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Acórdão 74/84, de 11 de Setembro

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Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º da postura da Câmara Municipal de Vila do Conde sobre propaganda de carácter político-partidário, constante do edital de 30 de Abril de 1979, por violação dos artigos 37.º, n.os 1 e 2, 18.º, n.os 2 e 3, e 167.º, alínea c), da Constituição (este último preceito na redacção de 1976).

Texto do documento

Acórdão 74/84

Processo 72/83

Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - O Exmo. Provedor de Justiça veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281.º da Constituição, que, com força obrigatória geral, se declare a inconstitucionalidade do artigo 2.º da postura da Câmara Municipal de Vila do Conde sobre propaganda de carácter político-partidário aprovada na reunião de 21 de Fevereiro de 1978 e publicada no edital de 30 de Abril de 1979, postura que fora também aprovada pela respectiva Assembleia Municipal.

Alegou, para fundamentar o seu pedido, que o referido artigo 2.º da mencionada postura, ao submeter ao regime de autorização administrativa prévia a afixação fora dos locais especialmente destinados para o efeito de propaganda de carácter político-partidário, reconheceu às autoridades municipais competência para limitar a liberdade de expressão de pensamento através de actos administrativos, com o que violou o n.º 2 do artigo 37.º, o n.º 3 do artigo 18.º, e bem assim o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição. Pois - prosseguiu - é de limitação (restrição) que, verdadeiramente, aqui se trata, já que se não vêem razões de natureza estética capazes de justificar tão severo tratamento, aplicável apenas à propaganda de carácter político-partidário, deixando de fora toda a restante publicidade, inclusive a de cariz político não partidário. Ora - disse ainda -, a restrição da liberdade de expressão e informação, consignada no artigo 37.º da Constituição, que engloba o direito de afixar propaganda de carácter político-partidário, só pode ser feita de modo geral e abstracto e há-de constar de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo, precedido de autorização legislativa.

2 - Notificado o Exmo. Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde para se pronunciar, nada veio dizer.

3 - Cumpre, pois, decidir as questões seguintes:

a) Se o referido artigo 2.º da mencionada postura viola o artigo 167.º, alínea c), da Constituição, na redacção de 1976, por haver invadido a reserva de competência da Assembleia da República;

b) Se viola o artigo 37.º, n.os 1 e 2, da lei fundamental, na redacção de 1982, por ter vindo restringir, com desrespeito pelo disposto no artigo 18.º, n.os 2 e 3, a liberdade de expressão.

Vejamos então.

II - Fundamentação

1 - Comecemos pela questão da inconstitucionalidade orgânica.

O artigo 2.º, aqui posto em causa, reza assim:

Na freguesia de Vila do Conde, fora dos locais definidos no artigo anterior, fica toda a propaganda de carácter político-partidário sujeita a prévia autorização da Câmara Municipal, que deverá ser solicitada com, pelo menos, 3 dias de antecedência.

Os locais destinados na freguesia de Vila do Conde à afixação de propaganda de carácter político-partidário são os mencionados no artigo 1.º da mesma postura.

A afixação de propaganda político-partidária nos referidos locais far-se-á em blocos cilíndricos, com cerca de 1,80 m de altura, e ou em placas assinaladas com as iniciais CMVC, aí colocadas - preceitua o artigo 1.º Quando feita nos edifícios das sedes dos partidos políticos, a referida propaganda não está sujeita à autorização prévia exigida pelo artigo 2.º - diz o artigo 3.º As transgressões a esta postura são puníveis com multa de 5000$00, agravada para o dobro em caso de reincidência - prescreve o artigo 4.º 2 - A mencionada postura foi editada no uso da faculdade concedida pela alínea d) do n.º 1 do artigo 48.º da Lei 79/77, de 25 de Outubro (atribuições das autarquias e competências dos respectivos órgãos), e para regulamentar a propaganda de carácter político-partidário. [Note-se que aquele artigo 48.º da Lei 79/77 foi, entretanto, revogado pelo artigo 97.º, n.º 1, do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, que, tendo vindo rever aquela lei, contém doutrina idêntica à da alínea d) do n.º 1 do mencionado artigo 48.º no artigo 39.º, n.º 2, alínea a).] Teve a postura em consideração «a necesidade de preservar a paisagem muito característica da zona urbana de Vila do Conde, nomeadamente a sua zona monu- Teve a postura em consideração «a necessidade de preticados em certas zonas do País acarretam o desprestígio das instituições democráticas» e considerou que «a propaganda desregrada origina a adulteração de panorâmicas e o comprometimento do ambiente», como se pode ler na respectiva justificação.

