea c) de medidas que desenvolvam «[c]ondições para uma proteção adequada» -, quer seja porque o seu sentido é o da atribuição ao poder regulamentar de uma faculdade de decisão largamente discricionária - «[m]edidas de prevenção e de combate contra a discriminação» [alínea a)], «[m]ecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco» [alínea b)] e «formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo» [alínea d)]. Em terceiro lugar, o diploma não contém nenhuma definição dos conceitos de «identidade de género», «expressão de género» e «características sexuais» - os objetos dos direitos cujo exercício se destina a regulamentar -, uma omissão tanto mais relevante quanto é certo que não se trata de noções minimamente estabilizadas no direito português ou em direitos estrangeiros próximos do nosso, o que agrava de forma significativa a indeterminação do regime legal. Quanto a este último aspeto, note-se que da Proposta de Lei 75/XIII constavam definições legais de termos como «sexo», «género», «identidade de género», «expressão de género», «características sexuais», «transgénero» e «intersexuais» (artigo 2.º); a circunstância de a LIEG não conter uma disposição de tal natureza evidencia a dificuldade de definir os conceitos em causa e a fluidez da realidade que denotam, gerando grande incerteza quanto ao seu alcance no diploma.
O juízo sobre a incompletude material do disposto na lei e o carácter inovatório do poder regulamentar para o qual a mesma reenvia é corroborado pela leitura do Despacho 7247/2019, de 16 de agosto, através do qual, no exercício de poderes delegados pelo Ministro da Educação e pela Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade e o Secretário de Estado da Educação, procuram «estabelecer tais medidas administrativas que possam contribuir para garantir o livre desenvolvimento da personalidade das crianças e jovens e para a sua não discriminação em ambiente escolar, garantindo a necessária articulação com os pais, encarregados de educação ou representantes legais dos mesmos». A regulamentação das alíneas a), b) e d) do n.º 1 do artigo 12.º da LIEG consta, respetivamente, dos artigos 3.º, 4.º e 6.º do Despacho 7247/2019, de 16 de agosto. Embora estas disposições tenham um grau de indeterminação considerável, são inovatórias em dois planos distintos. Por um lado, concretizando o conteúdo das medidas a adotar pelos estabelecimentos de ensino, como sejam as de «[p]romover ações de informação/sensibilização» (n.º 1 do artigo 3.º), «[e]stabelecer mecanismos de disponibilização de informação» (n.º 2 do artigo 3.º), «[d]efinir canais de comunicação e deteção» (n.º 1 do artigo 4.º), «[p]romover a avaliação da situação» (n.º 2 do artigo 4.º) e «[p]romover a organização de ações de formação [...] que permitam ultrapassar a imposição de estereótipos e comportamentos discriminatórios». Por outro lado, cometendo às administrações escolares um amplo poder para definir as medidas concretas a adotar, poder este que não tem respaldo no disposto no n.º 1 do artigo 12.º da LIEG, uma vez que este preceito - ao contrário do n.º 2 - se dirige exclusivamente ao Estado; subentendendo-se, tendo em conta que se trata da ação estatal sobre todo o sistema educativo, que a referência só pode ser ao Governo.
O carácter inovatório da regulamentação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º da LIEG, que consta do artigo 5.º do Despacho 7247/2019, de 16 de agosto, é ainda mais ostensivo. Com a exceção do disposto no n.º 1, que é largamente recondutível ao n.º 2 do artigo 3.º da LIEG, toda a matéria deste artigo é de «normação primária», no sentido que a essa expressão tem sido dada na jurisprudência constitucional. O n.º 2 comete às escolas, no âmbito de «medidas conducentes à adoção de práticas não discriminatórias», o dever de emitir orientações no sentido de: «[f]azer respeitar o direito da criança ou jovem a utilizar o nome autoatribuído em todas as atividades escolares e extraescolares que se realizem na comunidade escolar» [alínea a)], o que constitui uma intervenção em todo o vasto universo de aplicação de normas de comunicação (e não apenas em atos, procedimentos e documentos administrativos); «[p]romover a construção de ambientes que na realização de atividades diferenciadas por sexo permitam que se tome em consideração o género autoatribuído» [alínea b)], o que abrange, por exemplo, muito do que respeita à organização do desporto escolar; e [s]er respeitada a utilização de vestuário no sentido de as crianças e dos jovens poderem escolher de acordo com a opção com que se identificam» [alínea c)], com evidentes implicações nos estabelecimentos de ensino em que é obrigatório o uso de fardamento diferenciado em função do sexo. Por fim, o n.º 3 do artigo 5.º dispõe que, «[a]s escolas devem garantir que a criança ou o jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade.»
Se a lei ocupasse todo o espaço de regulação que lhe está reservado em matéria de direitos, liberdades e garantias, estas normas administrativas de carácter inovatório seriam ilegais. Como a lei não vai além da definição do quadro ou do sentido da regulação, deixando uma larga margem ao poder administrativo para o qual reenvia a sua regulamentação, é inevitável concluir que o vício é da própria lei, que fica aquém do que constitucionalmente se lhe encontra reservado. Na verdade, é no Despacho 7247/2019, de 16 de agosto - e não no diploma legal que este regulamenta -, que se encontra quase toda a substância do regime jurídico do exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas no sistema educativo. O regime legal não tem, assim, a densidade comensurável com a exigência de «reserva total» imposta pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição e a regulamentação para a qual reenvia excede o domínio estreito da «mera execução» ou «simples execução», que - adstrita a meros «pormenores» - não contende com a completude material da lei.
Acresce que a mesma jurisprudência constitucional, antiga e reiterada, que acolhe uma concepção tão estreita do poder regulamentar de execução em matéria sob reserva total de lei parlamentar, contém ainda indicações no sentido de que, «[p]or força da preeminência legislativa da Assembleia da República, cujo fundamento é o próprio princípio democrático-representativo, em caso de dúvida, deve definir-se a interpretação mais favorável ao alargamento da sua competência legislativa» (Acórdão 25/88). Este entendimento baseia-se na ideia de que, num sistema de atos normativos relativamente desequilibrado a favor do executivo, em razão da atribuição a este de competência legislativa própria, o risco maior é o da compressão excessiva do domínio sujeito a reserva de lei parlamentar. Todos os dados apontam, deste modo, no sentido de que as normas constantes nos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da LIEG são inconstitucionais, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdade e garantias.
12 - Resta determinar se uma conceção menos adstringente do poder regulamentar de execução conduz a conclusão idêntica quanto à conformidade constitucional das normas sindicadas. Cabe notar, a este propósito, que entre os regulamentos independentes (ou autónomos) e os regulamentos executivos no sentido mais estrito do termo - a dicotomia referida na jurisprudência constitucional que temos vindo a citar - há toda uma região intermediária ocupada por regulamentos complementares. Tais regulamentos podem tratar do desenvolvimento de bases ou princípios legais, caso em que são desautorizados pela alínea c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, que reserva esse domínio a decreto-lei; mas podem também destinar-se a mera concretização das opções do legislador, em termos ainda compatíveis com um conceito alargado e flexível de «execução».
