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Acórdão 75/2010, de 26 de Março

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Sumário

Decide não declarar a inconstitucionalidade de várias normas da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, relativa à exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez, na parte em que introduz alterações ao Código Penal, assim como de várias normas da Portaria nº 741-A/2007 de 21 de Junho [estabelece as medidas a adoptar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos com vista à realização da interrupção da gravidez]. (Proc. nºs 773/07 e 1186/07)

Texto do documento

Acórdão 75/2010

Processos n.os 733/07 e 1186/07

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

A) - Pedido formulado no âmbito do processo 733/07

1 - Requerente e objecto do pedido

Um grupo de trinta e três deputados à Assembleia da República apresentou um pedido de apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e ilegalidade da Lei 16/2007, de 17 de Abril, que estabelece a "Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez".

Para além de terem suscitado a inconstitucionalidade formal da referida lei, alegaram os requerentes que ela "consagra diversas soluções inconstitucionais".

Ainda que se requeira genericamente, no pedido, a apreciação da conformidade constitucional da Lei 16/2007, de 17 de Abril, sem especificar as disposições alegadamente feridas de inconstitucionalidade material, é possível extrair do teor da fundamentação que as soluções impugnadas são as contidas no artigo 1.º, que dá nova redacção ao artigo 142.º do Código Penal - na parte em introduz, neste preceito, a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 -, no artigo 2.º, n.º 2, e no artigo 6.º, n.º 2, da

Lei 16/2007, de 17 de Abril.

Uma vez que um perfeito entendimento do alcance dos preceitos visados pelo pedido postula a intelecção do contexto normativo em que eles se inserem, transcrevemos integralmente, de seguida, a Lei 16/2007, com excepção da parte em que deixa intocado o artigo 142.º do Código Penal:

Artigo 1.º

Alteração do Código Penal

O artigo 142.º do Código Penal, com a redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, e pela Lei 90/97, de 30 de Julho, passa a

ter a seguinte redacção:

Artigo 142.º

[...]

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o

consentimento da mulher grávida, quando:

a) ...

b) ...

c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;

d) ...

e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.

2 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada, sem

prejuízo do disposto no número seguinte.

3 - Na situação prevista na alínea e) do n.º 1, a certificação referida no número anterior circunscreve-se à comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas.

4 - O consentimento é prestado:

a) Nos casos referidos nas alíneas a) a d) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de três dias

relativamente à data da intervenção;

b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e

responsável.

5 - No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, o consentimento é prestado pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer

parentes da linha colateral.

6 - Se não for possível obter o consentimento nos termos dos números anteriores e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro

ou outros médicos.

7 - Para efeitos do disposto no presente artigo, o número de semanas de gravidez é comprovado ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges

artis.»

Artigo 2.º

Consulta, informação e acompanhamento 1 - Compete ao estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido onde se pratique a interrupção voluntária da gravidez garantir, em tempo útil, a realização da consulta obrigatória prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal e

dela guardar registo no processo próprio.

2 - A informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal é definida por portaria, em termos a definir pelo Governo, devendo proporcionar o

conhecimento sobre:

a) As condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher;

b) As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à

maternidade;

c) A disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de reflexão;

d) A disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o

período de reflexão.

3 - Para efeitos de garantir, em tempo útil, o acesso efectivo à informação e, se for essa a vontade da mulher, ao acompanhamento facultativo referido nas alíneas c) e d) do número anterior, os estabelecimentos de saúde, oficiais ou oficialmente reconhecidos, para além de consultas de ginecologia e obstetrícia, devem dispor de serviços de apoio psicológico e de assistência social dirigidos às mulheres grávidas.

4 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se pratique a interrupção voluntária da gravidez garantem obrigatoriamente às mulheres grávidas que solicitem aquela interrupção o encaminhamento para uma consulta de

planeamento familiar.

Artigo 3.º

Organização dos serviços

1 - O Serviço Nacional de Saúde deve organizar-se de modo a garantir a possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez nas condições e nos prazos

legalmente previstos.

2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos em que seja praticada a interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão de forma adequada para que a mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente previstos.

Artigo 4.º

Providências organizativas e regulamentares

1 - O Governo adoptará as providências organizativas e regulamentares necessárias à boa execução da legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez, designadamente por forma a assegurar que do exercício do direito de objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde não resulte inviabilidade de

cumprimento dos prazos legais.

2 - Os procedimentos administrativos e as condições técnicas e logísticas de realização da interrupção voluntária da gravidez em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido são objecto de regulamentação por portaria do Ministro da

Saúde.

Artigo 5.º

Dever de sigilo

Os médicos e demais profissionais de saúde, bem como o restante pessoal dos estabelecimentos de saúde, oficiais ou oficialmente reconhecidos, em que se pratique a interrupção voluntária da gravidez, ficam vinculados ao dever de sigilo profissional relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa delas, relacionados com aquela prática, nos termos e para os efeitos dos artigos 195.º e 196.º do Código Penal, sem prejuízo das consequências estatutárias e disciplinares que no caso couberem.

Artigo 6.º

Objecção de consciência

1 - É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à objecção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção voluntária da

gravidez.

2 - Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objecção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar

durante o período de reflexão.

3 - Uma vez invocada a objecção de consciência, a mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o

objector preste serviço.

4 - A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico ou ao director de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objector preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez.

Artigo 7.º

Revogação

São revogadas as Leis n.os 6/84, de 11 de Maio, e 90/97, de 30 de Julho.

Artigo 8.º

Regulamentação

O Governo procede à regulamentação da presente lei no prazo máximo de 60 dias.

2 - Fundamentação do pedido

Os requerentes fundamentaram o pedido nos seguintes termos:

2.1 - Inconstitucionalidade formal da Lei 16/2007, de 17 de Abril A Lei 16/2007, de 17 de Abril, foi aprovada na sequência de um referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, realizado a 11 de Fevereiro de 2007, o qual não logrou obter a participação de votantes necessária para que o mesmo revestisse

carácter juridicamente vinculativo.

Na verdade, o artigo 115.º, n.º 11, da CRP, estabelece que "o referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento", o que não se verificou.

Não tendo sido obtido esse "quorum", a proposta de alteração legislativa apresentada aos eleitores não colheu legitimação referendária para prosseguir.

A CRP não admite o referendo consultivo e o princípio da legalidade, a que estão sujeitos os órgãos de soberania, exige que sejam retiradas consequências de um

referendo não vinculativo.

No cumprimento do estatuído na CRP, o resultado eleitoral do Referendo sobre o aborto não permite alterar a respectiva lei (ou o Código Penal), sob pena de inconstitucionalidade formal por violação do disposto no artigo 115.º, n.os 1 e 11, da

CRP.

A Assembleia da República tem legitimidade parlamentar para fazer leis, podendo

alterar o Código Penal.

Contudo, no caso do aborto, a maioria dos deputados não está materialmente mandatada pelo Povo para alterar a respectiva lei.

A soberania reside no povo e este exerce-a, entre outras formas, através do voto, nomeadamente na escolha que faz dos programas partidários submetidos a sufrágio.

Os partidos que compõem a larga maioria do Parlamento (PS e PSD), nos últimos programas eleitorais com que se apresentaram a eleições legislativas, declararam submeter esta matéria à deliberação directa do Povo, tendo-se comprometido a só

alterar a lei em causa por referendo.

Através do respectivo programa eleitoral, os partidos celebram pactos com os

eleitores.

O mandato conferido ao actual parlamento não legitima a alteração da lei da Interrupção Voluntária da Gravidez no decurso da mesma legislatura em que foi realizado o referendo que não teve efeito vinculativo.

A aprovação da Lei 16/2007 à revelia do voto vinculativo do Povo fere a soberania popular, correspondendo à violação do disposto nos artigos 1.º a 3.º, 108.º e 109.º da

CRP.

2.2 - Inconstitucionalidade material das normas constantes dos artigos 1.º, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007, de 17 de Abril

2.2.1 - Artigo 1.º

No seu artigo 24.º, n.º 1, a CRP estatui que a vida humana é inviolável, não excepcionando as primeiras dez semanas de gestação.

Consequência da garantia da vida humana intra-uterina é o reconhecimento de que o Estado Português está, não só obrigado a abster-se de violar a vida humana pré-natal, como também a instituir formas destinadas à sua protecção.

O ordenamento jurídico português confere protecção à vida humana desde a concepção, incluindo a atribuição de direitos, o que foi já reconhecido por este Tribunal

(Acórdão 617/2006).

A lei Fundamental da República Portuguesa não deixa quaisquer dúvidas sobre a indispensabilidade de uma base antropológica constitucionalmente estruturante do Estado de Direito (artigos 1.º e 2.º), contemplando a afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável (CRP, artigos 24.º, 25.º e 36.º), bem como a garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade (cf. a consagração explícita desse direito no artigo 26.º da CRP, introduzido pela LC n.º 1/97, e a refracção do mesmo direito no artigo 73.º, n.º 2, da CRP).

A alteração ao artigo 142.º do Código Penal introduzida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, de 17 de Abril, consistente no aditamento da alínea e) ao respectivo n.º 1, permite a uma mulher pôr fim à vida de um ser humano em desenvolvimento intra-uterino sem que para tal invoque fundamentos, o que significa deixar totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas.

A possibilidade de se praticar aborto sem alegação de motivos, equivale a conferir a uma ser (Mãe) o direito a decidir da vida de outrem, ainda que por motivos fúteis.

Tal alteração impõe ao Estado que contribua para a eliminação de vidas humanas (através, por exemplo, do SNS e das prestações sociais inerentes - artigo 35.º, n.º 6, do Código do Trabalho) sem que para tal seja necessário alegar quaisquer razões ou fundamentos, o que atenta contra a base antropológica constitucionalmente estruturante do Estado de Direito, violando desse modo o disposto nos artigos 26.º e 73.º, n.º 2, da

CRP.

O aborto constitui para a mulher uma fonte de doença gravíssima - o trauma

pós-aborto.

Ao Estado cabe fazer cumprir e implementar o direito à saúde.

Ao admitir-se a realização do aborto nas condições fixadas no artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, na versão conferida pela Lei 16/2007, de 17 de Abril, permite-se que as mulheres corram este risco de doença para o resto da vida, colocando-se em causa o disposto no artigo 66.º, n.º 1, bem como o disposto no artigo

64.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), da CRP.

Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco para a saúde física e mental da mulher, e dando por assente o aborto por carências económicas, o regime fixado na Lei 16/2007, de 17 de Abril, liberta o Estado da sua função de solidariedade e protecção da saúde física e psíquica, violando, assim, o disposto nos artigos 64.º, n.os

1 e 2, alínea b), e 66.º, n.º 1, da CRP.

Em matéria de tutela da vida, o Estado limita-se a informar a mulher das condições de apoio que lhe pode prestar, concedendo-lhe três dias para que reflicta sobre a sua

decisão.

Atendendo à dignidade constitucional da vida humana, não parece que a sua lesão irreversível possa ser compatibilizada com um prazo tão curto de reflexão.

Através do seu artigo 67.º, alínea d), a Constituição garante o exercício da maternidade e paternidade conscientes, estabelecendo, por sua vez, o respectivo artigo 68.º que a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes.

O princípio da igualdade fixado para o exercício da parentalidade trespassa todo o direito constitucional (artigos 13.º, 36.º, n.os 3 e 5, 67.º e 68.º, da CRP).

A Lei 16/2007, de 17 de Abril, deixa o progenitor masculino totalmente arredado da responsabilidade e processo de formação da decisão no aborto, violando-se desta forma os artigos 1.º, 2.º, 24.º, 67.º, alínea d), da CRP, bem como o princípio da igualdade fixado nos artigos 13.º e 36.º, n.os 3 e 5, da lei Fundamental.

2.2.2 - Artigo 2.º, n.º 2

Ao permitir a realização do aborto até às 10 semanas, por opção da mulher, o legislador resolveu excluir a reacção penal como instrumento de tutela da vida humana

pré-natal, dentro desse período.

Ao estabelecer como condição única dessa realização uma prévia consulta médica informativa, a lei assegura a liberdade da mulher mas despreza, de forma constitucionalmente intolerável, o cumprimento do dever que vincula o Estado à

protecção da vida humana do nascituro.

A solução assim encontrada pelo legislador para o conflito entre os bens constitucionais vida humana pré-natal por um lado, e personalidade e liberdade da mulher, por outro,

satisfaz apenas uma das partes do conflito.

Ainda que se admita, em última análise, que estamos em presença de uma situação de conflito e ponderação de valores - o da liberdade da mãe e o da vida do embrião - e, em tal perspectiva, que o primeiro deverá prevalecer sobre o segundo, isso não significa que se não deva procurar o equilíbrio possível e, portanto, o menor sacrifício

possível da vida embrionária.

A consulta informativa não é idónea ao fim a que se destina - tutela da vida humana intra-uterina -, privilegiando desnecessariamente um dos bens constitucionais em conflito - o valor da liberdade de escolha da mulher - e em nada acautelando o outro

dos valores em presença - a vida do feto.

A consulta meramente informativa não permite ter por cumprido o dever de protecção da vida intra-uterina a que o Estado Português se encontra vinculado, o qual não ficará plenamente cumprido sem que a mulher grávida tenha acesso a um aconselhamento prestado por uma entidade diferente daquela que se propõe realizar a interrupção da

gravidez.

É dever do Estado aconselhar a mulher a não realizar o aborto e a decidir pela

preservação da vida.

Sem a realização deste aconselhamento, o Estado Português queda-se indiferente e neutro perante a ameaça à vida humana, posição que não é compatível com o dever de

protecção da vida humana.

O artigo 2.º da Lei 16/2007 atenta, por isso, contra os artigos 24.º, 66.º e 67.º, da CRP, bem como contra a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

No artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, na redacção da Lei 16/2007, de 17 de Abril, diz-se que a primeira consulta é destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e

responsável.

Porém, da disciplina no n.º 2 do artigo 2.º resulta ser apenas obrigatório proporcionar à mulher o conhecimento sobre as consequências da efectuação, no caso concreto, de eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da

mulher, nada se dizendo quanto ao embrião.

A informação a prestar pelo Estado não contempla a indicação das condições de apoio que instituições não estaduais prestam à prossecução da gravidez e à maternidade, nem do regime de adopção vigente em Portugal, tal como não prevê a exibição de imagem

ecográfica do feto.

A exclusão de tais indicações do âmbito do conteúdo informativo da consulta constitui uma violação do princípio da proporcionalidade.

Da mesma disciplina decorre, relativamente à informação relativa às condições que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e da maternidade (alínea b) e à disponibilidade de acompanhamento por técnico do serviço social, durante o período de reflexão (alínea d), que: não é obrigatório fornecê-la, mas apenas informar a grávida acerca dos meios de a obter; mesmo que esta escolha tê-la, tal informação não será fornecida directamente, mas através de um técnico social; tal informação será prestada dentro de um acompanhamento de contornos indefinidos à partida.

O artigo 2.º, n.º 2, estabelece, assim, um sistema baseado na selectividade da informação prévia ao consentimento, na assimetria informativa e na natureza triplamente indirecta da informação a prestar, consagrando um regime discriminado de informação face aos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, que proíbem diferenciações legais arbitrárias e, desse modo, atentando contra o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da CRP.

Uma vez que se baseia na incompletude da informação a prestar à grávida e aquela consiste num meio de manipulação e de obliteração da liberdade, o sistema informativo estabelecido no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, de 17 de Abril, não preserva o valor constitucional que pretende tutelar, ou seja, a liberdade de escolha da mulher.

O regime consagrado nos artigos 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal e 2.º da Lei 16/2007, de 17 de Abril, conflitua por isso com os direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade, tornando-se deste ponto de vista sindicável perante o disposto nos artigos 25.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1, da CRP.

Através do disposto no respectivo artigo 2.º, n.º 2, a Lei 16/2007, de 17 de Abril, permite a sua regulamentação por portaria, o que, estando em causa matéria de direitos fundamentais, fere o disposto nos artigos 67.º, n.º 1, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea

b), da CRP.

2.2.3 - Artigo 6.º, n.º 2

A disciplina constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei 16/2007, de 17 de Abril, ao excluir das consultas previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º, do Código Penal, os médicos objectores de consciência - e por isso mais próximos da principiologia do artigo 24.º da Constituição -, contém, relativamente a estes, um tratamento discriminatório, designadamente no que toca ao acesso a cargos em estabelecimentos

públicos.

Tal regime, para além de desconforme à Declaração Universal dos Direitos do Homem e Convenções Internacionais, aplicáveis por força do artigo 8.º da CRP, viola, quer o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, quer os artigos 25.º (integridade pessoal dos médicos), e 26.º (bom nome e reputação dos médicos) da

CRP.

3 - Resposta do autor das normas

Notificada para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, a Assembleia da República, por intermédio do respectivo Presidente, entregou cópia do Projecto de Lei 19/X, dos Diários da Assembleia da República em que foram publicados os demais trabalhos preparatórios da Lei 16/2007, de 17 de Abril, e do Diário da República, 1.ª série, de 17 de Abril de 2007, onde esta veio a ser publicada.

No mais, limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.

B) - Pedido formulado no âmbito do processo 1186/07

4 - Requerente e objecto do pedido

O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira veio requerer a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 1.º - este na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º, do Código Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo -, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho.

As normas da Lei 16/2007 impugnadas já foram reproduzidas (supra, ponto 1.). Os preceitos da Portaria objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade (todos eles, excepto os expressos nos artigos 12.º e 20.º) têm o seguinte teor:

Portaria 741-A/2007 de 21 de Junho

CAPÍTULO I

Disposições gerais

Artigo 1.º

Objecto e âmbito de aplicação

A presente portaria estabelece as medidas a adoptar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos com vista à realização da interrupção da gravidez nas situações previstas no artigo 142.º do Código Penal.

Artigo 2.º

Estabelecimentos de saúde

A interrupção da gravidez pode ser efectuada nos estabelecimentos de saúde oficiais e nos estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos.

Artigo 3.º

Acesso

1 - A mulher pode livremente escolher o estabelecimento de saúde oficial onde deseja interromper a gravidez, dentro dos condicionamentos da rede de referenciação

aplicável.

2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais de cuidados de saúde primários devem actuar de acordo com os protocolos estabelecidos pela respectiva unidade

coordenadora funcional.

Artigo 4.º

Consentimento livre e esclarecido O consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez é prestado pela mulher grávida, ou seu representante nos termos da lei, em documento escrito, normalizado, cujo modelo consta do anexo I a esta portaria, que dela faz parte

integrante.

Artigo 5.º

Presença de outra pessoa

A mulher grávida pode fazer-se acompanhar por outra pessoa durante os actos e intervenções regulados pelo presente diploma, desde que seja essa a sua vontade.

Artigo 6.º

Acompanhamento e apoio psicológico e social

1 - Se for essa a vontade da mulher, deve ser disponibilizado o acesso atempado a acompanhamento por psicólogo ou por assistente social.

2 - Para garantir o disposto no número anterior, o conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o caso, assegura a existência de profissionais com as competências necessárias e adequadas para prestar apoio às mulheres grávidas.

Artigo 7.º

Urgência

Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos para a realização da interrupção da gravidez que não disponham de serviço de urgência com atendimento permanente vinte e quatro horas por dia devem acordar, com, pelo menos, um estabelecimento de saúde de cuidados diferenciados que esteja a uma distância-tempo inferior a uma hora, a assistência médico-cirúrgica, sem reservas, às mulheres com complicações decorrentes da interrupção da gravidez.

Artigo 8.º

Registo obrigatório

1 - Todas as interrupções de gravidez, cirúrgicas ou medicamentosas, efectuadas ao abrigo do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, são de declaração obrigatória à Direcção-Geral da Saúde, através do registo da interrupção da gravidez, cujo modelo consta do anexo II a esta portaria, que dela faz parte integrante.

2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se realize interrupção da gravidez devem solicitar à Direcção-Geral da Saúde o registo e a senha de acesso ao formulário electrónico para o cumprimento dessa obrigação.

3 - Os dados constantes do registo referido no n.º 1 são anónimos, confidenciais e têm apenas fins estatísticos de saúde pública.

Artigo 9.º

Dados pessoais

1 - A mulher presta autorização escrita quanto à utilização posterior dos seus dados pessoais relativos à interrupção da gravidez.

2 - Os dados pessoais que não façam parte do processo clínico nem tenham relevância do ponto de vista clínico devem ser destruídos no prazo de três meses a contar do dia

da interrupção da gravidez.

Artigo 10.º

Dever de sigilo

Os médicos, outros profissionais de saúde e demais pessoas que trabalhem nos estabelecimentos de saúde onde se realize a interrupção da gravidez, ou que com eles colaborem, estão obrigados ao dever de sigilo relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa

delas.

Artigo 11.º

Cumprimento dos prazos

Em quaisquer circunstâncias, o conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o caso, adoptam todas as providências necessárias ao cumprimento dos prazos previstos na lei

para a interrupção da gravidez.

CAPÍTULO II

Estabelecimentos de saúde oficiais

Artigo 13.º

Organização

1 - Os responsáveis pelos estabelecimentos de saúde oficiais de cuidados de saúde primários devem organizar o acesso e a realização de interrupções da gravidez, nas situações previstas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, de acordo com os protocolos estabelecidos pela respectiva unidade coordenadora

funcional.

2 - Os conselhos de administração dos estabelecimentos de saúde oficiais com departamento ou serviço de ginecologia/obstetrícia, nos quais têm lugar as interrupções

cirúrgicas da gravidez, deve:

a) Organizar o departamento ou serviço de ginecologia/obstetrícia com vista à realização de interrupções da gravidez nas situações previstas nas alíneas a) a e) do n.º

1 do artigo 142.º do Código Penal;

b) Estabelecer, sob coordenação da administração regional de saúde territorialmente competente, acordos de articulação com os cuidados de saúde primários, no âmbito

das unidades coordenadoras funcionais.

3 - Compete ao conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial garantir os procedimentos administrativos e as condições técnicas e logísticas apropriados à realização da interrupção da gravidez nas circunstâncias legalmente permitidas, assim como os meios necessários ao imediato acesso a um método contraceptivo após a

interrupção, quando adequado.

CAPÍTULO III

Estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos

Artigo 14.º

Reconhecimento

1 - A Direcção-Geral da Saúde é a entidade competente para reconhecer a aptidão dos estabelecimentos de saúde para a realização da interrupção da gravidez.

2 - Compete à administração regional de saúde territorialmente competente a instrução do processo de reconhecimento e a verificação dos requisitos mínimos de que depende o reconhecimento dos estabelecimentos de saúde para a realização de interrupção da

gravidez.

Artigo 15.º

Condições

1 - O reconhecimento referido no artigo anterior obedece às condições técnicas e logísticas definidas no anexo VI a esta portaria, que dela faz parte integrante.

2 - Sem prejuízo dos requisitos e procedimentos previstos na lei e na presente portaria, nomeadamente nos artigos 6.º, 16.º e 19.º, consideram-se reconhecidos:

a) Os estabelecimentos de saúde oficiais;

b) Os demais estabelecimentos de saúde que possuam bloco operatório e sala de recobro já licenciados e que declarem, junto da Direcção-Geral da Saúde, o cumprimento das disposições legais e regulamentares aplicáveis.

3 - A declaração referida na alínea b) do número anterior é afixada em local visível e acessível aos utentes do estabelecimento em causa.

CAPÍTULO IV

Interrupção da gravidez por opção da mulher

Artigo 16.º

Consulta prévia

1 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o caso, devem garantir a realização em tempo útil da consulta referida na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal e dela assegurar registo em processo próprio.

2 - Entre o pedido de marcação e a efectivação da consulta não deve decorrer um período superior a cinco dias, sem prejuízo do cumprimento dos prazos legais.

3 - No âmbito da consulta, o médico, ou outro profissional de saúde habilitado, deve prestar todas as informações e os esclarecimentos necessários à mulher grávida ou ao seu representante legal, tendo em vista uma decisão livre, consciente e responsável,

designadamente sobre:

a) O tempo da gravidez;

b) Os métodos de interrupção adequados ao caso concreto;

c) As eventuais consequências para a saúde física e psíquica da mulher;

d) As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à

maternidade;

e) A existência de um período obrigatório de reflexão;

f) A disponibilidade de acompanhamento psicológico e por técnico de serviço social

durante o período de reflexão;

g) Os métodos contraceptivos.

4 - Os esclarecimentos referidos no número anterior devem, preferencialmente, ser acompanhados de informação escrita, desde que tecnicamente validada pelo Ministério

da Saúde.

5 - O profissional de saúde que preste os esclarecimentos previstos no n.º 3 preenche a declaração que consta do anexo IV a esta portaria e que dela faz parte integrante.

6 - O documento normalizado para prestar o consentimento, previsto no anexo I a esta portaria, deve ser entregue à mulher grávida na consulta.

7 - Os atestados, relatórios e pareceres médicos legalmente exigidos devem ser obtidos em tempo útil à realização da interrupção da gravidez dentro dos prazos legalmente

previstos.

Artigo 17.º

Comprovação da gravidez

A comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas é certificada por médico, diferente daquele por quem ou sob cuja direcção a interrupção é realizada, em documento normalizado, cujo modelo consta no anexo V a esta portaria, que dela faz

parte integrante.

Artigo 18.º

Período de reflexão

1 - Entre a consulta prévia e a entrega do documento sobre o consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez deve decorrer um período de reflexão não

inferior a três dias.

2 - O documento a que se refere o número anterior pode ser entregue até ao momento

da interrupção da gravidez.

Artigo 19.º

Interrupção da gravidez

1 - Após a comprovação da gravidez e após a entrega do documento sobre o consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez, assinado pela mulher grávida, o conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o caso, devem assegurar que a interrupção da gravidez se realiza dentro dos prazos legais.

2 - Entre a entrega do documento sobre o consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez e a interrupção da gravidez não deve decorrer um período superior a cinco dias, salvo se a mulher solicitar um período superior, dentro do prazo

legal.

3 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos devem garantir

às mulheres que interrompam a gravidez:

a) A prescrição de um método contraceptivo, desde que adequado;

b) A marcação de uma consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar a realizar no prazo máximo de 15 dias após a interrupção da gravidez.

4 - Os estabelecimentos de saúde oficiais hospitalares podem estabelecer, sob coordenação da administração regional de saúde territorialmente competente, acordos de articulação com os cuidados de saúde primários, no âmbito das unidades coordenadoras funcionais, para garantir o seguimento posterior, em consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar, das mulheres que realizaram uma interrupção da

gravidez.

5 - Os estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos podem solicitar à administração regional de saúde territorialmente competente a indicação de estabelecimentos de saúde oficiais que garantam o seguimento posterior, em consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar, das mulheres que realizaram uma

interrupção da gravidez.

CAPÍTULO VI

Disposições finais e transitórias

Artigo 21.º

Comunicação

1 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o caso, devem designar um responsável por contactar com a Direcção-Geral da Saúde e com a administração regional de saúde territorialmente competente, quanto aos assuntos respeitantes à

interrupção da gravidez.

2 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial deve comunicar à Direcção-Geral da Saúde e à administração regional de saúde territorialmente competente, no prazo de 15 dias a contar da entrada em vigor desta portaria, o responsável designado nos termos do número anterior.

3 - O responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido deve comunicar à Direcção-Geral da Saúde e à administração regional de saúde territorialmente competente, com a antecedência de 15 dias relativamente ao início dos processos com vista à realização da interrupção da gravidez, o responsável designado

nos termos do n.º 1.

4 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial deve informar a Direcção-Geral da Saúde e a administração regional de saúde territorialmente

competente, no prazo de 15 dias, sobre:

a) A forma de acesso ao processo de interrupção da gravidez;

b) Os horários da consulta prévia.

Artigo 22.º

Sítio da Internet

A Direcção-Geral da Saúde disponibiliza, no seu sítio da Internet, uma área destinada à interrupção da gravidez com os seguintes campos:

a) Lista actualizada dos estabelecimentos de saúde oficiais e oficialmente reconhecidos que realizam interrupção da gravidez e respectivos contactos;

b) Informação sobre a forma de iniciar o processo de interrupção da gravidez;

c) Formulários e documentos normalizados;

d) Legislação aplicável.

Artigo 23.º

Auditoria, inspecção e fiscalização

1 - Compete à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde a realização de auditorias, de inspecções e de fiscalizações aos estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos onde se realize interrupção da gravidez.

2 - A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde deve comunicar à administração regional de saúde territorialmente competente e à Direcção-Geral da Saúde a instauração dos processos relativos aos estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos onde se realize interrupção da gravidez, bem como a respectiva

conclusão.

Artigo 24.º

Entrada em vigor

A presente portaria entra em vigor no dia 15 de Julho de 2007.

5 - Fundamentação do pedido

Os requerentes justificaram a sua legitimidade processual activa por estar em causa a protecção de direitos autonómicos, no caso da Região Autónoma da Madeira.

Arguem que a entidade que solicita este pedido de fiscalização - o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira - é uma das entidades mencionadas no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa, como estando constitucionalmente habilitadas a requerer a fiscalização da constitucionalidade - no tocante à defesa dos direitos regionais - e da legalidade - no que é atinente à violação do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da

Madeira.

Apontaram, quer vícios de inconstitucionalidade material, quer vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal, com os fundamentos a seguir

indicados.

5.1 - Inconstitucionalidade material

5.1.1 - Por violação da norma constitucional que consagra o direito à vida As normas objecto do pedido de fiscalização da constitucionalidade violam o direito fundamental à vida, consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, no qual se afirma que "A vida humana é inviolável".

A substância das ditas normas - quer da norma legal principal de despenalização do aborto livre ou a pedido, quer das normas periféricas, legislativas e regulamentares, que tornam legitima e organizada tal prática - jamais poderá conciliar-se com aquela

protecção fundamental da pessoa humana.

Tal prática abortiva - a partir de agora despenalizada e livre - configura a destruição de

uma vida humana.

A Lei 16/2007, ao permitir que a prática do aborto seja feita apenas por opção da mulher, sem que para tanto apresente qualquer justificação material - seja ela médica, económica ou social - transfere a decisão de abortar para o mero arbítrio da mãe, sem qualquer protecção do bebé que vai ver o fim da sua vida.

A protecção penal é a resposta mais convincente que o Direito pode dar na defesa daquilo que lhe é mais essencial, não parecendo que outra coisa mais relevante surja do

que a protecção da própria vida humana.

A desprotecção penal, sendo uma legalização, não é substituída por qualquer outra protecção equivalente que possa ombrear com a protecção penal, deixando o valor em causa - a vida humana pré-natal - entregue à disponibilidade das pessoas, sem que o Estado actue na sua defesa, que tem de ser legislativa, administrativa e financeira.

Sabendo-se que continua a ser crime a mesma prática abortiva feita, com os mesmos fundamentos, em bebé que tenha 10 semanas e mais um dia, a despenalização efectuada funda-se numa delimitação arbitrária e, por isso, juridicamente insuportável.

A norma constitucional em causa não deslinda entre vidas humanas "mais fortes" e vidas humanas "mais fracas", sabendo-se hoje com segurança, através da Ciência, que a gravidez implica a existência de um novo ser humano, o qual é gerado no momento da fecundação, não mais parando a sua evolução até ao momento da sua morte física.

É ontologicamente que se deve sempre conceber a vida humana, a qual deve receber uma protecção qualitativamente idêntica desde o momento em que aparece, que é a partir da concepção, mesmo ainda quando não há nidificação do óvulo fecundado.

5.1.2 - Por violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana A violação da inviolabilidade da pessoa humana, considerada no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o «direito à vida», não se apresenta como uma ofensa localizada a um mero preceito constitucional, dado que o aborto despenalizado livre ou a pedido, admitido pela Lei 16/2007, coloca em crise os fundamentos do próprio Estado e do Direito em Portugal, ao ser intolerável sob o ponto de vista da dignidade da pessoa humana.

O artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa não podia ser mais peremptório nesta protecção, proclamando que «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma

sociedade livre, justa e solidária".

A violação da dignidade da pessoa humana cifra-se na condição a que o bebé, dentro do ventre materno, se sujeitará, até às 10 semanas de vida, depois da entrada em vigor da Lei 16/2007: a redução a mero "objecto", que passa a ser descartável pela mãe a partir do momento em que Estado e a Sociedade não o defendem, atribuindo o "poder de vida e de morte" sobre uma vida humana àquela progenitora.

A atribuição desse "poder de vida e de morte", sem qualquer justificação, tem a conivência do próprio Estado, que para tanto organiza procedimentos administrativos e

médicos.

5.2 - Inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal 5.2.1 - Inconstitucionalidade e ilegalidade por violação da autonomia legislativa, administrativa e financeira regional, constitucional, estatutária e legalmente configurada A Lei 16/2007, assim como a Portaria 741-A/2007, apresentam-se com uma vocação de aplicação territorial global - logo também no território madeirense -, o que resulta em qualquer dos casos evidente por se referir "os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos", sem distinção entre estabelecimentos estaduais e

regionais.

Aqueles diplomas estaduais - um legislativo e o outro regulamentar - impõem uma prática de aborto despenalizado, livre ou a pedido aos órgãos regionais, sem que estes tenham dito o que quer que fosse no tocante à organização dos cuidados de saúde

pertinentes, há muitos anos regionalizados.

A pretensão estadual de obrigar o sistema regional de saúde à prática do aborto despenalizado, livre ou a pedido fora dos quadros da competente decisão regional não respeita as regras e os princípios, constitucionais e infra-constitucionais, aplicáveis, violando o núcleo da autonomia regional, que permite a livre decisão pública em muitos

dos respectivos domínios.

O acesso à prestação do aborto despenalizado, livre ou a pedido corresponde a uma tarefa que se situa, do ponto de vista da sua regulação jurídica, no âmbito da competência regional, pois a «saúde» está enunciada como matéria de interesse regional na alínea m) do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da

Madeira.

Essa vem a ser a realidade da saúde no território madeirense, devidamente enquadrada pelo Sistema Regional de Saúde, que é essencialmente executado pelo serviço regional de saúde, em desenvolvimento da lei de Bases da Saúde, nunca ninguém tendo questionado essa regionalização legislativa da saúde na Madeira.

Por outro lado, a matéria da saúde não integra o conjunto das competências que são constitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania, sendo que a única matéria próxima desta é a das "Bases do Serviço Nacional de Saúde", matéria descrita no art.

165º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, cuja lei estadual respectiva - a lei de Bases da Saúde - expressamente aceita a criação do sistema

regional de saúde.

Acresce que, estando no ambiente dos direitos económicos, sociais e culturais, a competência estadual não é exclusiva, ao contrário do que sucede em matéria de direitos, liberdades e garantias, pois que estes são directamente referidos no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.

5.2.2 - Inconstitucionalidade e ilegalidade por violação do direito, constitucional e legal,

de audição prévia das regiões autónomas

A Região Autónoma da Madeira não foi auscultada na instrução do procedimento legislativo de elaboração da Lei 16/2007.

Porém, o texto da Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 229.º, n.º 2, atribui às regiões autónomas um direito constitucional de audição nas mais relevantes matérias: "Os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às Regiões Autónomas, os órgãos de governo regional".

O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 130/99, de 21 de Agosto, particularizou este direito nos seus artigos 90.º e seguintes, designadamente definindo o seu âmbito e indicando a inconstitucionalidade e a ilegalidade dos actos normativos produzidos com a violação do mesmo.

A Lei 40/96, de 31 de Agosto, de um modo mais completo, ainda que sem a força própria de uma lei estatutária, viria a concretizar este direito constitucionalmente consagrado, melhor configurando os respectivos contornos, ao estabelecer no seu art.

4º que, nas matérias de cunho legislativo, é a Assembleia Legislativa o órgão

competente para ser ouvido.

O ênfase que o legislador da República quis dar a este direito constitucional expressa-se no vício cominado para os actos jurídico-públicos desrespeitadores de tal direito, impondo no artigo 9.º da Lei 40/96, de 31 de Agosto, que «A não observância do dever de audição, nos termos da presente lei, por parte dos órgãos de soberania, determina, conforme a natureza dos actos, a sua inconstitucionalidade ou

ilegalidade".

A Assembleia da República nunca ouviu a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira na elaboração do diploma que viria a tornar-se a Lei 16/ 2007.

A omissão de audição prévia por parte da Assembleia da República infringiu a totalidade deste direito de audição, ao não lhe ter sido dada a oportunidade sequer de uma mínima pronúncia, e impedindo-se assim de levar à consideração do decisor legislativo os argumentos que este eventualmente devesse ponderar para assumir uma

solução definitiva.

6 - Resposta dos autores das normas

6.1 - Da Assembleia da República Notificada para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas da Lei 16/2007, de 16 de Abril, acima identificadas, a Assembleia da República, por intermédio do respectivo Presidente, optou por limitar o exercício do respectivo direito de resposta ao suscitado vício de inconstitucionalidade e ilegalidade por violação do direito, constitucional e legal, de audição prévia das Regiões Autónomas (ponto 5.2.2.), oferecendo, em tudo o mais, o merecimento dos autos.

No que respeita à referida suscitação, apresentou os argumentos seguintes:

A Lei 16/2007, de 17 de Abril, globalmente considerada, não é manifestamente uma questão respeitante às Regiões Autónomas, nem, em especial, à Região Autónoma da Madeira, tratando-se, ao invés, de uma lei que, pela sua natureza e pelo seu objecto, se destina a todo o país, sem excepção de regiões ou parcelas.

Por outro lado, também a Lei 16/2007, de 17 de Abril, não se apresenta com alguma especificidade ou particularidade relevante no que toca às Regiões Autónomas, que tivesse obrigado à existência de audição das mesmas no processo legislativo.

Conforme abundante jurisprudência deste Tribunal, "o direito de audição constitucionalmente garantido às Regiões Autónomas refere-se a actos que, sendo da competência dos órgãos de soberania, incidam de forma particular sobre uma ou ambas as Regiões ou versem sobre interesses predominantemente regionais" (Acórdãos n.os 42/85, 284/86, 403/89, 670/99, 684/99, 243/2002).

Tal como meridianamente espelhado no Acórdão 529/2001, deste Tribunal, em evocação do Parecer 20/77, da Comissão Constitucional, "são questões da competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos do governo regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses

territórios".

Do que deva entender-se por "respeitantes às regiões autónomas" reza o recente Acórdão 551/2007, de 7 de Novembro, do Tribunal Constitucional, ao pronunciar-se do modo seguinte: "Assim a expressão "respeitantes às regiões autónomas", constante do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição deve (continuar a) ser interpretada no sentido de se tratar de matérias que, apesar de serem da competência dos órgãos de soberania, nelas os interesses regionais apresentam particularidades por comparação com os interesses nacionais, quer devido às características geográficas, económicas, sociais e culturais das regiões, quer devido às históricas aspirações autonomistas das populações insulares, que justificam a audição dos órgãos de governo

regional.

A Lei 16/2007, de 17 de Abril, é uma lei que, pela sua natureza e pelo seu objecto globalmente considerados, se destina a todo o País, não sendo manifestamente uma questão respeitante às Regiões Autónomas, nem muito menos à Região Autónoma da

Madeira.

Devendo concluir-se que o direito de audição não existe em relação à mesma, não se verificou qualquer violação do direito de audição dos órgãos do governo regional.

6.2 - Do Ministro da Saúde

Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas da Portaria 741-A/2007, de 16 de Abril, identificadas supra, o Ministro da Saúde, por intermédio do respectivo Gabinete, respondeu nos seguintes termos:

Para que a Portaria 741-A/2007, de 16 de Abril, seja considerada ilegal é necessário que se demonstre que a mesma padece de desconformidade com a lei

habilitante.

Contudo, a Portaria obedece estritamente aos requisitos de legalidade dos regulamentos, já que foram observados os requisitos, objectivos materiais e objectivos

formais.

A Portaria foi assinada pelo Ministro da Saúde ao abrigo da alínea c) do artigo 109.º da Constituição, pelo que sempre se cumpre o requisito subjectivo de autoria do

regulamento.

Quanto aos requisitos objectivos materiais, o regulamento não invade a reserva da lei e é perfeitamente conforme com o "bloco de legalidade" que visa executar.

Finalmente, no que respeita aos requisitos objectivos formais, verifica-se que a forma de regulamento é a prescrita pelo diploma legislativo que autoriza a actividade normativa consequente, conforme se verifica pelos artigos 2.º, 4.º e 8.º da Lei n.º

16/2007, de 17 de Abril.

Acresce que, ao contrário do que é afirmado no requerimento do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, a Portaria do Ministério da Saúde não tem "uma vocação de aplicação territorial global, logo se aplicando ao

território madeirense".

De facto, não tendo a Assembleia da República, na Lei 16/2007, de 17 de Abril, reservado o poder regulamentar, parece ser de entender, de acordo com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa, que a matéria em causa, no que à regulamentação diz respeito, tem cariz concorrencial, pelo que a aplicação da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho, na Região Autónoma da

Madeira, será apenas subsidiária.

7 - Incorporação do Processo 1186/07 no Processo 733/07 O requerimento apresentado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, com o objecto e os fundamentos acima assinalados, bem como as respostas que sobre ele recaíram do Presidente da Assembleia da República e do Ministro da Saúde, começaram por integrar os autos do Processo de Fiscalização Abstracta 1186/07 do Tribunal Constitucional.

Nesse Processo 1186/07, o Presidente do Tribunal Constitucional lavrou um despacho, ordenando, em conformidade com o disposto no artigo 64.º, n.º 1, da lei do Tribunal Constitucional, a incorporação dos correspondentes autos no Processo 733/07, dado que ambos «respeitam ao mesmo complexo normativo (o que veio proceder à revisão do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez)» - não fazendo sentido, por isso, que o Tribunal se pronuncie separadamente sobre os

respectivos pedidos».

8 - Discussão do memorando

Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63.º, da lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate, nos termos do n.º 2 do referido preceito, cumpre agora decidir de acordo com a orientação que o

Tribunal fixou.

II - Fundamentação

9 - Questões prévias

9. 1. Legitimidade dos requerentes

9.1.1 - Dos deputados da Assembleia da República (Processo 733/07) O pedido que deu início aos presentes autos foi formulado ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição, norma esta que confere legitimidade a um décimo dos Deputados à Assembleia da República para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força

obrigatória geral.