A postura que nos ocupa veio, pois, disciplinar a propaganda de carácter político-partidário na freguesia de Vila do Conde: depois de no seu artigo 1.º designar os locais que ficam destinados à afixação dessa propaganda, no seu artigo 2.º - única norma aqui sub iudicio - submeteu a mesma a prévia autorização da Câmara sempre que ela houver que ser feita fora daqueles locais.

Surge então uma primeira questão: a de saber se a Assembleia Municipal teria ou não competência para editar o dispositivo aqui questionado. O que se reconduz a estoutra interrogativa: se - e em que medida - os órgãos autárquicos podem intervir na área dos direitos, liberdades e garantias.

É o que vai ver-se.

3 - As autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio: o artigo 242.º da Constituição, na redacção de 1976, estabelecia, com efeito: «A assembleia das autarquias locais terá competência regulamentar própria nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar.» (A redacção actual deste artigo 242.º é a seguinte: «As autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio [...]».) É um poder regulamentar, cuja medida a lei há-de determinar: «As atribuições [...] das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei [...]» - dispunha o artigo 239.º da Constituição, na redacção de 1976, e continua a dispor após a revisão de 1982. Pode, por isso, respeitar à totalidade dos interesses próprios das respectivas populações ou apenas a algumas das atribuições das autarquias. O que o citado artigo 242.º tão-só exige é que «as autarquias possuam uma 'reserva de autonomia'» (A. Queiró, «Teoria dos regulamentos», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, p. 15, nota 12).

Ora, a Lei 79/77, de 25 de Outubro, já citada - diploma que à data da emissão daquela postura se achava em vigor -, veio dizer que uma das competências da assembleia municipal é, justamente, «aprovar [...] posturas e regulamentos» [artigo 48.º, n.º 1, alínea d)], sem limitar as matérias sobre que os mesmos podem versar. [Essa mesma disciplina contém-se hoje no artigo 39.º, n.º 2, alínea a), do já citado Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março.] Por outra parte, os municípios têm por atribuição velar pela elegância e salubridade das edificações confinantes com ruas e lugares públicos (artigo 2.º da Lei 79/77, de 25 de Outubro - hoje o artigo 2.º do Decreto-Lei 100/84 -, conjugados com o artigo 50.º, n.º 5, do Código Administrativo), pela conservação de monumentos destinados ao embelezamento das povoações e à consagração de pessoas ilustres ou de acontecimentos memoráveis do concelho (citados artigos 2.º, conjugados com o artigo 48.º, n.º 9, do Código Administrativo), e bem assim pela limpeza das povoações e asseio exterior dos edifícios (citados artigos 2.º, conjugados com o artigo 46.º, n.º 12, do Código Administrativo).

Vale isto por dizer que nessas matérias, agindo, designadamente, em defesa de valores estéticos e paisagísticos, visando preservar a beleza, as panorâmicas ou a salubridade dos locais, a assembleia municipal pode editar - para nos expressarmos com A. Queiró, Revista ..., cit., p. 16 - «disciplina normativa inicial com eficácia regulamentar» (regulamentos autónomos).

Trata-se de uma actividade regulamentar, que se enquadra de modo particular nas suas atribuições de polícia, com a qual se visa disciplinar a livre acção dos cidadãos, por forma a que ela possa desenvolver-se harmonicamente, com respeito pelas exigências da vida em sociedade, designadamente pelos direitos dos outros cidadãos.

Esse poder regulamentar tem, porém, como limite o domínio reservado à lei. Aí só é permitida a intervenção do legislador, ou a do Governo, quando munido de autorização legislativa. O regulamento, designadamente o dos órgãos autárquicos, só é aí permitido quando for de simples execução.

