Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
Em 8 de Janeiro de 2003, Professo - Promoção da Formação e Ensino, Lda., interpôs, no Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de Estado da Administração Educativa, de 17 de Julho de 2002, que aplicara à recorrente, a título de sanção disciplinar - e ao abrigo do disposto no artigo 99.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 553/80 (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo), bem como do disposto nos artigos 1.º, alínea b) e 3.º, alíneas c) e g) da Portaria 207/98, de 28 de Março - a pena de multa de oito salários mínimos nacionais, ordenando igualmente a reposição da importância de 75.972,18 euros.
Por Acórdão de 14 de Dezembro de 2005, o Supremo Tribunal Administrativo, considerando improcedentes todas as conclusões das alegações da recorrente, negou provimento ao recurso.
Inconformada, a recorrente intentou recurso para o Pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, entre o mais sustentando nas conclusões das alegações de recurso:
I. O Dec.-Lei 553/80 de 21 de Novembro (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo) é originariamente inconstitucional, na medida em que:
i) sem credencial parlamentar, regulou aspectos essenciais de uma liberdade abrangida pelo regime de direitos, liberdades e garantias - a liberdade de criação de escolas, enquanto dimensão específica da liberdade de ensino e de educação ("liberdade de aprender e ensinar") e como dimensão da liberdade de iniciativa económica privada - e, consequentemente, pela reserva de lei, dando assim corpo a uma inconstitucionalidade orgânica;
ii) remeteu para Portaria do Governo a regulação de matérias que, na versão da CRP em vigor em 1980, já integravam a reserva relativa da Assembleia da República: o Governo não estava autorizado pela Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo (Lei 9/79) a legislar sobre matéria de instituição de ilícitos e sanções por infracções ao regime do ensino particular e cooperativo.
II. Após a revisão constitucional de 1982, agudizou-se a inconstitucionalidade do Dec.-Lei 553/80, em matéria de sanções a aplicar às escolas particulares e cooperativas, em especial o seu artigo 99.º, passando então a existir também uma inconstitucionalidade superveniente (inconstitucionalidade material e orgânica), na medida em que, em violação do n.º 5 do artigo 115.º da CRP (hoje n.º 6 do artigo 112.º da CRP), passou a remeter em branco toda a matéria sancionatória para um acto normativo de natureza regulamentar, operando a deslegalização de uma matéria que, pela sua natureza, é de reserva legislativa;
III. A Portaria 207/98, publicada já após a revisão constitucional de 1982, constitui um regulamento integrador de natureza substantiva e procedimental, em violação do citado n.º 5 do artigo 115.º da CRP;
IV. A inconstitucionalidade do artigo 99.º-4 do Decreto-Lei 553/80 provoca, por si só, a ilegalidade da Portaria 207/98 (inconstitucionalidade da lei habilitante);
V. A Portaria 207/98 enferma de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que se ocupa de matérias que, nos termos da CRP, são da competência exclusiva da Assembleia da República: regime de punição de infracções disciplinares e do respectivo processo.
VI. Tal Portaria já não podia sequer "legislar" sobre o regime de punição de infracções disciplinares e respectivo processo, por se tratar de matéria da competência exclusiva da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, d) da CRP).
VII. Daí que a sanção disciplinar aplicada com fundamento no Dec.-Lei 553/80 e Portaria 207/98, bem como as consequências financeiras dela decorrentes, estão feridas de violação da lei (por ausência de suporte legal válido) e de inconstitucionalidade, material e orgânica, sendo inevitável a sua anulação.
Por Acórdão de 23 de Janeiro de 2007, foi negado provimento ao recurso jurisdicional, tendo o Pleno da 1.ª Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo considerado, no ponto 5.1. da inerente fundamentação, o seguinte:
No que respeita às questões apreciadas pelo acórdão recorrido, continua desde logo a recorrente a persistir na questão da inconstitucionalidade das normas que permitem a aplicação de sanções e ordem de devolução das quantias recebidas no âmbito do contrato que a recorrente celebrou com os serviços da entidade recorrida e cuja inconstitucionalidade configura, como se entendeu no Ac. recorrido, bem como no acórdão do Pleno de 22.06.2006, essencialmente em três dimensões:
« - o Decreto-Lei 553/80, de 21 de Novembro, é organicamente inconstitucional por não se basear em autorização legislativa, que a Recorrente entende necessária para legislar sobre a instituição de ilícitos contraordenacionais e respectivas sanções;
- subsidiariamente, defende que, após a revisão constitucional de 1982, aquele Decreto-Lei 553/80, em especial o seu artigo 99.º, enferma de inconstitucionalidade superveniente, material e orgânica, por afrontar o n.º 5 do artigo 115.º da CRP, na redacção de 1982 (a que corresponde, actualmente, o n.º 6 do artigo 112.º);
- a Portaria 207/98, de 28 de Março, emitida já depois da revisão constitucional da 1982, constitui um regulamento integrador de natureza substantiva e procedimental em violação do citado n.º 5 do art 115.º da CRP, na redacção de 1982 violando ainda o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, por estabelecer normas sobre o regime de punição de infracções disciplinares e respectivo processo, que é matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.»