Conforme se verifica, o pedido apresentado encontra-se subscrito por trinta e três deputados à Assembleia da República, o que permite dar por preenchido o requisito de legitimidade constante da referida norma e consistente em um número mínimo de vinte e

três subscrições.

9.1.2 - Do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira

(Processo 1186/07)

A legitimidade do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira para requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade e da legalidade de normas é-lhe conferida pelo disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo

281.º da Constituição.

Tal norma confere às entidades aí referidas um poder de iniciativa que, ao invés do que sucede com aquele que é atribuído aos demais órgãos enumerados naquele n.º 2, não é geral, mas limitado, uma vez que só é reconhecido quando apoiado em certos

fundamentos específicos.

Assim, se o pedido for de declaração de inconstitucionalidade, o respectivo fundamento só poderá consistir na "violação dos direitos das regiões autónomas"; se for de declaração de ilegalidade, apenas poderá basear-se na violação do Estatuto da Região Autónoma em cujo âmbito se inscreva a entidade requerente.

Uma vez que a legitimidade do requerente depende directamente da causa de pedir apresentada, importa verificar se os fundamentos do pedido em análise se enquadram na previsão da referida norma constitucional.

Conforme decorre do já exposto, o pedido de declaração da inconstitucionalidade de um conjunto de normas constantes da Lei 16/2007, de 17 de Abril, e da Portaria 741-A/2007, formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, funda-se na violação da norma constitucional que consagra o direito à vida (artigo 24.º, n.º 1, da CRP), do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), bem como na afectação do núcleo da autonomia

regional.

Quanto às duas primeiras causas de pedir, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não dispõe de legitimidade.

Com efeito, quando o requerente pede a declaração de inconstitucionalidade das normas acima referidas, com fundamento na violação dos artigos 1.º e 24.º, n.º 1, ambos da CRP, não formula um pedido de "declaração de inconstitucionalidade fundado em violação dos direitos das regiões", uma vez que os direitos das regiões são os direitos regionais constitucionalmente previstos - ou seja, «aqueles que, no próprio texto constitucional, configuram e concretizam o princípio da autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas» (Rui Medeiros, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, III, 807) - e no respectivo âmbito não se inscrevem os princípios constitucionais da protecção do direito à vida e da dignidade da pessoa humana.

É, assim, manifesta a falta de legitimidade processual do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira para fundamentar o pedido de declaração de inconstitucionalidade em violação das normas dos artigos 1.º e ou 24.º, n.º 1, da CRP, já que tal fundamento não é subsumível na previsão do artigo 281.º, n.º 2, alínea

g), da CRP.

No mais, o requerente dispõe de legitimidade.

9.2 - Delimitação do objecto do pedido formulado pelo Presidente da Assembleia

Legislativa da Região Autónoma da Madeira

Na parte em que ao respectivo conhecimento se não opõe a falta de legitimidade do requerente, o pedido formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira tem em vista a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal do «art)1.º - na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do art.142.º, do Código Penal - da Lei 16/2007, bem como de todas as normas conexas com esta alteração legislativa, que são as restantes normas da nova versão do art.142.º do Código Penal, dada por aquele art.1.º, além dos arts. 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, da Lei 16/2007, de 17 de Abril", e ainda das "normas conexas da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho, que são as normas dos respectivos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º,

23.º e 24.º» (itálico nosso).

O conjunto dos preceitos convocados pelo requerente no âmbito da definição do objecto do pedido compreende a totalidade dos enunciados contidos em ambos os diplomas questionados, apenas excepcionando, quanto à Lei 16/2007, o respectivo artigo 6.º - que dispõe sobre a objecção de consciência - e, relativamente à Portaria 741-A/2007, os respectivos artigos 12.º e 20.º - o primeiro igualmente dedicado à objecção de consciência e o segundo às comissões técnicas de certificação no exclusivo âmbito da interrupção da gravidez por grave doença ou malformação

congénita do feto ou fetos inviáveis.

Com tal extensão, o conjunto dos preceitos convocados começa por integrar dois tipos de normas: por um lado, aquelas que, procedendo juridicamente da alteração consistente no aditamento ao elenco previsto no n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal da previsão agora constante da respectiva alínea e), gravitam directamente em torno desta, tendo por isso o seu sentido e alcance funcionalmente circunscritos à interrupção voluntária da gravidez (ou, na terminologia utilizada pelo requerente, ao "aborto despenalizado, livre ou a pedido"); por outro lado, aquelas normas que, na medida em que dispõem sobre todas as interrupções da gravidez contempladas no elenco do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, se aplicam também à interrupção voluntária da gravidez prevista na referida alínea e), embora não sejam privativas de tal fattispecie e

subsistam, portanto, para além dela.

Naquela primeira categoria de normas situam-se as insertas nos n.os 3 e 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, nos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º, deste diploma, bem como as constantes dos artigos 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Portaria 741-A/2007.

Da segunda categoria fazem parte as normas dos n.º 2, 5, 6 e 7 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, bem como os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 21.º, 22 e 23.º

da Portaria 741-A/2007.

Às categorias acabadas de enunciar será possível adicionar mais uma: a das chamadas normas técnicas, auxiliares ou operacionais, aqui formada pelos artigos 7.º e 8.º da Lei 16/2007 e 24.º da Portaria 741-A/2007.

Em face dos múltiplos conteúdos normativos extraíveis dos preceitos legais convocados pelo requerente, a questão que o pedido coloca consiste justamente em saber se todas as normas acima referidas deverão considerar-se integrantes do respectivo objecto ou se, incidindo este, como dos seus termos expressamente resulta, sobre o "artigo 1.º - na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do art.142.º, do Código Penal - da Lei 16/2007" e "normas conexas com esta alteração legislativa-, somente aquelas que, constando dos enunciados legais indicados, se encontrem efectivamente conexionadas com a primeira deverão considerar-se visadas pela declaração de

inconstitucionalidade pretendida.

Dito de outro modo: trata-se de saber se a circunstância de a totalidade das normas acima referidas se objectivar nos preceitos legais indicados no requerimento as imporá automaticamente como objecto do pedido ou se a correcta configuração do mesmo não suporá a sua restrição àquelas que, cabendo nos preceitos apontados, desempenhem, relativamente à norma central constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, a função instrumental, complementar ou regulamentar que é suposta pela relação de

conexão perspectivada pelo requerente.

Apenas esta segunda hipótese é consonante, quer com os termos em que o objecto processual é apresentado, quer com a representação subjacente aos fundamentos que

sustentam o pedido.

Quanto ao objecto processual e sob esta mesma epígrafe, lê-se no requerimento o

seguinte:

«1) Em 17 de Abril de 2007, foi publicado no Diário da República, 1.ª série, a Lei 16/2007, de 17 de Abril, que no seu preceito central, passou a admitir uma nova forma de aborto despenalizado, o aborto livre ou a pedido, tal como se lê no respectivo art.

1º, que acrescentou uma nova alínea e) ao art. 142º, n.º 1, do Código Penal, nela se prescrevendo o seguinte: "Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando: [...] For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez".

2) Ora, esta norma da Lei n. º16/2007, de 17 de Abril, e por consequência as restantes normas periféricas da mesma Lei 16/2007, bem como as normas da Portaria 74 1-A/2007, de 21 de Junho, que as regulamentam, violam frontalmente a Constituição da República Portuguesa, para além de diversas convenções e textos internacionais a que Portugal se vinculou, sem ainda excluir a infracção de preceitos constitucionais, estatutários e legais atinentes à configuração da autonomia regional conferida aos arquipélagos dos Açores e da Madeira com a aprovação da Constituição da República

Portuguesa de 1976.» (itálico nosso).

A perspectiva subjacente à fundamentação do pedido confirma a relação de conexão pressuposta na descrição do objecto respectivo.

Os argumentos aduzidos pelo requerente desenvolvem-se, com efeito, em torno de afirmações como a de que «aqueles diplomas estaduais - um legislativo e o outro regulamentar - impõem uma prática de aborto despenalizado, livre ou a pedido aos órgãos regionais, sem que estes tenham dito o que quer que fosse no tocante à organização dos cuidados de saúde pertinentes, há muitos anos regionalizados»; e a de que a «pretensão estadual de obrigar o sistema regional de saúde à prática do aborto despenalizado, livre ou a pedido fora dos quadros da competente decisão regional não respeita as regras e os princípios, constitucionais e infra-constitucionais, aplicáveis, violando o núcleo da autonomia regional, que permite a livre decisão pública em muitos dos respectivos domínios»; e ainda a de que «o acesso à prestação do aborto despenalizado, livre ou a pedido corresponde a uma tarefa que se situa, do ponto de vista da sua regulação jurídica, no âmbito da competência regional, pois a "saúde" está enunciada como matéria de interesse regional na alínea m) do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira» (itálico nosso).

Tais afirmações revelam claramente que a realidade normativa pretendida sujeitar aos poderes de fiscalização da constitucionalidade é tão-somente aquela que, respeitando à interrupção voluntária da gravidez, procede da norma central contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, sendo completada pelas normas desta lei e da Portaria que directamente se lhe reportam e, na medida em que a incluem também, ainda pelos conteúdos que em ambos aqueles diplomas regulam aspectos comuns a todas as modalidades de interrupção da gravidez admitidas pelo ordenamento.

A relação de conexão expressamente pressuposta no requerimento exerce, assim, um efeito determinante da configuração última do objecto processual, funcionando como fórmula delimitadora dos conteúdos normativos sob efectivo questionamento e, por consequência, do próprio thema decidendum fixado ao Tribunal através do pedido.

Em consonância com o sentido que o pedido globalmente evidencia, o respectivo objecto deverá considerar-se, pois, limitado ao complexo normativo integrado: (i) pela norma constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei 16/2007; (ii) pelas normas contidas nos n.os 3 e 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, nos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º, deste diploma, e nos artigos 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Portaria 741-A/2007, todas daquela complementares; (iii) pelas normas objectivadas nos n.os 2, 5, 6 e 7 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, bem como nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 21.º, 22.º e 23.º da Portaria 741-A/2007, apenas na acepção que completa o regime procedente da primeira.

Por não se encontrarem conexionados com a "alteração legislativa" produzida através da edição da norma constante do "preceito central" da alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º, do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei 16/2007, deverão considerar-se excluídos do objecto do pedido os demais conteúdos normativos reportáveis aos (restantes) preceitos legais indicados no requerimento.

9.3 - Ordem de apreciação dos pedidos

A fusão, num só, de dois processos com objectos múltiplos não coincidentes, ainda que respeitantes à mesma área normativa, levanta problemas específicos quanto à ordem de apreciação dos respectivos pedidos e dos fundamentos que os sustentam. Para estabelecer uma estruturação consequente dos temas a tratar, há que avaliar a forma

como eles se relacionam entre si.

O pedido formulado pelo grupo de deputados da Assembleia da República tem em vista a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade e ilegalidade da regulação contida na Lei 16/2007, de 17 de Abril, em especial das normas insertas nos respectivos artigos 1.º - esta na parte concernente ao segmento que, revendo o artigo 142.º do Código Penal, acrescentou a alínea e) ao respectivo n.º 1 e, na sequência de tal acrescento, introduziu o actual n.º 3 e a alínea b) do n.º 4 -, 2.º, n.º 2,

e 6.º, n.º 2.

Os fundamentos invocados para a pretendida declaração integram, no que diz respeito à inconstitucionalidade formal que se lhes aponta, a violação dos artigos 1.º a 3.º, 108.º, 109.º e 115.º, n.os 1 e 11, todos da CRP, e, no que toca à inconstitucionalidade material, as normas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 24.º 25.º, 26.º, 27.º, n.º 1, 36.º, 64.º, n.os 1 e 2, alínea b), 66.º, n.º 1, 67.º, 68.º, n.º 2, 73.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, 165.º, n.º 1, alínea b), também da lei Fundamental.

Na parte em que ao respectivo conhecimento se não opõe a falta de legitimidade do requerente, o pedido formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira tem em vista a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal dos artigos 1.º - este na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º, do Código Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo -, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º e 8.º, todos da Lei 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria n.º

741-A/2007, de 21 de Junho.

Os fundamentos para a contestação da validade orgânico-formal dos conteúdos normativos inscritos nos mencionados diplomas consistem na violação da autonomia legislativa, administrativa, financeira e regional, constitucional, estatutária e legalmente configurada, bem como na violação do direito, constitucional e legal, de audição prévia das regiões autónomas, consagrado no artigo 229.º, n.º 2, da CRP.

A resolução das questões de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira só reveste utilidade se a aplicabilidade do complexo normativo impugnado não vier a resultar directamente comprometida pelo eventual reconhecimento de vícios intrínsecos determinantes da

respectiva invalidade constitucional.

A questão central que é objecto do pedido legitimamente formulado pelo grupo de deputados da Assembleia da República assume, manifestamente, natureza prejudicial em relação à apreciação de vícios atinentes à alegada afectação das competências da

Região.

Assim, o conhecimento das questões sub judice principiará pela consideração do pedido que deu origem aos presentes autos e respectivos fundamentos, pedido esse que, pela razão acabada de apontar, precede, também logicamente, aquele que

cronologicamente lhe sucedeu.

A) - Pedido formulado no âmbito do processo 733/07 e respectivos fundamentos

10 - Os vícios formais

São dois os vícios formais que, de acordo com os requerentes, afectam a Lei 16/2006, de 17 de Abril: (i) a aprovação de acto legislativo correspondente à pergunta objecto de resposta positiva no âmbito do referendo proposto na Resolução 54-A/06 da Assembleia da República e realizado no dia 11 de Fevereiro de 2007, sem que este tivesse tido eficácia vinculativa; (ii) a modificação pela Assembleia da República da disciplina jurídica contida em lei que, no âmbito das eleições em que fizeram eleger os respectivos representantes, os dois maiores partidos políticos com assento parlamentar se comprometeram a alterar somente por via referendária.

10.1 - A não vinculatividade do referendo e suas consequências A Lei 16/2007, de 17 de Abril, teve origem no Projecto de Lei 19/X, apresentado pelo grupo parlamentar do Partido Socialista.

Este projecto de lei foi apresentado em simultâneo com o Projecto de Resolução 148/X - "projecto de resolução convocando um referendo popular sobre o aborto" -, o qual, tendo sido aprovado em reunião plenária da Assembleia da República, realizada no dia 19 de Outubro de 2006, veio a dar lugar à Resolução 54-A/2006, publicada no DR, 1.ª série, de 20 de Outubro de 2006.

Previa tal Resolução que, através de referendo, os cidadãos eleitores recenseados no território nacional fossem chamados a pronunciar-se sobre a seguinte pergunta:

«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde

legalmente autorizado?».

Convocado o referendo em tais termos aprovado e realizado este no dia 11 de Fevereiro de 2007, os resultados viriam a ser os seguintes: a percentagem dos votantes quedou-se pelos 43,57 % dos eleitores inscritos no recenseamento, correspondendo a resposta positiva 59,25 % dos votos validamente expressos e a negativa a 40,75 % (cf.

Mapa Oficial, DR, 1.ª série, de 1 de Março de 2007).

Preceitua o n.º 11 do artigo 115.º da CRP (aditado, conforme é sabido, pela revisão constitucional de 1997), que «o referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento».

Este princípio encontra-se integralmente reproduzido no artigo 240.º da Lei 15-A/98, de 3 de Abril (Lei Orgânica do Regime do Referendo).

Sob a epígrafe "Dever de não agir da Assembleia da República e do Governo", o artigo 243.º do referido diploma legal estabelece, por seu turno, que «a Assembleia da República ou o Governo não podem aprovar convenção internacional ou acto legislativo correspondentes às perguntas objecto de resposta negativa com eficácia vinculativa, salvo nova eleição da Assembleia da República ou a realização de novo referendo com resposta afirmativa» (itálico nosso).

Perante estes dados do regime jurídico-constitucional e legal do referendo, fácil é concluir pela improcedência do vício formal apontado pelos requerentes.

Com efeito, encontrando-se definido um quórum de participação com base no número de eleitores recenseados (cf. os artigos 115.º, n.º 11, da CRP, e 240.º da Lei 15-A/98, de 3 de Abril) e não tendo este sido atingido, o referendo realizado a 11 de Fevereiro de 2007 não foi vinculativo, o que, do ponto de vista do condicionamento da actividade legislativa subsequente, o torna juridicamente irrelevante.

De acordo com o regime jurídico do referendo, o órgão legiferante com competência para editar a medida legislativa de sentido normativo correspondente ao da proposta submetida ao eleitorado só ficará inibido de o fazer na mesma legislatura caso se verifique um duplo condicionalismo: carácter vinculativo do referendo e vencimento da resposta negativa. Nenhuma destas condições, cumulativamente exigíveis, se verificou, pelo que a Assembleia da República não se encontrava impedida de aprovar a Lei n.º

16/2007.

A Lei 16/2007 não é, deste ponto de vista, formalmente inválida.

10.2 - A ilegitimidade material da Assembleia da República Sob invocação dos artigos 1.º a 3.º, 108.º e 109.º da CRP, os requerentes contestam ainda a validade da Lei 16/2007, com fundamento em alegada ilegitimidade material da Assembleia da República para a respectiva aprovação, ilegitimidade essa decorrente do facto de os dois maiores partidos políticos com assento parlamentar haverem feito constar dos programas eleitorais com que se apresentaram a eleições legislativas o compromisso de que somente por via referendária aceitariam modificar o regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez.

A demonstração da insustentabilidade jurídico-constitucional da construção seguida pelos requerentes quase dispensa a análise detalhada do alcance normativo atribuível ao conjunto dos parâmetros constitucionais invocados.

Em face do respectivo enunciado, torna-se desde logo evidente a impossibilidade de extrair deles qualquer regra ou princípio que juridicamente permita projectar sobre a validade dos actos legislativos aprovados pela Assembleia da República a responsabilidade, necessariamente política, que porventura possa associar-se à hipotética inobservância ou incumprimento de compromissos assumidos pelos titulares dos órgãos legiferantes através dos programas eleitorais apresentados no âmbito das

eleições em que se fizeram eleger.

No plano da construção jurídica possível, os princípios da soberania popular (artigos 1.º a 3.º) e da democracia participativa (artigo 2.º), consagrados na Constituição, não constituem fundamento idóneo de uma teoria que cruze o plano da legitimidade constitucional dos órgãos com competência legislativa e da validade dos actos praticados no exercício das respectivas competências com o plano da eventual desconformidade do sentido ou conteúdo programático de tais actos relativamente aos compromissos previamente assumidos perante o eleitorado.

A responsabilidade adveniente da inobservância de compromissos eleitorais, a existir, será de natureza exclusivamente política, concretizando-se primordialmente através do juízo de avaliação do desempenho dos titulares dos órgãos legiferantes no termo dos respectivos mandatos, juízo esse que, no exercício do poder político que lhes pertence, aos eleitores caberá formular e exprimir através do voto.

O sentido para que apontam as normas constitucionais convocadas é, de resto, inequivocamente contrário à tese sustentada pelos requerentes.

O invocado princípio da soberania popular - implicado já, enquanto fundamento da acção e legitimação do Estado, quer no artigo 1.º (vontade popular), quer no artigo 2.º (soberania popular) da Constituição (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 215) -, encontra-se particularmente densificado no n.º 1 do respectivo artigo 3.º, aí se estabelecendo que «a soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exercerá segundo as formas

previstas na Constituição».

Como aqueles Autores explicitam (ob. cit., 216), «por formas previstas na Constituição entender-se-ão as modalidades e os procedimentos jurídico-constitucionalmente previstos para a manifestação da vontade política do povo, nomeadamente as eleições e os referendos segundo os procedimentos previstos na própria Constituição [...]».

O exercício da soberania que reside no povo e do poder político a este pertencente far-se-á, portanto, através dos mecanismos tipificados na Constituição, os quais, incluindo muito especialmente a eleição, por sufrágio directo, dos membros da Assembleia da República (artigos 149.º s.), não contemplam, porém, qualquer um que viabilize a sindicância de uma eventual desconsideração de compromissos assumidos perante o eleitorado, através da invalidação, por ilegitimidade do órgão legiferante, dos actos praticados em desconformidade com o conteúdo do programa eleitoral sufragado pelos eleitores, sob proposta dos respectivos titulares.

A argumentação desenvolvida pelos requerentes é, pois, a todos os títulos,

manifestamente improcedente.

11 - Os vícios materiais

11.1 - As questões de inconstitucionalidade material: seu objecto Os vícios materiais que os requerentes apontam às normas impugnadas são enunciados nas alíneas T) a Z) das conclusões do pedido, formuladas nos seguintes termos:

«T) A possibilidade de se praticar o aborto sem alegação de fundamentos, constitui o arbítrio que deixa a mulher e a criança totalmente desprotegidos, violando-se, assim, o disposto nos arts. 1.º, 2.º, 24.º, 25.º, 36.º, 67.º, e 68.º da C.R.P.;

U) A Lei 16/2007, de l7 de Abril, deixa o progenitor masculino totalmente arredado do processo de responsabilidade e processo de formação da decisão no aborto, violando-se desta forma os arts. 1.º, 2.º, 24.º, 67.º alínea d) da C.R.P. e ainda o principio da igualdade fixado nos arts. 13.º e 36.º n.os 3 e 5 da CRP;

V) A objecção de consciência prevista na Lei 16/2007, de 17 de Abril, parece lesar a dignidade dos médicos, ao consagrar, no n.º 2 do seu artigo 6.º, um tratamento discriminatório desse mesmos médicos objectores à interrupção voluntária da gravidez;

W) A informação fixada na Lei 16/2007, de 17 de Abril, como prévia ao consentimento, assenta na selectividade de informação, na assimetria informativa e triplamente indirecta, o que tange com os Princípios Constitucionais de igualdade e proporcionalidade e, assim, com o disposto nos arts. 18.º n.º 2, 25.º n.º 1 e 27.º n.º 1,

da C.R.P.;

X) A alteração ao artigo 142.º do Código Penal, introduzindo uma alínea e) no seu n.º 1, deixa totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas, impondo ao Estado que contribua para a eliminação de vidas humanas (através, por exemplo, do SNS e das prestações sociais inerentes - artigo 35.º n.º 6 do Código de Trabalho), sem que para tal seja necessário alegar quaisquer razões ou fundamentos;

Y) Tal disposição atenta, assim, contra a base antropológica constitucionalmente estruturante do Estado de Direito, violando, desse modo, os arts. 1.º, 2.º, 24.º, 25.º, 26.º, 68.º n.º 2 e 73.º n.º 2, da C.R.P. e Z) Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco para a saúde física e mental da mulher, e dando por assente o aborto por carências económicas, o regime fixado na Lei 16/2007, de 17 de Abril, liberta o Estado da sua função de solidariedade e protecção da saúde física e psíquica, violando, assim, o disposto nos arts. 64.º n.º 1 e 2, al. b), e 66.º n.º 1 da C.R.P.» Este articulado conclusivo, devidamente integrado pelas considerações argumentativas que o antecedem e sustentam, permite certificar que o objecto do pedido compreende normas da Lei 16/2007, de 17 de Abril, situadas em distintos planos e dimensões da disciplina legal da interrupção voluntária da gravidez.

Contestada é, desde logo, a validade constitucional de uma previsão de impunibilidade da interrupção voluntária de gravidez não dependente da alegação de motivos taxativamente descritos e de verificação objectivamente controlável. Censura-se a própria mutação do sistema legal de não punibilidade desse acto, com a consagração, por via da introdução da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, de uma solução ajustada ao "modelo de prazos", deixando o sistema de se conformar exclusivamente pelo "modelo das indicações". Esta opção de fundo, traduzida na despenalização da interrupção voluntária da gravidez, quando realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas da gestação, sem necessidade de invocação de razões justificativas, é, em si mesma, antes e independentemente da apreciação do concreto regime vazado nas soluções legislativas que lhe dão corpo, considerada incompatível com o dever de protecção da vida intra-uterina.

Não escasseiam, na motivação do pedido, afirmações explicitantes desta posição de princípio. É assim, por exemplo, que, a dado passo, os requerentes se interrogam:

«Porém, se a Lei não exige que a mulher alegue os fundamentos pelos quais procura o aborto, como pode o Estado exercer o seu papel social de protecção à maternidade e

à vida humana carenciada?».

E, mais adiante, acrescentam:

«Por isso, a alteração ao Código Penal que permita a uma mulher decidir da vida ou morte de um ser humano, sem que para tal invoque fundamentos, é deixar totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas.

É conferir a um ser (Mãe) o direito a decidir da vida de outrem, ainda que por motivos

fúteis.

[...] Sobretudo, importa insistir em que se prevê um aborto "ad nutum", discricionário, sem qualquer necessidade de justificação, quando a restrição a um direito fundamental como a vida, mesmo que pudesse ser admitida, tem sempre de ser devidamente

justificada.

O aborto, por outras palavras, não pode nunca ser um direito (espaço de uma

insindicável autonomia privada).

Por isso é extremamente importante que se faça o cotejo do sistema que temos com o sistema das indicações, pois só este se apresenta conforme com estas exigências».

Mas, a este alegado vício, verdadeiramente matricial, de desconformidade com a Constituição, haveria, na óptica dos requerentes, que adicionar outros, atinentes a aspectos parcelares da concreta modelação das soluções legislativas.

Alguns desses aspectos contendem ainda com a protecção da vida humana

intra-uterina.

É o caso da disciplina normativa da consulta obrigatória prevista no artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei 16/2007, de 17 de Abril, e no artigo 2.º, n.º 2, deste diploma legal. Nos termos daquela primeira disposição, tal consulta destina-se a "facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável". Mas, quanto às suas finalidades e ao seu conteúdo, a informação prevista não preencheria as condições necessárias para satisfazer o imperativo constitucional de protecção da vida intra-uterina, mesmo a admitir-se que ele tem que ser confrontado, segundo o método da concordância prática, com o valor da liberdade da mãe.

Na verdade, estaríamos perante uma "prestação puramente informativa" e não "um aconselhamento pró-vida", arguindo-se que, sem este, "o Estado português queda-se indiferente e neutro perante a ameaça à vida humana".

Quanto ao conteúdo, a norma constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, mereceria reparo constitucional, na medida em que exclui do âmbito da informação a prestar à gestante através da consulta o conhecimento sobre as consequências da efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez para o embrião, as condições de apoio que as instituições não estaduais prestam à prossecução da gravidez e da maternidade e o regime da adopção em Portugal. Das informações relevantes, a prestar na consulta médica obrigatória, deveria também

constar uma imagem da ecografia do feto.

Sem estas informações suplementares, resultaria clara a violação do princípio da proporcionalidade, «[...] desde logo, porque a consulta informativa não é idónea à protecção do fim a que se destina - tutela da vida humana intra-uterina - e porque privilegia desnecessariamente um dos bens constitucionais em conflito - o valor da liberdade de escolha da mulher - em nada acautelando o outro dos valores em

presença».

Para isso contribuiria também a opção normativa expressa na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, a qual limita a três dias o prazo mínimo de reflexão que medeia entre a realização da primeira consulta médica e a concretização da interrupção da gravidez.

Para além da protecção da vida intra-uterina, outros bens ou valores constitucionais são alegadamente afectados por outros pontos do regime legal constante da Lei n.º

16/2007.

"O regime fixado na Lei 16/2007, de 17 de Abril", não acautelaria o direito à protecção da saúde física e psíquica da mulher. Estariam em causa também o direito à liberdade e o princípio da proporcionalidade, ofendidos pelo disposto nos artigos 2.º da Lei 16/2007 e 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal.

A omissão da exigência de participação do progenitor masculino do processo de decisão quanto à interrupção violaria o direito à igualdade na parentalidade. Esse sujeito "poderia e deveria ser chamado ao aconselhamento a fim de, também ele, tomar a responsabilidade por aquele filho, ainda que a decisão última fosse da mulher".

De "duvidosa constitucionalidade" é considerado o disposto no artigo 6.º, n.º 2, na medida em que exclui das consultas previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal os médicos objectores de consciência.

Por último, a norma do artigo 2.º, n.º 2, estaria ferida de inconstitucionalidade, na medida em que admite a regulamentação por portaria da informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, não obstante estar em causa matéria de direitos fundamentais.

De uma forma ou de outra, todas estas questões irradiam da questão central da admissibilidade, e suas condições, da não utilização da sanção penal como instrumento de tutela da vida intra-uterina. Elas apresentam-se geneticamente conexionadas com esta última, pelo que a sua consideração poderá vir a revelar-se prejudicada pela

valoração que ela suscite.

Justifica-se, assim, que a apreciação das questões de inconstitucionalidade material postas se inicie pela questão central, de primeiro grau, acima enunciada, tratada à luz do parâmetro nuclear da inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º da

CRP.

Antes, porém, impõe-se uma curta alusão à necessidade de consideração de certas normas de direito internacional invocadas pelos requerentes e aos antecedentes legais e

jurisprudenciais da Lei 16/2007.

11.2 - A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos

Direitos do Homem como parâmetros

Os requerentes entendem que a Lei 16/2007 contém várias soluções normativas que violam, não só a Constituição, mas também a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Sustentam que os referidos textos de direito internacional vinculam o Estado português por via do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, constituindo as respectivas disposições parte integrante do ordenamento jurídico português, e que as normas da Lei 16/2007 que as contrariem padecem de um vício de "inconstitucionalidade e

ilegalidade".

Importa, portanto, averiguar se as ditas Declaração e Convenção podem, no presente processo, assumir a função paramétrica pretendida pelos requerentes e se o Tribunal Constitucional é competente para conhecer dos eventuais vícios resultantes da desconformidade da Lei 16/2007 àquelas declarações e convenções.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi adoptada e proclamada pela Assembleia-geral das Nações Unidas, na sua Resolução 217A (III), de 10 de Dezembro de 1948. Portugal é membro da ONU desde 14 de Dezembro de 1955.

Por seu turno, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem foi assinada em 4 de Novembro de 1950, em Roma, e entrou em vigor em 3 de Setembro de 1953, tendo sido ratificada por Portugal pela Lei 65/78 de 13 de Outubro.

Estamos, no primeiro caso, perante uma declaração solene adoptada por um órgão de uma organização internacional que Portugal integra. Tal declaração não constitui, contudo, direito internacional convencional que vincule o Estado português, à luz do

artigo 8.º, n.º 2, da Constituição.

Somente enquanto contém normas ou princípios de direito internacional ou comum é que a Declaração tem valor vinculativo e constitui fonte de direito material, por via do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da lei Fundamental.

Além disso, a Declaração Universal dos Direitos do Homem possui uma relevância normativa específica por ser critério de interpretação e integração das normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais (artigo 16.º, n.º 2, da Constituição) - cf., sobre esta matéria, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit.,. 367, Jorge Miranda, "A Declaração Universal dos Direitos do Homem", in Estudos sobre a Constituição, Tomo I, Lisboa, 1977, 58 e 60, e Luís Serradas Tavares, A aplicação interna das convenções internacionais face ao controlo do Tribunal Constitucional,

Lisboa, 1997, 158.

Não obstante - e tal sucede com o texto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, esse sim, integrando o direito internacional recebido por força do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição -, a sua convocação não é, conforme adiante melhor se verá, forçosa, no presente contexto de controlo da constitucionalidade.

Com efeito, quando confrontada, quer com o artigo 1.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ("O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei"), quer com o artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem ("Todos os homens têm direito à vida"), a fórmula normativa constante do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, exprime um parâmetro de controlo que compreende já em si as injunções de sentido que das primeiras advêm, tornando dispensável a sua consideração

autónoma.

11.3 - Antecedentes legais e jurisprudenciais da Lei 16/2007 Em matéria de interrupção voluntária de gravidez, assistimos, nas últimas décadas, a uma evolução faseada do ordenamento jurídico-penal português, com mudanças de conformação normativa que deram, em pontos decisivos, uma nova configuração à

disciplina legal.

Foi a Lei 6/84, de 11 de Maio, que, dando nova redacção aos artigos 139.º a 141.º da Código Penal de 1982, consagrou, entre nós, pela primeira vez, um sistema legal de previsões de impunibilidade da interrupção voluntária de gravidez. Passou a admitir-se a existência de "causas de exclusão da ilicitude", em função de determinadas indicações, ditas terapêutica (alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 140.º), embriopática, fetopática ou por lesão do nascituro (alínea c) do mesmo artigo) e criminal, criminológica, ética, jurídica ou humanitária (alínea d) igualmente do n.º 1 do artigo 140.º) - cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra,

1999, 168.

Assim se pôs termo ao regime até aí vigente de proibição absoluta da interrupção voluntária da gravidez, dando-se concretização aplicativa ao chamado "modelo das indicações" - ainda que de forma restritiva, pois não foi reconhecida a valência, como

causa de exclusão, da indicação social.

Esta viragem no tratamento jurídico-penal da interrupção voluntária de gravidez deu azo a dois acórdãos deste Tribunal: um primeiro, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a requerimento do Presidente da República (Acórdão 25/84, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º vol., 7 s.); mais tarde, um outro, em processo de fiscalização abstracta sucessiva, a requerimento do Provedor de Justiça - Acórdão 85/85, ibidem, 5.º vol., 245 s.). Em ambos, foi aceite a validade constitucional do modelo das indicações consagrado nos termos acima referidos, tendo-se concluído pela não inconstitucionalidade das normas em causa.

A reforma do Código Penal operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, a par de aperfeiçoamentos de tipo formal, introduziu algumas alterações substantivas não

essenciais quanto ao sentido da disciplina.

Mantendo o modelo das indicações nos termos em que o havia consagrado a Lei 6/84, de 11 de Maio, a reforma de 95 quedou-se, com efeito, pelo alargamento da fattispecie correspondente à indicação criminal - estendendo-a, para além da já prevista hipótese de violação da mulher, a todos os casos em que a gravidez tivesse resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual -, e pela alteração da epígrafe do artigo 142.º do Código Penal: de "exclusão da ilicitude do aborto" passou para "interrupção da gravidez não punível".

Note-se que a modelação entre nós consagrada era notoriamente menos extensa, quanto à zona de impunibilidade, do que as igualmente tributárias do "modelo de indicações", mas prevendo, entre estas, a de carácter económico e social.

Foi este o quadro normativo em que, no decurso do 1997, três projectos de lei tendentes a alterar o regime jurídico da interrupção da gravidez foram apresentados na Assembleia da República, um pelo Grupo Parlamentar do PCP (com o n.º 177/VII) e os restantes dois por Deputados do Grupo Parlamentar do PS (n.os 236/VII e

235/VII).

Formulando os dois primeiros propostas de exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas, apenas o terceiro viria a ser aprovado, dele tendo resultado a Lei 90/97, de 30 de Julho.

Através da nova redacção conferida às alíneas c) e d) do artigo 142.º do Código Penal, tal diploma limitou-se a ampliar de 16 para 24 semanas o prazo previsto para a interrupção da gravidez por lesão do nascituro, abolindo-o no caso de fetos inviáveis, e de 12 para 16 semanas nas hipóteses de indicação criminal.

Na sessão legislativa seguinte, novos projectos de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez foram apresentados: o projecto de lei 417/VII (PCP) e os projectos de lei 451/VII e n.º 453/VII, ambos procedentes da bancada parlamentar do PS.

Aquele segundo, aprovado na generalidade, preconizava a despenalização da interrupção voluntária da gravidez realizada nas 10 primeiras semanas de gestação, após consulta de aconselhamento, «para preservação da integridade moral, dignidade social e da maternidade consciente», assentando assim «numa combinação entre uma solução de prazos e um regime de indicações genéricas, com obrigatoriedade de aconselhamento antes da decisão final pela mulher» ("Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias", DAR, II-A, 29.º, de 5-2-98). A par disso, propunha ainda a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez caso se mostrasse «indicada para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica, da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica ou social», quando realizada nas 16

primeiras semanas de gestação.

Contudo, em Março de 1998, a Assembleia da República, enveredando por um outro tipo de procedimento legiferante, viria a aprovar a Resolução 16/98 (DR, 1.ª série-A, de 31 de Março de 1998), propondo que, mediante referendo a realizar, os cidadãos eleitores recenseados no território nacional fossem chamados a pronunciar-se sobre a seguinte pergunta: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?» Nos termos do n.º 8 do artigo 115.º da CRP, o Presidente da República requereu, então, ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela mencionada Resolução.

Exercendo os poderes de verificação prévia da «constitucionalidade e legalidade dos referendos nacionais» que se lhe encontram atribuídos pelo artigo 223.º, n.º 2, alínea f), da CRP, este Tribunal, pronunciando-se pela terceira vez sobre o tema, tratou a questão de «saber se a pergunta formulada não colocava os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta[va] para uma solução jurídica incompatível com a Constituição».

Pelo Acórdão 288/98, o Tribunal Constitucional decidiu ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução 16/98 da

Assembleia da República.

Realizado a 28 de Junho de 1998, o referendo apresentou os seguintes resultados: a resposta negativa foi expressa por 50,9 % dos votantes, a afirmativa por 49,1 %, tendo-se abstido 68,1 % dos cidadãos com capacidade eleitoral para o acto - cf.

Mapa Oficial 3/98, DR, 1.ª série-A, de 10 de Agosto de 1998.

Mercê do nível de abstenção registado, o referendo não foi vinculativo, nos termos do artigo 115.º, n.º 11, da Constituição, tendo a Assembleia da República, não obstante, optado por não prosseguir os trabalhos legislativos em curso com a aprovação na generalidade do projecto de Lei 451/VII.

Em Setembro de 2005, a mesma pergunta foi apresentada como objecto de uma proposta de referendo, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º

52-A/2005.

Pelo Acórdão 578/2005, de 28 de Outubro (DR, 1.ª série-A, de 16 de Novembro de 2005), este Tribunal entendeu, todavia, que não se encontravam cumpridas as exigências constitucionais, em face do artigo 115.º, n.º 10, da Constituição - designadamente por se infringir a proibição de renovação da iniciativa do referendo "na mesma sessão legislativa" -, não tendo chegado a apreciar a substância da pergunta.

Em Reunião Plenária de 19 de Outubro de 2006, a Assembleia da República aprovou, após debate, o Projecto de Resolução 148/X.

Previa tal Resolução (Resolução 54-A/2006, publicada no DR, 1.ª série, de 20 de Outubro de 2006) que, através de referendo, os cidadãos eleitores recenseados no território nacional fossem chamados a pronunciar-se sobre a mesma exacta pergunta com que haviam sido confrontados em 98 e cujo teor era, por isso, o seguinte:

«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde

legalmente autorizado?».

Requerida pelo Presidente da República a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo em tais termos aprovada, defrontou-se uma vez mais este Tribunal com a questão de saber «se uma concordância com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, implica[ria] uma solução inconstitucional e, inversamente, se de uma resposta negativa resulta[ria] também uma

tal solução».

Delimitando introdutoriamente o âmbito da análise requerida e a empreender, o Tribunal não deixou de esclarecer que o mesmo não abrangeria «a apreciação de todas as soluções legislativas concretas que uma resposta afirmativa ou negativa [pudesse] sustentar». Em causa foi considerado apenas estar «a verificação ou controlo sobre se uma das respostas (ou até as duas) do dilema subjacente à pergunta determina[ria] uma violação da Constituição, inquinando todas as soluções legislativas concretas que se

apoi[assem] nessa mesma resposta».

À questão assim caracterizada respondeu este Tribunal através do Acórdão 617/2006, por meio do qual julgou verificada a constitucionalidade e legalidade do referendo proposto na Resolução 54-A/06 da AR.

Convocado o referendo e realizado este no dia 11 de Fevereiro de 2007, os resultados viriam a ser os seguintes: a percentagem dos votantes quedou-se pelos 43,57 %, correspondendo a resposta positiva a 59,25 % dos votos validamente expressos e a negativa a 40,75 % (cf. Mapa Oficial, DR, 1.ª série, de 1 de Março de 2007).

Apesar do resultado oposto ao de 1998, também este referendo não foi vinculativo, nos termos do artigo 115.º, n.º 11, da Constituição.

Em 8 de Março de 2007, foi aprovada pela Assembleia da República a Lei n.º 16/2007, promulgada pelo Presidente da República, sem pedido de fiscalização

preventiva da constitucionalidade.

A Lei 16/2007 viria a ser regulamentada pela Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho (DR, 1.ª série, de 21 de Junho de 2007), estabelecendo esta as medidas a adoptar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos com vista à realização da interrupção da gravidez nas situações previstas no artigo 142.º do Código Penal, na redacção que por aquela lhe foi conferida.

11.4 - O regime de impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez introduzido pela Lei 16/2007 e o imperativo constitucional de protecção da vida humana 11.4.1 - Articulação da questão com o objecto dos Acórdãos n.os 288/98 e

617/2006. Método da sua apreciação

Como se viu, por ocasião das alterações mais significativas da disciplina legal da interrupção voluntária da gravidez, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre questões de constitucionalidade por elas suscitadas. Pondo de lado o Acórdão 578/2005, que não chegou a decidir questões de fundo, é possível agrupar os quatro restantes arestos sobre a matéria em dois blocos, consoante o thema decidendum: os Acórdãos n.os 25/84 e 85/85 tiveram como objecto a reforma legislativa que previu causas objectivas de exclusão da ilicitude, de acordo com o "modelo das indicações"; os Acórdãos n.os 288/98 e 617/2006, debruçando-se sobre uma pergunta referendária, pronunciaram-se sobre a constitucionalidade de uma nova previsão de despenalização da interrupção voluntária da gravidez: a efectuada por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado - solução que deu guarida ao "modelo de prazos".

Para além de consagrar normativamente a previsão de uma interrupção voluntária de gravidez, sem punição, dentro daquele prazo, a Lei 16/2007 disciplinou, em concreto, o modo operativo desse acto, através de um conjunto de normas interligadas, de natureza organizatória e procedimental. Correspondentemente, o objecto do presente recurso de constitucionalidade é mais amplo e diversificado do que a questão em juízo no âmbito dos Acórdãos n.os 288/98 e 617/2006: não se restringindo à admissibilidade, de princípio, daquela modalidade de intervenção interruptiva da gravidez, ele recai também sobre algumas opções legislativas expressas na malha de preceitos que dão unitariamente forma legal precisa e acabada à disciplina daquele acto.