Decorre daí que «a disciplina integral destas matérias, salvo pormenores de execução, sempre susceptíveis de serem versados em regulamentos [...], cabe, em princípio, à lei, excepcionalmente a decretos-leis, e nunca a regulamento» [A. Queiró, «Teoria dos regulamentos», in Revista ..., cit., p. 18;

v., em sentido idêntico, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 335; v.

também parecer da Comissão Constitucional n.º 9/77, in Pareceres ..., vol. I, pp. 173 e segs.; diferentemente J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Coimbra, 1983, p. 325, que entende que a lei (formal) pode facultar às autarquias locais a intervenção regulamentar no domínio reservado, designadamente no dos direitos, liberdades e garantias, posição que, de resto, já fora defendida por A. Queiró, lições de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1976, p. 433].

«A reserva de lei constitui [...] limite do poder regulamentar: a Administração não poderá editar regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa reserva. Os únicos regulamentos que nas matérias reservadas à lei se admitem são os regulamentos de execução. O Executivo, neste domínio, só pode editar normas inovadoras, sob a forma de decretos-leis, mediante autorização da Assembleia da República.» - escreve ainda A. Queiró, Revista ..., cit., p. 17.

4 - No presente caso, a norma em análise - a do artigo 2.º da mencionada postura - veio, como se disse, dispor sobre a afixação de propaganda de carácter político-partidário.

A Câmara Municipal de Vila do Conde, ao editá-la, interveio, pois - adianta-se já -, num domínio por inteiro reservado à lei. Concretamente, no domínio dos direitos, liberdades e garantias, a que se referia o artigo 167.º, alínea c), da Constituição, na redacção de 1976 - preceito em vigor à data da sua emissão e, por isso mesmo, aqui aplicável -, ao preceituar:

É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre [...]:

...

c) Direitos, liberdades e garantias.

Isto se afirma, independentemente da questão de saber qual seja o exacto alcance do regime de protecção especial dos «direitos, liberdades e garantias» enumerados no título II da parte I da Constituição, que se contém, designadamente, nos artigos 18.º a 22.º, 168.º, n.º 1, alínea b) [antes 167.º, alínea c)], 272.º, n.º 3, e 290.º, alínea d).

De facto, ainda quando deva entender-se que esse regime especialmente protectivo apenas deve valer por inteiro ali onde sejam reconhecíveis «radicais subjectivos de defesa e de delimitação perante o Estado» (cf. parecer da Comissão Constitucional n.º 18/78, in Pareceres ..., vol. VI, p. 18), por só aí o conteúdo dos direitos vir determinado nos preceitos constitucionais que os prevêem, sem necessidade de qualquer interpositio legislatoris para lhes definir esse conteúdo (v. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 76-77 e 195-210), ainda assim sempre haverá que reconhecer que a liberdade de expressão prevista no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição se situa naquele domínio especialmente protegido; situa-se lá, seguramente, para o efeito que agora interessa considerar, que é o de se acolher à sombra da reserva de lei. E isso mesmo quando - como é o caso - essa liberdade de expressão haja de ser considerada sob a perspectiva do exercício da actividade de propaganda político-partidária e, assim, dirigida «a concorrer democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder político» (cf. artigo 51.º, n.º 1). E situa-se lá também, sem dúvida, para o outro efeito que adiante se considerará: o do artigo 18.º Ora, a liberdade de expressão, que o artigo 37.º, n.º 1, garante, compreende o direito de manifestar o próprio pensamento (aspecto substantivo) e bem assim o de livre utilização dos meios através dos quais esse pensamento pode ser difundido (aspecto instrumental), designadamente para o efeito de fazer propaganda de carácter político-partidário.

Com efeito, esse artigo 37.º, n.º 1, dispunha, na redacção de 1976 - e dispõe na actual:

Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio [...] 5 - Mas, sendo isto assim, versando a norma que vem posta em causa matéria que pertence a um domínio a que poderá chamar-se «legislativo por natureza» (v. A. Queiró, Lições ..., cit., p. 425), o qual - como se disse - se encontra a coberto da reserva de lei, por isso que o regulamento não possa ir aí além de simples «pormenores de execução», então o que há que ver é se ela se contém (ou não) dentro desses limites.

Vejamos então.