Perante a verificação das alegadas inconstitucionalidades a sanção disciplinar que lhe foi aplicada careceria, no entender da recorrente, de "suporte legal válido".
A alegada inconstitucionalidade foi decidida pelo acórdão recorrido (aderindo a anterior jurisprudência do STA, nomeadamente ao decidido no ac. de 11.05.04, rec. 2054 (posteriormente confirmado por unanimidade pelo Ac. do Pleno de 22.06.2006), nos seguintes termos:
"O despacho recorrido contém dois comandos distintos (quanto ao conteúdo decisório, incluindo a natureza da matéria sobre que versam) ainda que funcionalmente ligados.
Na primeira parte, o despacho aplica a sanção administrativa revista no artigo 99.º do DL n.º 553/80, de 21.11 e no n.º 1. alínea b) da Portaria 207/98, de 28.3, com fundamento no não cumprimento do estipulado no contrato de associação celebrado entre o Estado e o Instituto Vasco da Gama: na segunda, ordena a reposição nos Cofres do Estado de determinada quantia e a devolução de outras [...], como obrigação que resultaria daquela aplicação indevida dos apoios financeiros.
Ou seja, conforme se refere no citado acórdão de 11.05.04 (rec. 2054/02), «as duas decisões, ainda que partindo do mesmo facto de incumprimento do contrato de associação, retiram dele diferentes consequências, uma sancionatória e outra constitutiva de deveres de prestar.
Os vícios que vêm apontados aos dois actos assentam em diferentes questões jurídicas: os apontados ao primeiro acto são atinentes a questões do direito sancionatório e os vícios apontados ao segundo assentam em questões da disciplina dos contratos administrativos de associação, pelo que teremos de os analisar em separado quanto a cada um dos pertinentes conteúdos decisórios».
(...)
As questões de inconstitucionalidade:
Estas questões foram profusa e correctamente analisadas no aludido acórdão de 11.5.04, pelo que, merecendo a nossa concordância transcreve-se o que a tal respeito se ponderou no referido aresto:
"As questões de inconstitucionalidade suscitadas respeitam à aplicação de uma sanção, pelo que é apenas nesta perspectiva que as passamos a analisar.
A precedência desta questão em relação às demais resulta do facto de a sua eventual procedência deixar o acto sem suporte legal válido, pelo que uma anulação com esse fundamento esgotaria desde logo a utilidade do recurso, uma vez que o acto assim anulado seria irrepetível no enquadramento em que foi praticado ou noutro homólogo.
[...]
Vejamos se procedem os fundamentos acima condensados.
A Lei 9/79 de 19 de Março estabeleceu as bases gerais do Ensino Particular e Cooperativo e previu o respectivo desenvolvimento de modo que o n.º 5 do artigo 8.º incumbiu o Governo de estabelecer a regulamentação dos contratos de concessão de apoios e subsídios e a respectiva fiscalização.
O DL 553/80, de 21.11, veio definir, em desenvolvimento daquela Lei um quadro orientador, autodenominado Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, maleável, sem a preocupação de exaustividade prescritiva, que remete para legislação complementar toda a matéria susceptível de regulamentação especial (referências retiradas do texto do respectivo preâmbulo).
Este Decreto-Lei tal como a Lei que regulamenta assentam no princípio da liberdade de aprender e ensinar compreendendo a liberdade dos pais de escolher e orientar o processo educativo dos filhos - artigo 2.º, n.º 1.
Para assegurar estas liberdades e direitos o diploma reconhece o dever do Estado de apoiar a família nas despesas de educação dos filhos instituindo para o efeito subsídios.
Uma das formas de subsidiar a educação que foi adoptada por este diploma é o apoio financeiro às escolas particulares através de diversos tipos de contratos, entre eles o contrato de associação que tem por fim possibilitar a frequência das escolas particulares nas mesmas condições de gratuitidade do ensino público.