Nessa medida, o Tribunal confronta-se agora com questões novas. Mas, mesmo em relação à questão já objecto dos Acórdãos n.os 288/98 e 617/2006, o presente recurso apresenta uma específica dimensão inovatória, que cumpre precisar.

Naqueles acórdãos, em juízo esteve, fundamentalmente, a admissibilidade de se prescindir, dentro das primeiras 10 semanas de gestação, da indicação, como causas justificativas, de determinadas circunstâncias, de verificação objectivamente controlável.

Ora, entre as normas impugnadas no presente recurso, figura primariamente a que se aloja na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007. Em conjugação com o proémio desse número, nela se determina que «não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando for realizada, por opção da mulher, nas

primeiras 10 semanas de gravidez».

Trata-se de uma disposição normativa vestibular, que abre a porta a ulteriores regulações com ela conexionadas, só em conjunto se definindo, com completude, os traços da solução agora consagrada no ordenamento jurídico-penal português.

Mas, poder-se-ia dizer que a previsão e a estatuição daquela alínea e), em si mesmas, coincidem, no essencial, com a proposição normativa sobre que os referidos acórdãos

já se pronunciaram.

A identidade de enunciados e dos campos problemáticos em que se inserem não deve, todavia, iludir quanto à diversidade das questões suscitadas. Para consciencializar essa diferença, é imperioso atender aos distintos planos e contextos em que se situaram aqueles dois arestos, por confronto com os que se nos deparam nos presentes autos.

Os Acórdãos n.os 288/98 e 617/2006 deram resposta à questão da constitucionalidade de uma proposta referendária. O objecto da consulta a submeter ao voto dos cidadãos reportava-se a uma opção programática, a uma simples potencialidade de normação futura, visando obter a expressão de concordância ou não com uma possível reforma legislativa, apontada sinteticamente, pela opção de fundo que maximamente a caracterizava. Uma eventual resposta afirmativa não efectivaria, por si só, qualquer mudança na ordem jurídica, apenas legitimaria a intervenção, nesse sentido, do legislador, cabendo a este a conformação última do regime concretizador dessa mudança. E, tratando-se de um regime que coenvolve condições substantivas e procedimentais de não punibilidade de um acto e regras organizatórias do exercício do direito a prestações estaduais necessárias para a sua realização, com múltiplas variantes hipoteticamente possíveis, era impensável que a pergunta referendária já contivesse, de forma esgotante, as soluções concretas a adoptar, nesse domínio (cf., nesse sentido, o Acórdão 617/2006 e a declaração de voto da Conselheira Maria dos Prazeres

Beleza).

É particularmente nítido, em face de alterações legislativas deste tipo, que "o controlo preventivo da constitucionalidade e da legalidade das propostas de referendo não consome a fiscalização [preventiva] da lei subsequente que o vier concretizar" (Gomes Canotilho, "Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2006", RLJ, ano

136.º, 2007, 311 s., 317).

Por isso mesmo, o juízo de não inconstitucionalidade que recaiu sobre ambas as propostas referendárias se contentou com a conclusão de que «nenhuma das respostas - afirmativa ou negativa - à pergunta formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição» - alínea j) da decisão do Acórdão 288/98 e alínea i) da decisão do Acórdão 617/2006 [itálico nosso]. Para fundar um juízo de não inconstitucionalidade da consulta referendária bastou admitir que o sentido da resposta não fechava a porta a qualquer ulterior solução jurídica conforme à Constituição, ou, como se diz no último dos referidos Acórdãos, que "nada permite concluir que, em caso de resposta afirmativa no referendo, [medidas suficientes de protecção] não possam vir a constar da legislação aprovada, na sua sequência".

O objecto do presente recurso é precisamente parte do complexo normativo que dá corpo à reforma legislativa referendada. A previsão de uma nova modalidade de intervenção abortiva não punível, constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, já não vem agora, como na pergunta do referendo, descarnadamente formulada, sem mais indicações normativas a ela associadas. Ela é apenas uma componente - posto que componente essencial - de um mais amplo sistema regulador.

Sistema que contém aspectos da disciplina legal que constituem relevantes factores de ponderação da existência e da medida de um nível de protecção constitucionalmente adequado da vida pré-natal - o que, não é de mais lembrá-lo, figura como a questão nuclear suscitada pelo recurso em apreciação.

Com esses elementos normativos certos e actuais (por constantes da disciplina em vigor), e não meramente conjecturáveis como de consagração futura, fechou-se o círculo deixado em aberto pela questão de que se ocuparam os dois precedentes acórdãos. O Tribunal está agora em condições de formular um juízo quanto à validade constitucional de um complexo normativo totalizantemente regulador, com uma unidade de sentido que lhe é dada pela coligação de uma proposição normativa de base - a da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal - com disposições complementares,

a ela associadas.

Já não está em causa simplesmente a admissibilidade, de princípio, da directriz basilar do modelo de prazos, mas a admissibilidade de uma certa forma legislativa de concretização dessa orientação. Sendo assim, os aspectos modais que dão rosto acabado ao regime despenalizador, com relevância para o juízo de constitucionalidade, devem ser sopesados em simultâneo, pois também eles concorrem para a definição normativa do padrão de conduta tido como dispensador da criminalização. A valoração conjunta de todos esses dados normativos é produtiva de sentido, e de sentido relevante para a determinação precisa das concepções que inspiraram o regime em apreço e da intencionalidade que presidiu à sua consagração.

O pedido destaca autonomamente, como vimos, a questão primária da não punibilidade da intervenção voluntária da gravidez, em determinado período inicial, por opção da mulher, sem necessidade de justificação. São, mesmo, invocados os resultados do referendo, a que é atribuído "grande valor 'consultivo'", demonstrativo de que "só 25 % dos portugueses quer o aborto livre em Portugal", para fundamentar que "se volte a

apreciar" a questão.

Mas essa questão não pode ser reposta nos mesmos termos em que anteriormente, nos Acórdãos n.os 288/98 e 617/2006, esteve em juízo. Tendo entrado em vigor uma regulação legislativa, em concreto, dos procedimentos a observar como condição de impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, a consagração desta nova modalidade de interrupção não sancionável criminalmente não pode ser encarada em abstracto e isoladamente, de forma estanque às inferências de

sentido que advêem dessa regulação.

Tal só se justificaria se o Tribunal entendesse que uma solução correspondente ao modelo dos prazos nunca, qualquer que seja a sua conformação concretizadora, pode satisfazer o mandamento constitucional aplicável, ou, inversamente, que ela é sempre, independentemente da existência e da natureza de mecanismos de tutela da vida

intra-uterina, constitucionalmente conforme.

O Tribunal não adopta, porém, nenhuma destas duas posições, em radical oposição

bipolar.

A primeira traduziria uma ruptura com a linha de orientação e com as decisões adoptadas nos Acórdãos n.os 288/98 e 617/2006. Ora, não se produziu, com vencimento, qualquer divergência com as concepções que informam aqueles arestos, mantendo o Tribunal integralmente o entendimento de que o dever de protecção da vida intra-uterina, que sobre o Estado recai, não exige, como conteúdo mínimo, numa fase inicial, a invocação de razões, taxativamente indicadas, para lhe pôr termo.

A segunda posição decorre da assunção de que, nessa fase, o Estado pode alhear-se do destino do feto, sem que se lhe imponha, em relação a esse período, qualquer dever de emissão de normas de protecção. Ainda não haveria, nessa fase, qualquer conflito entre bens constitucionalmente protegidos, pelo que a decisão da gestante em abortar, do seu estrito foro pessoal, seria livre e incondicionada - como ainda hoje se reconhece, malgrado todas as contestações, no sistema jurídico norte-americano, na sequência da jurisprudência firmada pelo Supreme Court, no caso Roe v. Wade, de

1973.

Também esta solução não merece acolhimento. O Tribunal perfilha o entendimento contrário de que a vida intra-uterina é um bem digno de tutela em todas as fases pré-natais, sem prejuízo de admitir diferentes níveis e formas de protecção, em correspondência com a progressiva formação do novo ente.

Dentro destas coordenadas, o se da admissibilidade da consagração do modelo de prazos é questão que não pode agora ser desligada do como da sua concreta configuração. O que cumpre fundamentalmente valorar é se, tendo em conta a modelação concreta da disciplina legal, a solução da impunibilidade, dentro desse contexto normativo, corresponde ou não a "deixar totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas", como se sustenta no pedido.

Mas a unidade valorativa daquelas duas vertentes da questão não se opõe a uma analítica discursiva, seguindo um percurso argumentativo feito de passos sucessivos e em cadeia, tomando como ponto de partida as posições de base que nelas se projectam. Só assim se ganha uma visão clara de todas as dimensões coenvolvidas e do seu peso próprio na fundamentação da resposta às questões de constitucionalidade

objecto deste recurso.

É esse método que aqui seguiremos.

11.4.2 - A questão central de constitucionalidade formulada no pedido estrutura-se, fundamentalmente, em torno da questão de saber se, com o regime constante dos artigos 142.º, n.º 1, alínea e), n.º 4, alínea b), do Código Penal, e 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, o Estado cumpre, ou não, o dever que sobre ele impende de protecção da

vida intra-uterina.

De relevo determinante, como questão prévia cuja resposta interfere praticamente em todas as valorações a efectuar, é a definição do estatuto constitucional do ser em gestação, o mesmo é dizer, a identificação do alcance, no que diz respeito à protecção da vida intra-uterina, da inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º da

CRP.

Logo nos dois primeiros acórdãos sobre este tema, o Tribunal tomou posição clara

quanto a esta questão.

Considerando que a vida intra-uterina está abrangida pelo âmbito de protecção daquela norma - o que, anteriormente, o Parecer 31/82 da Procuradoria-Geral da República (BMJ 320.º, 224 s) não dera como certo -, o Tribunal acentuou, no Acórdão 25/84, que ela representava "um valor não juridicamente subjectivado", o que não podia deixar de ser tido em conta no confronto a estabelecer "com outros valores juridicamente subjectivados na mulher grávida, com a natureza de direitos

fundamentais".

Esta ideia foi precisada e desenvolvida no subsequente Acórdão 85/85, sendo aí qualificada como uma das duas "ideias determinantes da posição que colhe apoio dominante no Tribunal". Escreveu-se, a seu respeito:

«Por um lado, entende-se que a vida intra-uterina compartilha da posição que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucional objectivo), mas que não pode gozar da protecção constitucional do direito à vida propriamente dito - que só cabe a pessoas -, podendo portanto aquele ter que ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou com outros

valores constitucionalmente protegidos.

[...] Só as pessoas podem ser titulares de direitos fundamentais - pois não há direitos fundamentais sem sujeito -, pelo que o regime constitucional de protecção especial do direito à vida, como um dos "direitos, liberdades e garantias pessoais", não vale directamente e de pleno direito para a vida intra-uterina e para os nascituros.

[...] A verdade é que o feto (ainda) não é uma pessoa, um homem, não podendo por isso ser directamente titular de direitos fundamentais enquanto tais. A protecção que é devida ao direito de cada homem à sua vida não é aplicável directamente, no mesmo

plano, à vida pré-natal, intra-uterina.»

Não se afastou desta orientação o Acórdão 288/98, onde se deixou registado:

«Nesta visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual constituirá uma verdadeira

imposição constitucional.

Todavia, essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo grau de densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido - em cada pessoa».

Finalmente, no Acórdão 617/2007, exarou-se:

«Da inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva, desde logo, que a protecção contra agressões postule um direito subjectivo do feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de uma protecção objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional portuguesa e de outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome da dignidade da vida humana não significa que haja título idêntico ao reconhecido a partir do nascimento».

O Tribunal não vê fundamento para rever esta posição, que sempre tem perfilhado.

Sem dúvida nenhuma que o feto é digno de protecção pela sua potencialidade em se tornar uma pessoa, um "eu" consciente da sua individualidade própria, mas, como acentuou Ovadia Ezra, "a potencialidade de aquisição de um determinado estatuto não confere a titularidade dos direitos associados a esse estatuto" (The Withdrawal of Rights. Rights from a Different Perspective, Dordrecht/Boston/London, 2002, 204).

Sendo assim, uma resposta negativa, quanto ao cumprimento, pelo Estado, do seu dever de protecção, só poderá ser emitida se se concluir que o regime em apreço não traduz um suficiente respeito pela valia intrínseca da vida humana.

11.4.3 - O tratamento da questão assim enunciada não pode passar sem uma alusão, perfunctória embora, à dogmática dos imperativos jurídico-constitucionais de protecção, reportada à inviolabilidade da vida intra-uterina, enquanto bem objectivo.

O Estado não está apenas obrigado ao respeito da vida pré-natal, abstendo-se de qualquer acção susceptível de acarretar a destruição do seu desenvolvimento no ventre materno. Sobre ele recai também uma vinculação a prestações satisfatórias da "garantia de efectivação" (artigo 2.º da CRP) de tal valor, designadamente contra potenciais agressões de terceiros ou da própria gestante - dimensão sobre que, atenta a sua natureza, repousa o essencial da consistência prática do bem em causa.

Esta injunção constitucional comporta seguramente o dever de adopção de medidas preventivas, numa dupla direcção: a de evitar situações de gravidez indesejada (em que se insere a garantia do "direito ao planeamento familiar" consagrada na alínea d) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP) e a de contrariar motivações abortivas, uma vez iniciado esse estado. Aqui se incluem também medidas incentivadoras, sem esquecer as que visam o exercício (mas também, antes dele, a assunção) de uma maternidade consciente (cf. a mesma alínea), as quais têm uma iniludível projecção irradiante, de sentido tutelador,

neste campo.

É neste vasto e diversificado universo de normas e de estruturas (também) de protecção do bem da vida pré-natal que se incrusta a regulação do acto específico de interrupção voluntária da gravidez, onde predominam os instrumentos de direito penal.

Na fixação dessa disciplina, goza o legislador ordinário de uma ampla margem de discricionariedade legislativa, balizada por dois limites ou proibições, de sinal contrário.

Ele deve, por um lado, não desrespeitar a proibição do excesso, por afectação, para além do admissível, da posição jurídico-constitucional da mulher grávida, nas suas componentes jusfundamentais do direito à vida e à integridade física e moral, à liberdade, à dignidade pessoal e à autodeterminação. Mas também deve, no pólo oposto, não descurar o valor objectivo da vida humana, que confere ao nascituro (à sua potencialidade de, pelo nascimento, aceder a uma existência autonomamente vivente) dignidade constitucional, como bem merecedor de tutela jurídica. O cumprimento desse dever está sujeito a uma medida mínima, sendo violada a proibição de insuficiência ("Untermassverbot") quando as normas de protecção ficarem aquém do

constitucionalmente exigível.

Como a doutrina tem justamente salientado - cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986, 420-422, e Claus-Wilhelm Canaris, Direitos fundamentais e direito privado, Coimbra, 2003, 65-66, e 115-116 - do ponto de vista da liberdade de actuação estadual e, em particular, de conformação legislativa, é grande a diferença estrutural entre os deveres negativos, de abstenção, e os positivos, de activa intervenção tuteladora. No domínio dos primeiros, assente que uma certa e determinada medida é ofensiva de um direito fundamental, o dever de a omitir impõe-se, prima facie. Isto porque a proibição de aniquilar ou afectar esse direito abrange toda e qualquer ingerência com tal virtualidade, incluindo, portanto, aquela específica medida que está em apreciação.

Inversamente, o dever de protecção não importa a automática ordenação de todas as iniciativas a que seja de imputar esse resultado. E isto porque, enquanto que a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de todas as acções de destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de protecção ou promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional nesse sentido. Quando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção, nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado. Somente se existir uma única acção suficiente de promoção ou protecção é que ela se torna necessária para o cumprimento

do dever de protecção.

O que se retira da Constituição é apenas o dever de proteger, não estando predeterminado, nessa sede, um específico modo de protecção. Já Otto Bachof, em texto hoje clássico, o pôs em destaque, salientando que nenhum dos concretos problemas regulativos postos pela protecção da vida ainda por nascer encontra "resposta imediata na Constituição", pelo que, para a sua decisão, "o legislador há-de dispor consequentemente de uma larga margem de liberdade" - "Estado de direito e poder político: os tribunais constitucionais entre o direito e a política", Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LVI (1980), 1 s., 19.

As inevitáveis opções a fazer, neste domínio, são, pois, pertença do legislador ordinário, sendo este colocado perante um espectro de soluções normativas de alcance distinto e de desigual intensidade tuteladora.

Dentro desse espectro, a incriminação representa, em regra, o grau máximo de protecção. Mas também, simultaneamente, a lesão, na maior medida, de direitos encabeçados pelo sujeito penalizado, mormente quando, como neste caso, a verificação do tipo acarreta privação da liberdade.

É no campo de valoração delimitado pela proibição do excesso e pela contraposta proibição de insuficiência que o legislador tem que exercitar a sua competência de modelação da disciplina da interrupção voluntária da gravidez. Podendo optar por consagrar uma protecção superior ao mínimo que lhe é jurídico-constitucionalmente imposto, o legislador não pode ultrapassar os limites que resultam da proibição do excesso (em último termo, do princípio da proporcionalidade). Só serão constitucionalmente conformes as soluções que respeitem ambas as proibições.

11.4.4 - Na apreciação, à luz destes parâmetros, da solução que está especificamente sob escrutínio, nos presentes autos, não poderemos considerá-la isoladamente, sem ter em conta o modo como, na sua totalidade, foi traçada a disciplina da interrupção voluntária da gravidez (e, até, o conjunto de medidas que, fora deste campo, contribuem para uma redução do número de abortos). É "na sua globalidade e no seu funcionamento conjunto" que as medidas de direito infraconstitucional devem assegurar uma protecção eficiente dos direitos fundamentais, como sustenta Canaris (ob. cit., 117-118). Directriz genérica que impõe, desde logo, e antes do mais, uma caracterização e valoração da intencionalidade que subjaz a essa disciplina, como

unidade normativa.

Dela ressalta, como característica fundamental, um crescendo de intensidade tuteladora, consoante o maior tempo de gravidez, compondo o que poderemos designar por um regime trifásico: num período inicial, a decisão é deixada à responsabilidade última da mulher, em fases subsequentes a interrupção fica dependente de certas indicações, sendo proibida, em princípio, no último estádio de desenvolvimento do feto.

Esta tutela progressiva, utilizando como critério o tempo de gestação, representa, em si mesma, uma opção básica determinada por um intuito de harmonização dos bens em colisão. Ela procura repercutir, no plano da valoração ético-jurídica, a mutabilidade dos dados biológicos que conformam a vida ainda não nascida e o significado que ela assume para os termos da peculiar relação - sem paralelo em qualquer outro conflito de bens jusfundamentais - que se estabelece entre o nascituro e a gestante.

Na esteira do Bundesverfassungsgericht, na sua decisão de 28 de Maio de 1993, é como "dualidade na unidade" que melhor se pode caracterizar essa relação (BVerfGE 88, 203 s., 253). Mas, como bem salientam os juízes Mahrenholz e Sommer, na sua declaração de voto (BVerfGE 88, 338 s., 342), tal relação não se mantém estática em todo o período de gravidez: «enquanto que nas primeiras semanas a mulher e o nascituro [...] se apresentam ainda completamente como uma unidade, com o crescimento do embrião a 'dualidade' evidencia-se mais fortemente. Este processo de desenvolvimento tem também significado jurídico».

No entender do Tribunal Constitucional, em período algum do processo natural de gestação, incluindo a sua fase inicial, se justifica que a solução do conflito se possa dar pela prevalência absoluta do interesse da mulher, com o sacrifício total do bem da vida, o que levaria à admissão de um livre e incondicionado direito a abortar.

Mas já se justifica que as alterações biológicas que se dão no processo de gestação, significativas do ponto de vista da progressiva formação do suporte físico da personalidade humana, tenham incidência na valoração jurídico-constitucional das soluções de conciliação dos bens em conflito. É constitucionalmente viável que a ponderação de interesses em causa, na busca dessas soluções, leve em conta o tempo de gestação, precisamente porque, com o desenrolar do processo ontogenético, a realidade existencial de um dos bens a tutelar assume contornos gradativamente distintos, assim se alterando também, correspondentemente, o ponto de equilíbrio a estabelecer com as exigências decorrentes do estatuto jusfundamental da mulher grávida. Como acentua a já mencionada declaração de voto: "[...] o conteúdo da posição jusfundamental da mulher e o papel do Estado no exercício do seu dever de protecção devem ser avaliados de modo diferente na fase inicial e em estádio mais adiantado [da gestação]" (ob. loc. cit.).

Precisamente porque a sua ideia fundante corresponde a um "sentimento jurídico"

generalizadamente difundido, o atendimento do tempo de gestação é um dado comum a todas as legislações não radicalmente proibicionistas. Em todas elas, na variabilidade das suas soluções, com maior ou menor amplitude de consagração de previsões de impunibilidade, o factor tempo é considerado. O próprio "modelo das indicações" não

o dispensa.

11.4.5 - Mas a solução questionada não contende apenas com a medida da protecção do embrião e do feto, na fase inicial da gestação. Ela lança a dúvida quanto à própria existência de protecção e, se admitirmos que ela está consagrada, quanto ao seu modo de efectivação. O que se interroga, em primeira linha, é se a equilibrada harmonização dos valores em conflito, que passa - o que se admite - pelo estabelecimento de regimes diferenciados, consoante o tempo de maturação do embrião e do feto, não é posta em crise quando, dentro de um período inicial, se reconhece autonomia decisória à mulher, facultando-lhe a tomada de uma "decisão livre, consciente e responsável" (alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na formulação do artigo 1.º da Lei 16/2007).

Dando como líquido que a valoração da vida-uterina e a protecção do feto "será quase sempre prevalecente nas últimas semanas" (Acórdão 288/98), e que, em fases precedentes, se justifica, em certas circunstâncias, a solução contrária, fica em aberto saber se, e em que condições, o atendimento da posição constitucional da mulher pode ir ao ponto de, nas primeiras semanas, atribuir relevo decisivo à manifestação da sua

vontade em interromper a gravidez.

Esta enunciação mais precisa da questão de constitucionalidade a solucionar remete-nos directamente, após o enquadramento efectuado, para a apreciação do

sistema instituído pela Lei 16/2007.

Duas notas prévias devem aqui ser explicitadas.

A primeira para evidenciar, em reforço do que já foi dito, que cumpre apreciar apenas se o regime de direito ordinário, globalmente considerado, traduz ou não a realização eficiente do mínimo de protecção constitucionalmente exigido da vida intra-uterina, incluindo da vida do embrião nas primeiras 10 semanas. Não importa averiguar se outras medidas alternativas às adoptadas protegeriam em maior grau esse bem. O legislador era livre (no limite da proibição do excesso) de implantar essas medidas, mas não estava vinculado a fazê-lo. Contrariamente ao que se lê no pedido, a questão não está, pois, em saber se não existem outros meios "que melhor protejam o valor da vida". Está apenas em saber se o meio concretamente escolhido satisfaz ou não o

mínimo de protecção.

É o cumprimento efectivo de um dever, não o eventual aproveitamento de uma permissão, que constitui o objecto de apreciação, pelo que há que ajuizar unicamente se os meios de que o legislador se socorreu para tal fim levam o direito infraconstitucional a situar-se num ponto ainda consentido pela proibição de

insuficiência.

A segunda nota destina-se a afastar, in limine, eventuais representações menos fidedignas do regime posto em vigor. Ele não pode ser caracterizado, por confronto com um modelo puro de indicações, como uma "retirada" ou "demissão" do Direito, com criação de um espaço em branco, "vazio de juridicidade", dentro do período considerado. Só seria assim se a grávida fosse deixada só, na sua decisão, encarada esta como uma pura escolha individual, sem relevo comunitário e, portanto, sem previsão de qualquer tipo de interferência de representantes credenciados do interesse

geral.

É assim no direito norte-americano, mas assim não é no sistema instituído pela Lei 16/2007. Esta contém um feixe de indicações normativas, com vinculação da mulher predisposta a interromper a gravidez a certos ónus procedimentais, que constituem outras tantas condições legais de impunibilidade do acto.

Não pode, pois, dizer-se que este acto fique subtraído, no âmbito temporal das 10 primeiras semanas, a toda e qualquer forma de influência e orientação pelo Direito.

Nada justifica que as normas de procedimento e de organização sejam, à partida, excluídas do conjunto de instrumentos de direito ordinário mobilizáveis pelo legislador, para fins de tutela de bens constitucionais, pois também elas podem incrementar a probabilidade de preservação da integridade desses bens.

A simples previsão de uma tramitação legal, com imposição à grávida de uma actuação sequencial, em momentos temporalmente intervalados, de que faz parte a sujeição a uma consulta prévia de carácter obrigatório, promove, no mínimo, e desde logo, a consciencialização (ou o reforço da consciencialização) da gravidade ético-jurídica daquilo que se intenta praticar, com incidência potencial sobre a própria tomada de

decisão.

A mais disso, a obrigatoriedade de percorrer um iter procedimental, em estabelecimento oficial ou oficialmente autorizado, com um prazo entre o pedido de marcação e a efectivação de consulta que pode ir até 5 dias (artigo 16.º, n.º 2, da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho), e um período de reflexão mínimo de 3 dias, entre a consulta prévia e a entrega do documento formalizador do consentimento (artigo 142.º, n.º 4, alínea b) da Lei 16/2007, e artigo 18.º, n.º 1, da referida Portaria), traz, com a garantia de um "consentimento livre e esclarecido", um obstáculo eficiente à execução de decisões tomadas por impulso, circunstancialmente motivadas e

insuficientemente ponderadas.

Nem é, sequer, rigoroso caracterizar a solução como exprimindo a renúncia à intervenção do direito penal, como instrumento de tutela, no período em causa. Não pode falar-se de renúncia, pelo menos de uma renúncia totalmente abdicativa, pois a interrupção voluntária de gravidez continua a ser punível quando praticada, neste período, com desrespeito pelas condições legalmente fixadas. Nesta medida, estamos apenas perante uma restrição (ainda que significativa) do âmbito da criminalização.

O que está em juízo, digamo-lo de uma vez por todas, é saber se os instrumentos penais de intervenção podem ser substituídos, sem perda de eficiência, ou sem perda de eficiência comprometedora da satisfação do imperativo de tutela da vida antes do nascimento, por outros meios jurídicos de conformação, de carácter não penal.

11.4.6 - Não pode duvidar-se, em face do que já foi dito quanto à vida intra-uterina comungar, em certos termos, da valia intrínseca e da dignidade da vida humana, que ela representa um bem digno de tutela penal. Mas a dignidade jurídico-penal de um bem, se é critério necessário, não é critério suficiente para a outorga da tutela correspondente. Ouçamos o que, a propósito, nos diz Figueiredo Dias (Direito Penal.

Parte geral, I, 2.ª ed., Coimbra, 2007, 127 s.):

«O que significa, no fim, que o conceito material de crime é essencialmente constituído pela noção de bem jurídico dotado de dignidade penal; mas que a esta noção tem de acrescer ainda um qualquer outro critério que torne a criminalização legítima. Este critério adicional é - como, de resto, uma vez mais directamente se conclui a partir do já tantas vezes referido artigo 18.º -2 da CRP - o da necessidade (carência) de tutela penal. [...] Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios de política social, em particular da política jurídica não-penal, se revelem insuficientes ou inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação dos princípios da subsidiariedade e da proibição do excesso. [...] Neste sentido se pode e deve afirmar, em definitivo, que a função precípua do direito penal - e desta deriva o conceito material de crime - reside na tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídico-penais.» "O inevitável entreposto constituído pelo critério da necessidade ou da carência de pena" não pode, pois ser ultrapassado (A. ob. cit., 130), devendo ser objecto de consideração autónoma, dado que a carência de pena não é inferível, sem mais, da dignidade jurídico-penal do bem, por mais forte que ela seja.

E essa tarefa de ponderação da necessidade de criminalização, cabe, em princípio, ao legislador ordinário, estando inserida, como um dos seus momentos mais relevantes, no cumprimento do mandato geral de consagração de mecanismos de tutela. Na falta de uma injunção expressa de intervenção penal, cai no âmbito da valoração mediadora do legislador uma decisão a esse respeito - a qual, naturalmente, deverá ser tomada com observância dos princípios constitucionais aplicáveis, em particular o da proporcionalidade. A ideia de que "a Constituição impõe (apenas) a protecção como resultado, mas não a sua conformação específica" (BVerfGE, 88, 254) não deixa de abranger também a própria opção de base de utilização ou preterição de instrumentos penais, pelo menos para quem admita que não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização - posição que, não sendo incontestada, é defendida, entre nós, nomeadamente por Figueiredo Dias (ob. cit.,

129).

11.4.7 - Tem sido esta também a posição que o Tribunal, desde a primeira hora, tem adoptado, quanto à questão de saber se, por imperativo constitucional, a tutela da vida pré-natal postula a penalização dos comportamentos que a ofendam.

Logo no Acórdão 25/84, depois de se chamar a atenção para "a ineficácia da repressão penal", neste campo, por força da "falta de reacção das chamadas 'instâncias sociais de controle"', deixou-se expresso:

«Daí que se compreenda que os estudiosos da matéria não pudessem deixar de interrogar-se sobre os meios de ordem não-penal capazes de minorar esses males, sendo certo para mais que a repressão penal, à luz do chamado "princípio da subsidiariedade", só se justifica se for proporcionada, e para o ser precisa de ter eficácia. Quando esta não se alcance, então devem procurar-se outros meios ou

processos de evitar tal flagelo [...]».

Essa ideia foi retomada no Acórdão 85/85, tendo-se aí sustentado, entre outras

afirmações de idêntico teor:

«Por outro lado, independentemente da natureza da protecção constitucional da vida intra-uterina, nada, porém, impõe constitucionalmente que essa protecção tenha de ser efectivada, sempre e em todas as circunstâncias, mediante meios penais, podendo a lei não recorrer a eles quando haja razões para considerar a penalização como desnecessária, inadequada ou desproporcionada ou quando seja possível recorrer a outros meios de protecção mais apropriados e menos gravosos».

Pode dizer-se que, com estas duas decisões, a jurisprudência constitucional portuguesa, partindo do princípio que a vida pré-natal é um bem constitucionalmente protegido, enquanto valor objectivo, de imediato acrescentou que a sanção penal deve constituir uma última instância, só justificada quando essa protecção não possa ser garantida de

outro modo.

Os Acórdãos n.os 288/98 e 617/2006 reiteraram essas duas ideias-força. Assim, pode

ler-se no primeiro:

«Nesta visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual constituirá uma verdadeira

imposição constitucional.

Todavia, essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo grau de densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido - em cada pessoa.

[...] De todo o modo, de acordo com esta leitura, o legislador ordinário estará vinculado a estabelecer formas de protecção da vida humana intra-uterina, sem prejuízo de, procedendo a uma ponderação de interesses, dever balancear aquele bem jurídico constitucionalmente protegido com outros direitos, interesses ou valores, de acordo com o princípio da concordância prática».

Dentro deste quadro de pensamento, o referido Acórdão consolidou também a orientação, já seguida pelo Acórdão 85/85, da admissibilidade de uma tutela gradativa, "progressivamente mais exigente à medida que avança o período de

gestação".

Quanto aos meios de tutela, ambas as decisões se irmanaram na aceitação do ponto de vista de que não há uma imposição constitucional de criminalização, na situação em apreço, tendo o Acórdão 617/2006 expressamente aludido ao princípio da

necessidade, nestes termos:

«Tal como já resultava do Acórdão 288/98, deverá salientar-se que estamos no terreno da responsabilidade penal, onde prevalece o princípio da necessidade da pena e não perante uma mera discussão sobre o reconhecimento de valores ou meras lógicas

de merecimento de protecção jurídica».

11.4.8 - Tendo em conta a operatividade autónoma do princípio da necessidade e a imprescindível conjugação da proibição do défice de protecção com o princípio da proporcionalidade, é metodicamente incorrecto partir aprioristicamente da legitimidade da intervenção penal, só afastável mediante a prova da disponibilidade de um meio alternativo de tutela menos intrusivo e de eficiência equivalente ou superior. Com isso se inverte o sentido do percurso valorativo e a colocação do ónus de fundamentação, assumindo-se como ponto de partida o que não pode ser senão o hipotético ponto de

chegada.

Dando como assente que a sanção penal é o instrumento mais gravoso de intervenção, com a consequente prioridade aplicativa, deste ponto de vista, de qualquer outro que o seja menos, a sua utilização não pode resultar, sem mais, da eventual insatisfação provocada por outros instrumentos de tutela. Há que evitar, nesta matéria, qualquer juízo prima facie, pelo que a intervenção penal não pode escapar ao crivo da comprovação positiva da sua eficiência própria, até porque da ineficiência de outros meios não pode deduzir-se automaticamente a eficiência do direito penal.

Está hoje assente, na doutrina penal, e na senda da teoria dos fins das penas de Liszt, que os elementos "necessidade" e idoneidade" constituem pressupostos justificativos da pena. Assevera, a este respeito, Claus Roxin:

«Não se pode castigar - por falta de necessidade - quando outras medidas de política social, ou mesmo as próprias prestações voluntárias do delinquente garantam uma protecção suficiente dos bens jurídicos e, inclusivamente, ainda que se não disponha de meios mais suaves, há que renunciar - por falta de idoneidade - à pena quando ela seja política e criminalmente inoperante, ou mesmo nociva.» - Problemas fundamentais de direito penal, 2.ª ed.ª, Lisboa, 1993, 57-58.

A utilização do direito penal só se legitima quando seja de lhe atribuir (como requisito mínimo) eficiência, e quando a eficiência que se lhe imputa, sendo incontroversamente superior à de qualquer outro meio alternativo, é também a única capaz de atingir o mínimo de protecção constitucionalmente imposto. Só nestas condições resultam satisfeitos os critérios da idoneidade e da necessidade, só assim se justifica a conversão do imperativo constitucional de tutela, ainda indeterminado quanto aos meios, num preciso dever de estabelecimento de sanções penais.

Ora, a tal respeito, a interrupção voluntária da gravidez põe em cheque convicções

adquiridas noutros campos.

Na verdade, essa acção faculta um bom exemplo de uma das situações em que não pode partir-se da ideia da eficiência da intervenção do direito penal, como se de uma apriorística evidência se tratasse. A singularidade da relação conflitual e da fonte do perigo de lesão explicam, em boa medida, essa falência dos instrumentos penais.

Dados os termos da tipificação legal, a questão só se põe quando a interrupção é realizada com o consentimento da própria grávida. Nessa configuração, em que se esfuma a alteridade entre autor e vítima, a ameaça de sanção penal para resolver um conflito "interior", de carácter existencial, na esfera pessoal de alguém que simultaneamente provoca e sofre a lesão, não tem a eficiência que, em geral, lhe cabe.

Os números aí estão, para o comprovar eloquentemente. O regime de punibilidade, aplicável em todas as fases da gestação, não evitou a prática, em larga escala, do aborto, frequentemente em condições atentatórias da dignidade e de grave risco para a saúde física e psíquica (ou até para a vida) da mulher - bens, estes, objecto de direitos fundamentais, radicados na esfera da grávida, também eles, a fortiori, cobertos por um

dever estadual de protecção.

Acresce que a eficiência da criminalização, neste como em qualquer outro domínio, depende, em primeira linha, do efectivo exercício dos poderes punitivos do Estado. No que agora nos ocupa, só a efectiva perseguição e pronúncia, em número significativo, dos agentes do crime de interrupção voluntária da gravidez constituiria, potencialmente,

um factor de contenção da sua prática.

Ora, o que constatamos, ano após ano, é a extrema raridade das condenações com esta causa. Segundo dados constantes do "Relatório e Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias", intitulado Sobre interrupção voluntária de gravidez, elaborado, em Fevereiro de 1997, pelo deputado José de Magalhães, foram registados, nos sete anos anteriores, nos serviços do Ministério Público, a nível nacional, 97 processos relativos à possível ocorrência de crimes de aborto. Quanto a condenações, foram proferidas, entre 1985 e 1995, em número que oscilou entre duas (em 1986 e 1988) e treze (em 1992), perfazendo, nesses onze anos, um total de 66. Constata-se, assim, que, em flagrante contraste com a sua grande difusão, o crime de interrupção voluntária da gravidez muito poucas vezes atravessa os umbrais das portas dos nossos tribunais. E quando, excepcionalmente, tal acontece, a reacção social é mais de mal-estar do que de aplauso - a evidenciar, conjuntamente com a inércia das instâncias sociais de controlo, que o alto significado do bem afectado e a gravidade da lesão não são acompanhados, como seria normal (não fora o particular contexto conflitual do acto lesivo), por um sentimento de radical intolerabilidade. Isto mostra que, do ponto de vista comunitário, tal comportamento não

é valorado como um crime.

Nem se detecta qualquer movimento social significativo no sentido da alteração deste estado de coisas, pugnando pelas efectivas perseguição e punição do maior número de

infractoras.

A observação da realidade - e a ponderação da carência de pena, em função, como deve ser, da sua eficiência relativa, não pode passar à margem de uma diagnose da factualidade empírica da vivência social - não é, pois, de molde a conferir, com um mínimo de consistência, validade a um discurso de criminalização da interrupção em todo o arco temporal da gravidez, incluindo na sua fase mais precoce. Não é de esperar que a penalização criminal crie um "ambiente" de decisão favorável à

prossecução da gravidez.

E esta conclusão não representa uma conjectura ou uma prognose, mais ou menos falível, sobre o futuro, mas um juízo seguro que assenta em dados indesmentíveis retirados da experiência passada, uma vez que esse foi o regime anteriormente em

vigor, já testado na sua aplicação.

11.4.9 - Mas o regime instituído pela Lei 16/2007 não se caracteriza apenas pela forte retracção da intervenção penal, nas primeiras 10 semanas de gravidez. Na verdade, não estamos perante uma simples ampliação dos casos de impunibilidade, dentro do mesmo critério inspirador, como seria o caso se, por exemplo, tivessem sido acrescentadas novas indicações justificativas (a indicação económico-social,

designadamente).

Aquele diploma operou uma verdadeira mudança do paradigma regulador, na medida em que passou a admitir uma hipótese de exclusão de punição que passa apenas, no plano das condições substantivas, pela vontade da gestante. É esta quem, em último termo, e ainda que tendo que satisfazer requisitos procedimentais, dita a preservação ou não da vida intra-uterina, não ficando sujeita a punição na hipótese de se decidir pela interrupção. O juízo definitivamente relevante, a esse respeito, é o juízo subjectivo da própria grávida, não tendo ela que o submeter à apreciação, segundo critérios objectivos, de uma entidade terceira. Ainda que a intervenção desta esteja prevista, como parte num processo comunicacional que inclui uma consulta obrigatória, ela não goza de qualquer poder vinculante, impositivo de uma solução contrária à desejada pela

grávida.

É forte a tentação de concluir daqui que o resultado deste regime é a desprotecção total da vida intra-uterina. Mas esta conclusão seria algo apressada, não levando em conta, mais uma vez, a singularidade da situação.

O conceito de "dualidade na unidade", como um sistema móvel, em que o segundo termo goza, na fase inicial da gestação, de predominância, que perde progressivamente, em favor do primeiro, tem, de novo, virtualidades justificativas desta específica opção

legal.

A relação que aqui se estabelece, mesmo quando conflitual, não é entre subjectividades em oposição, pois o feto não é sentido pela grávida como um "outro", como um ente destacado de si própria. Daí que o conflito dramaticamente sentido pela grávida, quando coloca a hipótese de abortar, seja, em grande medida, um conflito consigo própria, travado no âmago da sua personalidade, sofrido como pessoalíssimo e, como tal, refractário a uma solução autoritária "vinda de fora".

Neste quadro singular, é defensável que o Estado, através do legislador, valore como cumprindo melhor o seu dever de protecção, numa fase inicial da gravidez, tentando "ganhar" a grávida para a solução da preservação da potencialidade de vida, através da promoção de uma decisão reflectida, mas deixada, em último termo, à sua responsabilidade, do que ameaçá-la com uma punição criminal, de resultado comprovadamente fracassado (ou, mesmo, segundo alguns, contrário ao desejado, como o próprio Tribunal Constitucional alemão admite - BVerfGE 88, 265). Através, designadamente, de uma consulta de aconselhamento, em que a grávida é encarada como "interlocutora" (Ansprechpartnerin) e não como "adversária de uma pretensão"

(Anspruchsgegnerin) - para utilizarmos os sugestivos termos dos juízes Marenholz e Sommer, na declaração de voto citada (BVerfGE 88, 343) -, visa-se influenciar as suas motivações internas, favorecendo um comportamento espontâneo que não afecte o bem da vida. Estando esse bem corporizado num embrião ou num feto que a grávida traz em si e dela depende, como suporte vital, é com ela, e não contra ela, que se intenta

protegê-lo (ibidem, 266).

Dificilmente se pode negar a adequação, de princípio, do meio de tutela à situação do bem a tutelar, a homologia do processo tutelador com a configuração específica do

objecto de tutela.

E a solução não se apoia tanto numa reponderação dos interesses em conflito, com melhor acolhimento dos titulados pela grávida (muito embora o atendimento desses interesses decorra objectivamente da solução agora consagrada e corresponda a padrões jusculturais sobre a posição da mulher hoje largamente aceites), mas na correcta compreensão, e devida valoração, da especificidade desse conflito, muito distinto dos que nascem entre dois sujeitos com vida e personalidades próprias. Foi entendido (e a experiência judiciária confirma-o) que essa especificidade rouba aos instrumentos penais a idoneidade e a eficiência de que geralmente dão mostras, pelo que, levando a sério os critérios da adequação e da necessidade, optou-se por dar preferência, no período inicial da gravidez, a uma solução que, com pleno respeito da sua liberdade decisória, faz apelo ao sentido de responsabilidade da grávida.