Ora, como o conceito de concretização é extenso e gradativo, a demarcação da matéria legal - em domínios de incidência de uma cláusula de «reserva total» - não pode deixar, a seguir-se este entendimento, de invocar alguns critérios ou fatores de ponderação da essencialidade da lei parlamentar, não com o larguíssimo alcance que desempenha num sistema constitucional que não dispõe expressamente sobre as matérias e os níveis da reserva de lei - como é o alemão -, mas como método subsidiário de solução de casos de fronteira num sistema com as características peculiares do nosso. Trata-se, em suma, da questão de saber quais os limites da concretização regulamentar de diplomas legais que incidem sob matéria integralmente reservada à competência legislativa da Assembleia da República, no pressuposto de que é possível, em princípio, reconduzir as normas administrativas dessa natureza a uma noção constitucionalmente adequada de execução das leis.
Tem interesse pôr em evidência que, ao contrário do que sucedia no período da monarquia constitucional, na generalidade das democracias constitucionais contemporâneas não há nenhuma descontinuidade abrupta entre normas legais e administrativas, do ponto de vista dos valores relevantes que umas e outras encarnam; as diferenças são de grau ou relativas. Com efeito, as constituições oitocentistas estabeleceram regimes de compromisso entre a soberania nacional e o princípio monárquico, de conteúdo variável, em matéria de organização dos poderes, consoante a força política dos respetivos protagonistas - como se pode verificar, no caso português, pela comparação entre os textos da Constituição de 1822, de pendor parlamentar, e da Carta Constitucional de 1826, de pendor monárquico. Apesar dessa geometria variável dos poderes públicos, o poder executivo cabia quase invariavelmente ao rei e a ministros ou secretários da sua confiança, de modo que a delimitação das esferas de competência legislativa e administrativa, nomeadamente quando esta se exercia através da emissão de normas, consubstanciava o nó górdio da transação constitucional entre a legitimidade representativa do parlamento e a legitimidade hereditária do monarca.
Pelo contrário, numa democracia constitucional, «[a] soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição» (n.º 1 do artigo 3.º) e «[o] poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição» (artigo 108.º). Tal poder originário exerce-se através dos «órgãos de soberania» (artigo 110.º) - entre os quais a Assembleia da República e o Governo - que na sua esfera de atuação representam o seu titular (artigo 111.º), no sentido de que «tornam presente» ou «põem em cena» um sujeito constitucional por natureza oculto («o povo»), participando todos eles de um radical de legitimidade política comum («soberania popular») e ocupando uma posição de paridade na ordem constitucional («órgãos de soberania»). As diferenças são ainda menores se considerarmos que o Governo responde perante a Assembleia da República (artigo 190.º), que numa democracia de partidos a separação constitucional entre os dois órgãos é indissociável da dinâmica das forças políticas subjacentes e que o Primeiro-Ministro é normalmente o líder do partido mais votado, de uma coligação maioritária de blocos ou de um entendimento político dominante no Parlamento. Em suma, o poder executivo goza de um grau considerável de legitimidade democrática.
Tudo isto aponta no sentido da relativização do dualismo clássico entre as funções de legislar e administrar, que se traduz numa certa continuidade constitucional entre normas legislativas e regulamentares. A observação é ainda mais pertinente num sistema, como o nosso, em que o executivo tem competência legislativa própria, exercida através de um tipo de ato ostensivamente híbrido, que reúne predicados executivos («decreto») e legislativos («lei»). Por isso, as diferenças entre normas legais e administrativas devem agora procurar-se sobretudo nas qualidades orgânicas e procedimentais das várias categorias de atos normativos e na ponderação global de fatores relevantes de legitimidade política e adequação funcional.
A este respeito, importa salientar quatro aspetos fundamentais.
Em primeiro lugar, a preeminência legislativa da Assembleia da República, que se revela na própria conceção de uma reserva de lei parlamentar, fundamenta-se no grau superlativo de legitimidade democrática do órgão, no essencial recondutível a três virtudes ou qualidades dele privativas: o pluralismo da representação política, a publicidade do debate parlamentar e o carácter dialético da deliberação. Em segundo lugar, os atos normativos do Governo - decretos-leis, decretos regulamentares e outros tipos de regulamento - têm mérito diferenciado, do ponto de vista da legitimidade democrática e do princípio da separação de poderes, em função dos diversos procedimentos através dos quais são gerados e da intervenção de órgãos de controlo político ou judicial. Em terceiro lugar, o valor marginal da lei parlamentar deprecia-se, ceteris paribus, na razão direta do incremento da densidade de regulação - ou seja, ao longo da progressão gradual do essencial para o pormenor -, podendo mesmo ter um efeito global negativo se a Assembleia da República for sobrecarregada com questões secundárias que consomem os seus meios de deliberação e para cuja resposta tem menor aptidão funcional do que o executivo. Por fim, note-se que a matéria dos direitos, liberdade e garantias é extraordinariamente vasta e compreende direitos de largo alcance - como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a reserva de intimidade da vida privada ou a liberdade de aprender e ensinar -, que podem ser comprimidos ou conformados de plúrimas formas e com intensidades muito variáveis, reclamando juízos diferenciados quanto ao valor acrescentado da deliberação parlamentar.
Estas considerações prestam-se a ser traduzidas numa pluralidade de fatores que devem ser ponderados na demarcação tão precisa quanto possível do domínio reservado à lei em matéria de direitos, liberdades e garantias ou, dizendo as coisas do ponto de vista simétrico, na definição rigorosa dos limites que nessa matéria se impõem ao poder de concretização regulamentar. Primeiro fator de ponderação: a reserva de lei é mais exigente quando a matéria reservada integra o objeto principal do diploma do que quando se situa na sua periferia ou é atingida de forma acidental. Segundo fator de ponderação: quanto maior a novidade política ou o carácter polémico do objeto de regulação, maior é o valor do pluralismo político, da publicidade do debate e da dialética deliberativa privativos da lei parlamentar. Terceiro fator de ponderação: quanto menores as qualidades procedimentais do ato normativo para o qual o diploma legal reenvia a sua regulamentação - decreto-lei, decreto regulamentar ou outros tipos de regulamento -, mais apertada deve ser a exigência de reserva de lei. Quarto fator de ponderação: quanto maior a necessidade, atenta a morfologia do objeto de regulação, de uma normação flexível, com características de proximidade, mutabilidade e adaptabilidade, maior é a adequação funcional do poder regulamentar.
A ponderação destes fatores não deixa dúvidas de que as normas constantes nos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da LIEG são inconstitucionais, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, pela simples razão de que apontam univocamente nesse sentido. O diploma tem por objeto único o regime do exercício de determinados direitos fundamentais com essa natureza; regula uma matéria nova que tem provocado debate público - o exercício desses direitos por crianças e jovens nos estabelecimentos de ensino; reenvia para simples despacho ministerial a sua regulamentação; e as soluções que se impõem neste domínio, como revela o conteúdo do despacho, têm um âmbito geral e uma vocação de permanência perfeitamente compagináveis com a sua inclusão numa lei. Neste contexto, é muito elevado o nível de exigência quanto à extensão da regulação legal e muito estreito o espaço que pode ser reenviado ao poder regulamentar, de todo incompatível com as disposições extremamente vagas e abertas do n.º 1 do artigo 12.º da LIEG, com o carácter de um «regime-quadro», senão mesmo de meras «bases» ou «princípios» de um regime jurídico. Assim, nem a admissibilidade de regulamentos de concretização em matéria de direitos, liberdades e garantias, nos termos aqui defendidos, obsta a que se conclua que as normas que constituem o objeto do presente processo violam o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
III - Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei 38/2018, de 7 de agosto, por violação da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Atesto o voto do Conselheiro Teles Pereira e o voto de vencido do Conselheiro Lino Ribeiro, que não assinam porque participam na sessão por videoconferência. Gonçalo de Almeida Ribeiro.