A propaganda política a fazer nos períodos das campanhas eleitorais acha-se regulada na legislação eleitoral. Nela se dispõe, v. g. no artigo 56.º, n.º 1, do Decreto-Lei 319-A/76, de 3 de Maio, que «as juntas de freguesia deverão estabelecer [...] espaços especiais em local certo destinado à afixação de cartazes, fotografias, jornais murais e avisos» (v. disciplina idêntica no artigo 66.º da Lei 14/79, de 16 de Maio, no artigo 55.º do Decreto-Lei 701-B/76, de 29 de Setembro, no artigo 66.º do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto, e no artigo 59.º da Lei 40/80, de 8 de Agosto).

Aquela afixação não depende de autorização nem de comunicação às autoridades administrativas - diz o artigo 66.º da Lei 14/79, de 16 de Maio.

O mesmo artigo 66.º da Lei 14/79, de 16 de Maio, preceitua também que em monumentos nacionais, nos edifícios religiosos, e bem assim nos edifícios que sejam sede de órgãos de soberania ou de regiões autónomas, tal como nos sinais de trânsito e nas placas de sinalização rodoviária, no interior de quaisquer repartições ou edifícios públicos ou franqueados ao público, incluindo estabelecimentos comerciais, não é permitida a afixação de cartazes nem a realização de inscrições ou pinturas murais (citado artigo 66.º, n.º 4).

A proibição de propaganda político-partidária, durante ou fora dos períodos de campanha eleitoral, feita nos sinais de trânsito e nas placas de sinalização rodoviária resulta, aliás, do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea b), e 12.º do Decreto-Lei 13/71, de 13 de Janeiro, do preceituado no artigo 6.º, n.º 3, do Código da Estrada e do que estabelecem os artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 42466, de 22 de Agosto de 1959.

De facto, daí decorre não ser permitida a colocação de quaisquer inscrições, de tabuletas, anúncios ou outros objectos de publicidade, com ou sem carácter comercial, em lugares visíveis das estradas nacionais ou municipais e das vias rápidas urbanas sempre que possa haver prejuízo para a segurança da circulação, designadamente por prejudicarem a visibilidade (quanto à publicidade comercial nas áreas urbanas, v. Decreto-Lei 637/76, de 29 de Julho).

Os monumentos nacionais e os edifícios públicos acham-se protegidos também para os períodos que não sejam de campanha eleitoral. Com efeito, a propaganda político-partidária - e só esta aqui interessa - não pode fazer-se afixando anúncios nos imóveis classificados (monumentos nacionais ou imóveis de propriedade particular: artigos 24.º e 25.º do Decreto 20985, de 7 de Março de 1932), nem em locais onde possa prejudicar-se o seu aspecto ou a sua observação, nem tão-pouco em edifícios públicos. E isto sob pena de multa (v. artigo 46.º e §§ 1.º e 2.º do citado Decreto 20985).

Quando se trate de edifícios particulares, a «validade» da afixação de propaganda político-partidária em períodos de campanha eleitoral depende, em última análise, da não oposição do dono do prédio, como decorre do que preceitua o artigo 139.º, n.º 2, da Lei 14/79, de 16 de Maio. Aí se declaram, com efeito, não puníveis o roubo, o furto e o dano de material de propaganda eleitoral quando o autor da conduta for o dono da casa ou do estabelecimento onde essa propaganda fora feita (v. também o artigo 115.º, n.º 3, do Decreto-Lei 701-B/76, de 29 de Setembro). Coisa que, de resto, bem se compreende.

De facto, a liberdade de expressão não é um direito absoluto nem ilimitado.

Não abrange, por isso, todas as situações, formas ou modos pensáveis de exercício. Tendo de conviver com outros direitos constitucionais, há-de sofrer desde logo os limites que decorrem das necessidades impostas por uma convivência social ordenada.

A ideia de limite vai, assim, implicada no próprio conceito de direito, decorrendo das necessidades que as várias esferas jurídicas têm de se limitar reciprocamente, a fim de poderem coexistir no interior do respectivo ordenamento jurídico (v., sobre limites imanentes dos direitos fundamentais, J.

C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 193 e segs.).