11.4.10 - O alcance tutelador deste regime não pode ser objecto de desvalorização total e imediata, in radice. Não se pode partir do princípio de que o propósito de não prosseguir com a gravidez se filia em puras razões hedonísticas, impulsionadoras de decisões apenas ditadas pelo interesse egoísta da própria grávida. Dados fiáveis da análise sociológica e, até, o testemunho de profissionais envolvidos nos processos de interrupção - cf., para o caso alemão, BVerfGE 88, 349 - apontam, todavia, noutra direcção. Eles evidenciam que a decisão de abortar é tipicamente tomada, não obstante a angústia que provoca, por genuína convicção de que se trata da decisão certa, no que pesa o sentido de responsabilidade perante a vida futura do nascituro e perante outros sujeitos, a quem se quer evitar dor ou causar prejuízo. Razões de responsabilidade moral, tal como a grávida as compreende e sente, colocam-se frequentemente de ambos os lados da opção a tomar. Como diz Robin West, "[...] a decisão de abortar é quase invariavelmente tomada dentro de uma rede de responsabilidades e obrigações entrecruzadas, concorrentes e muitas vezes irreconciliáveis" (apud Ronald Dworkin, Life's Dominion. An Argument about Abortion and Euthanasia, London, 1993, 58).

Num campo de valoração pouco propício a concepções absolutizantes de imperativos reguladores, em que não se divisam soluções ideais, de eficiência garantida, mas em que, pelo menos, é certo que a punição criminal não reduz significativamente o número de abortos e é contraproducente em relação a bens constitucionalmente protegidos (a saúde da mulher, designadamente), não se afigura injustificado confiar na capacidade da grávida para tomar uma decisão responsável. Um direito soft, de base prestativa, mais promocional do que repressivo, pode criar condições, na mente e na vontade da grávida, para que, naqueles casos em que a dúvida interior se prolonga, subsistindo mesmo após o início do processo de externalização da intenção abortiva, a decisão venha a pender para o lado da vida. E só esses casos importam, pois todos os outros são, realisticamente, casos "perdidos".

11.4.11 - Não sendo de rejeitar, à partida, por razões de eficiência, esta solução abona-se em razões de princípio, na consideração da personalidade e da dignidade da mulher. Há que atentar em que a carga axiológica do princípio da dignidade humana não está toda do lado da vida intra-uterina. Ela investe também a posição jurídico-constitucional da mulher, sendo que, nesta esfera, não está apenas em causa o valor objectivo da vida humana, mas a sua valia pessoal para alguém, uma pessoa, um sujeito já reconhecido como titular de direitos fundamentais.

É certo que a interrupção voluntária da gravidez representa a denegação pura e simples da expressão mais essencial desse valor, quando reportado à fase intra-uterina. Em contrapartida, a hipótese contrária, a futura concretização de um nascimento com vida, preserva, em princípio, a continuação da existência da grávida, tendo impacto, por forte que seja, apenas na condução de uma vida com sentido, na impossibilitação (ou no agravamento da impossibilitação) das condições que, para a própria, em autodeterminação (e também, eventualmente, para outros sujeitos directa ou indirectamente envolvidos), são tidas como dando valor substancial à sua vida.

Nesta medida, pode dizer-se que é maior a gravidade da lesão causada pela interrupção voluntária da gravidez. Mas essa conclusão apenas justifica a atribuição de maior peso ao interesse na sua prossecução, na ponderação a estabelecer com o interesse contrário. Já não legitima a renúncia à busca de soluções minimamente compromissórias, em desconsideração total do pólo valorativo formado pelo reconhecimento do valor constitucional da posição da mulher. Tanto mais que, para esta, o respeito pela vida intra-uterina não se traduz apenas, como para terceiros, num dever de omitir qualquer conduta que a ofenda, num deixar correr, sem interferências lesivas, o processo natural de gestação, vindo também a implicar, após o nascimento, na vinculação, por largos anos, a deveres permanentes de manutenção e cuidado para com um outro, os quais oneram toda a sua esfera existencial (cf. Margot v. Renesse, "§ 218 F. StGB - eine unvolkommene Antwort auf ein unlösbares Problem", Zeitschrift für

Rechtspolitik, 1991, 321 s. 322-323).

Esse compromisso, não estando em causa um conflito intersubjectivo, protagonizado por dois titulares de direitos fundamentais, mas um conflito entre bens pessoais de um sujeito e a tutela objectiva do "bem social" do respeito pela vida, pode legitimamente ser estabelecido, pois, enquanto valor digno de tutela independentemente do interesse pessoal de alguém, a vida humana não está sujeita a uma lógica protectora de "ou tudo ou nada", refractária a gradações "de mais ou de menos", imperante quando ela é

objecto de um direito individual.

E pode bem dizer-se que o conjunto da disciplina da interrupção voluntária da gravidez tem em conta, na justa medida, o maior peso do valor da vida. Predominam aí as medidas punitivas, recorrendo o Estado exclusivamente ao direito penal, para cumprir o seu dever de protecção do embrião e do feto, nos estádios da gravidez em que a "dualidade" transparece com nitidez. Só nas primeiras 10 semanas - período mais curto, aliás, do que o de 12 semanas generalizadamente vigente, em direito comparado - é que o Estado, sem se demitir desse dever, o prossegue por uma via combinatória da sanção penal com instrumentos auto-responsabilizadores.

Esses instrumentos vão ao ponto de admitir que a ultima palavra, nesse período temporalmente limitado, caiba à grávida. Razões de eficiência e de respeito pelo estatuto constitucional da grávida casam-se, na justificação desta solução específica, que não merece, por isso, uma apriorística censura constitucional. Se o legislador, no uso da sua liberdade de escolha dos meios de tutela, entendeu ser apropriado recorrer à colaboração da própria grávida, fazendo apelo ao seu sentido de responsabilidade - opção que, como vimos, tem por si um fundamento razoável -, a salvaguarda da sua autonomia de decisão, para além de ser a solução que melhor se ajusta ao reconhecimento da dignidade da mulher, é, verdadeiramente, uma condição necessária

à possibilidade de eficácia daquele apelo.

11.4.12 - Mas a conclusão de que não há obstáculos, de princípio, à admissão desta solução, em si mesma, não corresponde ainda a uma resposta definitiva à questão de constitucionalidade posta, pois essa resposta não pode ser dada sem valoração das condições que subtraem à punibilidade a decisão, pela grávida, de interrupção

voluntária da gravidez.

Isso porque dessas condições vai depender, em último termo, que possa ser atribuído à disciplina legal da forma de realização daquele acto alcance tutelador da vida pré-natal, em medida satisfatória do mínimo de protecção.

Falta apreciar, pois, se aos trâmites legalmente fixados pode ser imputado esse efeito.

De entre esses trâmites, avulta como de significado primordial, deste ponto de vista, uma consulta prévia, de carácter obrigatório, a partir da qual se conta um período de reflexão de um mínimo de 3 dias, necessário para a prestação eficaz do consentimento.

Nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, a consulta destina-se "a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável".

Nesta redacção legal baseia-se a qualificação da consulta, pelos requerentes, como puramente informativa. Ora, alega-se, só uma consulta de aconselhamento dissuasora permitiria concluir que, apesar de tudo, o legislador não voltou as costas ao dever de protecção. Um regime que não a consagre posiciona-se aquém do que é constitucionalmente devido, pelo que estaria ferido de inconstitucionalidade.

Uma tomada de posição sobre este último patamar da questão beneficiará com um breve excurso pelo direito comparado, com particular incidência sobre este ponto

específico.

Por aí começaremos.

11.4.13 - Pode dizer-se que o "modelo de prazos" é hoje largamente dominante na Europa, pois, na grande maioria dos países europeus, o regime legal prevê a impunibilidade de realização médica da interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, dentro de certo período, sem dependência da verificação de determinadas circunstâncias, taxativamente previstas e heteronomamente controláveis.

Para além disso, em certos ordenamentos que exigem a invocação de razões justificativas, na prática aplicativa, uma interpretação muito liberal dessa exigência faz com que o regime não se diferencie significativamente daquele outro. É o caso, notoriamente, do Reino Unido e da Espanha, países onde, aliás, estão em curso projectos de reforma. Na Bélgica (lei relativa à interrupção voluntária da gravidez, de 3 de Abril de 1990) e na Suiça (regime entrado em vigor em 1 de Outubro de 2002, após consulta referendária), exige-se apenas a invocação, pela mulher, de um "estado de angústia" (state of distress). Mas, como essa situação não é objecto de qualquer parecer médico de verificação (só exigível, na Suiça, após o prazo de 12 semanas), a solução corresponde substancialmente ao modelo de prazos.

No interior deste modelo, são diversos, porém, os níveis de aceitação da

impunibilidade.

Tal patenteia-se, desde logo, na maior ou menor extensão do período temporal da

gestação a que se aplica este regime.

O período mínimo é de 10 semanas. Vigora apenas em Portugal, na Bósnia/Herzegovina, Macedónia e Turquia. Na Estónia, é de 11 semanas, 13 na Holanda, 14 na Roménia, atingindo o máximo na Suécia, onde é de 18 semanas (Lei 595, de 14 de Junho de 1974, alterada pela Lei 660, de 1995, e pela Lei 998, de 2007). Em todos os outros países que aderiram a este modelo, o prazo é de 12 semanas ou de 3 meses [todos estes dados, actualizados a Janeiro de 2009, foram recolhidos em Abortion Legislation in Europe, publicado pela "International Planned Parenthood Federation. European Network", www. ippfen.org].

Mas a diferenciação de regimes passa também pela natureza e número das condições concretas de impunibilidade, nomeadamente pela previsão ou não de uma consulta prévia obrigatória, e, em caso afirmativo, pelo conteúdo e finalidade dessa consulta.

Não estabelecem aquela exigência, por exemplo, os sistemas em vigor na Grécia (Lei 1069, de 3 de Julho de 1986), Dinamarca (Lei 350, de 13 de Junho de 1973, com alterações em 1995 e em 2008), Suécia e também, após as modificações

introduzidas em 2001, em França.

Neste último país, alterando a chamada Loi Veil, que procedeu à descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em situações de angústia, o novo regime, contido agora no Code de la Santé Publique (Ordonnance n.º 2000-548, de 15 de Junho de 2000), procedeu ao alargamento do prazo em que a mulher pode solicitar a interrupção voluntária da gravidez de dez para doze semanas.

E se, antes de 2001, uma tal intervenção só poderia ser efectuada após um período de reflexão subsequente a uma consulta de aconselhamento - no âmbito da qual, designadamente, a mulher fosse informada dos direitos e ajudas sociais de que poderia beneficiar se viesse a ter o filho - depois da Lei 2001-588, de 4 de Julho de 2001, que interveio em matéria de aconselhamento, este tornou-se, facultativo, em regra, só

sendo obrigatório para as menores.

O Conselho Constitucional pronunciou-se sobre tal lei, tendo considerado que ela "não quebrou o equilíbrio que o respeito da Constituição impõe entre, por um lado, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana contra toda a forma de degradação e, por outro lado, a liberdade da mulher que decorre do artigo 2.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" (Décision n.º 2001-446 DC, de 27 de Junho, consultável em www.conseilconstitutionnel.fr/decision/2001/20011446/20011446dc.htm).

Também na Áustria, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a solução do prazo, entrada em vigor em 1975, tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade, por entender que não se verificava violação do artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (integrada no bloco de constitucionalidade), pois que este apenas protegeria a vida já nascida, encontrando-se a vida intra-uterina excluída do respectivo âmbito de protecção. Considerou, por outro lado, que as leis básicas em matéria de direitos fundamentais apenas asseguram protecção contra o Estado e não contra outros cidadãos.

A estes regimes, é possível contrapor aqueles outros que, acolhendo embora o princípio da exclusão da punibilidade da interrupção voluntária da gravidez medicamente realizada até um determinado momento da gestação, lhe associaram um

sistema de aconselhamento obrigatório.

Mas, dentro deste bloco modelar, não há inteira homogeneidade de soluções quanto à

disciplina de tal aconselhamento.

Na grande maioria dos casos a considerar, o comprometimento na formação de decisões espontâneas de prossecução da gravidez não é explicitamente assumido, a nível das formulações dos enunciados prescritivos da consulta e do seu conteúdo. Eles caracterizam-se genericamente por obrigar a grávida, antes da realização da interrupção da gravidez, a dirigir-se a uma instituição onde, em regra, lhe são comunicadas, entre outras, informações relativas ao apoio social de que poderá dispor, antes e depois do nascimento, e informação de diversa índole, desde os riscos médicos do aborto aos locais onde pode ser realizado.

A consulta obrigatória está prevista, por exemplo, na Bélgica. A mulher é sujeita a aconselhamento prévio, devendo ser informada dos riscos médicos da intervenção e, bem assim, dos direitos e apoios de natureza social e psicológica que pode obter no caso de levar a gravidez até ao seu termo. Por outro lado, a intervenção só pode ser efectuada, no mínimo, seis dias após a primeira consulta.

Na Holanda, a lei da interrupção voluntária da gravidez de 1 de Maio de 1981, que entrou em vigor em Novembro de 1984, após um decreto de 17 de Maio de 1984 que

a regulamentou, alterou o modelo vigente.

Nos seus termos, o aborto provocado não é penalizado quando, para além da observância dos requisitos respeitantes ao local e momento da interrupção da gravidez, se verifica uma situação de necessidade, auto-avaliável pela grávida. Estabeleceu-se um processo de aconselhamento obrigatório, visando analisar alternativas à interrupção voluntária da gravidez, impondo-se ao médico que "se certifique, se a mulher achar que a situação de emergência não poderá ser resolvida de outro modo, que ela manifestou e manteve o seu pedido de livre vontade, após cuidadosa reflexão e na consciência da sua responsabilidade pela vida pré-natal e por si própria e pelos seus".

Aos modelos de aconselhamento acabados de descrever contrapõe-se singularmente o instituído no ordenamento jurídico alemão, em consequência da decisão do Tribunal

Constitucional de 28 de Maio de 1993.

Tal decisão apreciou a lei aprovada em consequência da reunificação e dirigida a introduzir o «sistema de prazos», despenalizando o aborto praticado por médico durante as primeiras doze semanas da gravidez, desde que a mulher se tenha previamente submetido a uma consulta de aconselhamento em que lhe são dadas as explicações médicas e práticas necessárias para a orientar correctamente na sua

escolha.

Chamado a apreciar esta alteração legislativa, o Tribunal Constitucional alemão partiu da consideração de que a Constituição obriga expressamente o Estado à tutela e ao respeito da dignidade que é própria da vida humana e que desta participa, não apenas a vida humana já nascida ou com personalidade já formada, mas também a vida pré-natal. Partiu também do reconhecimento de um direito à vida individual do nascituro, direito esse não dependente da sua aceitação por parte da mãe. Daí a proibição, de princípio, do aborto e o dever, de princípio, de levar a gravidez ao termo.

O cumprimento desta obrigação jurídica deve ser assegurado por meios de tutela, mas a definição detalhada da modalidade e da extensão da protecção que constitucionalmente se impõe constitui competência do legislador: a Constituição prevê a tutela como finalidade, mas não a sua concretização ou finalização detalhadas.

Ainda que o direito penal surja geralmente como o sector onde ancorar legislativamente a tutela da vida humana, não será constitucionalmente censurável que a valoração cometida ao legislador ordinário se efectue na base de uma análise segundo a qual, no caso de uma situação de mal-estar devida a uma gravidez, o desenvolvimento da ameaça de sanção penal actuaria mais no sentido contrário a uma decisão da mulher favorável à prossecução da gravidez, já que a gestante vive este conflito de um modo muito pessoal e tende a defender-se do juízo e da valoração desse estado por parte de

terceiros.

Assim, ao legislador não se encontrará constitucionalmente vedada, em linha de princípio, a possibilidade de, na realização do seu dever de defender a vida, se virar para um conceito de tutela que parta da consideração de que, na primeira fase da gravidez, uma protecção mais eficaz da vida pré-natal resulte da criação de premissas positivas para uma acção da grávida em favor do nascituro, evitando que esta se oriente unilateralmente e decida segundo os seus interesses pessoais.

Nesta perspectiva, não se exclui que a tutela, na primeira fase da gravidez, se baseie principalmente na obrigatoriedade de uma prévia consulta da gestante, destinada a convencê-la a levar a gravidez até ao fim. Para o efeito de assegurar a necessária abertura e consequente eficácia da consulta, justifica-se também que se renuncie ao sancionamento penal, bem como ao controlo por terceiros que é próprio do regime das

indicações justificativas.

No plano da conformação normativa do procedimento de consulta, o legislador pode partir do princípio de que esta apenas terá possibilidade de funcionar como meio de tutela da vida pré-natal se for conduzida de modo aberto quanto ao resultado, pertencendo à grávida a decisão livre e final, ainda que necessariamente vinculada à prévia concessão ao Estado da faculdade de desincentivo à interrupção.

Uma consulta de natureza meramente informativa, neutral quanto à finalidade e simplesmente destinada a facultar à grávida todos os elementos necessários à sua livre decisão, não lhe permitiria funcionar como meio de tutela, o que condenaria a viabilidade constitucional do modelo preventivo, substitutivo da proibição e ameaça penais, por violação do princípio da proibição do défice de tutela.

Procurando dar execução à orientação estabelecida na decisão do Tribunal Constitucional, uma lei de 21 de Agosto de 1995 procedeu a uma modificação do Código Penal, sendo que, na Alemanha, actualmente, a interrupção voluntária da gravidez praticada por um médico, com o acordo da mulher grávida, não será punível desde que efectuada nas primeiras doze semanas e a mulher se tenha submetido a aconselhamento. Quanto a este, dispõe o § 219, n.º 1, do Código Penal alemão, no

segmento que mais importa:

«O aconselhamento serve a protecção da vida que está por nascer. Deve orientar-se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança; deve ajudá-la a tomar uma decisão responsável e em

consciência».

11.4.14 - Por este curto panorama comparatístico, se pode ver que o "modelo de prazos" oferece múltiplas cambiantes tipológicas, separadas, amiúde, por finas diferenças de conformação, no que diz respeito, sobretudo, ao regime do

aconselhamento.

Quanto a este, é incontroverso, atento o disposto na alínea b) do n.º 4 do mesmo preceito e no artigo 2.º da Lei 16/2007, que a consulta prévia foi, entre nós, incluída nos trâmites a observar obrigatoriamente, como condição da não punibilidade da interrupção efectuada ao abrigo da previsão da referida alínea e). Ao contrário de outros ordenamentos europeus, o direito português não dispensou uma estrutura comunicacional de proximidade com a grávida e os seus problemas, solução manifestamente mais favorecedora da possibilidade de a interrupção não vir a ocorrer

do que a hipótese inversa.

Tendo isso em conta, e também a fixação do prazo no escalão mínimo, pode, desde já, dizer-se que a disciplina jurídica recém-instituída não se mostrou insensível ao interesse na prossecução da gravidez. Mesmo o modo como reservou um certo espaço para uma decisão ad nutum da mulher tomou em conta esse interesse. Resta saber se o fez em medida suficiente para cumprir o imperativo de protecção, para o que temos que nos debruçar, mais de perto, sobre a modelação, em concreto, do regime da consulta

obrigatória.

Da alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal resulta que o consentimento da gestante à realização da interrupção médica da gravidez "é prestado [...] em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável.

Sob a epígrafe "Consulta, informação e acompanhamento", o artigo 2.º da Lei 16/2007 especifica, por seu turno, a natureza do conhecimento que, através daquela informação, deve ser proporcionado à grávida no âmbito da primeira consulta, preceituando que o mesmo deve contemplar: a) as condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher; b) as condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade; c) a disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de reflexão; d) a disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço

social, durante o período de reflexão.

Por estas notas essenciais, pode concluir-se que o sistema português se distancia do alemão, na medida em que não contém qualquer injunção expressa dirigida aos profissionais intervenientes na consulta, no sentido de esta dever ser orientada pelo objectivo de dissuasão da intenção abortiva.

Ora, resulta de determinado segmento das alegações do pedido que uma solução análoga à do direito alemão é considerada - com expressa citação da decisão do Tribunal Constitucional desse país acima referida - como imprescindível para realizar "o equilíbrio possível" entre o valor da liberdade da mãe e o da vida "em devir".

Justifica-se, assim, que, aqui chegados, concentremos neste ponto a questão de constitucionalidade que nos ocupa, reduzindo-a à questão de saber se aquele traço distintivo entre os dois sistemas representa também, face à nossa Constituição, a inultrapassável linha de fronteira de uma disciplina constitucionalmente conforme. O que, noutros termos, cumpre avaliar é se tem que transparecer explicitamente da semântica do texto normativo a finalidade dissuasora da consulta, como garantia ineliminável da sua efectiva actuação nesse sentido e, desse modo, como exigência do cumprimento pelo Estado do mínimo de tutela que lhe incumbe.

11.4.15 - O nosso legislador revelou transparentemente a finalidade da consulta, ao dispor que ela se destina a "facultar à grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável" (alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na nova redacção).

Mas daí não pode inferir-se, sem mais, que a consulta é puramente informativa, no sentido de ficar excluída, ao menos como efeito reflexo, indirecto, ou consequencial, qualquer outra dimensão operativa. Há que atentar, na verdade, que a informação não constitui um fim em si, mas antes um meio para uma tomada de decisão, não só livre,

como consciente e responsável.

Se é assim, o que importa é avalizar ou não este desígnio como compaginável ainda com o cumprimento do dever de protecção e, num segundo momento, mas inextrincável do primeiro, ajuizar da suficiência dos mecanismos predispostos, e, em particular, do momento, conteúdo e modo da informação a prestar, para alcançar objectivos que ultrapassem a mera tomada de conhecimento de certos dados.

Com isto, queremos acentuar que uma valoração ajustada ao alcance real do regime concretamente estabelecido não pode ser obtida mediante um simples jogo de contraposição de agrupamentos categoriais, definidos em abstracto e concebidos em relação de mútua exclusão, sem admissão de manifestações gradativamente intermédias. Não é num processo subsuntivo de integração no grupo dos chamados "sistemas de mera informação" ou no grupo dos "sistemas dissuasores", por razões de índole predominantemente nominalista, que poderemos fundar uma segura resposta negativa ou positiva de constitucionalidade, dependente que ela está de um critério eminentemente graduável, como é a eficiência dos instrumentos de protecção.

Para isso, é indispensável atender à estruturação objectiva da interacção comunicativa a estabelecer com a grávida e à resultante intelecção, por esta, do seu significado. Ora, pode afirmar-se que o complexo de elementos informativos a disponibilizar à grávida, numa consulta de carácter obrigatório, organizativamente integrada num complexo de trâmites prévios e sucessivos, tem como efeito objectivo a sua consciencialização do valor da vida que transporta em si (ou, pelo menos, resulta ser visto pela própria como

uma tentativa nesse sentido).

Esse conjunto de passos a dar, num percurso integrado por um aconselhamento e culminado por um período suspensivo da prática do acto interruptivo da gravidez, destila iniludivelmente um sentido enfatizador da gravidade da decisão a tomar e suficientemente sinalizador da valoração, pelo ordenamento jurídico, do bem da vida. E o encorajamento para uma tomada de decisão que o preserve é implicitamente dado quando se proporciona à grávida o conhecimento de uma série de apoios de que pode beneficiar. Daí que, o não ser a consulta declarada e ostensivamente orientativa não impõe, ipso facto, a sua qualificação como meramente informativa, como despida de qualquer intenção de favorecimento da decisão de prosseguir a gravidez.

Merece destaque, nesta perspectiva de cumprimento do dever de tutela, o disposto na alínea b) do artigo 2.º da Lei 16/2007, segundo o qual a grávida deve ser informada das "condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade". Com esta informação, sobretudo em relação às mulheres de mais baixos índices económico e cultural, pode rasgar-se a visibilidade de um horizonte de viabilidade prática de uma opção pela maternidade, mormente nos casos, presumivelmente frequentes, em que ela não é pessoalmente rejeitada, mas apenas tida como de concretização impossível, por falta de condições materiais. Se, na lógica fundante desta solução legal, a tutela da vida deve operar pelo incremento das possibilidades de a grávida adoptar espontaneamente uma conduta que preserve aquele bem, então nada mais adequado do que torná-la ciente, no decurso do processo decisório, dos apoios de que pode beneficiar, se fizer essa opção. Esses apoios serão outras tantas razões a balancear do lado oposto ao da interrupção da gravidez, contrariando o peso das motivações que levaram a mulher a iniciar os procedimentos que a ela conduzem. Informá-la do "apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade" mais não é, ao fim e ao cabo, do que "abrir-lhe perspectivas de uma vida futura com a criança", na fórmula do direito alemão, tida, pelos requerentes, como expressiva da única solução que traduz "a mínima tentativa de, através da liberdade da mulher (e não contra ela) procurar salvaguardar a vida".

Também não pode ser esquecido o disposto no n.º 4 do artigo 2.º, nos termos do qual "os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se pratique a interrupção voluntária da gravidez garantem obrigatoriamente às mulheres grávidas que solicitem aquela interrupção o encaminhamento para uma consulta de planeamento familiar". E a necessidade de intervenção neste domínio fica bem à vista, se considerarmos que, em certas faixas populacionais, a interrupção voluntária da gravidez continua a ser usada como método contraceptivo (segundo dados da Direcção-Geral de Saúde, das 17.511 interrupções voluntárias da gravidez registadas em 2008, em 2.659 casos as mulheres declararam já tê-lo feito por mais de quatro vezes).

11.4.16 - Levando até ao fim o pensamento inspirador da solução da impunibilidade, assente na crença de que só a adesão espontânea da grávida à continuidade da gestação garante minimamente, nesta fase, a tutela da vida intra-uterina, o legislador absteve-se, mesmo a nível comunicacional, de qualquer indicação que pudesse ser por ela sentida como um juízo externo pressionante da sua conduta. Considerou incitação suficiente a informação, em termos objectivos (mas não neutrais, quanto ao resultado), da disponibilidade de apoios vários, permitindo que a grávida forme por si, na posse desses dados e a partir deles, e após um período de reflexão que necessariamente os

tem em conta, a sua livre decisão.

Não tinha que ser essa a solução legal. Não se contesta que o legislador, na sua liberdade de conformação, poderia ter utilizado fórmulas verbais de eloquência expressiva quanto à sua adesão à defesa da vida, logo no plano das enunciações normativas. Assim como também poderia ter imposto aos operadores do processo legal de interrupção voluntária da gravidez uma explícita orientação finalística, em moldes idênticos aos do direito alemão, ou, mesmo, predeterminado certos conteúdos interlocutórios de apelo directo à não realização desse acto.

Mas a primeira via, podendo louvar-se da produção de sentido simbolicamnte relevante, não goza, só por si, de eficiência garantística, no plano operativo da

conformação da vida social.

Quanto à segunda, ela está sujeita a limites evidentes, resultantes da opção de base por uma forma de tutela assente, na fase inicial, na colaboração da grávida. As razões inspiradoras dessa opção vedam interferências demasiado intrusivas no processo decisório desta, muito em particular certas formas agressivas de exploração da emotividade acrescida e da situação de vulnerabilidade psicológica da mulher grávida.

Como o próprio pedido expressamente reconhece, «[...] o aconselhamento não poderá, em caso algum, significar a imposição de uma pressão psicológica sobre a mulher, mas apenas esclarecê-la da gravidade da sua decisão e das alternativas

possíveis».

É objectivamente fundado que um legislador levado a confiar, também por razões de eficiência, na responsabilidade da grávida, chamando-a a cooperar no cumprimento do dever de protecção que ao Estado compete, não queira depois criar um contexto de decisão muito provavelmente desfavorável a esse desiderato.

Assim como - agora no plano da preservação da dignidade da mulher grávida - a crença no seu sentido de responsabilidade e na sua predisposição a sensibilizar-se pelas razões contrárias à interrupção conjugar-se-iam mal com um tratamento que a menorizasse enquanto sujeito da decisão, com uma posição de orientação de cunho paternalista e tutelar. As exigências decorrentes da tutela da dignidade da mulher afirmam-se também no modo como se deve processar a consulta que lhe é imposta.

11.4.17 - É de reconhecer que ao legislador se deparou um estreitíssimo canal de navegação, entre as razões e os princípios que nortearam a decisão de excluir, em certos termos, a punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, na sua fase inicial, e a margem oposta desenhada pela proibição do défice de tutela. E há que reconhecer, de igual forma, que ele não poderia ter ido muito mais além, na promoção de decisões de prossecução da gravidez, sem exposição séria ao risco de resultados perversos, comprometedores dos objectivos que justificam aquela opção. Não se afigura desrazoável, em tal contexto de política legislativa, a auto-contenção de que ele deu

mostras.

Auto-contenção que, de modo algum, pode ser confundida com uma posição de neutralidade ou de indiferença perante a decisão que a grávida venha a tomar. Toda a preocupação revelada na Lei 16/2007, de estruturação de serviços e de imposição de procedimentos na sua utilização, não tem um significado puramente técnico-organizativo, só se compreendendo como expressão de empenho na tutela, para além da saúde da mulher, da vida pré-natal. E não é a omissão de uma expressa vinculação formal dos serviços à consecução dessa finalidade que pode servir de razão bastante para negar a presença dessa intencionalidade de tutela, quando só ela dá objectivamente sentido ao conteúdo de muitas das normas de organização e de procedimento constantes daquele diploma. A eficiência protectora, nos limites em que, nesta fase, ela é expectável, é mais resultado da acção consciencializadora e objectivamente incentivadora de certos trâmites, da dependência procedimental em que, em relação a eles, é colocada a realização da intervenção, do que de processos comunicacionais ostensivamente orientadores que, sem a participação dialógica da grávida (nunca garantida e, porventura, prejudicada por uma opção desse tipo), facilmente se transmutam em formalidades ritualisticamente processadas.

Não se pode, pois, ver na falta de indicação expressa de uma finalidade dissuasora da interrupção da gravidez o preciso défice de regulação que faz com que o regime questionado não atinja o grau de comprometimento com o valor da vida exigível para a satisfação do mínimo de tutela. Tal exigência - só constante, aliás, no quadro europeu, da legislação germânica, com base num entendimento, divergente daquele que é perfilhado por este Tribunal, de que o bem da vida intra-uterina tem um referente pessoal, e porventura explicável por circunstâncias específicas desse ordenamento, ligadas ao processo de reunificação - tal exigência, dizíamos, não representa um penhor seguro de uma maior intensidade de tutela, capaz de traçar, com nitidez, uma linha divisória entre o campo das soluções constitucionalmente conformes e o das que não o são. Está por demonstrar que ela trouxesse um acréscimo de eficiência, não sendo até de excluir o resultado contrário, por uma retracção defensiva da grávida.

E só perante um índice manifesto, incontroversamente significante da necessidade, para cumprimento do imperativo de protecção, de uma enunciação expressa da finalidade dissuasora haveria fundamento para um juízo de inconstitucionalidade.

Pois, na verdade, cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um instrumento de mensuração exacta do grau de protecção exigível para o cumprimento, pelo Estado, do correspondente dever. Nem se lhe pode exigir a identificação de um preciso e fixo ponto arquimédico, abaixo do qual o veredicto do incumprimento tenha que cair, inexorável. Quando é a observância do imperativo de tutela que está em questão, mais ainda do que em qualquer outra dimensão da constitucionalidade, e em correlação com uma maior liberdade de conformação legislativa (dada a estrutura dos deveres activos de intervenção), a instância de controlo tem que lidar com critérios de evidência, só se justificando uma pronúncia de inconstitucionalidade em caso de manifesto erro de

avaliação do legislador.

Esse erro, no entender do Tribunal, não foi cometido, quanto às soluções contestadas, não podendo afirmar-se que as opções legislativas ficaram aquém do que seria exigível

para justificar a exclusão da punibilidade.

11.4.18 - A emissão de um tal juízo apoia-se também na consciência de que o cumprimento dos deveres de protecção está sujeito a limites fácticos e jurídicos (cf.

Robert Alexy, ob. cit., 422), sendo ilusório acreditar num ilimitado poder do legislador de intervenção modificativa da realidade. Daí que ao juízo de não inconstitucionalidade se não oponha uma posição de cepticismo quanto à eficácia tuteladora, em termos

absolutos, da solução encontrada.

Não dispomos de dados seguros, a nível nacional, quanto os resultados aplicativos da Lei 16/2007, especificamente quanto à taxa de desistência, no período de reflexão - o índice de maior relevo, a este respeito - uma vez que os registos obrigatórios não contemplam esse elemento. Na maternidade Alfredo da Costa, verificou-se, aparentemente, uma curva descendente, pois, enquanto que o Diário de Notícias de 1 de Novembro de 2007 relatava que, das 261 mulheres a participar, desde a entrada em vigor da lei (15 de Julho do mesmo ano), na consulta prévia de interrupção de gravidez, 22 mudaram de ideias durante o período de reflexão - uma percentagem muito superior à verificada noutras unidades de saúde -, na Tribuna Médica Press, de 11 de Fevereiro de 2008, o director daquela maternidade assinalava 4 % de desistências - número próximo da estimativa, para fins de planeamento, da Direcção-Geral de Saúde, que apontava para 5 % (Relatório dos registos das interrupções da gravidez ao abrigo da Lei 16/2007 de 17 de Abril. Dados referentes ao período de Julho de 2007 a Julho de 2008, Lisboa, Setembro de 2008,

6).

Provando, em todo o caso, que não é nula a eficiência tuteladora do regime legal, estes valores podem ser qualificados como baixos, o que parece justificar a mencionada posição de cepticismo. Mas o juízo de eficiência não pode deixar de ser um juízo relativo, de gradação comparativa das soluções alternativas de disciplina legal. Ora, não se afigura que um aconselhamento segundo o modelo alemão se possa louvar de melhores resultados, a dar crédito a um inquérito realizado pelo Max-Planck Institut, que apresentou uma projecção de 5 % de desistências (cf. João Loureiro, "Aborto:

algumas questões jurídico-constitucionais A propósito de uma reforma legislativa", Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, LXXIV (1998), 327 s.,

372).

E, se bem virmos, estes números não surpreendem, pois a procura dos serviços médicos, com vista à interrupção da gravidez, traduz, em regra, um grau de determinação volitiva da gestante dificilmente contrariável pela ordem jurídica. "A esmagadora maioria das mulheres que se decide a abortar está disposta a fazê-lo mesmo que tal não seja admitido pelo sistema jurídico", reconhece até um Autor que se pronuncia pela inconstitucionalidade de qualquer solução de prazos (João Loureiro, ob.

loc. cit.).

Se tivermos também presente a ineficiência da punição penal, a conclusão a tirar é a de que será sempre reduzida a eficácia preventiva de qualquer das formas de reacção jurídica à interrupção voluntária da gravidez, no quadro da específica disciplina legal desse acto. Mais do que com os limites do direito penal, somos aqui confrontados com os limites do Direito (nesse sentido, Georg Hermes/Susanne Walther, "Schwangerschaftsabbruch zwischen Recht und Unrecht. Das zweite Abtreibungsurteil des BVerfG und seine Folgen", NJW 1993, 2337 s., 2341). O mínimo de protecção exigível será sempre, nessa medida, o mínimo possível, dentro desses limites.

Quanto aos limites jurídicos, eles resultam da necessária conciliação do princípio de proibição do défice de tutela com outros princípios eventualmente colidentes, pois o imperativo de protecção não goza de primado absoluto dentro da ordem constitucional.

Pelo contrário, tem sido sustentada "a eficácia mais ténue da função de imperativo de tutela, [...] substancialmente mais fraca do que a da função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção" (Canaris, ob. cit., 65). É seguro, pelo menos, que a observância desse imperativo não legitima a invasão incondicionada da esfera protegida dos direitos fundamentais de outros sujeitos (Georg Hermes/Susanne Walter, ob. loc.

cit.).

Voltando a acentuar uma ideia-chave, nesta matéria, há que lembrar que o espaço de livre conformação do legislador não está apenas limitado pela proibição de insuficiência, mas também pelo princípio da proporcionalidade, nas suas várias componentes. Sendo assim, as sérias dificuldades (se não, mesmo, impossibilidade) de satisfação cabal do primeiro princípio, quando o seu âmbito de aplicação é (indevidamente) restringido ao processo de decisão do acto de abortar, não deve reverter na lesão do segundo, sob pena de nenhum dos dois ser adequadamente observado...

Mas o reconhecimento dos limites fácticos e jurídicos da tutela através da disciplina legal do acto abortivo e dos trâmites que o antecedem deve ser acompanhado da consciência de que o cumprimento do dever de protecção da vida pré-natal não se realiza apenas nessa sede. Ao Estado cabe combater, na sua génese, as "situações de risco" para esse bem, causadas por factores de educação e por condições de vida e de trabalho, através de medidas educativas e de política social favorecedoras de uma concepção responsável e da disponibilidade para a prossecução da gravidez. Quando se trata de valorar globalmente a efectivação, pelo Estado, do mínimo de protecção da vida intra-uterina a que está obrigado, essas medidas devem ser contabilizadas, pois também elas (melhor, sobretudo elas) contribuem para uma redução do número de abortos - o objectivo da imposição daquele dever. E a realista avaliação de que não é de esperar um resultado expressivo, nesse sentido, do regime legal da interrupção voluntária da gravidez só deve conduzir a uma apreciação redobradamente positiva, também nesta perspectiva, de instrumentos preventivos, actuantes no domínio da educação sexual e planeamento familiar e de apoio à maternidade e à família, mais

distantes, mas mais eficazes.

E medidas desta natureza, recomendadas pelas instâncias europeias, como instrumentos de diminuição do recurso ao aborto - cf., em particular, a "Resolução do Parlamento Europeu sobre Direitos em Matéria de Saúde Sexual e Reprodutiva", de 2003, já referenciada no Acórdão 617/2006 - têm sido introduzidas, no nosso ordenamento

jurídico, por numerosos diplomas.

Para além dos já mencionados nesse aresto, têm uma actuação particularmente significativa, neste campo, o Decreto-Lei 105/2008, de 25 de Junho, que institui medidas sociais de reforço da protecção social na maternidade, paternidade e adopção integradas no subsistema de solidariedade; o Decreto-Lei 245/2008, de 18 de Dezembro (procede à alteração do Decreto-Lei 176/2003, de 2 de Agosto, o qual passou a prever o abono de família pré-natal como forma de protecção nos encargos familiares); o Código do Trabalho, revisto pela Lei 7/2007, de 12 de Fevereiro, o qual contém toda uma subsecção (Subsecção IV da Secção II do Capítulo II - artigos 33.º a 65.º) dedicada à "parentalidade", com disposições tuteladoras dessa situação familiar; o Decreto-Lei 91/2009, de 29 de Abril, que estabelece o regime jurídico de protecção social na parentalidade, no âmbito do sistema previdencial e no subsistema de solidariedade (revoga o Decreto-Lei 105/2008, de 25 de Junho); a Lei 60/2009, de 6 de Agosto, que estabelece o regime de aplicação de educação sexual em meio escolar e o Decreto-Lei 201/2009, de 28 de Agosto, que procede à alteração do Decreto-Lei 176/2003, de 2 de Agosto, o qual passou a prever a bolsa de estudo como forma de protecção nos encargos familiares.

É de concluir que vigora, no nosso sistema, um conjunto diversificado de medidas, em número e com um alcance bastante para que, tendo-as também em conta, se possa sustentar que o Estado português não cruza os braços perante o fenómeno do aborto, antes está activamente empenhado em combatê-lo.

De resto, na nossa história legislativa, a regulação da prática da interrupção voluntária da gravidez, foi associada, desde o início, aquando da implantação do "modelo das indicações", a intervenções com vista à "protecção activa da maternidade". De facto, em 1984, a Assembleia da República não aprovou apenas uma lei sobre interrupção voluntária da gravidez: definiu um complexo de instrumentos legais tendentes a assegurar apoio à maternidade. Visou-se, intencionalmente, a criação de um edifício legislativo composto por várias peças, actuantes articuladamente no mesmo sentido, de forma a potenciar a eficácia interventiva do conjunto - cf. o Relatório de José de

Magalhães, cit., 3-4.

Poderá, porventura, alegar-se que, entre nós, as prestações públicas de educação sexual e de apoio à maternidade estão ainda longe de atingir o grau de eficiência já alcançado pelos países mais avançados, neste domínio. Mas não pode esquecer-se que o que está em causa é um mínimo de protecção, não a protecção ideal.

11.4.19 - Por todo o exposto, pode concluir-se que as normas dos artigos 1.º - na parte em introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal -, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007, de 17 de Abril, não estão feridas de inconstitucionalidade, por violação do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição.

11.5 - O período mínimo de reflexão (alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código

Penal)

Ainda dentro do quadrante valorativo respeitante ao alegado incumprimento do dever de protecção da vida humana, os requerentes pretendem a declaração de inconstitucionalidade da opção normativa que, no âmbito do regime jurídico instituído pela Lei 16/2007, de 17 de Abril, limita a três dias o prazo mínimo de reflexão que medeia entre a realização da primeira consulta médica e a prestação do consentimento para a realização da interrupção da gravidez, considerando-a conflituante com o artigo

24.º da CRP.

A solução contestada pelos requerentes encontra-se expressa na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei 16/2007.

Dispõe-se aí o seguinte:

«4 - O consentimento é prestado:

a) [...]

b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e

responsável.»

Para além de questionarem a solução de base constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal e o regime da consulta obrigatória para dar satisfação ao mandamento constitucional de protecção da vida intra-uterina, os requerentes impugnaram também especificamente o segmento normativo do preceito acima transcrito que fixa em três dias o período mínimo de reflexão entre a consulta e a

prestação do consentimento.

Em seu entender, esse prazo é excessivamente curto, estando em causa uma decisão que se quer livre, consciente e responsável, e de que pode resultar a lesão irreversível da vida humana. Mesmo a admitir-se que a restante modelação da disciplina legal satisfaz o imperativo de protecção inferível do artigo 24.º da Constituição - o que os requerentes não concedem - a brevidade daquele prazo é de molde a comprometer o

cumprimento desse dever de protecção.

Mas também não merece este juízo a extensão temporal do período de reflexão.

Consagram-se, em direito comparado, é certo, períodos mais alongados. Tendo em conta, todavia, a premência do tempo, para a não ultrapassagem do limite das 10 semanas, e o facto de a procura dos serviços ser já o resultado de uma reflexão anterior da grávida, o prazo de três dias é adequado, mostrando-se suficiente para lhe proporcionar uma ponderação consciente daquilo que ouviu na consulta.