Lisboa, 29 de junho de 2021. - Gonçalo de Almeida Ribeiro - Pedro Machete - Maria de Fátima Mata-Mouros - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita - Fernando Vaz Ventura (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto conjunta) - Mariana Canotilho (vencida, nos termos da declaração de voto conjunta) - José João Abrantes (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Assunção Raimundo (vencida, nos termos da declaração de voto conjunta) - João Pedro Caupers.
Declaração de voto
Vencidos, pelas seguintes razões fundamentais:
O Acórdão parte, no nosso entender, de uma premissa totalmente equivocada.
O presente Acórdão do Tribunal Constitucional diz respeito à questão do exercício do direito fundamental à autodeterminação da identidade de género e à expressão de género, por parte de crianças, em contexto escolar. Contudo, um leitor menos atento, poderá julgar que se trata de uma decisão sobre um problema de reserva de lei, atinente, apenas, à divisão de poderes entre o parlamento e o executivo em matéria de direitos, liberdades e garantias. Diga-se, desde já, que nada de fundamental nos opõe ao que no Acórdão se escreve sobre essa matéria. Temos, porém, um dissenso básico, e profundo, em relação à premissa, subentendida, em que assenta todo o raciocínio da decisão: aquela segundo o qual o diploma legal em que se inserem as normas questionadas consagra e conforma (veja-se o ponto 6 do Acórdão) o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa, como se este fosse criado por lei, não existindo, antes disso, no ordenamento jurídico-constitucional (quer no plano estritamente nacional, da CRP, quer no plano da interconstitucionalidade, no espaço europeu). Esta divergência fundamental conduz-nos, pois, a uma análise bastante diferente da que é sufragada no Acórdão acerca da problemática submetida a este Tribunal.
1 - O direito fundamental à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa existe, tendo por fundamento o disposto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição Portuguesa.
O presente Acórdão, apesar de aparentemente neutro, nunca afirma o que nos parece dever ser - este sim - o ponto de partida básico de toda a argumentação sustentadora da decisão a tomar: a afirmação de que o direito fundamental à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa existe, tendo por fundamento o disposto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição Portuguesa. Na verdade, esta afirmação não pode ser atribuída apenas ao legislador que aprovou a LIEG (veja-se o ponto 10. do Acórdão), constituindo antes uma premissa interpretativa básica que aqui queremos deixar expressa.
Efetivamente, parece-nos inequívoco que, no ano de 2021, a autodeterminação da identidade de género e a expressão de género não podem deixar de ser entendidas como dimensões da identidade pessoal, do livre desenvolvimento da personalidade, e dos direitos à imagem e à palavra, nos termos do artigo 26.º, n.º 1, da CRP. Seguindo aquela que tem sido, aliás, a posição deste Tribunal sobre este tipo de matérias (veja-se, por exemplo, o Acórdão 359/2009), não podemos aceitar o entendimento segundo o qual a identidade objeto de tutela constitucional envolve, em todas as suas declinações, uma petrificação do conceito tal como este foi entendido há décadas, ou como é entendido, hoje, por um determinado grupo de cidadãos, independentemente do seu caráter maioritário ou minoritário. Numa sociedade democrática, aberta e plural, a expressão da identidade individual é um direito fundamental de natureza e exercício pessoalíssimos, devendo, naturalmente, abarcar toda a diversidade humana.
Esta leitura constitucional das questões relacionadas com a identidade de género e a expressão de género está, aliás, em linha com a que vem sendo adotada nos ordenamentos constitucionais congéneres do nosso, quando confrontados com problemáticas paralelas à que ocupou o Tribunal Constitucional. Veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão, de 10 de outubro de 2017 (BVerfG - 1 BvR 2019/16), no qual se afirmou que o direito geral de personalidade também protege a identidade de género, que é normalmente um aspeto constitutivo da personalidade de um indivíduo, ao mesmo tempo que reconheceu que também devem ser protegidas contra a discriminação, à luz do mesmo direito, as pessoas que não se identificam como masculinas ou femininas. Do mesmo modo, a Corte Costituzionale italiana admitiu, na Sentença n.º 221 de 2015, uma evolução cultural e jurídica no sentido do reconhecimento do direito à identidade de género de género como um elemento constitutivo do direito à identidade pessoal, pertencente plenamente à esfera dos direitos fundamentais da pessoa. Duas décadas antes, em 1996, o TJUE afirmará já, na decisão P v S and Cornwall County Council (processo C-13/94), que o ordenamento jurídico europeu se opõe a tratamentos discriminatórios fundados na assunção de uma conduta não estereotipada, que diferia da expressão padrão do género por parte dos indivíduos de um determinado sexo, incluindo-os na categoria proibida de discriminação em razão do sexo.
No plano internacional, embora não exista um tratado específico relativo aos direitos dos indivíduos trans e intersexo, um número crescente de atores e instituições de defesa dos direitos humanos tem vindo a referir-se à identidade de género, expressão de género e proteção das características sexuais como verdadeiros direitos humanos, que assumem, no plano interno dos Estados, a natureza de direitos fundamentais. Veja-se, por exemplo, a ação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, materializada na campanha da ONU Livres & Iguais, contra a homofobia e a transfobia. Atente-se ainda na instituição, em 2016, da figura do Perito Independente das Nações Unidas para a proteção contra violência e discriminação baseada na orientação sexual e identidade de género, cujo mandato foi renovado por larga maioria em 2019.
No plano regional, o direito à autodeterminação de género e expressão de género é reconhecido no âmbito do Conselho da Europa, cujo Comité de Ministros adotou, em março de 2010, a Recomendação CM/Rec(2010)5, sobre medidas para o combate à discriminação em razão da orientação sexual ou da identidade de género. Neste documento, tem-se em consideração, desde logo, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de outras jurisdições internacionais que reconhecem a proibição da discriminação em razão da orientação sexual e que contribuem para a melhoria da proteção dos direitos das pessoas transgénero; e, ainda, o princípio segundo o qual não podem ser invocados nem os valores culturais, tradicionais ou religiosos nem as regras de uma "cultura dominante" para justificar os discursos de ódio ou qualquer outra forma de discriminação, incluindo as que se fundam na orientação sexual ou na identidade de género. Mais tarde, em 2015, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou a Resolução 2048, sobre discriminação contra pessoas transgénero na Europa, que recomenda aos Estados-Membros, entre outras medidas, o reconhecimento jurídico da identidade de género através de procedimentos de mudança da menção do sexo e alteração de nome próprio rápidos, transparentes, acessíveis e baseados na autodeterminação, assim como a abolição da esterilização e de outros tratamentos médicos, incluindo a apresentação de um diagnóstico de saúde mental, como requisitos legais para aquele procedimento.