E, assim, como a Constituição também garante o direito à propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1), poder-se-á desde logo dizer, com a Comissão Constitucional (v. parecer 27/82, in Pareceres ..., vol. XX, pp. 237 e segs.), que nos edifícios particulares «a afixação de propaganda depende sempre do consentimento do dono», sendo esse «um limite imanente ao direito de liberdade de expressão, emergente da necessidade de preservar o núcleo essencial [daquele] direito de propriedade».

6 - Há então que dar resposta à questão formulada no sentido de saber se a norma constante do artigo 2.º da mencionada postura contém simples pormenores de execução da disciplina legal da propaganda de carácter político-partidário ou se, ao invés, vai além disso.

Essa resposta é, naturalmente, no sentido de que os órgãos municipais autárquicos de Vila do Conde, ao intervirem no domínio da liberdade de expressão de pensamento - e justamente sujeitando a prévia autorização da Câmara Municipal a propaganda de carácter político-partidário sempre que ela seja feita fora dos locais indicados no artigo 1.º da postura -, não se limitaram a regular pormenores de execução.

Na verdade, face a um quadro legal como o que acaba de se descrever quanto à propaganda político-partidária - única que aqui interessa considerar -, não será preciso grande esforço para concluir que o artigo 2.º, que vem posto em causa, não é uma norma regulamentar executiva, nem disso se aproxima.

Desde logo, se ele houvesse de ser interpretado à letra, bastaria ter presente que ali onde a lei contém proibições (v. g. artigo 66.º da Lei 14/79, artigos 10.º, n.º 1, alínea b), e 12.º do Decreto-Lei 13/71 e artigo 46.º, §§ 1.º e 2.º, do Decreto 20985) ele abria a possibilidade de fazer propaganda político-partidária mediante prévia autorização camarária. Isto já assim não será, porém, quando tal preceito seja entendido sem prejuízo daquelas proibições legais, ou seja por forma a não abrir caminho à concessão de autorizações para fazer aquela propaganda em locais onde outras normas legais (todas elas, de resto, de grau hierárquico superior) a proíbam:

monumentos nacionais e outros imóveis de interesse público, locais onde possa ficar prejudicado o aspecto ou a observação daqueles, edifícios públicos, sinais de trânsito, placas de sinalização rodoviária.

É certo que a letra do preceito não ressalva aqueles imóveis e locais, mas também não afasta a possibilidade dessa exclusão. Depois, uma tal interpretação, que o teor verbal da norma em causa suporta perfeitamente, é a única razoável, já que não faria sentido que ela pudesse ser entendida em termos de possibilitar a concessão de autorizações para, por exemplo, fazer colagens nos sinais ou placas de trânsito ou pinturas ou inscrições na parede de um qualquer monumento nacional ou edifício público.

Assim entendida a norma, não contém ela qualquer disciplina que respeite à liberdade de expressão, na modalidade aqui considerada de propaganda político-partidária que, eventualmente, pensasse fazer-se em tais edifícios ou locais.

Por isso, não será aí que os órgãos autárquicos terão intervindo no domínio dos direitos, liberdades e garantias.

A norma considerada veio, porém, tornar dependente de autorização camarária a propaganda político-partidária que se pretenda fazer em locais diversos daqueles (v. g. edifícios particulares e locais que não os indicados no artigo 1.º da postura e que não sejam dos absolutamente interditos nos termos apontados).

Ora, isto é disciplina que de nenhum modo pode ser considerada como tendo natureza regulamentar executiva.

7 - Não se objecte que, tornando-se necessário disciplinar a propaganda político-partidária, por a legislação que existe ser insuficiente, e não havendo o legislador intervindo, sem esta intervenção dos órgãos municipais autárquicos achava-se a autarquia desmunida para a defesa dos valores estéticos, paisagísticos e de salubridade, cuja preservação lhe está cometida.

Uma argumentação deste tipo não é probante, pois, como escreve J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 326, «a ausência de intervenção do legislador não transfere [...] para o poder administrativo uma competêncai normativa para concretizar, regulamentar ou restringir os preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias nem lhe deixa uma competência lata para limitar as liberdades de acordo com as exigências do interesse público (da ordem pública)».