E é puramente especulativo pensar que um período de maior duração contribuiria para o aumento da taxa de desistências. Com efeito, não é possível estabelecer uma qualquer relação de inferência directa entre o sentido da decisão final da gestante e a duração do prazo destinado à sua reflexão após a realização da consulta a que se refere o artigo 2.º da Lei 16/2007. Inexiste, assim, fundamento racionalmente sustentável para concluir que uma duração do período de reflexão superior àquela que se encontra prevista fosse susceptível de assegurar em maior medida o favorecimento de comportamentos espontâneos compatíveis com a prossecução da gravidez.

De resto, trata-se de um prazo mínimo (contrariamente aos prazos, de direito do consumo, argumentativamente invocados no pedido), nada obstando (antes tudo aconselhando) a que, em caso de persistência de dúvidas da gestante, no termo desse período, a intervenção, no limite das 10 semanas, seja retardada, de modo a não impossibilitar uma definitiva decisão em contrário.

A duração do período de reflexão legalmente prevista, em si mesma e no contexto da normação em que se insere, não constitui, pois, um elemento susceptível de fazer fracassar o sistema, no confronto com as injunções de sentido procedentes do artigo 24.º da CRP, pelo que não está ferida de inconstitucionalidade.

11.6 - Violação do direito à saúde física e psíquica da mulher Vem também alegado que o regime da Lei 16/2007, na medida em que não protege a saúde física e mental da mulher, atenta contra o disposto nos artigos 64.º, n.os 1 e 2, alínea b), e no artigo 66.º, n.º 1, da CRP.

A alegação consta do ponto Z) das conclusões, formulado nos seguintes termos:

«Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco para a saúde física e mental da mulher, e dando por assente o aborto por carências económicas, o regime fixado na Lei 16/2007, de 17 de Abril, liberta o Estado da sua função de solidariedade e protecção da saúde física e psíquica, violando, assim, o disposto nos arts. 64.º, n.º 1 e

2, al. b), e 66.º, n.º 1, da C.R.P.»

O pedido não referencia a norma ou complexo de normas a que concretamente seja de imputar o alegado vício, apontando apenas, em termos vagos, "o regime fixado na Lei 16/2007". A motivação também não ajuda a concretizar. Nela pode ler-se, quanto a

este ponto:

«Sabe-se hoje que o aborto constitui, para a mulher, uma chaga e uma fonte de doença

gravíssima: o trauma pós-aborto.

Permitir que as mulheres corram este risco de doença para o resto da vida por um aborto, às vezes feito por falta de condições económicas ou sociais ou, meramente, por motivos fúteis ou ainda porque as mulheres são vítimas de maus-tratos familiares, é deixar totalmente desprotegido o direito à saúde que ao Estado cabe fazer cumprir e

implementar.

Recorde-se, a título de exemplo, as políticas que hoje, por via deste dever constitucional atribuído ao Estado, estão em vigor com vista a eliminar os riscos de vida ou para a saúde das pessoas, de que são casos bem exemplificativos a circulação

automóvel, o tabagismo, etc...

Trata-se de políticas que restringem a liberdade individual, atento o bem maior que é

saúde ou a vida».

Não obstante a falta de indicação precisa da norma ou normas questionadas, parece poder deduzir-se desta argumentação que em causa estão as normas do diploma de que mais directamente resulta, na óptica do pedido, um favorecimento das práticas abortivas. Ou seja, as mesmas normas já anteriormente apreciadas, pelo prisma do artigo 24.º da Constituição, e muito em especial a alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção ao artigo 1.º da Lei 16/2007, a alínea b) do n.º 4 do referido artigo 142.º, e o n.º 2 do artigo 2.º daquela lei.

A ideia fundante será a de que, ao não reprimir a interrupção voluntária da gravidez, por meios de direito penal, ou, pelo menos, ao não dissuadir a sua prática, por meios substitutivos adequados, o Estado não está a cumprir o seu dever de protecção da saúde física ou psíquica da grávida, posta em risco por aquelas intervenções

interruptivas.

Assim sinteticamente formulada, que dizer desta invocada questão de

constitucionalidade?

Quanto aos parâmetros constitucionais invocados, é de afastar liminarmente o consagrado no artigo 66.º, n.º 1, cujo âmbito de protecção - o ambiente e a qualidade de vida - nada tem a ver, como é manifesto, com o bem em causa. Ainda que o preceito releve de uma "teleologia antropocêntrica" (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob.cit., 845), encarando a defesa e promoção de um ambiente sadio como um factor da qualidade de vida, nele nada se estatui que possa ter repercussão, directa ou indirecta, na criação de condições de vivência social dissuasoras das interrupções

voluntárias da gravidez.

Sob o ponto de vista do direito à saúde, é evidente que, mesmo quando realizada nas condições médico-sanitárias adequadas, a interrupção voluntária da gravidez comporta algum risco (risco, em todo o caso, tanto menor quanto mais precoce for a intervenção). Não se nega que possa haver sequelas nefastas, mesmo de carácter não transitório, sobretudo para a saúde psíquica da mulher, dados os sentimentos de perda e de culpa frequentemente associados à realização daquele acto.

Mas o legislador mostrou-se perfeitamente consciente disso mesmo, ao impor que a grávida seja informada, no decurso da consulta obrigatória, das consequências para a sua saúde (tanto física como psíquica, evidentemente) da efectivação do seu desígnio. E essa informação, mesmo num quadro decisório de auto-responsabilidade, pode ter, nalguns casos, alguma eficácia desincentivadora, por instigação dos mecanismos de

autotutela.

E ainda que a grávida decida levar o seu propósito avante (o que, já se admitiu, acontecerá na grande maioria dos casos, mas isso qualquer que seja o sistema disciplinador), a preocupação de tutela da sua saúde está presente ao impor-se que a interrupção seja efectuada por médico, ou sob sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, e ao impor-se a estes estabelecimentos a adopção de medidas capazes de garantirem uma boa prestação deste serviço, também em termos médicos (cf. a Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho).

O erro da arguição é o de pressupor que o impedimento ou dificultação de realizar a interrupção voluntária da gravidez em condições de impunibilidade se traduz automaticamente no decréscimo do número desses actos e, logo, numa menor possibilidade de concretização do risco a eles associado. Ora, já vimos que não é assim. Certo é antes que esse regime teria o efeito, como teve no passado, de potenciar o número de abortos praticados em condições completamente inadequadas e, esses, de risco muito mais grave para a saúde da mulher - risco frequentemente concretizado, como a prática hospitalar documenta. E os primeiros dados disponíveis parecem confirmar o efeito salutar, a este nível, da Lei 16/2007, pois, no seu primeiro ano de vigência, terão diminuído significativamente as infecções e a perfuração de órgãos

associadas ao aborto clandestino.

Quanto às medidas instrumentais de uma plena realização do direito à protecção da saúde, enunciadas na alínea b) do n.º 2 do artigo 64.º da CRP, é evidente que políticas sociais dirigidas à criação de condições de vida e de trabalho dignas e de apoio solidário aos que delas estão carentes fornecem uma envolvente favorável à disponibilidade para aceitação responsável da maternidade, sendo também elas um relevante factor, ainda que genérico e mais longínquo, de contenção das práticas abortivas. Como já alguém disse, "a melhor protecção da vida pré-natal é a da vida

existente".

Mas, o que nem o mais denodado esforço interpretativo consegue alcançar é o porquê de os agravos sobre a condição da mulher ocasionados pela falta dessas medidas, tão pictoricamente descritos no pedido, deverem ter por corolário... a inflicção de um novo mal - a punição penal por uma interrupção voluntária da gravidez explicável, em muitos

casos, por aquelas circunstâncias.

É de concluir, pois, que a admissão da realização da interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, nas condições fixadas na Lei 16/2007, não desprotege a saúde física e psíquica da mulher.

11.7 - Violação do direito à liberdade e do princípio da proporcionalidade O regime consagrado no mesmo artigo 2.º e no artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal é também apontado, na motivação, como conflituando com os "direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade", tornando-se, deste ponto de vista, sindicável perante o disposto nos artigos 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da CRP".

A relacionação destas normas com aqueles valores constitucionais alegadamente violados desperta alguma perplexidade, pois não se descortina que "os direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade" possam caber nos respectivos âmbitos

de protecção.

Em relação à norma do artigo 27.º, n.º 1, a sua invocação parece assentar num equívoco, pois o bem protegido em tal preceito, como se reconhece consensualmente e os n.os 2 e 3 deixam claro, é o da liberdade física.

Ora, o que aqui pode estar em causa é apenas a liberdade real de decisão, quanto à realização ou não do acto abortivo, por défice de informação quanto a todos os elementos relevantes para uma escolha consciente. É essa insuficiência que os requerentes parece terem em vista, quando, na conclusão w), referem que o modo como a Lei 16/2007 regula a prestação da informação "tange com os Princípios Constitucionais da igualdade e proporcionalidade [...]".

Se o princípio da igualdade pode ser, de imediato, posto de lado, por estar aqui deslocadamente invocado, também não é clara a inferência de sentido que os requerentes retiram do princípio da proporcionalidade, quando o invocam, a este propósito. Pois, estando este princípio colimado à proibição de um excesso, não se afigura que se encontre disponível, qua tale, para atalhar um défice (de protecção), em concretização da proibição de insuficiência - cf., nesse sentido, Canaris, ob. cit., 67.

Sempre se dirá, todavia, que a informação, tal como vem regulada, em termos de conteúdos e processos comunicativos, é proporcionada ao objectivo de obter a colaboração da grávida para ouvir, seriamente reflectir e, eventualmente, se deixar influenciar pelos dados que lhe são transmitidos.

Quanto ao momento e ao modo de informar, vem também alegada "a natureza triplamente indirecta da informação a prestar", partindo-se do princípio que "não é obrigatório fornecê-la mas apenas informar a grávida acerca dos meios de a obter" e de que, se essa opção for feita, é a um técnico social, durante o acompanhamento no período de reflexão, ao qual se refere a alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º

16/2007, que cabe informar.

Esta interpretação contradiz frontalmente os enunciados legais. Das normas dos artigos 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, e 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, (e também do artigo 16.º da Portaria 741-A/2007, não objecto de recurso, neste processo) resulta que a informação, toda a informação prevista como de prestação obrigatória e não apenas a de natureza médica, deve ser directamente fornecida, no acto da consulta, e

não após a sua efectivação.

É de rejeitar, pois, a invocada inconstitucionalidade dos artigos 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 e 142.º, n.º 4, alínea b) do Código Penal, com fundamento em violação dos "direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade".

11.8 - Não participação do progenitor masculino no processo de decisão sobre a

interrupção voluntária da gravidez

11.8.1 - Os requerentes suscitam ainda a questão da inconstitucionalidade da solução normativa consistente na omissão da exigência de participação do progenitor masculino no processo de formação da decisão sobre o aborto no âmbito do regime jurídico instituído pela Lei 16/2007, de 17 de Abril.

Para condenar a viabilidade constitucional de tal solução, invocam as normas paramétricas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 24.º, 13.º, 36.º, n.os 3 e 5, 67.º, alínea d), 68.º, n.º 2, da CRP, e os fundamentos seguintes:

Através do seu artigo 67.º, alínea d), a Constituição garante o exercício da maternidade e paternidade conscientes, estabelecendo, por sua vez, o respectivo artigo 68.º que a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes;

O princípio da igualdade fixado para o exercício da parentalidade trespassa todo o direito constitucional (artigos 13.º, 36.º, n.os 3 e 5, 67.º e 68.º da CRP).

Ao deixar o progenitor masculino totalmente arredado da responsabilidade e processo de formação da decisão no aborto, a Lei 16/2007, de 17 de Abril, viola estas normas e as restantes acima mencionadas da lei Fundamental.

11.8.2 - Nos termos dos n.os 4, 5 e 6 do artigo 142.º do Código Penal, a formação da decisão sobre a interrupção voluntária da gravidez cabe apenas à mulher grávida, cujo consentimento, ou do seu representante nos termos da lei, inserido na tramitação que antecede a realização daquele acto, é exigível como condição de exclusão da

punibilidade.

O regime do consentimento para a realização da interrupção da gravidez no âmbito do funcionamento da fattispecie contemplada na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal dispensa, assim, o do progenitor, em tal exclusão residindo o vício de inconstitucionalidade apontado pelos requerentes.

A apreciação da viabilidade constitucional deste regime pressupõe a prévia caracterização da configuração em que, neste quadro, o problema pode juridicamente

suscitar-se.

De facto, só nos casos em que a identidade do progenitor for susceptível de ser estabelecida pela ordem jurídica, de forma legítima, é que a questão poderá

verdadeiramente colocar-se.

Se o não puder ser, não chega a suscitar-se um qualquer problema jurídico porque, em termos puramente jurídicos, um pai desconhecido é o mesmo que um pai inexistente, pelo que a sua vontade será neste caso irrelevante (Pedro Pais de Vasconcelos, "A posição jurídica do pai na interrupção voluntária da gravidez", Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, I, Coimbra, 2008, 139 s., 152-153).

Ora, podendo partir-se com segurança do postulado segundo o qual não constituiria forma legítima de estabelecimento da identidade do progenitor qualquer uma que assentasse na previsão de uma investigação das circunstâncias da concepção ou numa indagação a desenvolver junto da própria grávida - tratar-se-ia sempre de uma intolerável violação do direito à reserva da intimidade que lhe é assegurado pelo artigo 26.º da Constituição -, o problema da dispensa do consentimento do progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez fica juridicamente limitado ao âmbito do funcionamento operativo da presunção de paternidade decorrente do casamento, consagrada no artigo 1826.º do Código Civil.

Apenas nestes casos, a ordem jurídica estará em condições para, sem o recurso à colaboração da gestante, estabelecer a identidade do progenitor do nascituro comum e, em tal contexto, equacionar a possibilidade de, em oposição ao critério legal impugnado, fazer depender também do assentimento daquele a realização da interrupção da gravidez por opção da grávida.

Nos termos preceituados no artigo 1826.º do Código Civil, presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da

mãe.

Tal presunção, não sendo inderrogável, cessa nos casos previstos nos artigos 1829.º e

1832.º do mesmo Código.

Trata-se aqui dos casos em que a lei não impõe a presunção de paternidade ao marido da mãe, embora a concepção do filho se tenha verificado durante a constância formal

do matrimónio.

Segundo o artigo 1829.º, a presunção de paternidade cessa se o nascimento do filho ocorrer passados trezentos dias depois de finda a coabitação dos cônjuges, considerando-se esta para um tal efeito terminada na data da primeira conferência, tratando-se de divórcio ou de separação por mútuo consentimento; na data da citação do réu para a acção de divórcio ou separação litigiosa, ou na data que a sentença fixar como a da cessação da coabitação; na data em que deixou de haver notícias do marido, conforme decisão proferida em acção de nomeação de curador provisório, justificação de ausência ou declaração de morte presumida.

A presunção de paternidade cessa ainda, nos termos do artigo 1832.º, nos casos em que a mulher casada fizer a declaração do nascimento com a indicação de que o filho não é do marido e se for averbada ao registo declaração de que, na ocasião do nascimento, o filho não beneficiou de posse de estado, nos termos do n.º 2 do artigo

1831.º, relativamente a ambos os cônjuges.

Como se vê, qualquer uma das causas legalmente habilitadas a fazer cessar a presunção de paternidade decorrente do casamento supõe precisamente o nascimento, razão pela qual nenhuma delas será passível de verificar-se no momento temporal a que se reporta a prestação do consentimento para a realização da interrupção da gravidez.

Deste ponto de vista, pode dizer-se que a presunção de paternidade será, para um tal

efeito, inderrogável.

Apesar de ser assim, não está, todavia, excluída a possibilidade de a grávida declarar espontaneamente que o progenitor biológico não é o seu cônjuge.

Embora não possa fazer cessar a presunção da paternidade nos termos previstos no artigo 1832.º, do Código Civil, tal declaração, a ocorrer, não deixará de afectar o sentido, também jurídico, do problema da dispensa do consentimento do progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez.

Este problema, pela própria natureza dos fundamentos em que assenta, tem o seu sentido dependente da circunstância de se tratar do progenitor biológico do nascituro comum, não sendo configurável, pelo menos com idêntico significado, em relação ao progenitor presumido de acordo com o critério nupcialista, sempre que esteja posta em causa a sua coincidência com o progenitor biológico.

Isto significa, de um ponto de vista operativo, que o problema da dispensa do consentimento do progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal acaba por ficar juridicamente confinado aos casos de funcionamento não controvertido da presunção de paternidade derivada do casamento: àqueles em que a mulher grávida é casada, a concepção ocorreu na constância do matrimónio e não é produzida pela gestante qualquer declaração contrária à presunção legal de paternidade.

11.8.3 - De entre as normas paramétricas convocadas pelos requerentes, aquelas que mais directamente se cruzam com a fundamentação do pedido e se encontram tematicamente mais próximas da matriz conflitual do problema são as constantes dos artigos 13.º, 36.º, n.os 3 e 5, 67.º, alínea d), e 68.º, todos da Constituição.

Previamente à determinação do grau de conflitualidade possível da solução normativa questionada com cada uma dessas normas, importa clarificar os termos em que estas se relacionam entre si e deste modo estabelecer a pertinência relativa de cada uma delas,

para a valoração que o problema suscita.

Conforme referem Gomes Canotilho/Vital Moreira (ob. cit., 561), no artigo 36.º da Constituição reconhecem-se e garantem-se os direitos relativos à família, ao casamento e à filiação, direitos esses de quatro ordens: «a) direito das pessoas a constituírem família e a casarem-se (n.os 1 e 2); b) direitos dos cônjuges no âmbito familiar e extrafamiliar (n.º 3); c) direitos dos pais em relação aos filhos (n.os 5 e 6); d) direitos

dos filhos (n.os 4, 5, 2.ª parte, e 6)».

Confrontando este artigo com os artigos 67.º e 68.º da CRP - «que reconhecem "direitos sociais" cujos titulares são aparentemente comuns» -, regista-se, todavia, que «no artigo 67.º é a própria família, enquanto tal (e não as pessoas), que aparece como sujeito do direito à protecção da sociedade e do Estado; no artigo 68.º, já os titulares do direito são também os pais e as mães mas o destinatário desse direito é a sociedade

e o Estado [...]».

Tal perspectiva é também a de Jorge Miranda/Rui Medeiros. Segundo os referidos Autores, «enquanto no artigo 36.º avulta sobretudo a dimensão individual-subjectiva dos direitos dos membros da família, incluindo desde logo o próprio direito a constituir família, quer ainda, no que toca à família como um todo, a dimensão de liberdade, o artigo 67.º, se bem que sem perder de vista o objectivo da realização pessoal dos seus membros, tutela fundamentalmente a própria família como instituição e impõe em particular ao Estado o dever de a proteger positivamente» (Constituição Portuguesa

Anotada, ob. cit., I, 689).

No artigo 67.º - prosseguem ainda - a Constituição «impõe ao Estado um conjunto de incumbências destinadas a proteger, pela positiva, a família e a vida familiar», enumerando o respectivo n.º 2, «a título exemplificativo [...] algumas das acções que o Estado deverá promover em ordem à protecção da família» (ob. cit., 693).

Enquanto que no artigo 36.º, n.º 5, a Constituição garante aos pais o direito e lhes impõe o dever de educação e manutenção dos filhos, o artigo 68.º confere-lhes o «direito à protecção (i. é, ao auxílio) da sociedade e do Estado no desempenho dessa tarefa», conferindo-lhes, deste ponto de vista, «um "direito social" em sentido próprio, traduzido essencialmente em um direito a prestações públicas, a concretizar por lei», valendo igualmente «face à sociedade, ou seja, face os particulares [...], nos termos das

leis concretizadoras deste direito».

11.8.4 - Fixado o alcance essencial das normas constitucionais de tutela da família e dos seus membros (no quadro das relações familiares), em si e na sua articulação recíproca, torna-se patente que, no contexto do controlo da constitucionalidade do critério normativo que vem questionado, só faz sentido considerar a convocação dos

parâmetros constantes do artigo 36.º

Com efeito, consistindo esse critério na suficiência do consentimento da mulher grávida para a realização da interrupção da gravidez efectuada por opção daquela, dispensando o do progenitor, o campo normativo para que o discurso sobre a respectiva viabilidade constitucional é directamente remetido não é o dos direitos sociais relativos às incumbências do Estado na protecção da família e da vida familiar (artigo 67.º), ou à protecção dos pais e mães pela sociedade e pelo Estado, nem mesmo o dos valores constitucionais objectivos da maternidade e paternidade (artigo 68.º), mas sim o do estatuto constitucional dos progenitores, no contexto da relação de

família.

As referências de sentido susceptíveis de conflituar com a solução normativa impugnada são, pois, em primeira linha, as procedentes da dimensão individual-subjectiva dos direitos dos membros da família. E essa é matéria que aponta para o âmbito normativo

do artigo 36.º da Constituição.

Das normas enunciadas neste artigo, e uma vez que a "plena igualdade" assegurada no n.º 1 se refere ao "direito de constituir família e de contrair casamento", a constante do n.º 3 assume, prima facie, centralidade, para o problema em apreço.

Reza essa norma que «os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.» No segmento que para aqui importa (2.ª parte), interdita-se qualquer discriminação jurídica entre os cônjuges, no exercício do poder-dever, consagrado no n.º 5 do mesmo artigo, de educação e manutenção dos filhos - regra extensível, por identidade de razão, a todas as outras situações de progenitura de um filho comum (se bem que, conforme já se viu, o problema relativo à delimitação dos titulares do poder de consentir na realização da interrupção voluntária da gravidez não possa, nestas situações, colocar-se nos mesmos termos em que se coloca quanto a pais casados).

Mas, ainda que muito expressiva do valor constitucional do princípio da igualdade, de que constitui um corolário e uma manifestação particular, é meridianamente claro que a norma tem em vista os filhos já nascidos, uma vez que o referente objectivo é "a manutenção e educação" dos mesmos. Ora, o que aqui se questiona é a exigibilidade do consentimento do progenitor, no mesmo plano e com a mesma eficácia do da gestante, para a interrupção voluntária da gravidez. O mesmo é dizer, em causa está a participação volitiva do interveniente masculino na concepção numa decisão de que dependerá o nascimento futuro, ou não, de um filho. Questão que, não só incide sobre um (eventual) conflito de distinta configuração, como também se rege por coordenadas valorativas não coincidentes com as especificamente actuantes no n.º 3 do artigo 36.º Tal como as restantes normas convocadas, atinentes à esfera da família, da paternidade e da maternidade, também o n.º 3 do artigo 36.º se revela, pois, imprestável para servir de critério constitucional de apreciação do regime em apreço. Temos, assim, que, remontar ao princípio da igualdade, na sua enunciação mais genérica (artigo 13.º da CRP), no quadro do qual deve ser proferida a palavra final sobre a questão.

11.8.5 - De um modo geral, pode dizer-se que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de todas e quaisquer distinções, mas apenas daquelas que se revelem materialmente infundadas e careçam, por isso, de justificação objectiva e racional (neste sentido, entre

muitos outros, o Acórdão 250/2000).

Se assim é, a questão que se coloca poderá enunciar-se da seguinte forma:

A inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da interrupção da gravidez contemplada na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal exprime, em confronto com a suficiência do consentimento da grávida, uma distinção materialmente infundada, carecida de justificação objectiva e racional e, por isso, violadora do princípio da igualdade dos progenitores? No Acórdão 25/84, o Tribunal Constitucional concluiu que o princípio da igualdade de ambos os cônjuges à manutenção dos filhos (artigo 36.º, n.º 3) não era infringido por uma norma legal que apenas exigia o consentimento da mulher grávida para efeitos de

interrupção da gravidez.

Estava então em causa a apreciação, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, das normas constantes dos artigos 140.º e 141.º do Código Penal, na redacção que lhes viria a ser conferida pelo artigo 1.º da Lei 6/84, de 11 de Maio, ou seja, das alterações ao regime penal do aborto que introduziram no ordenamento jurídico-penal português as chamadas "causas de exclusão da ilicitude",

correspondentes ao modelo de indicações.

Tal orientação é de manter no âmbito da fattispecie prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º

16/2007, de 17 de Abril.

Na verdade, a colocação da possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez, com sujeição ao regime previsto nessa norma, na dependência do assentimento de ambos os progenitores não poderia deixar de equivaler à atribuição ao

progenitor masculino de um direito de veto.

Não sendo concebível a previsão da possibilidade de recurso aos tribunais para dirimir uma eventual divergência entre a grávida e o progenitor acerca da realização, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, de uma interrupção da gravidez desejada pela primeira e indesejada pelo segundo, um princípio de direcção conjunta do destino do embrião ou do feto redundaria aqui na atribuição ao progenitor da prerrogativa de, por acto unilateral e discricionário, impedir a aplicação daquela alínea e, com isso, reconvocar a protecção do direito penal, submetendo, com isso, a grávida à ameaça da pena - apesar de esta ter sido considerada, pelo legislador de 2007, instrumento não necessário de tutela da vida intra-uterina até às 10 semanas de gravidez.

Deste ponto de vista, pode dizer-se que a solução normativa consistente na inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da interrupção da gravidez prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal não envolve qualquer desqualificação arbitrária da paternidade enquanto valor social eminente, nem se apresenta carecida de justificação objectiva e racional, em termos de poder ser considerada violadora do princípio da igualdade. A solução está, por assim dizer, na "natureza das coisas", por condicionada pela realidade biológica da gestação humana.

Sendo assim, é de concluir que a norma extraída dos n.os 1, alínea e), e 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei 16/2007, de 17 de Abril, consistente na suficiência do consentimento da mulher grávida para a exclusão da punibilidade da interrupção da gravidez efectuada por opção daquela, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e por médico ou sob a sua direcção, dentro das 10 primeiras semanas de gravidez, dispensando o do progenitor, não deve ser considerada inconstitucional.

11.9 - Não participação na consulta obrigatória dos médicos que invoquem a objecção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez (artigo 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007) 11.9.1 - Os requerentes suscitam ainda a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei 16/2007, de 17 de Abril, na medida em que exclui das consultas previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal e no artigo 2.º daquele diploma os médicos objectores de consciência.

Segundo os requerentes, tal solução normativa encontra-se em desconformidade com o artigo 24.º da CRP, violando ainda os artigos 13.º (princípio da igualdade), 25.º, n.º 1 (integridade pessoal dos médicos), e 26.º (bom nome e reputação dos médicos), para além de desconforme à Declaração Universal dos Direitos do Homem e Convenções Internacionais, aplicáveis por força do artigo 8.º da CRP.

De acordo com a argumentação para o efeito desenvolvida, a disciplina constante da norma em questão, ao excluir das consultas os médicos objectores de consciência - e, por isso, mais próximos da principiologia do artigo 24.º da Constituição -, contém, relativamente a estes, um tratamento discriminatório, designadamente no que toca ao acesso a cargos em estabelecimentos públicos.

O artigo em causa, sob a epígrafe "objecção de consciência", dispõe, no seu n.º 2, o

seguinte:

«2 - Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objecção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar

durante o período de reflexão.

A consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, destina-se a facultar à mulher grávida "o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável". O conteúdo dessa informação vem explicitado, como já vimos, no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007.

A apreciação da constitucionalidade da regra legal impugnada pressupõe a prévia compreensão do fundamento material que, do ponto de vista da unidade do sistema em que se insere, lhe pode ser racionalmente associado.

Já acima tratámos desenvolvidamente das razões, tidas por justificativas, da opção primária de exclusão da punibilidade, dentro de certo prazo, da interrupção voluntária da gravidez. Quanto ao modo operativo desta opção, o nosso direito, tendo-se decidido pela obrigatoriedade de uma consulta prévia à prestação do consentimento, não explicitou nominalmente a finalidade dessa consulta, como sendo a de encorajar a grávida a levar a termo o processo de gestação - nisso, aliás, se colocando a par da generalidade dos que seguiram idêntica directriz de base, com a excepção única do

direito alemão.

E também esta opção de segundo grau foi tida por defensável, no quadro da unidade de conjunto das ponderações valorativas do legislador, não censuradas, em que se

integra.

É dentro deste sistema regulador, e em perfeita coerência com as soluções previamente encontradas para os pontos centrais da disciplina legal, que se perfila o regime do n.º 2 do artigo 6.º da Lei 16/2007. Também ele é expressão da mesma ideia de que a grávida deve ser institucionalmente preservada de qualquer forma de ingerência no desenvolvimento "interno" do seu processo decisório, mesmo daquelas que se traduzem apenas em comunicações de cunho declaradamente orientativo.

É a esse terreno, na verdade, que nos conduz a captação da finalidade da exclusão da possibilidade de participação na consulta que precede a concretização da interrupção da gravidez dos médicos objectores de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes a esse acto. Ela reporta-se funcionalmente à intencionalidade global do sistema instituído pela Lei 16/2007, visando o conjunto das disposições do artigo 6.º estabelecer uma disciplina respeitadora dos ditames de consciência dos médicos, mas que dê também satisfação às exigências de funcionamento dos serviços que operacionalizam esse sistema em moldes sintonizados com as coordenadas que o

informam.

E fá-lo em termos que não suscitam reparos constitucionais.

11.9.2 - Tenha-se em conta, em primeiro lugar, que a garantia do direito à objecção de consciência está submetida a uma reserva de lei, pois é concedida "nos termos da lei"

(artigo 41.º, n.º 6, da CRP). Não parece desrazoável ou desproporcionado, em face desta remissão para a lei, que seja esta, e não o objector, a delimitar o âmbito sobre que a objecção incide (desde que, evidentemente, não ponha em causa a satisfação da razão de consciência que dá "conteúdo essencial" ao direito à objecção).

A interrupção voluntária da gravidez é um processo unitário, composto por um encadeamento de actos, preparatórios e executivos. Não é arbitrário que, uma vez manifestado pelo médico um impedimento de consciência em participar nos últimos, a

lei o estenda à consulta prévia.

É certo que, com essa extensão, o legislador vai para além do que seria estritamente necessário à protecção do objector. Mas o que não é menos certo é que, com essa decisão, resultante da livre avaliação que o legislador faz da incidência da objecção de consciência no cumprimento do programa de ordenação que estabeleceu, com a sua racionalidade própria, ele não compromete o mínimo de protecção da vida-uterina, não viola o princípio da igualdade, assim como não viola a integridade moral nem o direito

ao bom nome dos médicos objectores.

Quanto à primeira arguição, que, mais uma vez, convoca o disposto no artigo 24.º da CRP, deixa-se subentendido que a solução gera unilateralidade do conteúdo informativo, pois silencia as vozes de quantos estariam mais activamente disponíveis para apresentar à grávida razões favorecedoras da prossecução da gravidez. Não sendo controlada "a opinião dos médicos que vão à consulta", a "desigualdade daí derivada" seria "mais um argumento para mostrar o inadmissível da assimetria

informativa".

Ora, quando se fala, neste contexto, em "assimetria informativa", parece assumir-se como ideal da estrutura de informação o estabelecimento de uma espécie de contraditório perante a grávida, em que aos partidários e adversários do aborto fosse concedida igual oportunidade de expenderem as suas razões. Estará em mente um desenrolar de uma dialéctica argumentativa, em que teriam ocasião de se manifestar

concepções antagónicas.

Esta representação falha rotundamente, pois parte de um grave equívoco quanto à posição dos médicos que não se negam a participar na interrupção voluntária da gravidez. Eles não podem ser considerados a favor do aborto, mas apenas médicos que, valorando-o seguramente como um mal, estão, todavia, dispostos a colaborar no

cumprimento da lei.

Nem, na lógica do sistema, o resultado da consulta e subsequente reflexão é feito depender do empenho que os operadores profissionais mostrem num determinado sentido da decisão. Pelo contrário. O que se visa é a exposição objectiva, num clima de serenidade e de absoluto respeito pela autonomia decisória da grávida, de uma série de apoios susceptíveis de a levar a considerar, de moto próprio, viável a solução

alternativa à interrupção da gravidez.

Pode atribuir-se a este regime uma eficiência reduzida e menor do que a que gozam outros sistemas - ideia, esta última, já suficientemente contrariada. Mas o que não tem razão de ser, por inteiramente desfasado dos critérios que informam a disciplina legal e deturpador do papel que é atribuído à prestação profissional dos médicos, na fase da consulta, é o entendimento de que a exclusão dos médicos objectores de consciência diminui o nível da protecção que seja de imputar a uma tal disciplina.

11.9.3 - A alegação de que o princípio da igualdade é ofendido aponta para a dimensão do princípio que se traduz na proibição de discriminações (n.º 2 do artigo 13.º da CRP). Estaríamos em face de uma diferenciação de tratamento baseada num certo conteúdo de consciência, na manifestação de uma convicção de ordem moral, ou seja, em razão de uma das categorias "suspeitas", exemplificativamente mencionada

naquele preceito.

A afirmação peca, todavia, por uma invocação mecanicista do princípio da igualdade, sem a atenção devida ao seu fundamento axiológico. O que decorre do princípio, em veste da proibição de discriminações, não é a exigência de igual tratamento, mas a de "tratamento como igual", um tratamento que dê mostras da "igual consideração e respeito" de que todas as pessoas são credoras - para utilizarmos conhecidas

expressões de Dworkin.

Ora, a solução questionada, ainda que isentando os médicos objectores de consciência do cumprimento de um dever, não corporiza uma diferenciação "negativa", no sentido de revelar uma desqualificação da aptidão funcional desses médicos ou uma suspeição quanto à sua idoneidade profissional. Não os desvaloriza ou desrespeita; apenas retira de um impedimento de participação, livremente manifestado pelos próprios, consequências sistemicamente adequadas, em face do modelo legalmente definido.

O legislador aceitou a recusa de participação, por objecção de consciência, na execução do acto de interrupção de gravidez - de forma, aliás, generosa, pois a eficácia da objecção está aqui dependente apenas de declaração do interessado (n.º 4 do artigo 6.º da Lei 16/2007), o que não é comum. Com isso, suporta os efeitos desfavoráveis que uma tal recusa, quando em número considerável, pode acarretar para a eficácia da resposta global dos serviços às solicitações a que fiquem sujeitos.

Dir-se-á, com razão, que não poderia ser de outro modo, tendo em conta a força jurídica da garantia constitucional de liberdade de consciência. Mas, o que não se vê é porque é que essa aceitação de uma recusa de participação compromete o legislador em termos de este ficar obrigado a reconhecer um direito de participação selectiva, de acordo com a variável disposição individual de cada objector, com as dificuldades de organização daí advenientes, sob pena de poder ser acusado de violação do princípio

da igualdade.

O regime questionado não é, pois, susceptível de ofender o princípio da igualdade.

11.9.4 - O que fica dito sobre o princípio da igualdade quase que dispensa acrescentar algo mais quanto às alegadas violações do direito à integridade pessoal e ao bom nome

e reputação dos médicos objectores.

Diga-se apenas que não há qualquer afectação desses bens, pois a exclusão não pode ser entendida como dimanando de um juízo de menor valia ou de menores garantias de carácter ou de escrúpulo profissionais, nem como causadora de descrédito, como se se tratasse de um labéu ou um de rótulo depreciativo "colado" à imagem dos objectores de consciência. O interessado não é, pois, colocado perante o dilema, constitucionalmente invalidável, de ter que renunciar ao exercício da sua liberdade de consciência ou de ter que suportar ofensas ao seu bom nome e reputação.

11.9.5 - Por todo o exposto, e tendo em conta que a norma do artigo 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007, de 17 de Abril não atenta contra nenhum dos parâmetros constitucionais invocados, nem outros se divisam que possam por ela ser atingidos, o Tribunal não se

pronuncia pela não inconstitucionalidade.

11.10 - Regulamentação por portaria da informação a que se refere a alínea b) do n.º 4

do artigo 142.º do Código Penal

11.10.1 - Os requerentes suscitaram ainda a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, de 17 de Abril, na medida em que admite a regulamentação por portaria da informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, não obstante estar em causa matéria de direitos

fundamentais.

De acordo com os requerentes, tal norma fere o disposto nos artigos 67.º, n.º 1, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.

A norma do artigo 67.º, n.º 1, da CRP pode, desde já, para este efeito, ser posta de lado, pois dela não se extrai qualquer parâmetro de controlo pertinente para a verificação da validade constitucional da norma impugnada.

Essa norma consta do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, tendo o seguinte teor:

«2 - A informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal é definida por portaria, em termos a definir pelo Governo, devendo proporcionar o

conhecimento sobre:

a) As condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher;

b) As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à

maternidade;

c) A disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de reflexão;

d) A disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o

período de reflexão».

A portaria a que se refere o n.º 2 do artigo 2.º da Lei 16/2007 é a Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho, publicada no DR, 1.ª série, de 21 de Junho de 2007, e entrada em vigor, de acordo com o respectivo artigo 24.º, no dia 15 de Julho de 2007.

Enquanto acto normativo autónomo, a Portaria não é directamente visada pelo juízo de inconstitucionalidade pedido pelos requerentes, já que estes não questionam a conformidade entre as suas normas e os preceitos constitucionais.

A norma impugnada é, assim, simplesmente, a do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, não obstante um eventual julgamento de inconstitucionalidade desta implicar necessariamente, em termos consequenciais, a inconstitucionalidade dos preceitos da Portaria 741-A/2007 que desempenhem uma função regulamentar daquela, contendendo, em tais termos, com a respectiva subsistência.

11.10.2 - A norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 suscita duas questões de constitucionalidade: a da violação do artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte, da Constituição, por alegada inobservância da proibição de integração autêntica da lei através de acto normativo não legislativo - aqui de natureza regulamentar - e a da violação do princípio da legalidade, na dimensão de reserva de lei material, esta consagrada, quanto aos direitos, liberdades e garantias, na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP e, quanto à definição dos crimes e respectivos pressupostos, na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º

da CRP.

Relativamente à segunda das questões enunciadas, os requerentes convocam apenas o parâmetro de controle constituído pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, preceito segundo o qual, salvo autorização ao Governo, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as matérias de direitos, liberdades e garantias.

A propósito da delimitação do âmbito material dessa norma, regista-se na doutrina o entendimento de que «a reserva abrange as matérias versadas nos títulos I e II da parte I, por referência a todos os seus preceitos, independentemente da análise estrutural das situações aí contempladas, mesmo que, em rigor, algumas não possam ser qualificadas como direitos fundamentais, mas apenas como garantias institucionais» (cf. Jorge

Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., II, 534).

Nesta perspectiva, a posição do Tribunal segundo a qual a norma do artigo 24.º, n.º 1, da CRP, protege a vida humana intra-uterina como valor ou bem objectivo, sem concomitante atribuição de um verdadeiro direito subjectivo fundamental, não retira ao regime jurídico sobre a interrupção voluntária da gravidez o carácter de disciplina normativa em matéria de direitos, liberdades e garantias, para efeitos de delimitação do

âmbito de reserva de lei.

Mas, para além do parâmetro da alínea b) do artigo 165.º, também o da alínea c) do mesmo preceito pode ser chamado à colação, para apreciar a questão posta.

É certo que o aspecto do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez consistente na modelação da consulta informativa que precede a prestação do consentimento pela gestante não procede directamente à delimitação negativa do bem jurídico-constitucional "vida intra-uterina", consistindo antes numa condição positiva

dessa delimitação.

Todavia, ainda que de tal circunstância fosse de retirar fundamento idóneo para contestar a possibilidade de qualificar esse aspecto - e, portanto, a própria norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 - como elemento ele próprio integrante do sistema de delimitação negativa do valor da vida intra-uterina justificativo da aplicação do regime de direitos liberdades e garantias, parece que a relação de dependência normativa entre a realização da consulta informativa contemplada no n.º 2 do artigo 2.º e a validade e ou eficácia do consentimento da gestante para a realização da interrupção da gravidez a coberto da causa de exclusão da punibilidade constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, sempre permitiria a colocação do problema da eventual violação da reserva de lei através da convocação do parâmetro constituído pela alínea c) do artigo 165.º da CRP.

A análise que se segue assentará neste pressuposto.

11.10.3 - Segundo a pretensão formulada pelos requerentes, a violação do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição resultaria de o artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 conferir a uma portaria o poder de integrar uma norma ínsita num acto legislativo, não sendo tal portaria, por sua vez, um acto legislativo previsto pelo artigo 112.º, n.º 1.

O n.º 5 do artigo 112.º da CRP corresponde ao n.º 5 do artigo 115.º, na versão anterior à revisão de 1997, tendo este, por sua vez, sido aditado pela revisão

constitucional de 1982.

No segmento que importa aqui considerar, tal preceito veio inconstitucionalizar os preceitos legais que habilitem a Administração a realizar uma integração regulamentar de normas legais: a integração (tal como a interpretação autêntica) de uma lei só por outra lei pode ser feita, e não por um regulamento (cf. o Acórdão 451/2001).

Conforme este Tribunal, por diversas vezes, afirmou, o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição é uma norma dirigida ao legislador e não ao poder regulamentar, o que significa que o parâmetro de controlo que dele se extrai tem por objecto a norma legal que, contra o ali preceituado e infringindo a proibição de delegação, cometa a "actos de outra natureza" (v.g. regulamentos, despachos normativos) a sua interpretação ou integração autêntica com eficácia externa - a norma legal que seja a lei habilitante daquela norma regulamentar. Isto sem prejuízo de a invalidação por inconstitucionalidade da norma legal habilitante gerar consequencialmente a invalidação da norma regulamentar, por falta de suporte ou base legal, no momento em que foi emitida (neste sentido, por todos, o Acórdão 451/2001).

De acordo com entendimento doutrinal estabilizado, o n.º 5 do artigo 112.º da CRP «não proíbe os chamados reenvios normativos (ou remissões normativas), designadamente nos casos em que a lei remete para a administração a edição de normas regulamentares executivas» (referidas a preceitos específicos) «ou complementares (referidas genericamente a toda uma lei) "da disciplina por ela

estabelecida".

De acordo com "a natureza e os limites constitucionais dos poderes de normação regulamentar executiva ou complementar da administração", a norma regulamentar visará, neste caso, «regular aquilo que a lei se absteve de regular e não "integrar" a regulamentação legislativa [...], pelo que o regulamento nunca pode intervir sub specie legis» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., 3.ª ed., Coimbra, 1993, 512).

Nesta linha, o juízo de inconstitucionalidade reivindicado pressuporá a qualificação do reenvio normativo efectuado pelo artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 como uma remissão habilitante da edição, através de portaria, de normas regulamentares integrativas, contendo disciplina praeter legem, em contraposição a uma sua qualificação como mero regulamento de execução complementar daquele preceito legal.