Estes contratos concedem às escolas além dos benefícios fiscais e financeiros gerais um subsídio por aluno igual ao custo de manutenção e funcionamento por aluno das escolas públicas de nível e grau equivalente (artigo 15.º).
Em contrapartida, os contratos de associação obrigam as escolas nos termos do artigo 16.º a efectivar o ensino em termos de custos de acordo com o orçamento anual de gestão a apresentar e para controlo desta execução obriga à apresentação de balancetes trimestrais e o balanço e contas anuais ao Ministério da Educação (al. e) e f).
Além destas obrigações as escolas particulares estão adstritas ao dever de "responder pela correcta aplicação dos subsídios, créditos e outros apoios concedidos - artigo 41.º n.º 1 alínea d).
E, nos termos do artigo 99.º n.º 1:
"Às entidades proprietárias de escolas particulares que violem o disposto neste decreto lei podem ser aplicadas pelo Ministério da Educação... as seguintes sanções, de acordo com a natureza e gravidade da violação:
a) Advertência;
b) Multa de valor entre dois e vinte salários mínimos nacionais;
c) Encerramento definitivo."
E o n.º 4 do mesmo artigo dispõe:
"A cominação de sanções será objecto de regulamentação específica, a definir por Portaria dos Ministros das Finanças e do Plano e da Educação e Ciência, ouvido o Conselho Consultiva do Ensino Particular e Cooperativo."
Por seu lado o artigo 101.º n.º 2 estatui que:
"As questões relativas a subsídios ou outros benefícios de natureza financeira ou fiscal serão decididas por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do Plano e da Educação e Ciência."
A regulamentação específica para a cominação de sanções, prevista pelo n.º 4 do artigo 99.º viria a surgir com a publicação da Portaria 207/98, de 28 de Março, aprovada pelos Ministros das Finanças e da Educação.
Nela se determina sob o n.º 3:
"A pena de multa de valor entre 2 e 20 salários mínimos nacionais é aplicada às pessoas singulares ou colectivas titulares de estabelecimentos de ensino particular e cooperativo que violem disposições legais, nomeadamente quando:
a) Violem o estabelecido no artigo 94.º do Estatuto.
[...]
g) Apliquem indevidamente os apoios financeiros concedidos."
À data da emissão da Portaria estava em vigor o CPA que prevê em termos gerais, para todo e qualquer acto administrativo, na alínea e) do artigo 180.º o poder da Administração de aplicar as sanções previstas para a inexecução ou indevida aplicação dos apoios concedidos através do contrato.
Portanto, é neste contexto que importa averiguar das inconstitucionalidades apontadas pela recorrente.
Desde logo importa saber se a autorização parlamentar para o Governo regular as matérias em causa era necessária, e sendo-o em que termos deveria ser concedida e só por fim determinar se o DL 553/80 estava ou não autorizado a legislar sobre os ilícitos e as correspondentes sanções por incumprimento das normas que regulam o ensino particular e cooperativo.
A Lei 9/79 estabeleceu as bases gerais do Ensino Particular e Cooperativo e o n.º 5 do artigo 8.º incumbiu o Governo de estabelecer a regulamentação dos contratos de concessão de apoios e subsídios e a respectiva fiscalização através da sua competência legislativa normal por decreto lei, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 201.º, da versão original da Constituição em vigor à data do DL 553/80 de fazer o desenvolvimento dos princípios e bases gerais do regime contido naquela Lei e circunscrevendo-se ao âmbito desta.
A Lei de Bases não é uma lei de autorização para o Governo legislar em matérias reservadas ao Parlamento, mas uma lei com um conteúdo regulador de enquadramento geral que por si só e com os limites resultantes de não extravasar do conteúdo da Lei permitem e legitimam o desenvolvimento do respectivo regime.
Nestas circunstâncias deve considerar-se a previsão das sanções pelo DL 553/80 dentro do limite do regime jurídico da Lei 9/79 que contém as bases gerais, como sendo normas indispensáveis à garantia de efectividade do regime jurídico, sabido o papel central que o aspecto sancionatório desempenha.
Assim, quando uma lei estabelece um regime geral através de princípios e bases tem de entender-se que o poder de estabelecer o regime sancionatório correspondente está circunscrito no âmbito desses princípios e bases, como elemento indispensável à respectiva aplicação e, assim, o Governo pode legislar sobre estes aspectos desde que o regime sancionatório adoptado em concreto não esteja sujeito a outras limitações, como sucede com as reservas de competência absoluta ou relativa do Parlamento, as quais não podem ser superadas pela existência de uma Lei de Bases sobre outra matéria, mesmo quando o Governo legislar no respectivo desenvolvimento.