Sendo assim, pois, o referido artigo 2.º viola o artigo 167.º, alínea c), da Constituição, na redacção de 1976. É, por isso, inconstitucional, uma vez que os órgãos municipais autárquicos de Vila do Conde não tinham competência para o editar e, fazendo-o, invadiram a área de competência da Assembleia da República - o domínio da reserva de lei.

8 - Passemos então à questão da inconstitucionalidade material.

Aqui interessa começar por indagar se o referido artigo 2.º veio restringir a liberdade de expressão de pensamento consagrada no artigo 37.º da Constituição. Pergunta-se, pois: o dito artigo 2.º contém simples regulamentação da liberdade de expressão ou, ao invés, veio introduzir-lhe uma autêntica restrição? Vejamos.

9 - O conceito de regulamentação reconduz-se, ao fim e ao cabo, à ideia de introdução e acomodação dos direitos na vida jurídica, tornando fácil o seu exercício, possibilitando a sua adaptação à vida real, por forma que os preceitos constitucionais que os prevêem sejam verdadeiramente eficazes.

É que - escreve J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 227 - «os preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias, embora sejam directamente aplicáveis, não podem desprezar ou, por vezes, prescindir das vantagens práticas resultantes da sua organização e adaptação à vida real. O exercício dos direitos fundamentais no espaço, no tempo e no modo só será muitas vezes (inteiramente) eficaz se houver medidas concretas que, desenvolvendo a norma constitucional, disciplinem o uso e previnam o conflito ou proíbam o abuso e a violação dos direitos. Essa necessidade prática (que não se deve confundir com uma necessidade jurídica) é particularmente notória quando se trate de efectivar direitos em que predomina o aspecto institucional, mas pode ser referida à generalidade dos direitos fundamentais».

E logo a seguir: «Nestes casos, as leis são leis regula(menta)doras (leis de organização), que organizam e disciplinam a 'boa execução' dos preceitos constitucionais e que, com essa finalidade, poderão, quando muito, estabelecer condicionamentos ao exercício dos direitos. A sua intenção não é restringir, mas, pelo contrário, assegurar praticamente e fortalecer o direito fundamental constitucionalmente declarado.» (Sublinhados do original.) Este poder «regulamentar» do legislador - quer lhe seja expressamente atribuído pelo texto constitucional, quer o seja tão-só implicitamente - é um poder vinculado. Ele «poderá, é claro, optar entre diversas soluções organizatórias, mas não lhe é possível afectar ou modificar o conteúdo do direito fundamental, sob pena de se inverter a ordem constitucional das coisas» (J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., loc. cit.).

10 - Quando, pois, o legislador atinge ou afecta o conteúdo do direito fundamental, então é de uma restrição que se trata. Ainda quando não visasse especialmente esse objectivo.

As restrições de direitos são compressões desses direitos (v. A. Queiró e A.

Barbosa de Melo, «A liberdade de empresa e a Constituição», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XIV, p. 236).

A restrição tanto pode consubstanciar-se numa proibição como na imposição de um dever [sobre este ponto específico, v. a discussão havida na Assembleia Constituinte (acta da 35.ª sessão, de 22 de Agosto de 1975, a partir da p. 974 e segs.)].

11 - No presente caso, os órgãos municipais autárquicos vieram estabelecer, na norma posta em causa, que certos modos de exercício da liberdade de expressão de pensamento - justamente os relativos à actividade de propaganda político-partidária, quando feita fora dos locais a tanto destinados pelo artigo 1.º da postura - ficam dependentes de autorização camarária.

Mas desta maneira veio-se restringir a liberdade de expressão de pensamento, consagrada no artigo 37.º, n.º 1.

A exigência de uma autorização administrativa para o exercício desse direito vai além do simples condicionamento, que seria ainda - ao menos para certa doutrina (v. supra, n.º 9) - suportável pelo conceito de regulamentação do direito. O que se faz é já comprimir o conteúdo desse mesmo direito.

Esta restrição, quando vista apenas como acantonamento espacial da propaganda político-partidária, poderá, eventualmente, ser proporcionada à «necessidade de preservar a paisagem muito característica da zona urbana de Vila do Conde, nomeadamente a sua zona monumental», e bem assim à ideia de combater os excessos que têm sido praticados nessa matéria por todo o País, tal como ao propósito de atalhar a «uma propaganda desregrada» que «origina a adulteração de panorâmicas e o comprometimento do ambiente», como se acentua na postura.