Os direitos à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa, bem como o seu específico modo de exercício pelas pessoas transexuais ou transgénero, encontram também eco no ordenamento jurídico da União Europeia. Veja-se a Resolução do Parlamento Europeu, de 28 de setembro de 2011, sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de género nas Nações Unidas, que convidou a Comissão Europeia e a Organização Mundial de Saúde a "retirar os transtornos de identidade de género da lista de transtornos mentais e comportamentais e a velar por uma reclassificação não-patologizante nas negociações sobre a 11.ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11)"; o Discurso sobre o estado da União, proferido pela Presidente Ursula von der Leyen, na sessão plenária do Parlamento Europeu, em 16 de setembro de 2020, na qual aquela afirmou que "ser o que somos não é uma questão de ideologia. É a nossa identidade. E ninguém pode privar-nos dela", anunciando a primeira Estratégia da EU para a igualdade de pessoas lésbicas, gay, bissexuais, trans, não-binárias, intersexo e queer (LGBTIQ); a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social europeu e ao Comité das Regiões, de 12 de novembro de 2020, sobre União da Igualdade: Estratégia para a igualdade de tratamento das pessoas LGBTIQ 2020-2025; a Resolução do Parlamento Europeu, de 11 de março de 2021, na qual, considerando que as pessoas LGBTIQ de toda a União Europeia devem gozar da liberdade de viver e mostrar publicamente a sua orientação sexual, identidade de género, expressão de género e características sexuais, sem receio de intolerância, discriminação ou perseguição por esse motivo, se proclama a União como zona de liberdade para as pessoas LGBTIQ; e, finalmente, atenda-se à jurisprudência do TJUE sobre questões relacionadas com os direitos das pessoas trans, a partir do caso P v S and Cornwall County Council, acima citado.
Resumindo: esta não é uma matéria esotérica, controvertida, ideológica ou promovida somente por franjas de ativistas de um determinado espectro político. Os direitos à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa são direitos fundamentais com consagração e paulatino reconhecimento jurídico-constitucional, desde há mais de uma década, tendo também amplo tratamento doutrinal. Este ponto é, aliás, reconhecido pelos próprios requerentes, que não questionam, como se admite no Acórdão, a concreta configuração do direito à autodeterminação da identidade de género estabelecida pela lei. Ora, nestes termos, não se compreende por que razão é que a existência pré-legal do direito fundamental em causa, em conjugação com o seu fundamento jurídico-constitucional e o seu específico desenho legal, não são claramente afirmados nesta decisão e dela são arredados enquanto chaves de leitura. Para nós, constituem a pedra de toque de toda a matéria em apreço. É à luz deste quadro que tem de entender-se (e ler-se) a LEIG, que visa, aliás, dar resposta e adaptar o regime jurídico da mudança de sexo e de nome próprio no registo civil (anteriormente regulado na Lei 7/2011, de 15 de março) a vários dos instrumentos de direito internacional acima citados, e à evolução das conceções comunitárias em relação às formas e procedimentos exigíveis para o exercício do direito fundamental à autodeterminação da identidade de género e expressão de género.
2 - O reconhecimento da pré-existência do direito fundamental à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa invalida boa parte da argumentação do Acórdão acerca da indeterminabilidade das normas questionadas.
Nos termos acima explanados, e reconhecendo-se como verdadeiro, e inequívoco, direito fundamental, o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, as afirmações do Acórdão sobre a novidade e a indeterminabilidade do regime jurídico estabelecido pelas normas questionadas caem por terra.
Em primeiro lugar, não é verdade que os conceitos de «identidade de género», «expressão de género» e «características sexuais» não sejam "noções minimamente estabilizadas no direito português ou em direitos estrangeiros próximos do nosso", como se afirma no ponto 11 do Acórdão. Se pode admitir-se que se trata de conceitos que evoluíram, em função de alterações quer no campo da medicina, quer no campo das conceções sociais, a realidade é que eles têm, hoje, um grau mínimo de estabilização que permite a interpretação jurídica sem problemas inultrapassáveis. Atente-se, desde logo, no facto de o conceito de "identidade de género" ser mobilizado até na legislação penal (cf., por exemplo, o artigo 240.º do Código Penal), não havendo notícia de que seja questionado o respeito, nessa sede, pelo princípio da determinabilidade penal, o mais exigente, em razão da restrição da liberdade; mal se compreende, pois, que aqui cause tantas "dificuldades" e dúvidas. Noutro âmbito, o artigo 24.º do Código do Trabalho proíbe expressamente a discriminação com base em identidade de género, o que leva implícita a defesa do seu correlato - a expressão de género. Assim, no nosso entender, trata-se, sem quaisquer hesitações, de verdadeiros conceitos normativos, operativos no plano da interpretação e aplicação do direito.
Em segundo lugar, recorde-se que são questionadas apenas normas que estabelecem a adoção de medidas, no sistema educativo, para assegurar o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, conferindo aos membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação competência para adotar as medidas administrativas necessárias. Ora, na verdade, e por um lado, a obrigação de o Estado adotar medidas que permitam que as escolas sejam um espaço de exercício de direitos fundamentais não é, de todo, uma novidade introduzida pela LEIG. Por outro lado, é inequívoco que se trata de medidas administrativas de promoção e proteção do exercício de direitos, o que, naturalmente, altera o juízo sobre a repartição de competências para aprovar normas sobre a matéria.
Vejamos.
2.1 - No plano do ordenamento jurídico nacional, cabe lembrar que as intervenções no âmbito da educação e da organização das escolas têm que respeitar o quadro jurídico desenhado pela Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei 46/86 de 14 de outubro), e pelo Estatuto do Aluno e Ética Escolar (Lei 51/2012 de 5 de setembro), ambos com aplicação a todos os estabelecimentos da rede pública, bem como aos estabelecimentos da rede privada e cooperativa com contrato de associação, de todo o território nacional. Ora, este último diploma prevê na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, que "o aluno tem direito a ser tratado com respeito e correção por qualquer membro da comunidade educativa, não podendo, em caso algum, ser discriminado em razão da origem étnica, saúde, sexo, orientação sexual, idade, identidade de género, condição económica, cultural ou social ou convicções políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas" (sublinhado nosso). Por outro lado, a Lei de Bases do Sistema Educativo estabelece que o sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação, que se exprime pela garantia de uma permanente ação formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade (n.º 2 do artigo 1.º; sublinhado nosso), e que este deve organizar-se de forma a assegurar o direito à diferença, mercê do respeito pelas personalidades e pelos projetos individuais da existência (alínea d) do artigo 3.º), respondendo às necessidades resultantes da realidade social, contribuindo para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos indivíduos (n.º 4 do artigo 2.º; sublinhado nosso).
Note-se que também no Anexo à Recomendação CM/Rec(2010)5 do Conselho da Europa, acima citada, se recomenda aos Estados-membros a adoção de medidas legislativas e outras adequadas, dirigidas ao pessoal educativo e aos alunos, para assegurar que o direito à educação possa ser efetivamente gozado sem discriminação com base na orientação sexual ou identidade de género, incluindo, em particular, o combate à violência, bullying, exclusão social ou outras formas de tratamento discriminatório e degradante relacionado com a orientação sexual ou identidade de género. Devem ainda ser tomadas medidas no sentido de garantir que é fornecida aos estudantes informação objetiva com respeito à orientação sexual e identidade de género (por exemplo, nos currículos escolares e materiais educativos), bem proteção e apoio necessários para lhes permitir viver de acordo com a sua orientação sexual e identidade de género.