No caso, estamos perante um regime contratual em que as sanções por inexecução são sanções administrativas previstas pelo Decreto lei de desenvolvimento da Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo e também pelo artigo 180.º alínea e) do CPA, disposição que permite sustentar em geral a exercício deste poder pela Administração, nos termos que vamos adiante analisar.
O facto de as sanções contratuais terem sido equiparadas a sanções disciplinares para efeitos de procedimento não altera a respectiva natureza de sanção contratual, tudo sem prejuízo de seguirem o mesmo regime de procedimento e até da respectiva prescrição bem como a mesmo regime procedimental das sanções disciplinares, e sem perder as suas características substantivas diferentes.
Neste contexto importa realçar que a limitação de reserva de lei parlamentar sobre o regime geral das infracções disciplinares e do ilícito de mera ordenação social, hoje existente, surgiu posteriormente à emissão do DL 553/80, com a revisão constitucional de 1982, pelo que aquele Decreto-Lei podia prever sanções do tipo que enuncia no artigo 99.º sem ofensa das disposições constitucionais sobre a hierarquia das fontes de direito.
De qualquer modo quando foi emitida a Portaria que especificou as sanções em causa estavam aprovadas as bases gerais do regime das contra ordenações bem como o regime geral das infracções disciplinares, com respeito da reserva parlamentar, pelo que também nesta perspectiva não existiam obstáculos de natureza constitucional a que o DL 553/80 e a Portaria 207/98 estatuíssem sobre o regime sancionatório das infracções às normas daquele decreto-lei.
Certo é também que o Decreto-Lei 553/80 não tinha de cumprir regras constitucionais como a posteriormente introduzida como n.º 5 do artigo 115.º da Const. de 82, inexistentes à data da sua emissão, nem as limitações orgânico-formais na sua génese têm de ser avaliadas em face de norma constitucional introduzida em revisão posterior.
Portanto, uma primeira conclusão se impõe: - O DL 553/80 não necessitava de autorização Parlamentar para dispor como fez sobre matéria de ilícito e seu sancionamento por desrespeito das normas que regulam os estabelecimentos particulares e cooperativos em desenvolvimento das bases gerais do sistema de ensino.
Mas, a conclusão do processo legislativo previsto naquele Decreto-Lei que consistiu em prever as sanções aplicáveis sem regular especificadamente as situações a que seriam concretamente aplicadas tem de se confrontar com a alteração constitucional superveniente uma vez que se tratou de um processo legislativo reconhecidamente incompleto e que prosseguiu com a emissão de uma Portaria autorizada expressamente pelo Decreto Lei no domínio da Constituição de 76, depois emitida no domínio de aplicação do texto constitucional revisto em 1982, que proibiu qualquer lei de conferir a acto de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos (n.º 5 do artigo 115.º da Const. na revisão de 1982).
Ou seja, relativamente à inconstitucionalidade que vem assacada à Portaria, verificamos que esta veio retomar a regulação de situações previstas no Decreto-Lei 553/80, pelo enunciado das sanções aplicáveis e pela regra de que as sanções seriam, cada uma de per si, aplicáveis a situações a especificar de acordo com a natureza e a gravidade dessas situações.
A Portaria regulamentou uma lei em sentido formal (decreto lei) que lhe concedeu validamente, como vimos, a competência para efectuar aquela regulamentação.
Desta perspectiva não haveria que retornar à questão de determinar se o DL 553/80 podia validamente conferir a uma Portaria o poder de regular aquelas situações, assente como está que o fez validamente em face dos condicionamentos existentes no momento em que o Decreto-Lei foi emitido.
Já da perspectiva do processo legislativo incompleto que o próprio DL 553/80 reconhece, poderia exigir-se a conformação das normas materiais prevendo as especificidades do sancionamento com a nova exigência constitucional se houvesse de entender-se que aquelas especificações eram necessariamente matéria de reserva de lei em sentido formal, ainda que reserva de decreto-lei do Governo e por isso mesmo não poderiam ser objecto de diploma regulamentar.
Mas, esta averiguação é inútil porque não existem matérias reservadas à competência legislativa do Governo (salvo quanto à sua própria orgânica), nem reserva material de regulamento, no direito constitucional português.