A integração do reenvio normativo a que procede a norma legal do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, numa destas duas categorias implica a caracterização do objecto possível da portaria, segundo os termos preconizados pela própria remissão, constantes

da norma legal habilitante.

11.10.4 - Segundo o regime instituído pela Lei 16/2007, a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas de gestação, depende, além do mais, de uma consulta prévia. Tal consulta encontra-se regulada no artigo 2.º daquela lei, em cujo n.º 2 se inscreve a norma aqui

impugnada.

Do ponto de vista da relação que intercede entre a efectiva realização da consulta prévia, nos termos do regime definido no artigo 2.º, e a operatividade da fattispecie consagrada na actual alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, a Lei 16/2007 é escassamente propiciadora das respostas que serviriam a uma mais detalhada e segura caracterização da disciplina jurídica globalmente instituída.

Não obstante a atribuição de carácter obrigatório à consulta que haverá de preceder a prestação do consentimento pela mulher grávida e a fixação do conteúdo informativo que, por tal meio, a esta haverá de ser previamente proporcionado, a lei não dispõe expressamente sobre as consequências que, para a gestante, por um lado, e para o médico interveniente, por outro, poderão advir da realização de uma interrupção voluntária da gravidez dentro das 10 primeiras semanas de gestação que não haja sido antecedida daquela consulta ou que, sendo-o embora, nela não tenha sido cumprido integralmente o disposto no n.º 2 do artigo 2.º da Lei 16/2007.

Nesta conformidade, a questão de saber se, nestes casos, a relevância criminal da actuação de um e de outro se encontrará ainda excluída por efeito da verificação dos elementos integrativos da previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, ou se, pelo menos no que concerne ao médico que realiza a interrupção, a tal exclusão se oporá a ausência ou incompletude do procedimento que deverá preceder a prestação de um consentimento válido e eficaz, poderá depender da solução do problema da determinação do estatuto que cabe à consulta prévia e respectivo regime no quadro da causa de impunibilidade prevista naquela alínea.

Não deixará de registar-se, contudo, que, no âmbito da vigência do artigo 142.º do Código Penal, na versão subsistente até 2007, a doutrina propendia para considerar que, tal como os procedimentos referentes à comprovação da situação de indicação, também os referentes à prestação do consentimento constituíam, não apenas «meras formalidades», mas "verdadeiras condições de funcionalidade do sistema", pelo que a sua preterição implicaria a "ilicitude do acto abortivo" (cf. Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, 1999, I, 156).

Tal ponto de vista, inteiramente transponível para o domínio da aplicação da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, tenderá a levar à conclusão de que só um consentimento válido e eficaz permitirá concluir pela licitude da prática abortiva realizada no âmbito de tal previsão e que a validade e eficácia do consentimento a prestar pela gestante dependem da realização de uma consulta prévia nos exactos termos previstos no artigo 2.º da Lei 16/2007.

Nesta perspectiva, os pressupostos materiais da consulta prévia regulada no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 contendem com a definição do crime.

Assim sendo, caberá perguntar: encontrar-se-ão tais pressupostos definidos na Lei 16/2007 ou terá esta, através do respectivo artigo 2.º, n.º 2, encarregue uma portaria

de os definir?

11.10.5 - A resposta apontaria necessariamente neste último sentido se a disciplina jurídica contida na Lei 16/2007 se tivesse quedado pela previsão constante da alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, ou seja, se se tivesse limitado a definir a informação cujo acesso deve ser facultado à grávida no âmbito da primeira consulta como a "relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável", remetendo para portaria o preenchimento dessa cláusula geral.

Assim não sucede, contudo.

No n.º 2 do artigo 2.º, estabelece-se qual é a informação a prestar para que ela propicie a formação de uma decisão da gestante que mereça aqueles qualificativos, descrevendo-se, em termos que deverão considerar-se taxativos e fechados - a enunciação contida nas quatro alíneas que integram a norma não é precedida da utilização do advérbio «designadamente» ou de outro de sentido equivalente -, os conteúdos e as temáticas do conhecimento que àquela deve ser proporcionado.

A modelação primária da consulta prévia encontra-se, assim, exaurientemente traçada no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, pelo que a remissão não contempla a possibilidade de extensão ou redução do âmbito ou da densidade informativos através de portaria. Os termos preconizados pelo reenvio circunscrevem o objecto possível do acto regulamentar à execução técnica dos dados normativos contidos na modelação legal definida previamente. Neste sentido, à portaria apenas caberá executar tal conteúdo normativo, não sendo, por isso, a mesma susceptível de o integrar praeter legem ou de enunciar, ela mesma, critérios informativos adicionais e autónomos.

A correcta interpretação do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 16/2007 não o coloca, pois, em conflito com o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, já que conduz a que o mesmo seja entendido como contendo um reenvio normativo não proibido para um acto com as características de um regulamento estritamente executivo da disciplina normativa primária estabelecida integralmente em prévia norma legal habilitante.

11.10.6 - Mas, apesar da natureza meramente executiva da portaria, haverá, ainda assim, violação do princípio da legalidade, na dimensão de reserva de lei material, pela norma remissiva do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, ante o disposto na alínea b), ou, mesmo, na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição? De outro modo, ainda: a circunstância de o regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez incidir sobre matéria sob reserva de lei material nos termos do artigo 165.º da CRP excluirá em absoluto a possibilidade de colocação, através de norma legal remissiva, de certos dos seus aspectos sob intervenção de normas regulamentares? A Constituição não estabelece qualquer delimitação material entre o domínio legislativo e o domínio regulamentar, nem fornece qualquer critério directo susceptível de ser utilizado para o efeito (neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. ult. cit., 501 e

671).

Deste ponto de vista, pode dizer-se que não existe um elenco de conteúdos temáticos constitucionalmente subtraídos à possibilidade de virem a ser objecto de normas

regulamentares.

Tal subtracção ocorrerá na medida em que for determinada pelo funcionamento dos limites constitucionais do poder regulamentar.

O primeiro desses limites é de ordem geral e diz respeito à inadmissibilidade constitucional dos chamados regulamentos autónomos, ou seja, daqueles que não carecem de fundamentar-se juridicamente numa específica lei anterior.

O princípio da primariedade ou da precedência de lei limita a admissibilidade constitucional dos regulamentos aos chamados regulamentos pós-legislativos, ou seja, àqueles que, contrariamente ao que sucede com os autónomos, supõem uma lei prévia habilitante, ainda que, como sucede no caso dos regulamentos independentes, esta seja uma pura norma de reenvio para o regulamento em termos de neste vir a conter-se a

disciplina inicial e primária.

O segundo desses limites diz respeito à reserva de lei material.

A matriz constitucional do relacionamento entre a lei e o regulamento cruza o plano dos limites constitucionais da reserva de lei, permitindo identificar distintos níveis de subordinação da actividade regulamentar à lei em que se fundamenta.

Nesta perspectiva, o grau mínimo da escala é atingido na dimensão de reserva de lei meramente formal - aqui a necessidade de lei prévia habilitante serve apenas o objectivo de dar cumprimento ao princípio da precedência da lei, tornando assim possíveis os regulamentos independentes - e o grau máximo nas matérias sob reserva legal material: nos casos em que a Constituição prevê que só através de lei pode regular-se determinada matéria, a lei não pode delegar tal competência à actividade regulamentar, pelo que os únicos regulamentos admitidos são os regulamentos estritamente executivos e instrumentais (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., 515). «O Executivo, neste domínio, só pode editar normas inovatórias sob a forma de Decretos-Leis, mediante autorização da Assembleia da República» (Afonso Queiró, "Teoria dos Regulamentos", Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVII

(1980), 1 s., 17).

11.10.7 - Do enquadramento geral acabado de sintetizar resulta que, se a reserva de lei constitui um limite ao poder regulamentar, esse limite não se traduz na absoluta exclusão da possibilidade de edição, com fundamento em lei prévia, de normas regulamentares.

Traduz-se, sim, na proibição de regulação por via regulamentar de quaisquer aspectos pertencentes à disciplina normativa inicial ou primária e, correlativamente, na circunscrição do conteúdo possível da incidência regulamentar aos aspectos técnicos ou secundários de um regime normativo previamente estabelecido na lei.

A norma remissiva constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 significa um reenvio para a portaria do estabelecimento de algum aspecto do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez que possa considerar-se pertencente ao âmbito da

disciplina normativa primária?

Do princípio da legalidade na dimensão de reserva de lei material não pode inferir-se que todos os aspectos atinentes à modelação do âmbito informativo da consulta prévia, mesmo os de índole estritamente técnica, "secundária" ou executiva, tenham

necessariamente de constar de lei.

Se com o princípio da legalidade na dimensão de reserva de lei seria incompatível uma remissão cujos termos habilitassem uma normação secundária a formular, quanto aos conteúdos e à dinâmica da consulta informativa, critérios valorativos independentes e autónomos, não o será já um reenvio que habilite um diploma de índole regulamentar a executar o conteúdo normativo preestabelecido na própria norma de remissão - entendimento já expresso, por este Tribunal, a propósito da relação entre a lei e o regulamento no âmbito das matérias sob reserva de lei constantes das alíneas c) (Acórdão 427/95) e i) (Acórdão 451/2001) do artigo 165.º da Constituição.

Ora, conforme já se evidenciou, a norma remissiva do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 não se limita a remeter para portaria a definição do que seja a "informação relevante para a formação da [...] decisão livre, consciente e responsável" da gestante.

Ao invés, estabelece, em termos esgotantes, os conteúdos dessa informação, apenas delegando na portaria a respectiva concretização técnica, não sendo, por isso,

qualificável como norma em branco.

Quer isto significar que o conteúdo informativo da consulta não resulta da portaria: os seus critérios encontram-se integralmente definidos na própria norma remissiva constante de lei parlamentar, pelo que a remissão para a portaria tem apenas o significado de delegação em normação regulamentar da competência para o estabelecimento de aspectos técnicos e secundários dos conteúdos informativos

integradores da consulta prévia.

O regulamento tido em vista pela remissão é um regulamento estritamente executivo, não independente, pelo que a reserva de lei consagrada no artigo 165.º, alíneas b) e c) da Constituição não é violada pelo segmento remissivo constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007, norma que, em conformidade, não deverá ser considerada

inconstitucional.

B) - Pedido formulado no âmbito do processo 1186/07 e respectivos fundamentos.

12 - Violação da autonomia regional

12.1 - A apreciação da questão da inconstitucionalidade e ilegalidade das normas impugnadas, por violação da autonomia legislativa, administrativa e financeira regional, constitucional, estatutária e legalmente configurada, inscreve-se no vasto contexto do relacionamento e articulação entre a legislação nacional e a legislação regional.

Para além das normas do artigo 225.º, onde se cristaliza a indicação dos fundamentos e do sentido e alcance da autonomia regional, a matriz constitucional da regulação dessa matéria encontra-se nos artigos 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1, da CRP.

Dispõe o primeiro:

«Os decretos-legislativos têm âmbito regional e versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da respectiva região autónoma que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c) do n.º

1 do artigo 227.º».

Quanto ao artigo 227.º, n.º 1, enuncia, entre os poderes das regiões autónomas, a definir nos respectivos estatutos, os seguintes:

«a) Legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania; b) Legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, com excepção, entre outras, das previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art.165.º; c) [...] d) Regulamentar a legislação regional e as leis emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar».

O artigo 228.º, n.º 1, por seu turno, explicita o alcance da autonomia legislativa das regiões autónomas, dispondo que ela «incide sobre as matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania». O n.º 2 do mesmo preceito estabelece a subsidiariedade da legislação nacional, na zona de concorrência com a regional, nos seguintes termos:

«Na falta de legislação regional própria sobre matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania, aplicam-se nas regiões autónomas as normas legais em vigor.».

Estes parâmetros de delimitação de competências legislativas entre os órgãos de soberania e as regiões são directamente convocados pela forma como o requerente estrutura o seu pedido. Segundo ele, na verdade, estaríamos em face de uma violação da autonomia regional na medida em que a normação impugnada, em consequência do respectivo âmbito de aplicação territorial, obriga o sistema regional de saúde à prática da interrupção voluntária da gravidez nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, não obstante corresponder aquela a uma tarefa situada, do ponto de vista da sua regulação jurídica, no âmbito da competência regional, uma vez que a «saúde» está enunciada como matéria de interesse regional na alínea m) do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.

12.2 - A Lei 16/2007 dispõe sobre a "Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez", estabelecendo o correspondente regime jurídico.

Esse regime jurídico tem como elemento nuclear, como já sabemos, a revisão do artigo 142.º do Código Penal e o aditamento ao elenco constante do respectivo n.º 1 de uma nova previsão, através da qual é tornada não punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando realizada, por opção desta, nas primeiras 10 semanas de gravidez.

Na modelação da disciplina jurídica desta nova previsão de interrupção voluntária da gravidez, a Lei 16/2007 fixou pressupostos da não punibilidade desse acto.

Parte significativa desses pressupostos prende-se com as condições de eficácia do consentimento. A elas se refere o regime especial constante dos n.os 4, alínea b), 5 e 6 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei 16/2007, segundo o qual o consentimento é prestado pessoalmente "em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo" ou, no caso de esta ser "menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz", pelo "representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral", podendo ser dispensado se não for possível obtê-lo em tais termos e "a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência", o que será decidido pelo médico "em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos". Nesse âmbito se situa também a regra de subordinação da prestação do consentimento ao prévio decurso de um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta (n.º 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal), bem como a conformação normativa da consulta no artigo 2.º, n.º 2.

Da modelação do sistema instituído pela Lei 16/2007 fazem ainda parte outros componentes normativos abrangidos pelo objecto do pedido, designadamente os relativos ao "dever de sigilo profissional", compreendendo estes a sua imposição aos médicos, demais profissionais de saúde e restante pessoal dos estabelecimentos de saúde, oficiais ou oficialmente reconhecidos, em que se pratique a interrupção voluntária da gravidez, relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções, bem como incriminação da respectiva violação nos termos previstos nos artigos 195.º e 196.º do Código Penal (artigo 5.º).

Através da mobilização do conjunto dos elementos normativos acabados de enunciar, o legislador ordinário procedeu à redefinição da protecção jurídico-penal do bem vida

intra-uterina.

Tal redefinição consistiu na ampliação integrada dos pressupostos negativos do crime de aborto, incluindo, por isso, a par da tipificação dos elementos normativos de contracção do âmbito de protecção da norma incriminadora, a caracterização, nos seus múltiplos aspectos, das condições dessa contracção.

Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao governo, legislar sobre a "definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem

como processo criminal".

Segundo consensualmente estabelecido na doutrina, "na competência para a definição dos crimes está, necessariamente implícita, a competência para estabelecer causas de justificação e a competência para descriminalizar" (Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob.

cit., 535), pertencendo à "reserva da Assembleia da República tanto a criminalização (ou a penalização), como a descriminalização (ou despenalização)" (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., 3.ª ed., 672).

O regime jurídico instituído pela Lei 16/2007 situa-se no plano da remodelação do âmbito de protecção de determinada norma incriminadora, incidindo, por isso, sobre matéria reservada à competência da Assembleia da República.

Tratando-se de matéria reservada à competência da Assembleia da República, verifica-se o requisito de delimitação negativa da competência legislativa das regiões fixado nos artigos 112.º, n.º 4 e 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CRP - o requisito consistente em se tratar de matéria não abrangida na reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania, quer na reserva absoluta da Assembleia da República (artigos 161.º, 164.º e 293.º), quer na reserva relativa da Assembleia da República (artigo 165.º), embora ressalvadas aqui as hipóteses de concessão de autorização legislativa à Assembleia Legislativa da Região (artigo 227.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, da CRP).

12.3 - A sediação do regime jurídico de "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez" instituído pela Lei 16/2007 no âmbito material da «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal» não é posta em causa pela circunstância de a contracção do sistema de protecção penal procedente do aditamento da fattispecie constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal supor, como seu elemento de conformação, a intervenção dos "estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos" e, na perspectiva dessa intervenção, inscrever no sistema conteúdos que o arrastam para uma zona de intercepção com o domínio normativo da "saúde", esta considerada matéria de "interesse específico" pela alínea m) do artigo 40.º do Estatuto Político-administrativo da Região Autónoma da Madeira, na versão aprovada pela Lei

n.º 130/99, de 21 de Agosto.

De um ponto de vista material, a disciplina jurídica instituída pela Lei 16/2007 pertence à categoria normativa dos pressupostos da incriminação e esta relação de pertinência não é desqualificada pela circunstância de a fattispecie com que é restringido o âmbito de protecção da norma incriminadora implicar, de acordo com a respectiva configuração normativa, a mobilização de elementos procedentes de um plano pertencente ao domínio orgânico e funcional da "saúde".

No contexto do regime jurídico instituído pela Lei 16/2007, a reconfiguração do tipo penal pela via do aditamento de uma nova previsão de impunibilidade assume o estatuto de elemento absorvente, ou seja, de elemento que, para efeitos de classificação normativa dos conteúdos vinculativos editados, confere a sua própria natureza a cada um dos demais elementos do conjunto a que pertence.

Tal conclusão é tanto mais evidente quanto certo é que os elementos contidos na disciplina jurídica instituída pela Lei 16/2007 susceptíveis de incidir sobre a conformação da actividade dos agentes e organismos da saúde são privativos do seu relacionamento com a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, não ultrapassando a medida suposta por essa relação de referência - a normação que para eles se contém é, deste ponto de vista, absolutamente funcionalizada à "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez".

O efeito polarizador que, no plano material, é exercido pela sua natureza de definição dos pressupostos negativos do crime de interrupção voluntária da gravidez e respectivas condições projecta-se, ainda, quanto à disciplina jurídica instituída pela Lei 16/2007, no plano da delimitação de competências entre os órgãos de soberania e

as regiões.

Decorre da jurisprudência deste Tribunal que o exercício do poder legislativo das regiões autónomas, mesmo após 2004, se continua a enquadrar pelos fundamentos da autonomia das regiões consagrados no artigo 225.º da CRP, cumprindo-lhe, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112.º, na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º e no artigo 228.º, n.º 1, da Constituição, respeitar cumulativamente três requisitos: i) restringir-se ao âmbito regional; ii) estarem em causa as matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo; iii) não incidir sobre matérias reservadas à competência dos órgãos de soberania (cf., entre outros, o Acórdão 423/2008).

Assim, nos casos em que a matéria sobre que incida determinada disciplina jurídica deva considerar-se simultaneamente incluída em alguma das categorias elencadas nos artigos 164.º ou 165.º da Constituição e no catálogo enunciado no estatuto da região, nunca existirá competência legislativa primária da região para a edição de um regime normativo alternativo, uma vez que os requisitos a que esta se encontra constitucionalmente sujeita são cumulativos. Neste caso, o ser matéria reservada à competência dos órgãos de soberania sobrepõe-se à sua enunciação no estatuto político-administrativo da região (cf., por exemplo, o Acórdão 402/2008).

Quer isto significar que, ainda que a disciplina jurídica instituída pela Lei 16/2007 se situasse numa zona de verdadeira sobreposição - e não mera intercepção - entre os domínios normativos respeitantes à "definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal" e à "saúde", sempre obstaria à competência legislativa primária da região a verificação do requisito que, de acordo com a matriz constitucional de relacionamento entre os órgãos de soberania e as regiões, delimita negativamente essa competência.

Devendo concluir-se pela ausência de competência da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira para legislar sobre a matéria constante das normas inseridas na Lei 16/2007 que definem e conformam os pressupostos da "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez", aquelas aplicar-se-ão, nos seus precisos e integrais termos, a todo o território nacional, incluindo as regiões.

Deste ponto de vista, tal aplicação apresenta-se, não apenas constitucionalmente viável,

mas constitucionalmente imperativa.

12.4 - A vigência da Lei 16/2007 em todo o território nacional, incluindo o da Região Autónoma da Madeira, como resultado do exercício da competência legislativa exclusiva da Assembleia da República, projecta-se em duas dimensões aplicativas, com significado vinculante para os poderes regionais.

Corolário imediato de tal vigência é a manifesta falta de competência legislativa regional para introduzir quaisquer variações no regime jurídico estabelecido pela Lei 16/2007. O que implica que a interrupção voluntária da gravidez, quando ocorrer por acto praticado pelos serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde da Região Autónoma da Madeira, só poderá verificar-se nos termos estabelecidos naquela lei da Assembleia da República, encontrando-se constitucionalmente vedada a possibilidade do estabelecimento, a coberto da autonomia legislativa regional, de quaisquer outros ali não previstos. As práticas médicas, clínicas e procedimentais, supostas pela realização da interrupção voluntária da gravidez segundo o modelo definido naquela lei serão também, vinculativamente, as seguidas nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos situados na região.

Em consequência da publicação da Lei 16/2007 e do seu legítimo âmbito territorial de aplicação, o princípio da não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez efectuada nos termos prescritos naquele diploma legal é também aplicável no território regional. Nem o se da consagração de tal princípio, nem o como da sua concreta conformação podem ser postos em causa por acto legislativo da região. Isto porque, tratando-se de matéria reservada à competência da Assembleia da República, relativamente à qual não pode sequer ser conferida autorização legislativa às Assembleias Legislativas das regiões autónomas (cf. o artigo 227.º, n.º 1, alínea b), da CRP, a contrario), não existe, nem poderá existir, competência legislativa regional concorrente, o que retira o regime jurídico instituído pela Lei 16/2007 do âmbito de aplicação do princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 228.º, n.º 2, da CRP.

Daqui se segue que se encontra excluída da autonomia legislativa regional a competência para editar normas que estabeleçam um regime jurídico alternativo ou diferenciado em matéria de "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez", ou mesmo que, relativamente a todos ou a certos dos seus aspectos, introduzam especificações ou variações nos comandos normativos que integram e conformam o modelo definido em lei da Assembleia da República.

Quando ocorrer nas regiões, a interrupção voluntária da gravidez não punível só poderá ocorrer sob verificação dos fundamentos, condições e pressupostos definidos na Lei 16/2007, não podendo o poder regional, no uso da respectiva competência legislativa,

alterá-los, ampliá-los ou restringi-los.

12.5 - Mas essa conclusão deixa de pé uma questão mais funda, situada não apenas no plano normativo do tratamento jurídico-penal da interrupção voluntária da gravidez, mas também no do preenchimento, por parte dos poderes regionais, das condições materiais de efectiva realização da interrupção voluntária da gravidez, de acordo com o regime de impunibilidade posto em vigor pela Lei 16/2007.

Pergunta-se: decorrerá do âmbito territorial de aplicação da Lei 16/2007 a imposição aos estabelecimentos de saúde regionais, enquanto estabelecimentos oficiais, da prática do conjunto dos actos integrativos ou conformadores da interrupção voluntária da gravidez, em termos penalmente não sancionáveis, de acordo com o previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo artigo

1.º daquele diploma?

Vimos já que a aplicação às regiões do regime jurídico de "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez" instituído pela Lei 16/2007 significa, desde logo, que esse regime vigorará também aí, sendo, por consequência, também aí juridicamente possível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, e com respeito das demais condições fixadas naquele diploma, sem punição

penal.

Mas a questão agora é outra. Já não se trata de ponderar a possibilidade jurídica de levar à prática, nas regiões, a interrupção voluntária da gravidez, nas exactas condições e com a mesma ausência de efeitos penalizantes que decorrem da Lei 16/2007.

Assente esta possibilidade, o que agora se equaciona interrogativamente é se a vigência, nas regiões, da Lei 16/2007 importa a obrigatoriedade, para os serviços integrados no sistema regional de saúde, da prática dos actos preparatórios e executivos da interrupção voluntária da gravidez correspondente à previsão da alínea e)

do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal.

Para uma resposta a esta questão, há que atentar, em primeiro lugar, no que se encontra expresso no artigo 3.º da Lei 16/2007.

Sob a epígrafe "Organização dos serviços", dispõe-se aí o seguinte:

«1 - O Serviço Nacional de Saúde deve organizar-se de modo a garantir a possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez nas condições e nos

prazos legalmente previstos.

2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos em que seja praticada a interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão de forma adequada para que a mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente previstos.» O Serviço Nacional de Saúde é, nesta norma, apontado como o destinatário do dever de «organizar-se de modo a garantir a possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez nas condições e nos prazos legalmente previstos».

A questão que então se levanta é a de saber se os serviços regionais de saúde se integram ou não institucionalmente no Serviço Nacional de Saúde.

Os serviços regionais de saúde fazem parte do "sistema de saúde" definido no n.º 1 da Base XII da lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei 48/90, de 24 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei 27/2002, de 8 de Novembro, como sendo constituído pelo «Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam actividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades privadas e por todos os profissionais livres que acordem com a primeira a prestação de todas ou de algumas daquelas actividades».

Na medida em que pertencem à categoria das "entidades públicas que desenvolv[em] actividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde", os serviços regionais de saúde fazem parte do "sistema de saúde".

Os serviços regionais de saúde não integram, porém, o Serviço Nacional de Saúde, como se pode concluir do n.º 2 da Base acima citada. Aí se estabelece que o Serviço Nacional de Saúde abrange as "instituições e serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde dependentes do Ministério da Saúde", sendo que essa relação de dependência não se verifica relativamente aos serviços regionais de saúde.

Conforme estabelecido na Base VIII da lei de Bases da Saúde, nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, a política de saúde, não obstante subordinada aos princípios estabelecidos pela Constituição da República e pela própria lei de Bases da Saúde, é "definida e executada pelos órgãos do governo próprio" das regiões.

Em consonância com tal previsão, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, através do Decreto Legislativo Regional 4/2003/M (DR, 1.ª série-A, de 7 de Abril de 2003), aprovou o Estatuto do Sistema Regional de Saúde.

De acordo com o disposto no respectivo artigo 6.º, constituem elementos do Sistema Regional de Saúde, nomeadamente, os seguintes: a) O Serviço Regional de Saúde; b) Outros serviços e organismos dependentes da secretaria regional responsável pela área da saúde; c) As autoridades de saúde; d) Os subsistemas de saúde; e) As instituições particulares de solidariedade social; f) As pessoas colectivas, com ou sem fim lucrativo, desde que intervenham no domínio da saúde; g) Os profissionais de saúde em exercício

individual.

O Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira foi criado pelo Decreto Legislativo Regional 9/2003/M, (DR, 1.ª série-A, de 7 de Abril de 2003), que aprovou o respectivo Regime e Orgânica. (DR, 1.ª série-A, de 27 de Maio de

2003).

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Regime e Orgânica do Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, este «é dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimonial e de natureza de entidade pública empresarial e integra o Hospital da Cruz de Carvalho, o Hospital dos Marmeleiros, o Hospital Dr.

João de Almada, os centros de saúde já instalados e em funcionamento, o Laboratório de Saúde Pública e os estabelecimentos públicos de saúde que vierem a ser criados

após a entrada em vigor deste diploma».

Segundo o estabelecido no n.º 1 do artigo 5.º do mesmo Regime, o Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira "está sujeito à tutela do membro do Governo Regional responsável pela área da saúde".

Do enquadramento exposto, retira-se, assim, que as instituições e serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde existentes na Região Autónoma da Madeira integram o Serviço Regional de Saúde, o Sistema Regional de Saúde e o Sistema de Saúde, mas encontram-se excluídos do Sistema Nacional de Saúde.

Na medida em que assim é, pode concluir-se que o comando directo constante do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 16/2007, não interfere com os serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde existentes na Região Autónoma da Madeira. No âmbito deste preceito, esses serviços apenas se encontram abrangidos pelo dever estabelecido pelo respectivo n.º 2, ou seja, pelo dever de, quando aí for praticada a interrupção voluntária da gravidez, se organizarem «de forma adequada para que a mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente previstos». Dever que, aliás, é perfeitamente consonante com a inviabilidade constitucional de uma modificação ou eliminação desse regime, por parte dos órgãos legislativos regionais.

12.6 - Mas a conclusão a que chegámos, quanto ao universo dos destinatários do n.º 1 do artigo 3.º, não significa que os estabelecimentos de saúde integrados nos serviços regionais de saúde fiquem libertos de qualquer injunção legal, no que tange à garantia da efectivação por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, da interrupção voluntária da gravidez, e de efectivação em

termos que assegurem a sua impunibilidade.

De facto, não pode ficar na esfera da liberdade decisória desses serviços a realização ou não das prestações adequadas à interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, justamente porque a utilização dessas prestações integra as condições legais de despenalização desse acto - despenalização que, como vimos, está subtraída à competência legislativa regional. Se essas prestações não são alheias ao bem da "saúde", a verdade é que elas apresentam a especificidade singularizante de se constituírem como elementos de um Tatbestand de afastamento da punição penal, não se confundindo com os cuidados de saúde preventivos ou curativos de doença.

Os "serviços de saúde" regionais não são aqui mobilizados com qualquer dessas duas finalidades, que, em regra, são as suas, mas para prestações constitutivas da situação prático-funcional de que depende a não sujeição a sanção penal das mulheres que voluntariamente interrompam a gravidez - regime que, uma vez editado, deve ter aplicação universal, em condições de igualdade, a todas as mulheres que pretendam realizar aquele acto, independentemente da zona do território do Estado onde residam.

As prestações dos estabelecimentos de saúde são aqui indissociáveis da praticabilidade do regime de despenalização, não podendo, por isso, ser encaradas e tratadas autonomamente, sem ter em conta o modo como interferem, quanto à sua efectivação e conformação, na possibilidade de transposição desse regime para a realidade social.

A disponibilização dessas prestações requer medidas organizatórias, medidas de preparação logística, de coordenação e emprego de recursos humanos e técnicos e de fixação de regras e procedimentos funcionalmente disciplinadores.

Também quanto a elas não gozam os estabelecimentos que se integram nos serviços regionais de saúde de inteira liberdade, pois devem organizar-se por forma a que a interrupção voluntária da gravidez "se verifique nas condições e nos prazos legalmente previstos" (n.º 2 do artigo 3.º da Lei 16/2007).

O que eles não estão é sujeitos às directrizes emanadas, a este propósito, pelos órgãos dirigentes do Serviço Nacional de Saúde, pois a este não pertencem. Estando finalisticamente vinculados a um resultado - o de garantir os procedimentos e condições apropriados à realização, sem punição, da interrupção voluntária da gravidez, no quadro da hipótese aberta por uma norma de direito penal, a alínea e) do n.º 1 da artigo 142.º do respectivo código - dispõem, todavia, da autonomia organizativa

compatível com a sua consecução.

E uma certa margem de autonomia subsiste, não obstante aquela vinculação, a nível dos concretos modos organizativos e operativos, de carácter mais "regulamentar". No exercício dessa autonomia, poderão os serviços regionais fazer reflectir as características específicas da região, no que diz respeito, v. g., à realidade social, extensão do território, unidades e pessoal disponíveis, ou ao nível estimado da procura.

A lei da República deixou à autonomia regional aquilo que constitucionalmente podia (e devia) deixar, a saber, a autonomia organizativa quanto aos aspectos não predeterminados pela observância das condições legais. Exactamente os aspectos regulamentares atinentes à fixação concreta das formas modais de cumprir o programa normativo de despenalização (necessariamente de âmbito nacional), coenvolvendo opções em que nenhum dos termos contenda com a efectividade de uma oferta prestativa que permita o preenchimento dos pressupostos legais da aplicação daquele regime. Só esses aspectos, dentro de uma área de normação bifrontal, em que determinada organização dos serviços de saúde serve especificamente à possibilitação da interrupção voluntária da gravidez sem punição, não caem na órbita do direito penal.

Outra interpretação roubaria aplicabilidade, no território das regiões, à alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, com ofensa da unidade do Estado, que o artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP também quis, neste domínio, assegurar, na medida em que afastou a competência legislativa regional.

12.7 - A leitura que acabámos de fazer depara, prima facie, com um obstáculo de monta: o disposto no artigo 8.º da Lei 16/2007.

Esta norma remete para o Governo a regulamentação da lei, fixando, para o efeito, o prazo máximo de 60 dias. E, efectivamente, essa regulamentação foi editada, dando corpo à Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho.

Esta portaria, para além de reproduzir pontos do regime legal, complementa-o com a disciplina das medidas organizatórias e procedimentais tidas por apropriadas à

implementação do disposto naquele diploma.

Da norma do artigo 8.º e da falta de idêntico comando endereçado à entidade regional de saúde competente poder-se-ia concluir que a Lei 16/2007 reserva para o Governo, em exclusivo, o poder regulamentar, nesta matéria. Ora, como é no âmbito do exercício desse poder - ainda que com os limites de ele ter por objecto um regulamento de execução -, que podem ser normativamente moldados os aspectos organizativos, ficaria irremediavelmente prejudicada, a ser assim, uma intervenção conformadora, neste plano, dos poderes regionais. O que consubstanciaria uma lesão da autonomia legislativa e administrativa das regiões autónomas.

Mas a norma do artigo 8.º não deve ser lida como importando uma reserva de poder regulamentar governamental. Ela contém uma imposição de regulamentação ao Governo, necessária para assegurar a aplicabilidade da Lei 16/2007. Mas nada permite concluir, numa inferência a contrario, que ela visa também eliminar a faculdade de intervenção da Assembleia Legislativa das regiões, ao abrigo da sua competência própria. A previsão específica de uma faculdade de regulamentação, neste domínio, não era necessária, garantida que ela está pela competência genérica de que, à partida, em matéria de organização dos serviços de saúde, os órgãos regionais dispõem (em tudo o que não contender com o regime primário de despenalização, fixado na Lei n.º

16/2007).

Não estando abrangida pelo dever de regulamentação fixado no artigo 8.º da Lei 16/2007, mas conservando, dentro desse limites, os seus poderes próprios de intervenção regulamentadora, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não fica obrigada a aplicar as normas de carácter organizatório e procedimental da portaria, uma vez que, quanto a estas dimensões, pode exercer a sua

competência de regulamentação.

Sendo assim, a disciplina dos aspectos organizativos contida na portaria só se aplicará na Região Autónoma da Madeira subsidiariamente, em consequência da inércia reguladora das instâncias regionais, que, a todo o tempo, podem tomar iniciativas de conformação dessas matérias em sentido não coincidente com aquela disciplina, ainda que, necessariamente, compatível com o disposto na Lei 16/2007.

E, nesse pressuposto, não há qualquer violação da autonomia regional, pelo que não tem fundamento o juízo de inconstitucionalidade que, a propósito do regime em apreço, se pretendia ver emitido nos presentes autos.

12.8 - As normas que integram o bloco constituído pelos artigos 1.º - este na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo -, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho, não violam qualquer parâmetro normativo recondutível à autonomia legislativa, administrativa e financeira regional, constitucional,

estatutária e legalmente configurada.

Nessa medida, não deverão ser declaradas inconstitucionais e ou ilegais.

13 - Violação do direito de audição prévia das regiões autónomas 13.1 - A questão de inconstitucionalidade que é suscitada pressupõe a confrontação das normas da Lei 16/2007 contestadas e do correspondente processo legislativo com o disposto no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual "os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente a questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional".

Este preceito não sofreu alteração de redacção ao longo das diversas revisões constitucionais - apenas transitou do n.º 2 do artigo 231.º originário para a numeração actual, no âmbito da quarta revisão (Lei Constitucional 1/97 de 20 de Setembro) -, do mesmo decorrendo o dever de os órgãos de soberania ouvirem os órgãos de governo próprio das Regiões relativamente a questões da sua competência respeitantes

às regiões autónomas.

Correlativamente, o artigo 227.º, n.º 1, alínea v), da Constituição, confere aos órgãos de governo próprio das regiões o direito a pronunciarem-se, por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes

digam respeito.

O problema concernente à determinação da extensão do direito constitucionalmente reconhecido às Regiões pelos artigos 227.º n.º 1 alínea v) e 229.º n.º 2 da Constituição de serem ouvidas pelos órgãos de soberania relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas encontra-se já abundantemente tratado

na jurisprudência deste Tribunal.

Numa alusão à constância da doutrina a tal propósito seguida, escreveu-se no Acórdão 670/99 (DR, 2.ª série, de 28 de Março de 2000) o seguinte:

«[...]

Trata-se de uma questão que já foi analisada por diversas vezes, quer pela Comissão Constitucional, quer por este Tribunal, não se encontrando razão para afastar a

orientação adoptada de forma constante.

Com efeito, desde o Parecer 20/77 da Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, 2.º vol., pág. 159 e segs.) que se entendeu que "são questões da competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional:

respeitem a interesses predominantemente regionais;

ou pelo menos mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios".

[...] Esta orientação - a de que só pode considerar-se "questão respeitante às Regiões Autónomas" para o efeito previsto no (actual) n.º 2 do artigo 229.º da Constituição, a que, embora englobada na competência dos órgãos de soberania, revele alguma "especificidade ou pecularidade relevante no que concerne a essas regiões" (Parecer 2/82, Pareceres cit.., 18.º vol., pág. 103 e segs.) - foi seguida posteriormente pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos seus acórdãos n.os 42/85, 284/86 e 403/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pág. 181 e segs., 8.º vol., pág.

169 e segs. e 13.º vol., I, pág. 465 e segs., respectivamente).» Conforme se escreveu no Acórdão 174/2009, «esta doutrina continuou a ser acolhida em Acórdãos posteriores (por exemplo, n.os 684/99, 529/2001 e 243/2002).

Já depois da sexta revisão constitucional (Lei Constitucional 1/2004 de 24 de Julho), o Tribunal decidiu, no Acórdão 551/2007, que "a expressão respeitantes às regiões autónomas constante do n.º 2, do artigo 229.º, da Constituição deve (continuar a) ser interpretada no sentido de se tratar de matérias que, apesar de serem da competência dos órgãos de soberania, nelas os interesses regionais apresentam particularidades por comparação com os interesses nacionais, quer devido às características geográficas, económicas, sociais e culturais das regiões, quer devido às históricas aspirações autonomistas das populações insulares, que justificam a audição

dos órgãos de governo regional.»

Explicitando o critério uniformemente seguido quanto à determinação do critério para a audição dos órgãos regionais, prosseguiu o Tribunal no referido Acórdão:

«A obrigação que, neste domínio, a Constituição faz impender sobre os órgãos de soberania decorre do dever de cooperação a que o actual artigo 229.º da Constituição submete conjuntamente a actividade dos órgãos de soberania e de governo regional para concretização do "desenvolvimento económico e social" das regiões e para "correcção das desigualdades derivadas da insularidade". O Tribunal sempre avaliou caso a caso a existência do falado dever, relacionando-o com as circunstâncias que, em concreto, podem revelar um especial interesse das Regiões na disciplina da matéria em causa. Este critério continua a extrair-se do citado n.º 2 do artigo 229.º da Constituição, norma que, como já se fez notar, se manteve inalterada desde a versão inicial da Constituição (artigo 231.º, n.º 2). E é de continuar a admitir, como fez o aludido Acórdão 670/99, e o já citado Acórdão 551/2007, que "o direito de audição constitucionalmente garantido às Regiões Autónomas pelo n.º 2 do artigo 229.º da Constituição se refere a actos que, sendo da competência dos órgãos de soberania, incidam de forma particular - diferente daquela em que afectam o resto do País - sobre uma ou ambas as Regiões, ou versem sobre interesses predominantemente regionais.» 13.2 - Tendo-se já concluído no sentido de que a matéria relativa à aprovação do regime jurídico da "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez" se inclui na competência dos órgãos de soberania, resta apurar se a Lei 16/2007, na medida em que institui o referido regime, incide de forma particular sobre a

Região Autónoma da Madeira.

Continuando a seguir de perto a fundamentação constante do Acórdão 174/09, pode dizer-se que, também aqui - à semelhança do caso ali tratado - a Assembleia requerente solicita a apreciação, na sua (quase) globalidade, de um determinado regime jurídico - o regime jurídico da "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez", instituído pela Lei 16/2007, de 17 de Abril, e regulamentado pela

Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho.

É, porém, seguro que o regime jurídico da "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez" não respeita à Região Autónoma da Madeira de forma particular, tratando-se antes de uma disciplina jurídica que, pela sua natureza e pelo seu objecto, respeita, por igual, a todo o País, sem diferenciação de parcelas ou

regiões.

Justificar-se-ia, portanto, que o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, ao invocar a omissão do dever de audição, identificasse o motivo ou as circunstâncias de onde em concreto sobressai um interesse especial da Região quanto ao tratamento legislativo desta matéria. Todavia, o pedido não apresenta qualquer razão que demonstre que o regime jurídico de "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez", "respeite a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereça, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas".

Porque a existência de tal interesse, para além de não invocada pelo Requerente, não é manifestamente configurável em relação a qualquer uma das questionadas normas da Lei 16/2007, deve concluir-se no sentido de que não houve qualquer violação do dever de audição dos órgãos de governo regional, consagrado no artigo 229.º, n.º 2,

da Constituição.

13.5 - Também com fundamento na violação do direito, constitucional e legal, de audição prévia das Regiões Autónomas, não deverá ser declarada a inconstitucionalidade do bloco normativo constituído pelos artigos 1.º - este na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo -, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho.

III - Decisão

Pelo exposto, o Tribunal decide:

a) Não declarar a inconstitucionalidade formal da Lei 16/2007, de 17 de Abril;

b) Não declarar a inconstitucionalidade material das normas constantes dos artigos 1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, 2.º, n.º 2, 6.º, n.º 2, todos da Lei 16/2007:

c) Não declarar a inconstitucionalidade, à luz do princípio da autonomia regional e do direito de audição prévia das regiões autónomas, do bloco normativo constituído pelos artigos 1.º - este na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo -, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2010. - Joaquim de Sousa Ribeiro - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão - Carlos Fernandes Cadilha - Maria João Antunes - João Cura Mariano - José Borges Soeiro (vencido, de harmonia com a declaração de voto que junto) - Benjamim Rodrigues [vencido quanto à pronúncia constante da alínea b) da decisão] - Carlos Pamplona de Oliveira, vencido, conforme declaração - Rui Manuel Moura Ramos, vencido, nos termos da declaração de voto junta - tem voto de vencida a Conselheira Maria Lúcia Amaral, que não assina por não estar presente, tendo junto a respectiva declaração de voto - Joaquim de Sousa

Ribeiro, relator.