Ora, é exatamente isto que as normas questionadas fazem: reconhecem, inequivocamente, no plano interno, as obrigações estaduais de proteção que resultam, no âmbito do sistema educativo, do exercício do direito fundamental à autodeterminação da identidade de género e expressão de género.
2.2 - Há no pedido um equívoco fundamental - não esclarecido pelo Acórdão - quanto ao conceito de promoção, em matéria de direitos fundamentais. Os recorrentes parecem acreditar que as normas questionadas, ao incumbir o Estado de adotar medidas "que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género" a concretizar no sistema educativo no seu todo - e repercutindo-se, por isso, nos estabelecimentos de ensino públicos e privados -, têm por consequência a difusão de uma "particular conceção da identidade de género". Isto é, não pondo em causa o reconhecimento do direito à autodeterminação da identidade de género, os requerentes sustentam que as normas contidas no n.º 1 do artigo 12.º da LEIG dizem respeito "à promoção da manifestação da identidade de género como uma realidade unicamente assente na vontade do titular do respetivo direito". No limite, parece que o Estado se transmutaria em publicitário, anunciando às crianças em idade escolar a bondade de uma suposta livre escolha de género. Contudo, como nos parece óbvio, esta conceção não tem cabimento, e ignora o sentido técnico-jurídico da expressão promover.
As normas que consagram direitos fundamentais, especialmente aquelas que reconhecem uma posição jurídico-subjetiva dotada de fundamentalidade, podem gerar para o Estado deveres de respeito, deveres de proteção e/ou deveres de promoção. Os primeiros correspondem, em regra, a deveres de abstenção, de não interferência estadual nas esferas de autonomia, liberdade e bem-estar dos particulares garantidas pelos direitos fundamentais. Os deveres de proteção referem-se à obrigação do Estado de proteger os cidadãos contra ameaças, agressões ou impedimentos ao exercício dos seus direitos fundamentais, bem como contra contingências externas de ordem natural ou social, garantindo as condições de exercício dos respetivos direitos fundamentais. Por fim, os deveres de promoção consistem na obrigação imposta ao Estado de possibilitar o acesso a certos bens fundamentais (como a saúde e a educação) àqueles a quem faltem os meios, a aptidão ou a capacidade necessária para tal (veja-se, neste sentido, J. Reis Novais, Direitos Sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais, 2.ª Edição revista e reformulada, AAFDL Editora, 2017, p. 310-315). Naturalmente, é nesta aceção que a LEIG utiliza o termo promover, e não como sinónimo de incentivar ou de publicitar.
A distinção é muitíssimo relevante, do ponto de vista dogmático.
O presente Acórdão, citando o Acórdão 538/2015, esclarece que o "princípio da reserva de lei parlamentar assume, como se sabe, no ordenamento jurídico-constitucional português um duplo significado: por um lado, proíbe a administração de invadir as matérias reservadas sem autorização expressa do legislador parlamentar, dotado de uma maior intensidade de legitimação democrática; por outro, proíbe que o legislador delegue na administração poderes regulamentares relativamente a quaisquer aspetos pertencentes à disciplina normativa primária, circunscrevendo o âmbito de atuação normativa da administração a aspetos técnicos ou secundários, sob a forma de regulamentos de execução". Não discordamos desta afirmação, que constitui uma explicação lograda do princípio da reserva de lei. Contudo, acreditamos que, tendo em consideração que as normas questionadas consagram medidas de proteção e promoção do exercício dos direitos fundamentais à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, o que ali se dispõe resulta inteiramente respeitado no caso em apreço.
Em primeiro lugar: o regime jurídico dos referidos direitos está regulado por lei da Assembleia da República (precisamente, a Lei 38/2018 - LEIG), respeitando assim a reserva consagrada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. A lei disciplina o que tem que disciplinar: i) o reconhecimento do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, enquanto direito fundamental, constituindo uma forma específica de livre desenvolvimento da personalidade e expressão da identidade pessoal (note-se que a LEIG é editada ao abrigo da competência legislativa genérica do parlamento - o legislador não entende estar a criar um novo direito, mas meramente a regular aspetos técnicos específicos do regime jurídico de um direito fundamental pré-existente); ii) o procedimento para o reconhecimento jurídico de uma identidade de género distinta da correspondente ao sexo biológico, as condições objetivas e subjetivas para esse ato, e os seus efeitos; iii) o reconhecimento da necessidade de medidas de proteção, no âmbito dos sistemas de ensino e de saúde, com a consequente consagração dos correspetivos deveres estaduais, devolvendo a sua concretização à esfera administrativa.
Ora, no plano das normas sobre deveres de proteção e de promoção, no campo dos direitos fundamentais, esta técnica legislativa é habitual. Tratando-se do reconhecimento de direitos a prestações estaduais - no caso concreto, prestações materiais e jurídicas - que permitam o livre exercício dos direitos fundamentais à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, cabe à lei fixar, por um lado, os critérios objetivos legitimadores dessas prestações, assegurando o respeito pelo princípio da igualdade e não discriminação. Por outro lado, a lei deve estabelecer o sentido e o fim das medidas relevantes sob o ponto de vista dos direitos fundamentais.
É isso mesmo que se faz por via das normas questionadas: o fim das medidas relevantes é a proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais em contexto escolar, contra todas as formas de exclusão social e violência, promovendo a inclusão como processo de integração socioeducativa (para sermos quem somos, só o somos com os outros, o que exige níveis básicos de reconhecimento mútuo), e assegurando, igualmente, o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género. Para tal, devem ser adotadas medidas concretas, desenhadas segundo os específicos contextos, que assegurem: a) prevenção e combate contra a discriminação; b) a implementação de mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco; c) condições materiais e fácticas para o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género; d) formação adequada para os docentes e demais profissionais do sistema educativo para lidarem com este tipo de fenómeno. Não se vê, pois, que a indeterminabilidade dos conceitos aqui mobilizados seja tal que o intérprete não possa, com um grau relevante de certeza e segurança jurídica, concretizá-las para cada caso concreto; não se vê, também, como pode afirmar-se que esta definição deixa um espaço de discricionariedade à administração de tal modo lato que configure uma violação da reserva de lei. Na verdade, julgamos existir o risco contrário: uma pormenorização excessiva das medidas mencionadas, designadamente, através da definição dos conteúdos educativos ou formativos, ou mesmo do estabelecimento, por via legal, de elementos detalhados atinentes à organização material dos estabelecimentos de ensino, aplicável em termos análogos às escolas públicas e às privadas, correria, essa sim, o risco de violar a proibição constitucional de programação da educação segundo diretrizes filosóficas, políticas, ideológicas ou religiosas, constante do artigo 43.º, n.º 2, da CRP.
Em síntese, as medidas administrativas cuja existência as normas questionadas preveem a nada mais se destinam do que a facilitar que cada criança possa, em contexto escolar, ser quem é. Não vemos, de todo, como é que isto pode, de alguma forma, contender com o específico projeto educativo de cada escola e cada comunidade escolar, pública ou privada, com orientação confessional ou sem ela. As escolas são espaços de aprendizagem, nos quais se deve assegurar o desenvolvimento global da personalidade de cada criança, bem como o progresso social e a democratização da sociedade. Neles, a criança deve, a todo o momento, ser livre de ser ela mesma, exercendo, na medida das suas capacidades, todos os direitos fundamentais de que é titular, com especial relevância para o direito a não ser discriminada ou alvo de qualquer tipo de violência, física, verbal, ou social. A liberdade de aprender e ensinar não compreende, em caso algum, a liberdade de estabelecimento e implementação de um projeto educativo que se oponha à existência, livre desenvolvimento da personalidade e garantia de exercício de direitos fundamentais por parte de todas as crianças, seja qual for a sua identidade de género.