Esta constatação, porém, não esgota o problema, porque o n.º 5 do artigo 115.º da Const. na redacção de 1982 não contém apenas um parâmetro formal de controle do grau normativo, antes significa e tem sido entendido (na falta de parâmetros de delimitação de matérias a tratar por lei ou regulamento) como constituindo uma limitação material, com o sentido de exigência de a lei em sentido formal ter de atingir um grau de densidade reguladora ou um patamar de concretização tal que não permita transferir para diplomas de hierarquia inferior a sua interpretação e integração.
Ou seja, este critério material abriga-nos a retornar ao próprio DL 553/80 para aferir se ele se coaduna com esta exigência material, uma vez que não tendo de submeter-se aos critérios formais da lei constitucional nova, tem no entanto de se conformar com os novos critérios e exigências materiais sob pena de inconstitucionalidade.
Importa pois decidir sobre se a regulação constante do DL 553/80 ainda que incompleta, estará incompleta do ponto de vista das necessidades sentidas para a respectiva aplicação, ou se está incompleta do ponto de vista da densidade reguladora que a lei tem de atingir de modo a satisfazer o requisito de não deixar a outro instrumento normativo de grau inferior espaços cujo preenchimento haja de qualificar-se como interpretação e integração da lei.
Esta análise terá de ter em mente que a exigência de densificação reguladora não pode ir ao ponto de retirar espaço aos regulamentos de aplicação.
Apesar das dificuldades do problema teórico, o que nos interessa sobretudo é encontrar a solução concreta para o que ocorre em relação a este DL 553/80.
Ora, nele prevêem-se os ilícitos a que vai aplicar-se, que são as violações de disposições contidas naquele decreto-lei, prevêem-se os respectivos agentes, e distingue-se entre as violações de deveres pelas escolas particulares e pelos directores pedagógicos, enunciam-se as sanções aplicáveis e estabelece-se o critério geral de que tais sanções serão especificamente aplicáveis de acordo com a natureza e gravidade das situações, sendo essas especificações a regular por Portaria. Está, portanto, estabelecido na lei uma escala graduada por gravidade das sanções a aplicar tal como está enunciado o critério de que aquela escala crescente de gravidade de penas terá correspondência na previsão de situações concretas de aplicabilidade igualmente escolhidas pela sua natureza e por forma crescente de gravidade.
As sanções e os critérios foram inteiramente expressos no decreto-lei e as situações de violação foram definidas e completamente limitadas pelas próprias normas do mesmo diploma, ficando apenas sem especificação os agrupamentos relacionais entre cada grupo de violações e a sanção.
Ora, se nos interrogarmos à luz da concepção da teoria geral do direito sobre a integração da lei, se a Portaria veio integrar o artigo 99.º do DL 553/80 a resposta é necessariamente afirmativa Mas, neste sentido todos os regulamentos podem ser qualificados de integrativos na medida em que vêm acrescentar algo necessário à aplicação da lei.
De modo que o conceito de integração da lei que é usado no n.º 5 do artigo 115.º da Const. não pode ser o conceito de integração das lacunas da lei que é usado pela teoria geral do direito civil.
A exigência constitucional parece antes dever entender-se como proibição de a lei efectuar pelo reenvio a transformação do regulamento em fonte de normação primária e por outro lado exigência de que a lei de atinja um grau de concretização ou densificação reguladora que permita determinar os elementos essenciais das relações que regula em termos orientadores quanto à direcção das soluções (no caso de sanções, partindo também da definição precisa do respectivo conteúdo) e delimitadores quanto à abrangência, mas sem necessidade de concretizar ou especificar todos os aspectos necessários à aplicação, os quais podem ser objecto de regulamento.
Isto é, no caso em análise, não apenas o efeito jurídico, mas também os pressupostos de facto na parte que respeita à previsão das situações cuja violação dá lugar àquelas sanções estão definidas por lei formal de desenvolvimento de bases gerais - decreto-lei - e os critérios de distribuição graduada das sanções segundo cada situação de facto não foram deixados pela lei à discricionariedade regulamentar, impondo-lhe orientação precisa, pelo que temos de concluir que é a lei e não a actividade regulamentar que estabelece a definição primária das relações entre o Estado e os particulares.