Processos n.os 733/2007 e 1186/2007

Declaração de voto

Dissenti, relativamente ao decidido sob a alínea B) do acórdão que fez vencimento,

pela seguinte ordem de razões:

a) Considero que o direito ao desenvolvimento da personalidade da mulher e a protecção da vida intra-uterina não podem conduzir a que, num balanceamento entre os dois valores constitucionais, numa síntese que procure a desejável "concordância prática-, se possa permitir uma desprotecção da vida intra-uterina nas primeiras dez

semanas.

Embora se considere que a protecção dessa vida intra-uterina não corresponde a um direito subjectivo do feto e, como tal, a um direito fundamental, porquanto este só se encabeça com o nascimento, o certo é que esse bem é, também, objecto de protecção constitucional, objectivamente considerada. Com efeito, a vida intra-uterina conduz, num projecto de vida, ao início de um novo ser que, naturalmente, comporta a afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana.

O reconhecimento da dignidade constitucional da vida intra-uterina não impede, no entanto, que se considere que a sua tutela seja menos forte do que a vida das pessoas já nascidas e que possa conhecer diversas gradações, consoante a fase de

desenvolvimento do feto.

Nesta perspectiva, o artigo 24.º da CRP, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à vida, subjectivado em cada indivíduo, integra, igualmente uma dimensão objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, o qual constitui uma verdadeira imposição constitucional.

Assim, não será consentido, por contraditório com o dever do Estado em tutelar a referida vida intra-uterina, admitir que na fase inicial do desenvolvimento do feto, ou seja nas primeiras dez semanas, se adopte uma solução legal de menor protecção, dando prevalência à 'liberdade de opção' da mulher grávida, podendo interromper a gravidez sem o recorte relevante de qualquer razão justificativa, quedando-se o Estado numa posição neutral, sem uma 'intervenção mínima', em manifesta postura de 'défice'

de tutela.

Com efeito, o cumprimento desse dever por parte do Estado está sujeito a uma medida 'mínima', sendo violada a 'proibição de insuficiência', quando as normas de protecção fiquem aquém do constitucionalmente exigível.

b) Com a Lei 16/2007, de 17 de Abril, tentou-se, num diverso paradigma, encontrar o ponto de equilíbrio entre o sistema das 'indicações', em vigor no nosso ordenamento jurídico até à entrada em vigor da referida lei, com o sistema dos

"prazos".

Contudo, não se logrou alcançar esse objectivo, porquanto no sistema dos prazos, para que não se pudesse considerar o Estado como neutral, e sem se revelar minimamente interventor, em reposta à dignidade constitucional que merece a vida intra-uterina e ao inerente dever constitucional de protecção que decorre da lei Fundamental, teria de assumir que o aconselhamento prévio à mulher grávida fosse não apenas meramente informativo, mas igualmente dissuasor, orientado para a defesa da vida, não se desconsiderando, naturalmente a liberdade de opção e decisão da mulher, encorajando-a a prosseguir com a gravidez, sem que, e aceita-se sem reservas, tal aconselhamento fosse "vinculante", isto é, impositivo de uma solução contrária à desejada pela grávida, como se afirma no acórdão que fez vencimento.

Afigura-se-me, pelo exposto, que foi violada a norma constante do artigo 24.º, n.º 1 da

CRP.

c) Votei vencido, também, no que se reporta à norma constante do artigo 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007, de 17 de Abril, na medida em que exclui das consultas previstas no artigo 142.º, n.º 4, alínea b) do Código Penal, os médicos objectores de consciência.

A consulta na qual se encontram impedidos de participar os médicos que invoquem o estatuto de objector de consciência visa facultar à mulher grávida o acesso à informação para a "formação da sua decisão livre, consciente e responsável".

Conforme já se salientou supra, ao anterior sistema de indicações sucedeu um sistema de prazos de aconselhamento obrigatório de tipo meramente informativo, assim designado por oposição ao sistema de prazos de aconselhamento obrigatório de tipo dissuasor orientado para encorajar o prosseguimento da gravidez.

Essa consulta, como também já se salientou, é manifestamente neutral, optando-se pela ideia de que a grávida deve ser institucionalmente preservada de qualquer forma de ingerência no desenvolvimento do seu processo decisório, nomeadamente que essa mesma ingerência não possa vir a ser exercida do interior do sistema e através dele, por iniciativa daqueles que o legislador presume que em tal sentido operariam - o da preservação da vida intra-uterina - se bem que tal intenção se encontre arredada pelo

desenho legal da aludida consulta.

Nesta perspectiva, o impedimento lançado sobre os médicos objectores de consciência da possibilidade da prática de actos para os quais se encontram profissionalmente habilitados, traduz-se numa discriminação negativa, capaz de conflituar com o princípio

da igualdade.

É sabido que quando ocorre um tratamento desigual impõe-se uma justificação material da desigualdade, sob pena de poder considerar-se como desnecessária, inadequada e desproporcional à satisfação do respectivo objectivo.

Na situação em apreço, ainda que implicitamente, o legislador parte como que de uma presunção segundo a qual os médicos objectores de consciência que optassem por intervir em tal consulta tenderiam a realizá-la em termos desconformes com os legalmente previstos, introduzindo desvios susceptíveis de comprometer a sustentação

das opções do aludido legislador.

Essa discriminação negativa, que incide sobre os médicos objectores revela-se excessiva, e, por isso, desproporcionada, em relação à finalidade prosseguida, mesmo consistindo esta na intenção de preservar as características meramente informativas do

modelo da consulta, legalmente preconizado.

Exprime, ainda, no contexto do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez, uma desqualificação desproporcionada e susceptível de afrontar o princípio da igualdade, na vertente que proíbe a realização de discriminações.

Esta opção legislativa, constante do artigo 6.º, n.º 2 da Lei 16/2007, viola, em meu entendimento, o princípio da igualdade consagrado na artigo 13.º da CRP, na dimensão respeitante à proporcionalidade contida na vertente da proibição de discriminações.

José M. Borges Soeiro

Procs. n.os 733/07 e 1186/07

Plenário

1 - Votei vencido quanto à pronúncia constante da alínea b) do acórdão.

Na verdade, estou firmemente convencido de que a solução reclamada pela Constituição é a da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, artigos 2.º, n.º 2 e 6.º, n.º 2, todos da Lei 16/2007, de 17 de Abril.

2 - Antes de mais, não posso deixar de passar em branco a insensibilidade demonstrada no acórdão pelos votos de vencido apostos aos acórdãos que até hoje foram proferidos no âmbito da matéria da "despenalização do aborto", expressivos, quer no seu número, quer no seu valor científico, omitindo-se a menção de que os fundamentos das decisões anteriores proferidas pelo Tribunal Constitucional foram

sempre fruto de maiorias tangenciais.

O discurso argumentativo do acórdão cria a aparência de que o estado actual da questão corresponde a um simples desenvolvimento da axiologia jusfundamental, tal como ela foi sendo exprimida logo desde o Acórdão 25/84, e de que não houve sobre ela um largo e profundo debate constitucional.

3 - Sobre o sentido do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa continuo a pensar nos termos constantes da declaração de voto aposta no Acórdão 617/06, que se pronunciou sobre a constitucionalidade e legalidade da realização do Referendo efectuado no dia 11 de Fevereiro de 2007.

Escrevi, então, nessa sede:

"5.1 - [...]

Não irei expor longamente os fundamentos jurídico-constitucionais com base nos quais se considera que a vida humana uterina tem consagração e protecção constitucionais nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da nossa lei fundamental. E não o farei, exactamente, porque, quer o Acórdão 288/98, ao qual constantemente se arrimou, aí de modo inequívoco, quer o presente Acórdão, não deixam de pressupor, ainda que, neste, de forma não tão impressiva, que a vida uterina tem protecção constitucional, correspondendo a um direito ou garantia fundamentais. Depois, porque acompanho, no essencial, os votos apostos àquele Acórdão 288/98 pelos senhores conselheiros que

votaram vencido e que aqui se recuperam.

Nesse ponto - e com naturais reflexos, como não poderá deixar de ser quanto à solução desta questão - a nossa discordância com o acórdão reside, essencialmente, na intensidade de protecção jurídico-constitucional que se entende derivar de tal preceito, quer no que importa à dúvida, nele concitada, sobre a titularização/subjectivação do direito à vida humana no artigo 24.º, n.º 1 da CRP, quer na resposta a dar quando esse direito ou garantia fundamentais entrem em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora designada "liberdade de manter um projecto de vida" "como expressão do livre desenvolvimento da personalidade".

Não obstante isso - e com referência à metodologia seguida - não é de passar em branco que o acórdão, ansiando, porventura, acentuar os argumentos que, na sua óptica, abonarão a favor da não inconstitucionalidade de uma solução jurídica perspectivada na senda de uma resposta afirmativa ao referendo, discorre, essencialmente, sobre um diálogo de ponderação entre os direitos fundamentais, susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de uma "configuração mais radical" do âmbito da protecção da vida humana, como se a solução passasse, no caso concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a existência, no direito vigente, de causas de desculpabilização e de justificação que dão expressão, num plano autónomo e exterior, às exigências demandadas, no caso, por um juízo ponderativo de concordância prática entre os direitos tidos como estando em conflito.

Ao contrário do suposto como elemento de argumentação, não se afirma, nem se viu alguma vez defendido na ciência jurídica, que, tendo por referência a vida pré-natal e pós-natal, "tenha de existir uma protecção penal idêntica em todas as fases da vida", como postulado ou decorrência da inviolabilidade da vida humana ou que haja "uma argumentação a favor da inconstitucionalidade [da resposta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em todos os seus estádios".

Tal princípio constitucional não demanda que a protecção penal da vida humana tenha de ser idêntica, em intensidade, em todo o continuum da vida e em todas as

circunstâncias de facto.

O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do direito à vida (uterina e pós-uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo, dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios gerais de direito criminal, de matriz, igualmente, constitucional, da justificação do facto, da culpa e do estado de

necessidade.

Assim, não está o legislador ordinário impedido, em geral, de conformar diferentes níveis de protecção criminal, expressos, maxime, no recorte do facto ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e circunstâncias do continuum em que se desenvolve a vida humana, diferenciando, dentro dele, a vida intra-uterina da pós-uterina. O que a Constituição reclama é que, salvo a existência de causas de desculpabilização ou de justificação, a vida seja penalmente protegida.

Em segundo lugar, o argumento de que não existe "uma linha de inflexível necessidade lógica", como afirma o acórdão, entre a definição da inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, "nomeadamente pela interferência de perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de afastamento da responsabilidade devido "à necessidade da pena", assenta sobre uma patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a intervenção penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a

existência dessa protecção penal.

Em terceiro lugar, a convocação do entendimento seguido no referido Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, segundo o qual na mente dos constituintes do artigo 24.º, n.º 1, da CRP não caberia a protecção da vida uterina só teria sentido para quem - posição que parece não ser, de modo assumido, a do acórdão e não é, seguramente, a do Ac. 288/98, em que constantemente se abona, nem dos votos de vencido a eles apostos - seguisse uma tese radical de exclusão do âmbito de protecção conferida por tal artigo da vida intra-uterina.

5.2 - Sendo, assim, admitido como está, pelo acórdão e por todos os vencidos, que a vida humana intra-uterina goza de protecção constitucional, o que importa saber, é se, a operação de concordância prática dos direitos e valores constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o acórdão levou a cabo se apresenta efectuada com respeito pelo princípio constitucional que emerge do artigo 18.º, n.os 2 e 3 da CRP.

Por nós, temos por seguro que não. E firmamos esse juízo, essencialmente, nas

seguintes considerações.

Desde logo, porque não deixa de impressionar-nos que o acórdão perspective a tutela de inviolabilidade da vida humana, estabelecida no artigo 24.º, n.º 1, da CRP, desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por reduzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu âmbito de protecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de gestação e às pessoas nascidas.

Ora, não vemos, como melhor se verá adiante, que tenha sentido falar-se de inviolabilidade da vida humana sem ser por referência ao ser que dela seja titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser pessoa (cf. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, Torino, 1996; A. M. Almeida Costa, "Abortamento provocado", in Bioética, AA. VV. Coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald, Lisboa, 1996, pp. 201 e segs., e João Carlos Loureiro, "Estatuto do Embrião", in Novos Desafios à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs).

Do mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial fundamento da tutela constitucional devida ao embrião/feto o princípio constitucional da dignidade humana, quando este princípio supõe, precisamente, a existência de um ser dotado de vida humana e o preceito do artigo 24.º, n.º 1, da CRP não só não aponta em qualquer sentido restritivo, como corresponderia a uma solução contrária ao princípio da "máxima efectividade e expansividade" dos direitos e garantias fundamentais, constantemente, invocado para justificar a inclusão nos direitos fundamentais de

realidades que suscitam alguma dúvida.

Por outro lado, o acórdão não realizou qualquer juízo de concordância prática entre os dois valores ou direitos constitucionais, tidos como estando em conflito: o direito do ser, "embrião/feto humanos", a nascer e a "liberdade da mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade". E não efectuou, porque, pura e simplesmente, para fazer prevalecer este último, rejeita a titularização, no âmbito do artigo 24.º, n.º 1, da CRP (subjectivação constitucional), do direito à vida humana e, decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a nascer, admitindo a possibilidade de, sem censura penal, lhe tirar a vida humana.

De qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e jurisprudência constitucionais, a inexistência de hierarquia entre direitos constitucionais, precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca a colisão de direitos constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador ordinário, com base num critério normativo de prevalência da liberdade da mulher a manter um projecto de vida à custa da morte do feto, titular constitucional de vida humana e da respectiva dignidade.

A operação de concordância prática entre direitos constitucionais, posicionados como estando em conflito, demanda a realização de um juízo de ponderação (legislativa ou judicial) que dê satisfação ao princípio constitucional da máxima efectividade de protecção dos direitos e garantias fundamentais.

Tal equivale por dizer que esse juízo deve efectuar-se de modo a tentar obter uma optimização do âmbito de eficácia da protecção constitucional conferida a tais direitos e que nunca poderá chegar a um resultado de eliminação de um deles em favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o conteúdo essencial do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da vida humana, na sua expressão de direito do titular da vida humana uterina a nascer e a violar-se frontalmente o disposto na parte final do artigo 18.º, n.º 3, da CRP.

[E a solução não varia se se fizer radicar, segundo a lógica dubitativa que o acórdão admite, a tutela constitucional do titular embrião/feto no princípio da dignidade de vida humana - lógica essa, diga-se, incongruente, se referida à dignidade do embrião/feto, por essa dignidade da vida humana supor a existência da vida humana e de um seu titular, ou, então, contraditória, se a alegada dignidade disser respeito à mulher grávida, por, nesse caso, inexistir a perspectivada situação de colisão de direitos].

Por outro lado, o juízo de concordância prática não pode deixar de ter presente a estrutura e natureza dos concretos direitos ou garantias constitucionais, que se apresentam como estando em conflito, mormente para avaliação dos resultados sob a óptica do princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de justa medida, ao qual

deve obediência.

Ora, nesta sede, não deve desconhecer-se que estão em causa direitos ou garantias constitucionais em concreto, radicados em diferentes titulares constitucionais: de um lado, a liberdade da mulher grávida a manter um projecto de vida e do outro o direito do concreto embrião/feto a nascer, em cada situação de gravidez. Cada situação de gravidez gera uma situação de existência de um concreto titular do direito à vida

humana a nascer.

Nesta perspectiva, cabe acentuar que a Constituição, sempre que quer conferir uma especial intencionalidade protectora ou eficácia do âmbito de protecção constitucional a certos direitos ou garantias constitucionais, usa expressões reveladoras desse significado, como o adjectivo "inviolável" ou expressões de exclusão como "ninguém", "quaisquer", etc. (cf., por exemplo, quanto ao primeiro caso, os artigos 24.º, n.º 1, 25.º n.º 1 e 34.º, n.º 1, e, quanto ao segundo caso, os artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a ambas as situações, o artigo 13.º, n.º 2).

O direito à vida humana é protegido pela Constituição (artigo 24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo "inviolável" só poderá significar que se trata de um direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de exclusão que consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação, como sejam as causas constitucionais de

desculpabilização ou de justificação.

Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia constitucional que se encontra dotado de uma especial força de tutela constitucional. E bem se compreende que o seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os outros, de um direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem titulares de vida humana não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer constituir-se comunidade organizada

em Estado de direito democrático.

Ao contrário, o direito ou garantia fundamental que se apresenta em colisão com ele - a liberdade da mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade - não se apresenta dotado constitucionalmente de uma tal força excludente de lesão.

Na verdade, essa liberdade é não a liberdade a que se refere o artigo 27.º, n.º 2, da CRP, a liberdade física ou liberdade de "ir e vir" - essa sim dotada de tal força excludente - mas sim uma específica dimensão do princípio do desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26.º, n.º 1.

Assim sendo. Existente um direito à vida humana titularizado no ser resultante da partogénese celular, ser esse diferente, não só biológica e geneticamente (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312 e Fernando Regateiro, "Doenças Genéticas", in Comissão de Ética - Das Bases Teóricas à Actividade Quotidiana, AA. VV. Coordenada por Maria do Céu Patrão Neves, 2.ª edição, Coimbra, 2002, pp. 351 e 352), como também constitucionalmente (cf., entre outros, João Carlos Loureiro, "Estatuto do Embrião", in Novos Desafios à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs., e A. M. Almeida Costa, op. cit., pp. 210 e segs.), do ser da sua mãe ou mulher grávida - seja ele já uma pessoa ou não, mesmo numa acepção constitucional - e podendo ele estar em colisão com o direito a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, titularizado na mulher grávida, não pode deixar, numa ponderação de concordância prática dos valores constitucionais, de adoptar-se, do ponto de vista da sua estrutura e natureza constitucional, uma solução que não acarrete o sacrifício do titular da vida

humana.

Anote-se, de resto, que só o (implícito) reconhecimento de uma alteridade de titularidade constitucional do ser embrião/feto em relação à sua mãe é que justifica que o próprio acórdão, na esteira, aliás, do de 1998, procure intentar uma demonstração de existência de concordância prática entre o direito titularizado da mulher grávida e o

direito respeitante ao embrião/feto.

O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do concreto embrião/feto. Com ele extingue-se o direito de se desenvolver no seio materno (e de mais tarde nascer), de acordo com a informação codificada no DNA, a vida humana do concreto feto advindo do específico ovo ou zigoto, este, por sua vez, resultante da fecundação do concreto ovócito pelo concreto espermatozóide. O ser irrepetível advindo da partogénese celular deixa de existir, saindo violado, por completo, o seu

direito à vida humana.

Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer por força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como, por exemplo, a doença, o

desemprego, acidentes, etc.

Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o poder exercer e manifestar, repetidamente, em todas as outras condições da sua vida.

Seguindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá a sua liberdade de desenvolver o seu projecto de vida quantas as vezes que optar pela interrupção da gravidez. Porém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida humana de um concreto titular - o concreto feto em gestação.

Nesta linha de pensamento, há-de convir-se que a interrupção voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, assume tão só a natureza de um simples meio de contracepção ou mesmo de planeamento familiar cuja determinação do concreto conteúdo corresponde a um direito absoluto da mulher grávida, fazendo irrelevar, para o concreto embrião/feto, qualquer protecção constitucional do seu direito à vida humana, consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da CRP.

Ou seja, a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa liberalização do aborto, condicionando-o a condições que visam apenas acautelar o aspecto de saúde da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que deve ser efectuada uma ponderação de direitos ou valores: contra a vontade, de livre opção, da mulher de abortar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, nada (absoluto) se pode opor.

Trata-se, por outro lado, de uma solução cuja admissibilidade não vemos como possa ser acolhida pelo princípio constitucional da proporcionalidade, na sua acepção de justa medida. Essa desproporcionalidade torna-se patente não só quando abandona, por inteiro, a natureza do direito que está em colisão com o direito da mulher grávida, permitindo o seu sacrifício, de plano, nas primeiras 10 semanas, como quando a valoração acaba por ficar dependente apenas da decorrência de simples prazos de gestação, e da aleatoriedade decisória que, durante eles, poderá ser feita, livremente, pela mulher grávida, podendo ser levada a cabo, sem censura penal, num limite em que o feto tem até já forma humana (desde as 8 semanas) (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312).

Como se verifica dos seus termos, o acórdão invoca a realização de uma concordância prática dos direitos em questão no plano abstracto, indicando até, nesse sentido, a existência de vários regimes de protecção da maternidade, que identifica.

Todavia, a primeira objecção que poderá fazer-se a propósito de tal atitude é que, posta a questão em termos abstractos (plano do conteúdo/extensão do direito objectivo à vida humana), no plano de constitucionalidade, caberia ao próprio legislador constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no que toca ao conteúdo essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo aborto.

E não se esgrima, contra esta posição, como está pressuposto pelo acórdão, para justificar a existência de um juízo ponderativo de concordância prática, que só tal operação permite enquadrar constitucionalmente as causas de desculpabilização e de justificação da interrupção voluntária de gravidez existentes na lei em vigor, pois estas, apenas, correspondem a concretizações, relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão em causa, de princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito criminal - as causas de justificação e de desculpabilização.

Depois a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que os direitos cuja existência alega, apenas, constituirão direitos para quem tiver a sorte de não ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares de direito à vida humana

que tenham nascido.

A vida humana não existe sem um titular e não é possível falar-se de violação, que o preceito constitucional proíbe, sem ser relativamente à posição jurídica de quem se encontre investido na titularidade de um direito.

De contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do conteúdo constitucional desse direito, dos seus contornos, do seu conteúdo essencial, no mínimo. E, a ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do legislador ordinário, mas nos do

constitucional.

Essa é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida no acórdão (pontos 7 a 10), sobre a admissibilidade de uma dúvida interpretativa sobre a solução, em abstracto, no plano da constitucionalidade, de um conflito de valores ou direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta de referendo, poder ser devolvida ao eleitorado, através de mecanismos como o referendo e não de eleições em que possam ser assumidos poderes constituintes por parte da Assembleia da

República.

É que o voto expresso neste caso, desde que afirmativo, apenas pode traduzir uma posição de poder político legislativo ordinário, no sentido transportado pela pergunta, ou seja, corporiza, apenas, uma posição de poder legislativo ordinário, não incorporando quaisquer poderes de definição do conteúdo dos direitos e garantias constitucionais, só possível através da concessão/assumpção de poderes constituintes.

Resta, por último, apreciar a posição em que se abona o acórdão, segundo a qual não se esgota, no domínio penal, o âmbito de protecção do direito constitucional à vida humana e de que não existe uma imposição constitucional à criminalização.

Estamos de acordo quanto à primeira consideração, mas já não podemos acompanhar,

de forma alguma, a segunda proposição.

E não podemos, porque entendemos que existem direitos constitucionais cuja existência e exercício hão-de, necessariamente, impor a criminalização das atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador ordinário dever usar todos os meios constitucionalmente possíveis e entre estes, evidentemente, a sua última ratio - o direito

criminal.

É o caso do direito à vida humana uterina e pós-uterina. Trata-se de um direito que é pressuposto necessário da existência de todos os demais (direito com pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres concretos, não é concebível qualquer princípio de dignidade da pessoa humana e existência de uma comunidade

politicamente organizada em Estado.

O direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante do Homem e da

sociedade organizada.

Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático do Estado de direito. Sem protecção do princípio democrático do Estado de direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá existir e subsistir.

Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de utilizar na sua protecção a

última ratio - o direito criminal".

4 - Para nós, pois, sintetizando na perspectiva do caso concreto, o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição protege a vida humana no grau de inviolabilidade por todos os sujeitos, começando pelo Estado. E estando a dispor, embora em abstracto, sobre a vida humana só pode referir-se à vida humana enquanto valor concretamente existente e verificável e não enquanto simples valor constitucional objectivamente afirmado, como discorre o Acórdão: onde concretamente existir uma vida humana ela é inviolável.

Donde a afirmação da existência de uma vida humana pressupor sempre uma alteridade, seja ela em relação à gestante ou às pessoas já nascidas.

A construção do Acórdão no sentido de ver, para efeitos do âmbito de protecção da norma constitucional, o ente existente no seio materno como uma unidade com a gestante durante o período em que é lícito o aborto - o que lhe permite a afirmação de preponderância dos direitos fundamentais da gestante, e não já uma dualidade ontológica e axiológica, é puramente formal, representando uma intelecção formal construída ao arrepio da Natureza. A dualidade da vida humana do feto, até ao nascimento com vida, e da gestante, na lógica do acórdão, corresponderá a uma atribuição do legislador ordinário que só poderá ser travada nos casos de manifesta evidência de violação do princípio da proporcionalidade, a qual seria apenas reconhecível nos adiantados estados de gravidez. Tal compreensão da realidade humana corresponde a colocar, nas mãos do legislador ordinário, o recorte do âmbito material da garantia constitucional da inviolabilidade da vida humana, a poder lesar a vida humana radicada em um concreto ser, permitindo a sua morte.

A nosso ver, a Constituição actual não o permite. Assim, enquanto o preceito constitucional não for alterado, entendemos que nunca o "modelo de prazos" da interrupção voluntária da gravidez se pode ter por legitimado.

5 - Consequencialmente, o artigo 2.º, n.º 2, da Lei 16/2007 é também

inconstitucional.

Mas, independentemente da relação de dependência desta questão de constitucionalidade relativamente à anterior, verifica-se ainda que este artigo 2.º, n.º 2, é

inconstitucional a título autónomo.

Na verdade, ele viola directamente a garantia constitucional da inviolabilidade da vida humana (artigo 24.º, n.º 1, da CRP) e - mesmo para quem entenda não se estar perante um caso em que sai ofendido o conteúdo essencial do artigo 24.º, n.º 1, da CRP - o princípio da necessidade e da proporcionalidade das restrições a direitos fundamentais (artigo 18, n.º 2, da CRP), na medida em que, na presença de bens constitucionais não hierarquisados entre si (os direitos fundamentais da gestante e o direito constitucional do feto), o preceito adopta uma estrutura de informação de total alheamento da vida humana, em nada assumindo uma atitude de defesa da vida humana do feto.

6 - Finalmente, a proibição, pelo legislador ordinário - e é disso que se trata! - de os médicos objectores de consciência poderem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de reflexão, prevista no artigo 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007, é também inconstitucional, por violação desproporcionada do direito fundamental da liberdade de trabalho e de profissão, consagrada no artigo 47.º, e da garantia de liberdade de consciência, reconhecida no artigo 41.º, ambos os preceitos da Constituição, bem como do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13.º da

mesma lei fundamental.

Antes de mais importa notar que não está aqui em causa uma restrição destes direitos fundamentais em relação aos médicos que invoquem a objecção de consciência a que se refere o artigo 6.º, n.º 1, da Lei 16/2007, ou seja, aos médicos que declarem o "direito de objecção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à

interrupção voluntária de gravidez".

A questão põe-se relativamente aos médicos que não declarem o direito de objecção de consciência relativamente à consulta médica de informação.

Trata-se de uma consulta médica para a qual têm a mesma habilitação legal tanto os médicos que declarem ser objectores de consciência para o acto abortivo, como aqueles que não façam essa objecção de consciência.

A consulta de informação não é uma consulta para a realização do aborto. Daí que a descriminação feita pelo legislador apenas possa fundar-se numa suspeita de que os médicos objectores de consciência para o acto de realização do aborto, para a morte do feto, não tenham capacidade ou competência para cumprir o programa legalmente estabelecido para a consulta de informação.

Ora, os termos em que pode fundar-se a objecção de consciência para um e outro dos referidos actos são completamente diferentes, não se vendo que exista razão, para além da suspeição legal discriminatória, para cercear, relativamente a esse acto médico, o exercício do direito fundamental de trabalho e de profissão e a garantia de objecção de consciência. O dizer-se que uma tal opção do legislador corresponde como que a uma consequência da sua posição de admitir a declaração de objecção de consciência significa que o legislador é livre para optar entre o tudo e o nada, em matéria de liberdade de consciência, quando o certo é que não está dispensado de um juízo de ponderação que não conduza à diminuição do alcance do conteúdo do direito constitucional estabelecido no artigo 41.º da lei fundamental.

A proibição legal de intervenção do médico não objector de consciência à consulta de informação é manifestamente desnecessária e desproporcionada em função do programa vinculativamente estabelecido para essa consulta e aos direitos fundamentais

do médico que estão em causa.

Por outro lado, estamos perante uma discriminação atentatória do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, na medida em que, estando legislativamente definido o conteúdo da consulta de informação (donde se não possa também previsionar que o médico não objector de consciência tome uma atitude de favorecimento ao aborto!), coloca um e outro desses profissionais em situação diferente, efectuando por via reflexa ou lateral - o que em si evidencia a arbitrariedade da opção, face ao disposto no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição! - uma discriminação em razão das convicções ideológicas proibida pelo n.º 2 daquele artigo

13.º

Benjamim Rodrigues

Proc. n.os 733/07 e 1186/07

Plenário

Relator: Cons. Joaquim de Sousa Ribeiro

Declaração de voto

Em meu entendimento, a norma do artigo 1.º da Lei 16/2007 de 17 de Abril, na parte em que altera o artigo 142.º do Código Penal, impondo a não punibilidade da interrupção da gravidez se realizada "por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez", ofende o disposto no n.º 1 do artigo 24.º da Constituição por desproteger

totalmente a vida do nascituro.

Por outro lado, o relevo que assim é concedido, para efeito da não punibilidade, à vontade da mulher grávida, repercute-se necessariamente na afirmação de reprovação ínsita no próprio tipo penal genericamente previsto no artigo 140.º do Código Penal. A desvalorização desse juízo do legislador ordinário, assim desacompanhada de quaisquer motivos a que pudessem ser concedidos efeitos justificadores, constitui, também ela, uma ofensa directa à vinculação constitucional de protecção do direito à

vida.

Os artigos 3.º e 4.º da mesma Lei 16/2007 de 17 de Abril obrigam o Governo a adoptar as providências administrativas necessárias "à boa execução da legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez"; na ausência que qualquer referência às Regiões Autónomas, designadamente quanto a qualquer procedimento prévio de concertação e cooperação político-administrativa que a Constituição claramente exige nestas áreas, depreende-se que o legislador ordinário admitiu que a vinculação do Governo seria suficiente para estender a "boa execução da legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez" às Regiões, o que ofende claramente o princípio autonómico decorrente do n.º 2 do artigo 6.º e n.º 1 do artigo 227.º da Constituição.

Consequentemente, votei no sentido da inconstitucionalidade das referidas normas.

Carlos Pamplona de Oliveira

Procs. n.os 733/2007 e 1186/2007

Maria Lúcia Amaral

Declaração de voto

Votei vencida quanto à alínea b) da Decisão, por entender que lesam o disposto no artigo 24.ºda Constituição as normas constantes dos artigos 1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, 2.º, n.º 2, 6.º, n.º 2, todos da Lei 16/2007.

Foram os seguintes, os meus motivos.

1 - O Tribunal chegou, quanto a este ponto, a um juízo maioritário de não inconstitucionalidade a partir de algumas premissas metodológicas que subscrevo inteiramente. A primeira é a da total novidade da questão que agora lhe foi colocada.

Também eu entendo que o Tribunal teve aqui que resolver um problema novo, face ao já decidido na jurisprudência anterior sobre o tema (Acórdãos n.os 25/84, 85/85, 288/98 e 617/06). Antes do mais, novo em razão do objecto do juízo, por estar agora em julgamento, e pela primeira vez, o sistema legal finalizado do chamado "modelo de prazos", em que se definem as condições substantivas e procedimentais que determinam a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, quando realizada por opção da mulher durante as dez primeiras semanas. Depois, problema novo em razão do fundamento do juízo, porque a questão nuclear que houve que resolver foi a de saber se esse "modelo de prazos", assim finalizado em sistema legal, continha ou não elementos suficientes de protecção do bem jurídico que é tutelado pelo artigo 24.º da Constituição (vida pré-natal). Nada disto esteve em discussão na anterior jurisprudência do Tribunal;

tudo isto foi o que, de essencial, agora se teve que resolver. O Acórdão de que dissenti esclarece bem o alcance da novidade do problema desta feita colocado ao Tribunal, pelo que subscrevo inteiramente a premissa inicial que sustentou o seu juízo.

Como subscrevo a premissa seguinte, relativa às dificuldades específicas com que se defronta o Tribunal sempre que é chamado a julgar da suficiência ou insuficiência do cumprimento, por parte do legislador ordinário, de deveres objectivos de protecção de bens jusfundamentais. Também eu concordo que tal juízo é estruturalmente diverso daquele outro que se faz sempre que estão em causa, não deveres estaduais positivos de proteger e de promover certos bens, mas deveres estaduais negativos de não perturbar ou de não afectar posições jurídicas subjectivas. Quanto a estes últimos, é certo que ficam proibidas todas as acções que afectem ou perturbem; em contrapartida, e quanto aos primeiros, a Constituição não ordena que se adoptem todas as medidas de protecção ou promoção para o caso pensáveis ou possíveis. Ampla é, portanto, a liberdade de conformação do legislador quando escolhe o meio adequado para proteger ou promover: como se diz no Acórdão (n.º 11.4.3.), "[q]uando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção, nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado."

O problema está, porém - e é a partir daqui que divirjo da orientação maioritária -, no facto de o Tribunal se não poder demitir da tarefa que especificamente lhe cabe, e que é a de julgar quais são as acções de protecção ou de promoção que são adequadas e quais as que o não são. Para tal, é necessário que se tenha algum critério a partir do qual se possa aferir a 'adequação' das acções às finalidades de protecção; é necessário que se tenha algum tópico orientador, algum instrumento conceitual que permita detectar as insuficiências de protecção, caso elas existam. Se assim não for, o Untermassverbot, a proibição do deficit, torna-se coisa vazia, como coisa vazia e destituída de conteúdo se tornarão os deveres de protecção. Deveres que não sejam justiciáveis, ou sindicáveis pelo Tribunal, não são deveres.

Ora, em meu entender, o Acórdão acabou por não revelar um critério a partir do qual se pudesse medir a existência, ou inexistência, de um deficit legislativo de protecção. É certo que, como aí se diz (n.º 11.4.17), "cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um instrumento de mensuração exacta do grau de protecção exigível para o cumprimento, pelo Estado, do correspondente dever". No entanto, tal não implica que se só se justifique uma pronúncia de inconstitucionalidade em caso de manifesto erro de avaliação do legislador, detectado a partir de critérios de evidência. Enquanto critério de identificação da existência, ou inexistência, de deficit de protecção legislativa esta formulação parece-me claramente insuficiente. E parece-me antes que, sempre que o legislador estiver constitucionalmente obrigado a proteger certo bem, tal significa que as medidas a adoptar deverão propiciar a mais ampla protecção que seja fáctica e juridicamente possível, i.e., que não seja incompatível com outros princípios ou valores constitucionais que se devam também prosseguir. Uma medida que fique aquém do fáctica e juridicamente possível - isto é, que não confira a mais ampla protecção que seja ainda compatível com outros princípios e valores constitucionais - não é, em princípio, "adequada", pois não concretiza o mandato de concordância prática entre diferentes bens jusfundamentais a que está adstrito o legislador - tanto aquele que restringe, quanto aquele que protege ou promove.

2 - É para mim claro que, no caso, o legislador estava obrigado a proteger o bem jurídico vida (vida pré-natal), tutelado pelo artigo 24.º da CRP. É para mim também claro que, no sistema finalizado do "modelo de prazos" que a Lei 16/2007 instituiu, o lugar "sistémico" da protecção seria aquele conferido pelo aconselhamento dispensado antes da prática, no quadro do serviço nacional de saúde, do acto de interrupção voluntária da gravidez. Aparentemente, terá sido também essa a ideia que norteou o legislador, pois só ela pode explicar que se tenha elevado a realização da consulta obrigatória a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º da lei, a condição de impunibilidade do acto de interrupção da gravidez. Paradoxalmente, porém, a consulta obrigatória, que deveria ser o lugar sistémico para o cumprimento do dever estadual de protecção da vida - tornando-se por isso aberta em relação ao resultado, por dela não dever resultar nenhuma imposição da conduta futura da grávida, mas comprometida quanto aos seus próprios fins, por implicar um reconhecido empenhamento do Estado quanto à desincentivação do aborto -, vem a ser regulada pelo legislador como se, afinal, de um estrito procedimento formal se tratasse (para além de nela não poderem estar presentes, por proibição decorrente do n.º 2 do artigo 6.º da lei, os médicos objectores

de consciência).

Para a posição maioritária, que fez vencimento no Tribunal, este mero procedimento, a que fica reduzida a consulta obrigatória, constitui só por si protecção suficiente e eficiente do bem jurídico protegido pelo artigo 24.º da CRP, pelo que com ela se cumprem os deveres que, por força da norma constitucional, impendem sobre o legislador ordinário. O Tribunal entendeu maioritariamente assim por duas razões fundamentais. Primeira, porque considerando, como já se viu, que os deveres de protecção só são sindicáveis se, à evidência, houver manifesto erro de avaliação do legislador, acaba por concluir que o nível de protecção exigida é o mínimo, e sempre o mínimo possível, nível esse naturalmente satisfeito por um mero procedimento formal.

Segunda, porque conclui também que seria incompatível com o outro princípio ou valor constitucional que coexiste, no caso, com a necessidade da tutela da vida - a dignidade e a autodeterminação da mulher grávida, e a formação da sua decisão livre, consciente e responsável - qualquer modelo institucional que pudesse ser vivido ou sentido pela mesma grávida como juízo externo pressionante da sua conduta, ou como uma intrusão

no seu processo interno de decisão.

Com nenhuma destas razões posso eu estar de acordo. Não estou de acordo com a primeira porque penso, como já deixei descrito, que o critério de identificação da existência de um deficit de protecção legislativa se não confunde com o mínimo de protecção a que se refere o Acórdão. Não estou de acordo com a segunda porque penso que, levada às últimas consequências, a ideia da necessidade de defesa da grávida perante quaisquer juízos [institucionais] externos pressionantes da sua conduta corresponde a um outro tratamento paradigmático da questão, que nem sequer chega a equacionar a existência de deveres estaduais objectivos de protecção do bem vida. De acordo com este modelo paradigmático - que é o do Roe vs. Wade - a não punibilidade do acto de interrupção da gravidez (num certo período de tempo) depende apenas de uma e só de uma condição: a vontade da gestante. Por isso mesmo, na sua privacy, tal vontade é e deve ser preservada de quaisquer juízos externos "pressionantes" de condutas. Não é, porém, esse o paradigma de que parto; nem é tão pouco esse o paradigma de que parte o próprio Tribunal na formulação do seu juízo, já que tal implicaria, quer uma ruptura - que expressamente se recusou - com todo o lastro jurisprudencial anterior, quer uma diversa equação inicial do problema que havia

a resolver.

Por estes motivos, concluo, diversamente da maioria, que, ao desenhar, como desenhou, o sistema decorrente dos artigos 1.º, 2.º e 6.º da Lei 16/2007, o legislador ordinário não cumpriu o deveres a que está vinculado nos termos do artigo

24.º da Constituição.

Maria Lúcia Amaral

Proc. n.º 733/07 e 1186/07

Plenário

Rel.: Consº Sousa Ribeiro

Declaração de voto

1 - Não acompanhei a pronúncia do Tribunal, quanto à alínea b) da decisão, tendo-me antes pronunciado pela inconstitucionalidade material, por violação do artigo 24.º da Constituição, das normas constantes do artigo 1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2,

da Lei 16/2007.

Cumpre agora explicitar, ainda que em termos necessariamente breves, as razões da minha divergência com a posição que fez vencimento, que se manifestam quer na interpretação e implicações do parâmetro constitucional quer na apreciação do complexo normativo sujeito à apreciação do Tribunal.

2 - Em sede de interpretação do parâmetro constitucional considero, com o acórdão, que a protecção que o artigo 24.º da Constituição dá ao direito à vida (ao referir, no seu n.º 1, que "a vida humana é inviolável") abrange não só a vida humana já nascida mas também aquela que se desenvolve intra-uterinamente. Nestes termos, entendo que se impõe ao Estado a tomada em consideração do embrião e do feto, pelo que se lhe encontra vedada a possibilidade de se alhear juridicamente do seu destino, conformando a ordem jurídica sob um princípio de atribuição ou de reconhecimento de carácter exclusivamente pessoal ou privado à decisão de abortar, subtraindo-a a toda a forma de influência de orientação que o Direito é susceptível de proporcionar. O que implica o reconhecimento de que, como qualquer outro dever de protecção constitucionalmente estabelecido, também o que é imposto pelo artigo 24.º, n.º 1, da Constituição é tanto negativo como positivo, gerando para o Estado não apenas o dever de omitir todas as acções susceptíveis de destruir ou afectar negativamente a vida intra-uterina, como também o de participar e intervir, promovendo-a e protegendo-a contra intervenções arbitrárias de terceiros, sem exclusão das que possam proceder da própria gestante. Revestindo tais deveres natureza indeterminada, e sendo por isso a forma como os órgãos do Estado os exercem por eles decidida sob a sua própria responsabilidade, o problema do controlo da constitucionalidade do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de gestação condensado no bloco normativo formado pelos preceitos ora sob apreciação apresenta-se como um problema de verificação e sindicância do cumprimento do dever, jurídico-constitucionalmente imposto, de tutela da vida intra-uterina, através de normas de protecção procedentes dos instrumentos disponibilizáveis pelo direito ordinário.

No seguimento das posições afirmadas pela jurisprudência deste Tribunal, reitera agora o acórdão que a vida intra-uterina constitucionalmente tutelada o é como bem constitucionalmente protegido, sem que tal envolva a aplicação do regime constitucional especial do direito à vida, que não valeria assim directamente para a vida intra-uterina e para os nascituros. Cremos, no entanto, e neste ponto não acompanhamos já o acórdão, que a distinção assim feita não importa verdadeiramente consequências relevantes para a análise a que importa proceder, uma vez que o reconhecimento da existência de um imperativo jurídico-constitucional de protecção dispensa a verificação do título a que tal protecção é assegurada, pois que, quer envolva a atribuição de um verdadeiro direito subjectivo quer se trate da (simples) protecção como valor ou bem, sempre o Estado se encontra vinculado à edição de normas de promoção e protecção através da mobilização dos instrumentos de direito ordinário (assim também Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e crime - Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização, Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 366).