2.3 - Por tudo o que se apontou, rejeitamos a qualificação das normas em apreço que se faz no Acórdão, ao confrontá-las com os fatores de ponderação a mobilizar na demarcação do domínio reservado à lei em matéria de direitos, liberdades e garantias, nos seguintes termos:
. Em primeiro lugar, é altamente discutível que as medidas de promoção e proteção estabelecidas pelo Estado em cumprimentos dos deveres que para si resultam do exercício dos direitos fundamentais à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, em contexto escolar, integrem o objeto principal do diploma; cremos, na verdade, que se situam na sua periferia, já que o objetivo declarado da LEIG - e também a fonte do dissenso político em torno dela - é o de melhorar o regime jurídico da identidade de género, em especial no que concerne à previsão do reconhecimento civil das pessoas intersexo, e ao exercício do direito à autodeterminação de género pelas pessoas transexuais e transgénero. Os aspetos relativos à saúde e à educação e ensino são regulados no capítulo III da Lei, sempre do ponto de vista das medidas de proteção do exercício dos direitos, o que, como vimos, tem importantes consequências no plano da dogmática constitucional.
. Entendemos também que é radicalmente falso que a matéria dos direitos fundamentais à autodeterminação da identidade de género e expressão de género constitua, a qualquer título, uma novidade política, de caráter polémico. Na verdade, ainda que pudesse discutir-se tal qualificação quanto às normas da LEIG que regulamentam o exercício do direito à autodeterminação de género no que respeita ao procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil (abolindo o requisito de um relatório clínico atestando uma perturbação de identidade de género), as obrigações ali estabelecidas no plano do sistema educativo sempre resultariam, já, da CRP e da legislação em vigor. Não é demais lembrar que, independentemente da sua natureza pública ou privada e da sua eventual orientação confessional, as escolas jamais são espaços livres de direitos fundamentais, devendo reconhecer e assegurar às crianças - que são titulares desses direitos - as condições necessárias ao respetivo exercício. Assim, sendo o direito à autodeterminação de género e à expressão de género verdadeiros - e inequívocos - direitos fundamentais, nunca (com normas expressas ou sem elas) poderiam as escolas negar-se ou procurar furtar-se à aceitação e proteção da livre expressão de género por parte dos seus alunos.
. Por fim, parece-nos evidente a necessidade, atenta a morfologia do objeto de regulação, de uma normação flexível, com características de proximidade, mutabilidade e adaptabilidade, razão pela qual a adequação funcional do poder regulamentar se revela inequívoca no que respeita às normas questionadas. Com efeito, parece evidentemente difícil instituir, em lei parlamentar, um regime jurídico detalhado que defina as formas de concretização dos deveres estaduais de promoção e proteção dos direitos fundamentais em causa, para todos os graus de ensino, em todas as escolas (públicas e privadas). É, aliás, devido a estas dificuldades, que se utilizam nas normas questionadas conceitos vagos ou indeterminados - por exemplo, a previsão, na alínea c) de medidas que desenvolvam «[c]ondições para uma proteção adequada». Não há aqui uma opção particular pela atribuição ao poder regulamentar de uma faculdade de decisão discricionária; há uma necessidade incontornável de o fazer, posto que essas condições de proteção só são determináveis nos casos concretos; no limite, no específico contexto de cada estabelecimento de ensino e respetiva comunidade educativa.
Assim, atentas, precisamente, as assinaláveis diferenças entre as idades e os graus de desenvolvimento das crianças em causa, e a distinta amplitude da intervenção administrativa no que respeita aos estabelecimentos de ensino públicos e aos privados e cooperativos, a exigência de lei da Assembleia da República para regulamentar os deveres que a LEIG estabelece afigura-se-nos não apenas desadequada, como potencialmente problemática. Definir os limites da concretização regulamentar de diplomas legais, com a estreiteza com que o faz o presente Acórdão, implica afirmar que muito do que se prevê no Despacho 7247/2019, de 16 de agosto, que "estabelece as medidas administrativas para implementação do previsto no n.º 1 do artigo 12.º da Lei 38/2018" terá que ser consagrado em lei parlamentar. Ora, como se reconhece na decisão de que aqui dissentimos, num plano em que as diferenças são de grau ou relativas, julgamos excessiva a necessidade de intervenção da Assembleia da República para a definição de normas sobre a utilização de vestuário, casas de banho e balneários nas escolas. Se é esta a nova posição do Tribunal Constitucional - isto é, se este Acórdão define uma nova leitura, mais estrita, sobre os limites da reserva de lei - haverá que tomá-la em conta, dela extraindo as devidas consequências para o futuro. São, porém, significativas as matérias em que esta postura determinará a invalidade constitucional de diplomas de índole administrativa, concretizadores de deveres estaduais de proteção e promoção, o que cremos não ser desejável. - Fernando Vaz Ventura - Mariana Canotilho - Assunção Raimundo.
Declaração de voto
Vencido. Entendo que as normas sub judice - constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei 38/2018 - não deveriam ter sido declaradas inconstitucionais.
O referido artigo comete ao Estado um dever de garantir a promoção do exercício "do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas", com a adoção de medidas no sistema educativo, exemplificadas no seu n.º 1. Estamos perante um dever dirigido diretamente ao Estado, que tem como correlativo um direito a prestações do Estado (e por esta razão o dever de regulamentação a que se refere o n.º 3 do mesmo artigo dirige-se apenas às medidas previstas no n.º 1, pois apenas estas carecem da interposição dos poderes públicos no que toca à concretização do dever a que dizem respeito).
Em nosso entender, a adoção dessas medidas não viola a liberdade de aprender e ensinar, direito fundamental consagrado no artigo 43.º da CRP. Ela, não só não implica uma programação do ensino segundo uma particular conceção ideológica ou doutrinária da identidade de género, como também não se mostra suscetível de impedir ou condicionar a adoção de determinadas orientações religiosas ou filosóficas por parte de escolas privadas, nomeadamente confessionais.
Do que se trata é, tão só, de promover as condições para que os indivíduos que apresentem uma inconsistência entre o género manifestado e o sexo biológico possam exercer o seu direito a ver reconhecida a identidade sexual com que se identificam. O objetivo da lei é a proteção dessas pessoas, a sua inclusão e a sua plena aceitação em ambiente escolar, de acordo com a identidade de género manifestada. Perante um estudante que apresente uma incongruência de género, e independentemente da conceção da escola sobre a questão, a lei determina que, por sua decisão, se opere o reconhecimento jurídico e social do género manifestado.
É apenas isso que se visa - e não a imposição de uma qualquer conceção sobre o modo e causas de criação do género. A adoção destas medidas não tem reflexos nos conteúdos educativos, o seu campo de atuação é balizado à margem desses conteúdos educativos, não prescrevendo qualquer efeito nos programas ou nas matérias a lecionar.
As normas em crise não se projetam sobre a liberdade de ensino.