O que está vedado pelo n.º 5 do artigo 115.º actualmente n.º 6 do artigo 112.º (Lei Const. 1/2001) é que a lei confira ao regulamento de execução a possibilidade de integrar, sem vinculação a critérios pré-definidos pela própria lei, as opções relativas ao modo de resolver certas situações ou grupos de situações. Se a lei estabelecer os critérios de decisão das situações que prevê e as delimitar suficientemente, a integração deixa de ser integração de opções legislativas, mas passa a ser integração dos modos de a aplicar, sendo que esta última não é visada pela exigência do critério material de reserva de lei que se pode retirar do inciso constitucional.
São estes regulamentos executivos permitidos pela norma constitucional "os que se limitam a esclarecer e precisar o sentido das leis ou de determinados pormenores necessários à sua boa execução" como se pode ver dos Ac. do TC n.º 174/93 ACT 24.º vol. Pág. 57 e Ac TC 289/2004 de 27 de Abril de 2004. Também o Ac. do TC 70/2004/T in Diário da República 2.ª série, de 7.5.2004 se refere a este sentido de reserva material ou conteudística da lei" como exigência de a lei conter em si, essencialmente, o critério de decisão das situações concretas, para concluir por uma exigência mitigada do princípio da tipicidade fiscal, raciocínio transponível para o problema que nos detém da tipicidade da norma sancionatória.
Considera-se, portanto, que a integração da previsão do artigo 99.º, do DL 553/80 que é efectuada pela Portaria 207/98, de 28 de Março, respeita apenas a aspectos de aplicação estando as situações a que se aplicam as sanções e o conteúdo destas previstos no decreto lei, tal como as orientações sobre cada grupo de situações que integrariam a aplicação de cada uma das sanções, pelo que a definição dos quadros gerais dos aspectos garantísticos dos direitos individuais afectados pelas sanções estava efectuada e não foi violado o disposto no n.º 5 do artigo 115.º da Const. na redacção vigente à data da emissão da Portaria, que era a introduzida pela revisão constitucional de 1982.
De resto o contrato celebrado com a recorrente remete expressamente para a Portaria pelo que as sanções contratuais estavam especificadamente previstas quando da respectiva celebração e vêm atacadas apenas quanto aos pressupostos da sua existência enquanto tal e não pelo seu conteúdo, pelo que não procedem os vícios que se pretendia decorrerem do uso deste poder da Administração.
A posição, adoptada no acórdão recorrido que acaba de se transcrever, foi aquela que foi adoptada entre outros nos acórdãos do Pleno de 21-3-2006, Rec 20/03 e de 22.06.2006, rec. 2054/02, pelo que aqui mais uma vez se acompanha e para cuja doutrina se remete, já que não vislumbramos argumentos com força suficiente para dela divergir.
Acresce que, como se entendeu ainda no ac. de 22.06.2006, "o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP não insere no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República toda a matéria da punição das infracções disciplinares e do respectivo processo, mas apenas o seu regime geral.".
Por isso e no seguimento dos citados acórdãos, conclui-se igualmente como no acórdão recorrido, que as referidas normas do Decreto-Lei 553/80 e da Portaria 207/98, não enfermam dos vícios de inconstitucionalidade que lhe são imputados pela Recorrente, improcedendo por isso o alegado nas conclusões I a VII.
Trouxe então a recorrente recurso ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), "para apreciação concreta da constitucionalidade (orgânica) do Dec.-Lei 553/80, de 21 de Novembro, da constitucionalidade (material e orgânica) do artigo 99.º daquele Diploma, e da constitucionalidade (orgânica) e ilegalidade (por inconstitucionalidade da lei habilitante) da Portaria 207/98, de 28 de Março, designadamente do seu artigo l.º b) e do seu artigo 3.º c) e g)".
Admitido o recurso, concluiu assim a recorrente as suas alegações no sentido da inconstitucionalidade do Decreto-Lei 553/80, de 21 de Novembro, e da Portaria 207/98, de 28 de Março:
1. O Dec.-Lei 553/80 de 21 de Novembro (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo) é originariamente inconstitucional, na medida em que:
a. sem credencial parlamentar, regulou aspectos essenciais de uma liberdade abrangida pelo regime de direitos, liberdades e garantias - a liberdade de criação de escolas, enquanto dimensão específica da liberdade de ensino e de educação ("liberdade de aprender e ensinar") e como dimensão da liberdade de iniciativa económica privada - e, consequentemente, pela reserva de lei, dando assim corpo a uma inconstitucionalidade orgânica;
b. remeteu para Portaria do Governo a regulação de matérias que, na versão da CRP em vigor em 1980, já integravam a reserva relativa da Assembleia da República: o Governo não estava autorizado pela Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo (Lei 9/79) a legislar sobre matéria de instituição de ilícitos e sanções por infracções ao regime do ensino particular e cooperativo.