Só que era preciso - para além de outros requisitos, que aqui não interessa considerar - que a restrição constasse de lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada (artigo 18.º, n.º 2), o que não acontece, como já se viu, como essencial era também que ela tivesse expressa autorização constitucional (artigo 18.º, n.º 2) e ainda que revestisse carácter geral e abstracto (artigo 18.º, n.º 3) e se limitasse ao necessário para salvaguardar aqueles valores estéticos, paisagísticos e de salubridade (artigo 18.º, n.º 2).

Pois bem: independentemente da questão de saber se são ou não admissíveis poderes de restrição implícitos, no presente caso não se vê que exista autorização constitucional para impor a restrição de que aqui se trata.

É que a exigência de uma autorização prévia retira logo à restrição todo o carácter de generalidade, uma vez que a mesma terá ou não lugar conforme a autorização que a condiciona seja concedida ou denegada. Ao que acresce que, não se achando sequer a Câmara vinculada a qualquer fim determinado de ordem pública para recusar a autorização, actuando no exercício de um poder discricionário e podendo, assim, consentir ou impedir, caso a caso, a manifestação do pensamento, então, com uma possibilidade de restrição assim, abre-se a porta ao arbítrio, indo-se muito além de qualquer ideia de necessidade.

Ora, os n.os 2 e 3 do artigo 18.º contêm uma proibição qualificada de arbítrio (ver J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 240).

A restrição é, assim, constitucionalmente ilegítima, havendo, pois, violação do artigo 37.º, n.º 1, da Constituição.

12 - Não se diga, ex adverso, que não houve, no caso, o propósito de restringir o direito à liberdade de expressão de pensamento, sim e tão-só o de criar meios que permitam à autarquia desincumbir-se das suas obrigações no tocante à defesa daqueles valores paisagísticos, estéticos e de salubridade.

É que «leis» restritivas não são apenas aquelas que se dirijam especialmente à restrição dos direitos, liberdades e garantias; são-no antes - repetindo uma ideia já antes exposta - todas as que afectem o conteúdo desses direitos, liberdades e garantias.

13 - A autorização camarária aqui questionada, porque prévia e com os efeitos apontados, viola também o artigo 37.º, n.º 2, que preceitua que o «exercício [da liberdade de informação] não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura».

Pois é, de facto, ao conceito de censura prévia que, ao cabo e ao resto, se reconduz um sistema que condiciona, em certos casos, a propaganda político-partidária à obtenção prévia de uma autorização camarária (v. um caso paralelo na sentença n.º 21 do Tribunal Constitucional italiano, referida por Emílio Nazo, La Costituzione italiana ..., Pem, Roma, p. 425).

III - Decisão

Face ao exposto, acorda-se em declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º da postura da Câmara Municipal de Vila do Conde sobre propaganda de carácter político-partidário, constante do edital de 30 de Abril de 1979, por violação dos artigos 37.º, n.os 1 e 2, 18.º, n.os 2 e 3, e 167.º, alínea c), da Constituição (este último preceito na redacção de 1976).

Lisboa, 10 de Julho de 1984. - Messias Bento (relator) - Martins da Fonseca - Vital Moreira - Joaquim Costa Aroso - José Manuel Cardoso da Costa - Luís Nunes de Almeida - Raul Mateus - Mário de Brito - Antero Alves Monteiro Dinis - José Magalhães Godinho.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1984/09/11/plain-21123.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/21123.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1932-03-07 - Decreto 20985 - Ministério da Instrução Pública - Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes - Repartição do Ensino Superior e das Belas Artes

    Regula a guarda e protecção das obras de arte e peças arqueológicas, cometendo ao Ministério da Instrução Pública, por intermédio da Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas Artes, a coordenação dos trabalhos de carácter artístico dos serviços públicos e a guarda e conservação do património artístico e arqueológico do país. Institui o Conselho Superior de Belas Artes, estabelecendo a sua composição e competências. Regula igualmente a classificação de imóveis e a concessão do título de 'monumento nacion (...)