Faça-se, aliás, um parêntesis, para dizer que a neutralidade do Estado, traduzida na proibição de programação do ensino, não deve impedir a transmissão, pela escola, dos valores éticos e padrões axiológicos fundamentais, como a dignidade humana, a igualdade, a liberdade e a democracia, enquanto pilares constitutivos da sociedade democrática e do Estado de Direito que a Constituição garante. No fundo, os direitos fundamentais são também limites à liberdade de ensino, pelo que a não discriminação e proteção dos alunos que manifestem uma identidade de género dissonante com o seu sexo biológico, não ultrapassa os limites decorrentes do n.º 2 do artigo 43.º da Constituição.
Julgamos, pois, que não há na previsão de medidas que são consequência do reconhecimento jurídico da identidade de género qualquer restrição à liberdade de aprender e ensinar (aí se incluindo a proibição de programação do ensino pelo Estado e a liberdade de criação de um projeto educativo próprio em escolas privadas), não se colocando, assim, a questão de uma eventual violação dos limites a que se submetem as leis restritivas.
Não podendo as medidas a que se refere o artigo 12.º influir no projeto educativo de cada escola - apenas tendendo à criação de condições para que os indivíduos que apresentem uma incongruência de género possam exercê-lo, deixando intocado o projeto educativo próprio e confessional de uma escola privada, naturalmente livre de difundir a sua conceção sobre a definição dos sexos e dos géneros -, não se vislumbrando, pois, no conteúdo das normas fiscalizadas uma limitação da liberdade de aprender e ensinar, parece-nos que, ao contrário do que entendeu a maioria que votou o acórdão, não se coloca a questão de uma violação pelas normas em crise do princípio da reserva de lei, consagrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
São estas, de uma forma muito sucinta, as razões por que divergi daquela maioria. - José João Abrantes
Declaração de voto
A decisão de inconstitucionalidade das normas dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei 38/2018, de 7 de agosto, sustenta-se na falta de cumprimento, por parte legislador, do dever de densificação normativa exigível pela «reserva total de lei» que decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP. Sem pôr em causa a primazia do legislador parlamentar na regulação dos «direitos liberdade e garantias», não me parece que a matéria regulada por aquele preceito - «medidas de proteção não restritivas» - não possa ser deixada à intervenção regulamentar dos membros do Governo, nos termos em que o legislador estabeleceu naquelas normas.
O problema da extensão da reserva de lei parlamentar, do grau de densidade normativa das leis que incidem sobre direitos fundamentais, ou da margem de livre apreciação e decisão que a lei pode conferir à Administração, não encontram resposta definitiva na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º ou noutras disposições constitucionais sobre a matéria (v.g. n.os 2 e 3 do artigo 18.º e n.º 2 do artigo 266.º). Não resulta destas normas a obrigatoriedade do legislador, nas relações com a Administração, pré-determinar exaustivamente a atividade administrativa, nem isso seria em todos os casos indispensável ou possível. Mesmo no domínio das restrições a direitos fundamentais, os princípios da reserva de lei e da legalidade administrativa consentem a concessão de poderes discricionários à Administração e a utilização, pelas normas habilitantes, de conceitos jurídicos indeterminados, que requerem dos órgãos administrativos juízos próprios de valoração, avaliação ou prognose.
Ora, o referido artigo 12.º contém "normas de proteção" que se podem considerar numa dupla dimensão: enquanto conformação do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género; ou enquanto materialização do direito à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. Não obstante ambos os direitos fundamentais encontrarem suporte no n.º 1 do artigo 26.º da CRP, cada um tem âmbito de proteção próprio: o direito à autodeterminação de identidade de género, que se deduz do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e do direito à identidade pessoal, protege a conceção que cada pessoa tem de si mesma; já o direito à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, fruto da revisão constitucional de 1997, protege sobretudo a igualdade negativa, jurídica e formal (na lei e através da lei), traduzia na ausência de discriminações arbitrárias, degradantes, atentatórias da dignidade humana ou que constituem obstáculos injustificados ao livre desenvolvimento da personalidade.
Também os deveres de proteção que decorrem de ambos os direitos fundamentais são de natureza e estrutura diferente: o dever de proteção imposto na parte final do n.º 1 do artigo 26.º da CRP é correlativo de um direito subjetivo fundamental à emanação de legislação antidiscriminatória, cujo incumprimento pode configurar uma situação de inconstitucionalidade por omissão; já o dever de proteção do direito à autodeterminação da identidade de género deduz-se da dimensão jurídico-objetiva das normas constitucionais que o suportam, mas devido à indeterminação constitucional das medidas estatais aptas a garantir a proteção efetiva do reconhecimento da autodeterminação de identidade, dela não decorre uma pretensão subjetiva a correspondentes ações estaduais de proteção, suscetível de controlo judicial da sua eventual violação.
Assim, as normas do questionado artigo 12.º podem ser perspetivadas, em primeiro lugar, como objeto do próprio direito fundamental à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. Com efeito, através daquele preceito, o legislador impõe aos estabelecimentos de ensino (públicos e privados) a obrigação de adotarem medidas que garantam que «as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestado e as suas características sexuais» (n.º 2); obriga os membros do governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação a adotar as medidas necessárias a promover as condições «de exercício direito à autodeterminação de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas» (n.º 3), uniformizando, desse modo, as medidas de proteção ou acautelando eventual incumprimento dos estabelecimentos de ensino; e nas várias alíneas do n.º 1 precisa, de forma exemplificativa, o modo como o direito deve ser protegido: medidas de prevenção e combate contra a discriminação; medidas de deteção e intervenção sobre situações de risco; medidas contra formas de exclusão e violência. Por conseguinte, através destas normas, o legislador assume, como dever do Estado, a proteção ativa das crianças e jovens com incongruência de género contra condutas discriminatórias baseadas na identidade de género.
Nesta perspetiva, nem sequer se pode dizer que as normas introduzem novidade no sistema educativo. De facto, um dos princípios organizativos do sistema educativo é «assegurar o direito à diferença, mercê do respeito pelas personalidades e pelos projetos individuais da existência» (alínea d) do artigo 3.º da Lei de Bases do Sistema de Ensino - Lei 46/86, de 14 de outubro); o aluno tem direito a ser tratado e o dever de tratar «com respeito e correção por qualquer membro da comunidade educativa, não podendo, em caso algum, ser discriminado em razão da origem étnica, saúde, sexo, orientação sexual, idade, identidade de género, condição económica, cultural ou social ou convicções políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas» (alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º e alínea d) do artigo 10.º do Estatuto do Aluno - da Lei 51/2012, de 5 de setembro); e para implementação deste e doutros direitos e deveres, prevê-se, no artigo 49.º do Estatuto, a existência de regulamento interno que desenvolva esses direitos e deveres, adequando à realidade da escola as regras de convivência e resolução de conflitos, assim como a utilização e acesso às instalações, equipamentos e espaços escolares. Na verdade, tudo o que consta das quatro alíneas do n.º 1 do artigo 12.º da Lei 38/2018, de 7 de agosto, já podia e devia ser desenvolvido pelos estabelecimentos de ensino e pelo Ministério da Educação - incluindo as ações de formação dos docentes e demais profissionais referidas na alínea d), que já estão previstas no artigo 53.º daquele Estatuto. Assim, as normas do artigo 12.º apenas vêm reforçar ou replicar o direito à proteção estadual da igualdade dos alunos com incongruência de género já materializado e densificado na legislação reguladora do sistema de ensino.