II. Após a revisão constitucional de 1982, agudizou-se a inconstitucionalidade do Dec.-Lei 553/80, em matéria de sanções a aplicar às escolas particulares e cooperativas, em especial o seu artigo 99.º, passando então a existir também uma inconstitucionalidade superveniente (inconstitucionalidade material e orgânica), na medida em que, em violação do n.º 5 do artigo 115 da CRP (hoje n.º 6 do artigo 112.º da CRP), passou a remeter em branco toda a matéria sancionatória para um acto normativo de natureza regulamentar, operando a deslegalização de uma matéria que, pela sua natureza, é de reserva legislativa;
III. A Portaria 207/98, publicada já após a revisão constitucional de 1982, constitui um regulamento integrador de natureza substantiva e procedimental, em violação do citado n.º 5 do artigo 115.º da CRP;
IV. A inconstitucionalidade do artigo 99.º-4 do Decreto-Lei 553/80 provoca, por si só, a ilegalidade da Portaria 207/98 (inconstitucionalidade da lei habilitante);
V. A Portaria 207/98 enferma de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que se ocupa de matérias que, nos termos da CRP, são da competência exclusiva da Assembleia da República: regime de punição de infracções disciplinares e do respectivo processo.
VI. Tal Portaria já não podia sequer "legislar" sobre o regime de punição de infracções disciplinares e respectivo processo, por se tratar de matéria da competência exclusiva da Assembleia da República (artigo 165, n.º 1, d) da CRP).
Por sua vez, o Secretário de Estado da Administração Educativa apresentou contra-alegações, onde concluiu:
1. O Decreto-Lei 553/80, de 21 de Novembro, não padece de qualquer inconstitucionalidade material e orgânica, pois a Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo (Lei 9/79, de 19 de Março), aprovada pela Assembleia da República, autorizava o Governo, no artigo 17.º, a publicar por decreto-lei, o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, de acordo com os princípios anteriormente definidos naquela Lei.
2. Pelo que, não existe violação do preceito constitucional - alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa - , pois o regime geral do direito disciplinar que constitui matéria legislativa da competência exclusiva da Assembleia da República, foi, por autorização prévia, concedida ao Governo (artigo 17.º da Lei 9/79) para legislar por decreto-lei as normas que enformam o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, de acordo com os princípios estabelecidos naquela Lei.
3. Nem tão pouco a Portaria 207/98, de 28 de Março, está ferida reflexamente de inconstitucionalidade material e orgânica, pois limita-se a estabelecer a cominação das sanções disciplinares definidas no Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, ao abrigo de autorização legal prévia (n.º 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80).
4. A limitação de reserva de lei parlamentar sobre o regime geral das infracções disciplinares, surgiu com a revisão constitucional de 1982 (artigo 115.º n.º 5), pelo que o Dec.-Lei 553/80 podia prever sanções, tal como o fez no citado artigo 99.º, sem ofensa dos normativos constitucionais à data em vigor.
5. No que diz respeito à Portaria 207/98, esta limitou-se a regulamentar matéria prevista no Decreto-Lei 553/80, especificando as situações que se enquadram no enunciado das sanções, de acordo com a gravidade e natureza das situações.
6. O Decreto-Lei 553/80 previu as sanções a aplicar às entidades proprietárias e aos directores pedagógicos das escolas particulares que violassem os deveres consignados naquele diploma, prevendo igualmente as situações a que correspondem cada uma das sanções, ficando apenas para momento posterior a regulação de situações previstas naquele Decreto-Lei e a especificação das situações, de acordo com a natureza e a gravidade dessas situações, o que veio a acontecer com a publicação da Portaria 207/98.
7. Aquela Portaria regulamentou o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (Dec.-Lei 553/80), não tendo introduzido quaisquer inovações àquele diploma, não exorbitando, deste modo, o âmbito próprio do regulamento.
8. Assim, não existe qualquer violação do preceito constitucional, introduzido na revisão da Constituição de 1982 (artigo 115.º n.º 5), actualmente artigo 112.º n.º 6, pois não se pode falar em integração de normas no sentido previsto naquele normativo.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
A) A questão de constitucionalidade
5 - O contexto da questão
A questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca ao Tribunal pode ser delimitada - como decorre, aliás, do relato que acabou de se fazer - do seguinte modo:
A recorrente Professo celebrou com o Estado português (Ministério da Educação) um contrato de associação nos termos do qual o Colégio (da recorrente) assumia a obrigação de prestar serviços de ensino no âmbito da escolaridade obrigatória mediante a percepção de apoios financeiros públicos.