  • Tem documento Em vigor 1959-08-22 - Decreto-Lei 42466 - Ministérios das Obras Públicas e das Comunicações

    Modifica as disposições relativas à colocação de quaisquer inscrições, tabuletas, anúncios ou outros objectos de publicidade, com ou sem carácter comercial, em lugares visíveis das estradas nacionais ou municipais e das vias rápidas urbanas.

  • Tem documento Em vigor 1971-01-23 - Decreto-Lei 13/71 - Ministério das Obras Públicas - Gabinete do Ministro

    Insere disposições relativas à simplificação dos serviços da Junta Autónoma de Estradas, alterando assim o Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei nº 2037 de 19 de Agosto de 1949.

  • Tem documento Em vigor 1976-05-03 - Decreto-Lei 319-A/76 - Ministério da Administração Interna

    Regulamenta a eleição do Presidente da República. Dispõe sobre capacidade eleitoral, sistema eleitoral, organização do processo eleitoral, campanha eleitoral, eleição (sufrágio, apuramento e contencioso eleitoral) e ilícito eleitoral.

  • Tem documento Em vigor 1976-07-29 - Decreto-Lei 637/76 - Presidência do Conselho de Ministros

    Estabelece os princípios controladores da actividade publicitária.

  • Tem documento Em vigor 1976-09-29 - Decreto-Lei 701-B/76 - Ministério da Administração Interna

    Estabelece o regime eleitoral para a eleição dos órgãos das autarquias locais, nomeadamente: capacidade eleitoral, organização do processo eleitoral, campanha eleitoral, eleição, ilícito eleitoral.

  • Tem documento Em vigor 1977-10-25 - Lei 79/77 - Assembleia da República

    Define as atribuições e competências das autarquias locais.

  • Tem documento Em vigor 1979-05-16 - Lei 14/79 - Assembleia da República

    Aprova a lei eleitoral para a Assembleia da República.

  • Tem documento Em vigor 1980-08-08 - Lei 40/80 - Assembleia da República

    Aprova a Lei Eleitoral para a Assembleia Regional da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 1980-08-08 - Decreto-Lei 267/80 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Administração Interna

    Aprova a Lei Eleitoral para a Assembleia Regional dos Açores.

  • Tem documento Em vigor 1984-03-29 - Decreto-Lei 100/84 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Administração Interna

    Revê a Lei n.º 79/77, de 25 de Outubro, que define as atribuições das autarquias locais e competências dos respectivos órgãos.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1989-01-21 - Acórdão 307/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DAS NORMAS DA DELIBERAÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA DE 870112 RESULTANTE DA APROVAÇÃO DA PROPOSTA NUMERO 238/86, E PUBLICADA NO DIÁRIO MUNICIPAL ANO LII, NUMERO 15081, DE 870304, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 115, NUMERO 7 E 168, NUMERO 1, ALÍNEA B) DA CRP.

  • Tem documento Em vigor 1996-03-28 - Acórdão 185/96 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 3 do artigo 44.º do Regulamento Policial do Distrito de Faro, homologado por despacho ministerial de 5 de Fevereiro de 1993 e publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Fevereiro de 1993.

  • Tem documento Em vigor 2001-04-06 - Acórdão 83/2001 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de várias normas de diversos regulamentos de polícia distritais (Castelo Branco, Viseu, Braga, Aveiro, Viana do Castelo, Coimbra e Portalegre), por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 168º da Constituição (na numeração então vigente). (Processos n.os 524/00 a 530/00).

  • Tem documento Em vigor 2006-05-19 - Acórdão 258/2006 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade [apreciação preventiva] de várias normas do decreto legislativo regional que define o regime de afixação ou inscrição de mensagens de publicidade e propaganda na proximidade das estradas regionais e nos aglomerados urbanos, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em 7 de Março de 2006.(Processo nº 333/06).

  • Tem documento Em vigor 2007-01-04 - Acórdão 666/2006 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do despacho do Ministro da Saúde n.º 2837/2004, de 8 de Janeiro [regula o acesso dos delegados de informação médica aos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS), incluindo hospitais S. A. e extensões dos centros de saúde].

  • Tem documento Em vigor 2021-07-23 - Acórdão do Tribunal Constitucional 474/2021 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto (Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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