As normas de proteção previstas no artigo 12.º também podem ser consideradas na dimensão acessória do direito à autodeterminação da identidade género. O direito fundamental que toda a pessoa tem de ser reconhecida pelo estado e pela sociedade a partir da conceção que tem de si mesma, não obstante a sua natureza defensiva, carece de proteção estadual. O bem jusfundamental garantido pelo direito - autodeterminação da identidade de género - pode encontrar-se numa situação de efetiva e potencial ameaça de agressões estatais ou de terceiros. Por isso, atenta a inserção comunitária do direito, impende sobre o Estado a obrigação de velar pela integridade da expressão da autodeterminação da identidade de género, prevenindo e protegendo-a contra ameaças e agressões. De modo que o dever estatal de proteção não deixa de fazer parte integrante do direito fundamental à autodeterminação da identidade de género. Estando estatisticamente demonstrado que os indivíduos que manifestam identidade de género dissonante com o sexo biológico estão entre os grupos que são alvo de comportamentos discriminatórios, o dever de os proteger está intimamente relacionado com a adoção de medidas que promovam a sua integração social. É este tipo de medidas de proteção que a Lei 38/2018, de 7 de agosto, pretende que sejam adotadas, quando prevê um mecanismo de reconhecimento jurídico da identidade de género (artigos 5.º a 10.º) e impõe a existência de normas organizativas e procedimentais destinadas a regular as situações em que as ameaças incidentes sobre o direito à autodeterminação da identidade de género se desenvolvem dentro de instituições com que eles se relacionam, de forma mais ou menos duradoura, como é o caso dos estabelecimentos de saúde (artigo 11.º) e dos estabelecimentos de ensino (artigo 12.º).
A partir do n.º 1 do artigo 26.º da CRP - a base constitucional do direito à autodeterminação de género - não é possível determinar o conteúdo constitucional de dever legiferante nele consagrado, ou como satisfazer o dever estadual de proteção do exercício desse direito contra ameaças e agressões. A legislação antidiscriminatória pode apresentar diferentes configurações, podendo ser diversas as medidas administrativas e fácticas aptas a garantir a proteção da expressão da identidade de género. A Constituição reserva assim à liberdade de conformação do legislador a escolha das técnicas jurídicas concretas de proteção desse direito fundamental enquanto bem jurídico autónomo. De resto, como a jurisprudência constitucional tem referido, os deveres de proteção caracterizam-se, precisamente, pela ampla margem de liberdade de conformação de que o legislador dispõe a respeito do seu cumprimento (Acórdão 75/2010). A opção que o legislador tomou no artigo 12.º da Lei 38/2018 foi a de obrigar os estabelecimentos de ensino e o Governo a desenvolverem ações de prevenção, proteção e ajuda contra a eventual discriminação, exclusão social, perigo ou violência dos alunos que manifestem disforia de género. Uma escolha legislativa que pretende sobretudo ver cumprido o dever de organização dos estabelecimentos de ensino, através da imposição da existência de "medidas administrativas" no domínio da vigilância, prevenção, adaptação e correção das instituições e dos procedimentos destinadas à proteção da autodeterminação de género em face de condutas discriminatórias.
Perante a multiplicidade de possíveis ações de proteção, os n.os 2 e 3 do artigo 12.º deixam à margem de decisão dos estabelecimentos de ensino e do Governo a conformação prática concreta das medidas de proteção. Depreende-se, porém, das várias alíneas do n.º 1 daquele preceito, para que remetem os n.os 2 e 3, que não estão em causa medidas de proteção configuráveis simultaneamente como restrições de direitos fundamentais. Não obstante se legislar no âmbito de «relações especiais de poder», situação em que se encontram os estudantes na sua relação com a escola e em que a manutenção da eficiência e capacidade funcional da instituição pode justificar maior margem de liberdade de atuação administrativa, com o consequente enfraquecimento direitos fundamentais, as normas do artigo 12.º não visam nem autorizam a restrição ou afetação desvantajosa do direito à autodeterminação da identidade de género, nem de quaisquer outros bens jurídicos jusfundamentais. O sentido normativo é, antes, o de procurar criar as condições que possibilitem o seu exercício concreto de forma socialmente adequada no âmbito da comunidade educativa. Diferentemente do que sustentam os requerentes, não se trata de qualquer restrição à liberdade de ensino ou a outras liberdades, mas apenas de medidas de proteção de um direito fundamental que não comprime direitos fundamentais alheios. Neste sentido, as normas do artigo 12.º têm que ser interpretadas e aplicadas enquanto normas de desenvolvimento, e não como normas de restrição a direitos fundamentais, o que não deixa de se refletir no preenchimento de todos os requisitos do Estado de Direito.
A qualificação normas do artigo 12.º como normas de desenvolvimento, sem a presença de elementos e efeitos restritivos de direito fundamental, a intervenção no domínio de relações de estatuto especial, a renovação de normas já existentes na legislação reguladora do sistema de ensino, e a vinculação da Administração aos direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 1, da CRP), contribuem para o desvanecimento das razões que justificam a reserva de lei parlamentar. Num domínio em que o Estado dispõe de ampla margem de conformação e discricionariedade na escolha das medidas de proteção, mas em que as exigências funcionais dos estabelecimentos de ensino também requerem que se deixe à Administração uma margem de livre apreciação, atenuam-se as exigências de reserva de lei. A intervenção regulamentadora do governo e das instituições de ensino no âmbito das medidas de proteção não restritiva oferecem a segurança jurídica necessária à previsibilidade e calculabilidade da atuação da comunidade educativa, sem pôr em causa a legitimidade democrática dos regulamentos ou as vantagens do processo legislativo parlamentar. Aquilo que é essencial para a proteção do exercício da autodeterminação da identidade de género na comunidade educativa está dito nas normas do artigo 12.º A rarefação da densidade normativa causada pela utilização de conceitos jurídicos indeterminados com remissão para juízos de avaliação e ponderação da administração escolar encontra justificação na matéria versada - deveres de proteção -, sobre a qual o legislador beneficia de uma ampla margem de atuação. Tratando-se de proteção efetuada através de medidas não restritivas, relativas à organização interna e modo de funcionamento das instituições de ensino, justifica-se a opção do legislador de deixar à Administração a fixação das medidas administrativas concretas, ponderando os seus custos e resultados previsíveis, capazes de garantir o exercício da autodeterminação da identidade de género no contexto escolar, nos mesmos termos em que faz no, n.º 2 do artigo 11.º, para os estabelecimentos de saúde.
Dir-se-á que, mesmo sem autorização prévia da lei ou na insuficiência da lei, a Administração, vinculada que está aos direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 1, da CRP), poderia atuar no âmbito da realização dos deveres de proteção dos alunos com incongruência de género, desde que não envolvesse simultaneamente restrição de direitos fundamentais de outros. Como refere Vieira de Andrade «a Administração não pode restringir, mas pode e deve, no âmbito das suas atribuições e competências, proteger, promover, e até concretizar, na falta de lei específica, as normas relativas aos direitos fundamentais, liberdades e garantias». (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 197, 5.ª ed. pág. 224).
Daí que não acompanhamos uma conceção de reserva de lei parlamentar tão rígida como a que vem formulada no acórdão. - Lino Rodrigues Ribeiro.
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