E se não cremos ser relevante uma tal distinção quanto à afirmação da existência do mandado jurídico-constitucional de protecção da vida intra-uterina, também dela não retiramos quaisquer consequências agora quanto à questão da idoneidade de um particular meio de protecção para o cumprimento daquele mandado. Na verdade, esse juízo de idoneidade sempre pressupõe a compreensão prévia da natureza e conteúdo do bem a tutelar, e este nunca poderá ser visto como simples idealidade, mera representação do espírito ou produto do pensamento, havendo antes de lhe ser reconhecida uma preponderante dimensão ou espessura ôntica, integrado por uma determinada realidade cognoscível objectivamente, esta por sua vez constituída, segundo os dados da ciência, por todos e cada um dos seres humanos intra-uterinamente viventes, qualquer deles já portador de uma identidade genética definida, e, nessa sua unicidade, singularmente referenciável e diferenciável dos demais.

O sistema de protecção a organizar para a vida intra-uterina, como quer que aquela se conceptualize, sempre exigirá por isso uma estrutura diferenciável da que porventura possa servir à tutela de bens jurídico-constitucionais de natureza transindividual, metaindividual ou até mesmo difusa - por, ao invés daquele, se caracterizarem quer pela circunstância de se reportarem a uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos ou portadores em termos tais que não possibilitam a identificação de todos individualmente, quer pelo elemento de indivisibilidade, no sentido de que o objecto da realidade que os constitui não comporta a partilha entre os seus titulares, pertencendo como um todo a todos eles em igual medida, sem admitir a atribuição exclusiva a qualquer deles. Diferentemente, no caso da vida intra-uterina, o bem jurídico a tutelar retira a sua validade e razão de ser constitucionais da circunstância de se reportar a vidas humanas tão diferenciáveis e independentes entre si que apenas lhe sobra em comum a circunstância de se encontrarem em estado embrionário ou fetal de

desenvolvimento.

O que implica a conclusão de que sempre será constitucionalmente inviável a construção de um sistema de tutela em que, para as primeiras dez semanas de gravidez, esta resulte de mera projecção retrospectiva da protecção garantida ao(s) período(s) de gestação considerado(s) subsequentemente. Ao contrário, há-de entender-se que a posição jusfundamental irradiante que, como consequência da protecção constitucional da vida intra-uterina, há que reconhecer a cada ser intra-uterinamente vivo gera para o Estado o dever de organizar e conformar a ordem jurídica de uma tal maneira que a toda a expressão de vida embrionária ou fetal, independentemente da fase ou momento do processo de gestação em que se situe, seja facultado, e portanto também durante as dez primeiras semanas, através da mobilização do direito ordinário, um nível mínimo de protecção efectiva. O que exige que, a fim de não desconsiderar a densidade ou espessura ônticas do bem jurídico-constitucional a tutelar, os instrumentos de tutela disponibilizados, podendo embora exprimir uma forma de protecção diferenciada e até progressiva ao longo da gestação, disponham sempre e em qualquer caso de referencial minimamente antropocêntrico. Reconhece-se assim que o desenvolvimento do processo de gestação constitui um ponto de partida constitucionalmente viável para a instituição de um modelo de tutela progressiva, exprimindo-se aqui uma gradualidade, não na qualidade ou valor do objecto a tutelar, mas sim, e decisivamente, na relação de adequação entre o meio de protecção a mobilizar e a realidade existencial a que se

dirige a tutela.

Em face do que se pode dizer que o Estado, dentro da margem de conformação que lhe é reconhecida, se encontra assim obrigado a lançar mão de um instrumento de direito ordinário que assegure ao bem em causa uma protecção eficiente, sem o que estará ferido o princípio da proibição de insuficiência ou do défice de protecção.

3 - A análise do carácter eficiente dessa protecção só poderá fazer-se de forma consistente em presença dos dados fornecidos pela ciência e tendo em atenção o critério da legitimidade da intervenção punitiva tal como é hoje de resto consensualmente entendido pela ciência do direito penal.

3.1 - Os dados da ciência dão, actualmente como certa a ideia de que a fusão dos dois gâmetas dá lugar a um «novo organismo cujo programa de vida e desenvolvimento se não identifica com o dos seus progenitores». Inversamente, «cada novo ser concebido recebe uma combinação completamente original que não se havia produzido antes e que nunca mais voltará a produzir-se», encontrando-se gravado na primeira célula do novo ser vivo «o programa que organiza depois todas as células desse organigrama e que formarão parte da sua unidade».

«Com a união das duas células sexuais estabelece-se um novo programa, um genotipo distinto do de cada um dos progenitores, que se mostra activo desde o primeiro momento, não obstante esta actividade se vá desdobrando gradualmente».

Será «sob a influência directiva e perfeitamente ordenada desta espécie de "centro de controlo" que constitui o genotipo» que se formará o novo organismo, numa espécie de

"auto-governo biológico"».

«Neste desdobramento - a ontogenése - vão-se formando uma série de fases em que a seguinte não elimina a anterior, antes a pressupõe: situa-se sobre ela, assimilando-a.

Todo ele segundo a particular forma de autopossessão constituída pelo genotipo do zigoto» (A. Sarmiento, G. Ruiz-Perez e J.C. Martin, Ética y genética, p.41-43).

Conforme se pode, pois, verificar, sem exceder o âmbito da sua competência a ciência atesta hoje que um embrião derivado da união dos dois gâmetas é, desde o primeiro momento, um ser da espécie humana distinto da mãe - e não uma parte dela -, com um programa genético próprio e originariamente diferenciado.

No contexto da resolução do vasto problema aqui recolocado, à ciência não competirá

certamente dizer mais do que isto.

Não lhe competirá, designadamente, definir o alcance ético ou jurídico dos dados que proporciona, esclarecer o seu significado ou fornecer as valorações que são próprias do Direito (neste sentido, cf. Acórdão 617/2006).

Mas o que está ainda no âmbito da sua competência afirmar serve para comprometer, aos olhos de quem tenha de se ocupar de tais questões, a possibilidade de uma visão integralmente despersonalizante do fenómeno ou, pelo menos, despersonalizante ao ponto de implicar a desconsideração da existência de uma situação de alteridade,

excluindo a compreensão do feto como outro.

Assim, se certo é que à ciência não caberá fornecer, ainda que por mera dedução lógica, o conceito de pessoa (cf. Acórdão 617/2006), a informação que dela se recolhe não deixará de condicionar a aceitabilidade, mesmo num plano pré-constitucional, de teses que, tal como a defendida por Luigi Ferrajoli, procuram responder ao problema do estatuto do embrião e do feto na linha da defesa da ideia segundo a qual «o embrião é merecedor de tutela se e só quando pensado e desejado

como pessoa pela mãe».

Quando se trata de estabelecer a relevância normativa atribuível aos dados biológico-cientificos no âmbito da problemática desenvolvida em torno da tutela da vida pré-natal, duas afirmações parecem consensuais: a de que, por um lado, o ordenamento não pode prescindir nem ignorar as indicações da ciência, mas deve orientar-se, no mínimo, de forma compatível com elas; e a de que, pelo outro, tais dados não têm carácter prescritivo-vinculante, não substituindo, conforme acima se disse já, os juízos e as valorações que são próprios do Direito (cf. Kolis Summerer, Le nuove frontiere della tutela penale della vita prenatale, Rivista italiana di diritto e

procedura penale, 2003, Fasc. 4 p.1258).

Partindo de tais postulados, se tenderá a recusar-se a possibilidade de uma fundamentação exclusivamente biológica para o solucionamento das questões relativas, quer ao merecimento e à necessidade de tutela da vida pré-natal, quer, em especial, à natureza do meio ou instrumento a mobilizar para o efeito, do mesmo modo tenderá a aceitar-se que o reconhecimento, cientificamente atestado, de que o embrião é um ser da espécie humana distinto da mãe que o suporta, ao conferir, também pelo lado daquele, uma dimensão definitivamente ontológica ao problema, debilita a viabilidade normativa de construções que subordinem o reconhecimento do eventual grau de "pessoalidade" atribuível ao embrião à coincidente representação que dele faça a mãe, apenas admitindo a primeira onde a segunda esteja presente.

Por idêntico risco de quebra da cadeia de sentido de que participam os dados biológico-científicos, os mesmos postulados tenderão a comprometer ainda a possibilidade, colocada agora no plano de uma abordagem penal do fenómeno, de inscrição do problema da tutela da vida pré-natal no capítulo recorrentemente dedicado à discussão da legitimidade da intervenção penal no domínio das puras violações morais ou de proposições meramente ideológicas, aqui consensualmente contestada com fundamento, entre outros, nos princípios da neutralidade moral, ideológica e cultural do Estado, do pluralismo da sociedade tolerante ou da laicidade do ordenamento jurídico-constitucional (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª

edição, ps.124-125).

3.2 - Se, no plano das ciências da natureza, as modernas possibilidades de observação e estudo do feto desde a primeira fase da gravidez vêm favorecendo o reconhecimento de uma "terceira vida" e de um novo sujeito, já no plano da ciência jurídica, mais propriamente no âmbito da reflexão desenvolvida em torno da função do direito penal, não se registam sinais de retrocedimento na defesa da chamada concepção teleológico-funcional e racional, prevalecendo consequentemente a ideia de que tal função só poderá consistir na tutela subsidiária ou de ultima ratio de bens jurídicos dotados de dignidade penal em consonância com o modelo valorativo jurídico-constitucional e cuja lesão se revele digna e necessária de pena (neste sentido,

Figueiredo Dias, ob. cit., p.113 e ss.)

No actual estado do discurso sobre a legitimidade da intervenção penal e sua justificação, a asserção segundo a qual não pode haver criminalização onde se não divise o propósito de tutela de um bem jurídico-constitucional subsiste como elemento de um binómio completado pela negação da validade da proposição inversa: a de que sempre que exista um bem jurídico digno de tutela penal aí deve ter lugar a intervenção

correspondente (ob. cit. p.127).

No plano da explicitação dos juízos rectores da legitimidade das opções de incriminação, assiste-se, pois, na generalidade da doutrina, à estabilização de uma já consolidada tendência para, em associação e complemento ao critério do bem jurídico, atribuir ao direito penal a natureza de ultima ratio da política social, reafirmando-se a natureza definitivamente subsidiária da respectiva intervenção e relegando-se esta para o plano das situações em que os outros meios de política social, em particular de política jurídica não penal, se revelem insuficientes ou inadequados. Justamente no que diz respeito a esta última categoria, regista-se ainda a propensão para a ela reconduzir as hipóteses em que a criminalização de certos comportamentos se revele, na prática, factor de muitas mais violações do que aquelas que é susceptível de evitar (ob. cit.

p.128).

Em consonância com tais postulados, assiste-se, no âmbito do pensamento desenvolvido em torno do sentido e limites da pena estatal, à subsistência da afirmação dos princípios da subsidiariedade e da efectividade, definidos, na senda das propostas de Liszt, a partir das características da necessidade e da idoneidade da sanção penal:

deverá recusar-se a possibilidade do castigo, por falta de necessidade, quando outras medidas de política social ou as próprias prestações voluntárias do delinquente garantam uma suficiente protecção dos bens jurídicos e, por falta de idoneidade, quando, mesmo que se não disponha de possibilidades mais suaves, a pena se revele político-criminalmente inoperante ou mesmo nociva (apud Claus Roxin, Problemas básicos del derecho penal, Biblioteca Juridica de Autores Españoles y

Extranjeros,1976, p.44).

No âmbito das mais recentes aproximações sociológicas à questão criminal, a (in)eficácia da sanção aparece, por outro lado, ligada à ideia de consenso social.

As teorias desenvolvidas em torno da relação entre consenso social e sistema de direito penal apontam para a atribuição ao primeiro de uma posição central no conjunto das razões que determinam a observância da lei (cf. Enzo Musco, Consenso e legislazione penale, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Fasc.1, 1993, pg.81 e ss.) e, no desenvolvimento desta perspectiva, para a conclusão segundo a qual da taxa de consenso conseguido pelo Estado em torno das suas ofertas de pena (ou opções de incriminação) dependem as chances de garantir a validade sociológica do modelo comportamental encorajado com o instrumento penalísitco (cf. Carlo Enrico Paliero, Consenso sociale e diritto penale, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Anno

XXXV, fasc. 3, p. 849 e ss.).

No domínio das teorias sociológicas da criminalização primária, desenvolvem-se compreensões da dicotomia necessidade de tutela/ exigência de pena que rejeitam a existência de uma qualquer relação de suposição necessária, apontando-se inversamente para a ideia de que o consenso social, se se condensa essencialmente numa necessidade de tutela, pode ou não converter-se numa exigência de pena.

De acordo com tais teorizações, a necessidade de tutela em que o consenso se exprime refranger-se-á quando o instrumento de tutela a mobilizar seja previsivelmente de natureza penalística, projectando-se em duas possíveis e diversas direcções: tutela com a pena e através do direito penal, por um lado; e tutela perante a pena e o direito penal,

por outro.

No desenvolvimento de tal ponto de vista, assiste-se à formulação de conclusões segundo as quais, nos casos em que, relativamente a um determinando modelo comportamental, a colectividade se tenda a identificar prevalecentemente com a figura da vítima, o pedal do consenso social premir-se-á essencialmente em direcção à efectividade, favorecendo a conversão da necessidade de tutela numa demanda de criminalização. Inversamente, quando a comunidade tenda a identificar-se prevalecentemente com o autor de um possível conflito formalizado ou a formalizar segundo o modelo penalístico, o consenso convergirá sobre o pedal da garantia (e do garantismo), exigindo maior tutela diante do direito penal e dos seus meios lesivos para a liberdade individual - propender-se-á, neste caso, para exigir maior limitação e maior controlo do poder punitivo estadual (cf. ob. cit., ps. 872-874).

3.3 - O ambiente em que as sociedades contemporâneas são chamadas a (re)pensar os problemas concernentes à tutela da vida pré-natal, é, pois, complexo e plurisignificante:

nele confluem e coexistem dados, postulados e proposições colocados pelas teorias produzidas no âmbito das diversas áreas do conhecimento, os quais, favorecendo múltiplos pontos de vista sobre o problema, abrem espaço ao desenvolvimento, agora no plano de uma abordagem mais próxima, quer das perspectivas que retiram da informação científica e genética o essencial do apoio para a reivindicação, em matéria de política legislativa, de um discurso em torno dos fetal rights - compreendendo este teorizações acerca do direito do feto a nascer, a nascer são, a não sofrer danos e a ser curado (cf. Kolis Summerer, ob. cit, p.1247) -, quer daquelas que, emergindo da ciência do direito penal, mais propriamente do capítulo integrado pela discussão em torno da qualidade dos instrumentos de tutela, reafirmam um paradigma da intervenção penal radicado na função de tutela subsidiária dos bens jurídico-penais, aprofundando a distinção entre necessidade de tutela e exigência de pena.

Todas estas referências de sentido, contribuindo para aumentar o grau de complexidade das relações entre os sujeitos envolvidos e entre cada um deles e o Estado - aqui entendido como centro de imputação de actividade jurídica e, nesta acepção, como titular oficial do poder punitivo -, projectam, no plano normativo, novas linhas de tensão, as quais, se para o legislador ordinário implicam a (re)definição de equilíbrios no interior do espaço de discricionariedade e conformação que lhe é próprio, já no plano constitucional não poderão deixar de inscrever-se, conforme se verá, no âmbito da chamada teoria dos deveres de protecção.

4 - Assim perspectivado o problema, temos para nós que o sistema de direito ordinário delineado pela Lei 16/2007 não fornece uma protecção suficiente da vida intra-uterina nas primeiras dez semanas de gestação, situando-se por isso aquém do limite colocado pela proibição do défice de protecção, o que acarreta a sua

desconformidade constitucional.

A demonstração deste ponto implica que nos detenhamos um pouco na caracterização do regime que, em substituição da punibilidade de tal comportamento, o legislador estabeleceu para a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando realizada, por opção desta, nas primeiras dez

semanas de gravidez.

Assentando na não intervenção do direito penal como mecanismo de protecção até às dez semanas de gestação, o modelo legal sub judicio procede da ideia de que, não obstante o efeito de indiciação produzido pela especial relevância axiológica do bem jusfundamental a proteger, a indagação a que obriga o critério da necessidade e as representações a que a mesma conduz retiram evidência à necessidade de intervenção do direito penal, abrindo espaço à afirmação de meios alternativos de tutela. O que resultaria da circunstância de, no caso de interrupção voluntária da gravidez medicamente realizada, estar em causa proteger a existência embrionária não de arbitrárias intervenções de qualquer terceiro, mas do específico e particular perigo de lesão que, surgindo no contexto de uma gravidez indesejada, procede da iniciativa da própria gestante. Neste contexto, justificar-se-ia o recurso a eventuais soluções de tutela preventiva, assentes numa estrutura comunicacional de maior proximidade, designadamente as que se baseiam num princípio de auto-contenção do direito penal através de um procedimento orientado jusfundamentalmente, abalando-se a apriorística consideração de que, tratando-se do favorecimento espontâneo de comportamentos compatíveis com a prossecução da gravidez, só a punição penal poderia assegurar o mínimo de tutela constitucionalmente imposto.

4.1 - Em concreto, avança-se um regime legal em que a exclusão da punibilidade da interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua orientação, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, quando realizada por opção e mediante o conhecimento da mulher grávida, nas primeiras dez semanas de gravidez, depende de a sua realização ter tido lugar, no mínimo, três dias depois da realização de uma primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso a informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável.

Informação que abrange as condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher, as condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e da maternidade, e a disponibilidade, durante o período de reflexão, quer de acompanhamento psicológico, quer de acompanhamento por serviço social.

Situada assim no interior de um sistema de prazos com aconselhamento obrigatório de tipo meramente informativo, a protecção da vida intra-uterina tida em vista pelo dispositivo legal resultante da admissão da possibilidade de algumas das informações prestadas à gestante e a comunicação dos eventuais apoios por parte do Estado virem a concorrer para a manutenção da gravidez e consequente preservação do embrião ou do feto radica no estatuto da consulta que obrigatoriamente precede a eventual concretização da interrupção, em especial no procedimento que a informa. Assume-se que o procedimento desta forma instituído conduzirá ao aumento da probabilidade de um resultado jusfundamentalmente conforme, sendo susceptível de provocar um incremento das possibilidades de obtenção de um resultado favorável à prossecução da

gravidez.

Só que o sistema instituído pelo diploma, na sua concreta modelação, não consente que se presuma a ampliação da probabilidade de um resultado compatível com a preservação da vida intra-uterina, pelo menos na medida necessária para ter por cumprido em suficiente medida o imperativo constitucional de tutela. Tal resulta desde logo do elenco de informações a prestar à gestante no âmbito da consulta. Na verdade, as primeiras - relativas às condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da grávida - traduzem-se em mera reprodução, em sede de interrupção voluntária da gravidez, do regime do consentimento esclarecido para acto médico que vigora no direito da medicina em geral, sendo aplicável a toda e qualquer intervenção e tratamento médico-cirúrgico. O que se reforça com a compreensão densificada do conteúdo do dever de esclarecimento hoje perfilhada na doutrina, em especial pela ideia, consensual aí, de que só é eficaz o consentimento assente em esclarecimento bastante e este pressupõe a representação correcta de todas as circunstâncias relevantes para a motivação da decisão de aceitação ou recusa de uma intervenção do género da indicada (cf. Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, p.

396). Pelo que se impõe a conclusão de que, mesmo considerando as explicitações relativas à indicação do tempo da gravidez e das consequências para a saúde física e psíquica da mulher (constantes, respectivamente das alíneas a) e c) da Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho), continua a não ser detectável no regime jurídico sob avaliação qualquer elemento superlativamente diferenciador da disciplina que vigora no âmbito das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos em geral, designadamente um elemento que, procedendo da consideração da presença do embrião ou do feto, se apresente funcionalmente apto ao cumprimento do mandado jurídico-constitucional de

tutela.

E o mesmo se diga das restantes indicações que segundo o regime legal vigente, deverão ser proporcionadas à grávida, e que vão desde o conhecimento das condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e da maternidade, à disponibilidade, durante o período de reflexão, quer de acompanhamento psicológico quer de acompanhamento por técnico de serviço social.

Embora se não possa excluir, num juízo de prognose, a eventualidade de certas destas informações, ou mesmo todas no seu conjunto, poderem contribuir, designadamente em associação com outras circunstâncias particularizáveis em cada caso, para o enfraquecimento - ou até mesmo para a anulação - de uma predisposição originária favorável à interrupção da gravidez, o certo é que, de um ponto de vista teleológico e dogmático, do que se trata aqui é de elementos ou factores externos à modelação da decisão que se coloca perante as alternativas representadas pela prossecução da gravidez e a concretização da interrupção e, portanto, cuja possível influência naquele primeiro sentido é de tal modo longínqua, contingente e difusa que não chega para exprimir um qualquer consistente nível de comprometimento do sistema de direito ordinário na realização do mandamento jurídico-constitucional de protecção da vida

intra-uterina.

4. 2. Adiante-se que se o padrão seguido na modelação do conteúdo da consulta traduz uma opção normativa insuficiente para poder reportar o procedimento instituído pela Lei 16/2007 ao cumprimento do dever constitucional de protecção da vida intra-uterina, o critério em que assentam as regras definidas para a determinação de quem nela pode participar compromete positivamente tal possibilidade.

Da norma do artigo 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007 - cuja constitucionalidade, de resto, vem autonomamente impugnada - resulta que os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objecção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de reflexão.

Qualquer tentativa de captação da finalidade prosseguida pelo legislador através deste preceito jurídico, singularmente ou no contexto da unidade do conjunto em que se insere, conduzirá sem particular esforço interpretativo à conclusão de que a exclusão da possibilidade de participação de médicos objectores de consciência, quer na consulta que precede a concretização da interrupção da gravidez, quer no acompanhamento que a gestante possa entretanto solicitar - o que tenderá, de resto, a suceder em casos de angústia, dúvida ou hesitação - é reveladora da intenção, não apenas de isentar o procedimento previsto de qualquer propósito de influenciar a grávida no sentido da prossecução da gravidez, como de assegurar que essa influência não possa vir a ser exercida no interior do sistema e através dele, designadamente por iniciativa daqueles que o legislador presume que em tal sentido operariam, não obstante as limitações que de tal ponto de vista não deixariam de colocar-se, pelo menos no que diz respeito à consulta, em face da previsão do art.2.º, n.º 2, da Lei 16/2007.

Perante o conjunto das soluções possíveis em matéria de determinação dos profissionais habilitados para participar nos momentos de interacção do sistema com a grávida - que vão desde a exclusão dos médicos disponíveis para a realização de interrupções voluntárias da gravidez até ao afastamento dos médicos objectores de consciência, passando pela admissão da possibilidade de participação de uns e outros, isolada ou conjuntamente, - a opção normativa expressa no artigo 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007 traduz um critério valorativo assente na ideia de que a grávida deve ser institucionalmente preservada de qualquer forma de ingerência no desenvolvimento do seu processo decisório, em especial daquela que serviria ao favorecimento de uma decisão compatível com a preservação da vida embrionária ou fetal.

Conforme referido foi já, em se tratando da verificação da viabilidade constitucional de uma determinado sistema de direito ordinário na perspectiva da proibição de insuficiência, ao juízo de constitucionalidade interessará sobretudo o índice de protecção que o mesmo é susceptível de gerar no seu funcionamento global e conjunto.

Ora, esta norma, ao excluir a intervenção dos médicos objectores de consciência em todos os momentos em que a mesma poderia ter formalmente lugar, permite verificar que o procedimento a que a anterior proibição penal cedeu lugar, não só não contem qualquer elemento suficientemente orientado para o favorecimento de decisões espontâneas favoráveis à prossecução da gravidez, como apresenta opções que, por serem apenas racionalmente compreensíveis numa lógica assente na ideia de que o Estado deverá abster-se de fornecer à gestante qualquer indicação de valor e actuar como se o resultado da respectiva decisão final lhe fosse naquele momento indiferente, se apresentam positivamente disfuncionais na perspectiva do cumprimento do mandado jurídico-constitucional de protecção da vida intra-uterina.

5 - No segundo caso por excesso, no primeiro por defeito, as opções normativas expressas nos artigos 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007, exercem uma influência decisiva na modelação do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez, convertendo-o num sistema de regras e princípios onde, não apenas se não inclui, como parece não ter lugar, qualquer mecanismo de conformação de condutas orientado e apto ao favorecimento de um modelo comportamental compatível com a preservação

da vida intra-uterina.

O ponto de referência em que, por efeito de tais normas, o sistema é colocado é, por isso, não apenas o de um espaço livre do direito penal (Rechsfrei Raum) mas o de um espaço vazio de direito (Rechstleer Raum) - um espaço em que não existe qualquer indicação normativa e o acto de interromper a gravidez fica subtraído a toda a forma de

influência e orientação pelo Direito.

Num sistema normativo em que a auto-contenção do direito penal se faça pela via da imposição de um procedimento orientado jusfundamentalmente, o direito penal, embora não disciplinando, na realidade orienta porque a exclusão da ameaça da pena tem como indispensável condição o acatamento e a observância de um iter procedimental apto a fomentar a conformidade material do resultado com um padrão de validade retirado do bem jurídico tutelado constitucionalmente.

Quando assim suceda, o direito penal continuará a exercer, embora à distância, um efeito de protecção, ainda que por uma via alternativa à sancionatória. O seu desaparecimento de cena não é por isso total.

Em casos como este, os instrumentos de direito ordinário, no seu conjunto e combinada actuação, continuarão a influenciar regulativamente a realidade no sentido da intenção implícita no mandado jurídico-constitucional de tutela.

O sistema instituído pela Lei 16/2007, ao exprimir uma renúncia pura e simples ao direito penal como instrumento de tutela da vida intra-uterina até às dez semanas de gestação fora do âmbito das fattispecies justificativas, quando a interrupção resulte da opção livre da mulher e tenha lugar em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, sem colocar como condição para essa retirada qualquer via funcionalmente orientada e apta à realização daquele fim, suprimiu integralmente o anterior meio de protecção sem o substituir por uma verdadeira alternativa de tutela.

Uma vez que o mecanismo procedimental que comprime o direito penal e o faz recuar se apresenta destituído, quer na racionalidade das opções que encerra, quer na intencionalidade que globalmente exprime, de qualquer aptidão para tornar sociologicamente válido um modelo comportamental compatível com a salvaguarda da vida intra-uterina, a disciplina jurídica instituída pela Lei 16/2007 vem situar a interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de gestação numa zona onde o Direito se abstém de fornecer critérios valorativos de acção e se coíbe de conformar

normativamente as escolhas.

Pela vacuidade que deste ponto de vista encerra, a solução normativa procedente das normas dos artigos.1.º, 2.º, n.º 2 e 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007 acaba por consentir aproximações à chamada zona de normalidade social, o que coloca o regime num ponto manifestamente aquém do limite de suportabilidade em que se traduz o princípio da proibição do défice de protecção ou da insuficiência.

Vistas as coisas pelo lado da gestante, tal conclusão, ao invés de se enfraquecer, ganha

acrescida evidência.

Se se partir do pressuposto de que a solução que toda a norma exprime traduz a ponderação e a valoração dos diversos interesses que através dela se regulam, ver-se-á que ao da preservação da vida intra-uterina só poderá contrapor-se, numa leitura conflitual do problema, o da defesa da autodeterminação da mulher grávida e do livre

desenvolvimento da sua personalidade.

Ora, um dos indicadores da possível violação da proibição da insuficiência no cumprimento dos imperativos jurídico-constitucionais de tutela consiste na sobre-avaliação, no âmbito da solução normativa dispensada, dos interesses e bens jurídicos contrapostos (neste sentido, Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado,

Almedina, 2003, ps.123 e 138-139).

Ao isentar o procedimento que substituiu o anterior tipo incriminador do propósito de influenciar a grávida no sentido da preservação da vida intra-uterina e cuidando expressamente da exclusão da possibilidade de nesse sentido poder vir a ser exercida qualquer forma de ingerência no respectivo processo decisório, a solução normativa enunciada nos artigos 1.º, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei 16/2007 conduz à conclusão de que, mesmo que se tratasse aí de dar expressão à tutela da autodeterminação da gestante e do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade, estes estariam em

qualquer caso sobre-avaliados.

E isto porque a tutela da autodeterminação e do direito da mulher grávida ao livre desenvolvimento da sua personalidade não carece que se vá ao ponto de preservar a gestante do confronto institucional com orientações de desincentivo à concretização da predisposição por si originariamente manifestada, nem de excluir a vinculação do respectivo processo decisório a indicações valorativas de correcção da acção.

A tutela da autodeterminação e do direito da mulher grávida ao livre desenvolvimento da sua personalidade não implica, em síntese, a sua radicalizada compreensão no sentido de algo próximo do right to be left alone proclamado pela Supreme Court norte-americana que, tal como este, conduza o Estado a deixar a grávida sozinha, isolada na privacidade da sua escolha, quando aquela, na realidade, o não está mais.

Também deste ponto de vista - que é o da alteridade - a modelação do sistema instituído pela Lei 16/2007, revela-se manifestamente lacunosa.

Com efeito, se tal modelação se inscreve, como à partida se viu já que pode, no espaço de liberdade de conformação cometido ao legislador ordinário, ela acaba por dar expressão somente a parte dos factores que convergem no contexto de reflexão que àquele se coloca - os que provêm da ciência do direito penal -, desconsiderando aqueles que, procedendo dos dados fornecidos pela biologia e pela genética, apontam para uma compreensão relacional do fenómeno na base da consideração do feto como

o outro (cf. supra n.º 3.1).

6 - Diga-se ainda que se a intenção de realizar o imperativo jurídico constitucional de protecção da vida intra-uterina não é percepcionável a partir do conjunto normativo em que o legislador consubstanciou o modelo, alternativo ao da punibilidade da interrupção, que daquele complexo legal se depreende, o mesmo se diga, por maioria de razão, dos outros lugares do sistema convocados pelo acórdão como podendo ainda contribuir para o cumprimento daquele imperativo constitucional de tutela.

Diga-se desde logo que tal mobilização só teria cabimento se, contra o que acima se sustentou, o bem jurídico-constitucional aqui em análise fosse de natureza difusa, transindividual ou metaindividual, reportando-se a uma pluralidade indeterminada ou

indeterminável de sujeitos ou portadores.

Simplesmente, na presença da vida intra-uterina não é mais possível representar dessa forma o bem jurídico a proteger de forma efectiva nem aceitar o carácter efectivamente protector de qualquer instrumento de direito ordinário que não tenha no seu horizonte cada uma das vidas iniciadas já. Nestes termos não é possível acompanhar o acórdão quando reconhece eficácia protectora a instrumentos do direito ordinário pensados para evitar gravidezes indesejadas ou para desenvolver o apoio social à maternidade.

Uma vez que nenhum destes instrumentos jurídicos é dotado de eficiente aptidão protectiva da vida humana intra-uterina no momento em que o problema do aborto se coloca não é o facto de serem múltiplos nem o resultado da sua soma que permitirá atingir o nível de protecção susceptível de cumprir o mandamento constitucional.

7 - Em face do que concluímos que, consistindo qualquer sistema numa combinação de elementos organizada de modo a que o complexo daí resultante exprima, no seu conjunto, um conteúdo significante unitário, proporcionado este pela ideia de um fim, aquele que procede à definição do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez de acordo com uma fórmula assente na exclusão da proibição penal até às dez semanas de gestação mediante a realização prévia de uma consulta de tipo meramente informativo na qual se encontram impedidos de participar os médicos objectores de consciência é, com clareza, um sistema em cuja unidade se não inscreve qualquer mecanismo orientado e apto a incrementar um modelo comportamental favorável à prossecução da gravidez em termos suficientemente compatíveis com a realização do mandado jurídico-constitucional de tutela da vida intra-uterina.

O conteúdo significante que essa unidade exprime dá inversamente conta de um pensamento que atribuí ao Estado uma posição de neutralidade valorativa nos momentos de interacção formal com a grávida e, no limite, abstém o Direito, enquanto instrumento de conformação normativa da vida em sociedade, de definir um padrão de dever-ser no âmbito das "interacções humanamente significativas" em que se inscreve o problema da interrupção voluntária da gravidez.

Tanto basta, pois, para, entendendo desrespeitada a proibição da insuficiência no cumprimento dos deveres de protecção da vida intra-uterina, ter votado a inconstitucionalidade, por violação do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, da solução normativa, contida nos artigos 142.º, n.º 1, al.e), e n.º 4, al.b), do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei 16/2007, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, ambos da Lei 16/2007, consistente na exclusão da punibilidade da realização, por opção da mulher, da interrupção da gravidez durante as primeiras dez semanas de gestação, mediante a realização prévia de uma consulta informativa na qual se encontram impedidos de participar, assim como no acompanhamento a que haja lugar durante o período de reflexão, os médicos que invoquem objecção de consciência.

Rui Manuel Moura Ramos

203045205

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/03/26/plain-271839.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/271839.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1913-07-07 - Lei 16 - Ministério da Marinha - Majoria General da Armada - 1.ª Repartição - 3.ª Secção

    Regula a promoção dos cabos timoneiros-sinaleiros ao pôsto de segundo contramestre. (Lei n.º 16)

  • Tem documento Em vigor 1915-08-20 - Lei 350 - Presidência da República

    Fixa o subsídio anual do Presidente da República.

  • Tem documento Em vigor 1916-06-13 - Lei 595 - Ministério do Interior - Direcção Geral da Administração Política e Civil

    Autoriza a Câmara Municipal de Condeixa a vender alguns terrenos baldios e a aplicar o respectivo produto à construção dos paços do concelho.

  • Tem documento Em vigor 1917-03-20 - Lei 660 - Ministério de Instrução Pública - Secretaria Geral

    Autoriza o Conselho de Administração do Instituto Superior de Agronomia a contratar com a Caixa Geral de Depósitos um empréstimo de 70000$00 para conclusão do edifício destinado à instalação do referido Instituto.

  • Tem documento Em vigor 1920-07-02 - Lei 998 - Ministério das Finanças - Secretaria Geral

    Autoriza a Sociedade Jardim Zoológico e de Aclimação em Portugal a expropriar, por utilidade pública e urgente, a quinta das Águas Boas e a parte da quinta das Laranjeiras.

  • Tem documento Em vigor 1920-11-18 - Lei 1069 - Ministério do Trabalho - 11.ª Repartição da Direcção Geral da Contabilidade Pública

    Abre um crédito extraordinário de 300000$00 para pagamento de despesas respeitantes à extinção de epidemias e de encargos relativos a medidas preventivas de saúde pública.

  • Tem documento Em vigor 1978-10-13 - Lei 65/78 - Assembleia da República

    Aprova, para ratificação, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também designada Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, concluída em Roma, em 4 de Novembro de 1950, cujo texto em francês e respectiva tradução portuguesa acompanham o presente diploma. São, igualmente, aprovados para ratificação: - o Protocolo nº1 Adicional à Convenção, concluído em Paris, em 20 de Março de 1952; - o Protocolo nº2, que confere ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem competência (...)

  • Tem documento Em vigor 1984-05-11 - Lei 6/84 - Assembleia da República

    Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (exclusão de ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez).

  • Tem documento Em vigor 1990-08-24 - Lei 48/90 - Assembleia da República

    Estabelece a lei de bases da saúde.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 1996-08-31 - Lei 40/96 - Assembleia da República

    Regula a audição dos órgãos de Governo próprio das Regiões Autónomas, nos termos do nº 2 do art. 231º da Constituição da República Portuguesa. Define as situações de audição, sua forma, competência, informação, prazo, alterações, bem como o seu incumprimento e obrigatoriedade de referência em actos normativos.

  • Tem documento Em vigor 1997-07-30 - Lei 90/97 - Assembleia da República

    Altera os prazos de exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-04-03 - Lei 15-A/98 - Assembleia da República

    Aprova a Lei Orgânica do Regime do Referendo.

  • Tem documento Em vigor 1998-04-18 - Acórdão 288/98 - Tribunal Constitucional

    Procede à fiscalização preventiva da constitucionalidade e legalidade e apreciação dos requisitos relativos ao universo eleitoral da prosposta de referendo constante da Resolução da Assembleia da República n.º 19/98, de 19 de Março (apresenta ao Presidente da República uma proposta de realização de referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez). (Proc. nº 340/98)

  • Tem documento Em vigor 1999-08-21 - Lei 130/99 - Assembleia da República

    Revê o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, e procede à sua republicação.

  • Não tem documento Em vigor 2001-12-31 - ACÓRDÃO 529/2001 - TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do trecho do capítulo IV (2.ª opção), do documento anexo à Lei n.º 30-B/2000, de 29 de Dezembro (Grandes Opções do Plano para 2001), relativo às Regiões Autónomas, na medida da sua incidência na Região Autónoma da Madeira, e dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º da Lei n.º 30-C/2000, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2001), também na medida da sua incidência na Região Autónoma da Madeira .

  • Tem documento Em vigor 2002-11-08 - Lei 27/2002 - Assembleia da República

    Aprova o novo regime jurídico da gestão hospitalar.

  • Tem documento Em vigor 2003-04-07 - Decreto Legislativo Regional 4/2003/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa Regional

    Aprova o Estatuto do Sistema Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 2003-05-27 - Decreto Legislativo Regional 9/2003/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa Regional

    Cria o Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira com a natureza de entidade pública empresarial, cujo regime e orgânica são publicados em anexo. Extingue o Centro Hospitalar do Funchal e o Centro Regional de Saúde naquela Região.

  • Tem documento Em vigor 2003-08-02 - Decreto-Lei 176/2003 - Ministério da Segurança Social e do Trabalho

    Institui o abono de família para crianças e jovens e define a protecção na eventualidade de encargos familiares no âmbito do subsistema de protecção familiar.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-24 - Lei Constitucional 1/2004 - Assembleia da República

    Altera a Constituição da República Portuguesa (Sexta revisão constitucional). Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2005-11-16 - Acórdão 578/2005 - Tribunal Constitucional

    Considera que a proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 52-A/2005, de 29 de Setembro, violou a proibição de renovação de propostas de referendo constante do n.º 10 do artigo 115.º da Constituição e do n.º 3 do artigo 36.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo.

  • Tem documento Em vigor 2006-04-28 - Lei 16/2006 - Assembleia da República

    Cria o Centro para a Promoção e Valorização dos Bordados de Castelo Branco, pessoa colectiva de direito público, na tutela do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, com atribuições de certificação dos "Bordados de Castelo Branco" e que integrará a Comissão Nacional para a Promoção dos Ofícios e das Microempresas Artesanais.

  • Tem documento Em vigor 2006-10-20 - Resolução da Assembleia da República 54-A/2006 - Assembleia da República

    Propõe a realização de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas primeiras 10 semanas.

  • Tem documento Em vigor 2006-11-20 - Acórdão 617/2006 - Tribunal Constitucional

    Decide, ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposposto na Resolução da Assembleia da República, n.º 54-A/2006 de 20 de Outubro, que propõe a realização de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas primeiras 10 semanas.

  • Tem documento Em vigor 2007-02-05 - Lei 7/2007 - Assembleia da República

    Cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização.

  • Tem documento Em vigor 2007-04-17 - Lei 16/2007 - Assembleia da República

    Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez .

  • Tem documento Em vigor 2007-06-21 - Portaria 741-A/2007 - Ministério da Saúde

    Estabelece as medidas a adoptar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos com vista à realização da interrupção da gravidez nas situações previstas no artigo 142.º do Código Penal.

  • Tem documento Em vigor 2007-12-03 - Acórdão 551/2007 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, da norma constante do artigo 41.º, n.º 1, da Lei n.º 53/2006, de 7 de Dezembro, que estabelece o regime comum de mobilidade entre serviços dos funcionários e agentes da Administração Pública, visando o seu aproveitamento racional, na parte em que se refere à administração regional. (Processo nº 266/07).

  • Tem documento Em vigor 2008-06-25 - Decreto-Lei 105/2008 - Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social

    Institui medidas sociais de reforço da protecção social na maternidade, paternidade e adopção integradas no âmbito do subsistema de solidariedade e altera o Decreto-Lei n.º 154/88, de 29 de Abril, que define a protecção na maternidade, paternidade e na adopção.

  • Tem documento Em vigor 2008-08-18 - Acórdão do Tribunal Constitucional 402/2008 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se no sentido da inconstitucionalidade ou da não inconstitucionalidade de várias normas do Decreto n.º 217/X, da Assembleia da República, que aprovou a 3.ª revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.

  • Tem documento Em vigor 2008-09-17 - Acórdão do Tribunal Constitucional 423/2008 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade [fiscalização preventiva] da norma constante do n.º 1 do artigo 2.º do decreto que «[a]dapta à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, que aprova normas para a protecção dos cidadãos da exposição involuntária ao fumo do tabaco e medidas de redução da procura relacionadas com a dependência e a cessação do seu consumo», aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em 18 de Junho de 2008, para vigorar como decreto legislativo (...)

  • Tem documento Em vigor 2008-12-18 - Decreto-Lei 245/2008 - Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social

    Estabelece o rendimento anual relevante a considerar no domínio das actividades dos trabalhadores independentes, para efeitos de atribuição, suspensão, cessação e fixação do montante das prestações do sistema de segurança social, e procede à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 176/2003, de 2 de Agosto e republica-o na redacção actual.

  • Tem documento Em vigor 2009-04-09 - Decreto-Lei 91/2009 - Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social

    Estabelece o regime jurídico de protecção social na parentalidade no âmbito do sistema previdencial e no subsistema de solidariedade.

  • Tem documento Em vigor 2009-08-06 - Lei 60/2009 - Assembleia da República

    Estabelece a aplicação da educação sexual nos estabelecimentos do ensino básico e do ensino secundário.

  • Tem documento Em vigor 2009-08-28 - Decreto-Lei 201/2009 - Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social

    Altera (quarta alteração) o Decreto-Lei n.º 176/2003, de 2 de Agosto, que instituiu o abono de família para crianças e jovens e definiu a protecção na eventualidade de encargos familiares no âmbito do subsistema de protecção familiar, instituindo uma nova prestação denominada bolsa de estudo.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2021-07-23 - Acórdão do Tribunal Constitucional 474/2021 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto (Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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