Na sequência de um processo disciplinar instaurado pelo Secretário de Estado da Administração Educativa à recorrente - com fundamento em eventual incumprimento, por parte desta, das obrigações decorrentes do contrato de associação - , veio a mesma a ser condenada no pagamento de multa de oito salários mínimos nacionais, bem como na obrigação de reposição, nos cofres do Estado, de um certo montante em dinheiro, tudo isto ao abrigo do disposto no artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80 e nos artigos 1.º, alínea b), e 3.º, alínea c) e g), da Portaria 207/98, de 28 de Março.
Do despacho do Secretário de Estado que a condenara nas sanções disciplinares atrás referidas interpôs a recorrente Professo recurso contencioso de anulação junto da 1ª secção do Supremo Tribunal Administrativo. Tal recurso não veio a obter provimento. Inconformada, recorre então a Professo para o pleno daquela mesma secção: uma vez mais, porém, confirma o Supremo Tribunal a decisão recorrida, recusando conceder provimento ao recurso.
Nas suas alegações junto do Supremo Tribunal Administrativo, suscitara a recorrente três questões de inconstitucionalidade relativamente às normas (acima referidas, e constantes do Decreto-Lei 533/80 e da Portaria 207/98) que permitiam, in casu, a aplicação das sanções disciplinares. Foram elas: (i) a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei 533/80; (ii) a questão da inconstitucionalidade orgânica e material das normas contidas no artigo 99.º do mesmo Decreto-Lei; (iii) a questão da inconstitucionalidade das normas (atrás referidas) constantes da Portaria 207/98.
São estas mesmas questões que voltam a ser repetidas no recurso que é interposto para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, foi a elas - e a todas elas - que respondeu negativamente o Supremo Tribunal Administrativo (fls. 526 e ss. dos autos), pelo que é desta 'resposta', que aplicou norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo (artigo 280, n.º 1, alínea b) da Constituição), que agora se recorre.
6 - O âmbito do pedido
Objecto do juízo de constitucionalidade é, pois, o direito sancionatório disposto em conjunto pelo Decreto-Lei 553/80 e pela Portaria 207/98.
O Decreto-Lei 553/80 aprovou o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo para o nível não superior. No n.º 1 do seu artigo 99.º estabeleceu que às entidades proprietárias das escolas particulares pudessem ser aplicadas pelo Ministro da Educação as penas de advertência, de multa e de encerramento (provisório ou definitivo) da escola, «de acordo com a natureza e a gravidade da infracção», e sempre que estivesse em causa a «[violação] do disposto neste decreto-lei».
Por seu turno, dispôs o n.º 4 do mesmo artigo:
A cominação de sanções será objecto de regulamentação específica, a definir por portaria dos Ministros das Finanças e do Plano e da Educação e Ciência, ouvido o Conselho Consultivo do Ensino Particular e Cooperativo.
Em cumprimento desta remissão legal, veio a Portaria 207/98 regulamentar o direito sancionatório já definido no Decreto-Lei 553/80. Fê-lo antes do mais numa dimensão substantiva, já que densificou a alusão genérica à «violação do disposto n[o] decreto-lei». O artigo 1.º da Portaria identifica os tipos legais violados e gradua as sanções a aplicar em função desses mesmos tipos. Depois, a Portaria regulamenta o direito sancionatório também numa dimensão adjectiva, já que elege o processo disciplinar como procedimento a adoptar na aplicação das sanções (artigo 11.º), determinando a aplicação subsidiária do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (artigo 12.º).
Foi, portanto, ao abrigo de todo este direito sancionatório, estatuído em conjunto pelo Decreto-Lei 553/80 e pela Portaria 207/98, que veio a recorrente a ser condenada nas sanções disciplinares atrás referidas. Mais precisamente, veio a sê-lo nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 99.º do decreto-lei (que prevê a aplicação de multa de valor entre dois e vinte salários mínimos nacionais), e das alíneas c) e g) do artigo 1.º da Portaria (que determina condenação em multa quer para os casos de não prestação das informações solicitadas, nos termos da lei, pelo Ministério da Educação, quer nos casos de aplicação indevida dos apoios financeiros concedidos).
No recurso de constitucionalidade não se questiona a 'dimensão interpretativa concreta' com que estas normas foram aplicadas pela decisão recorrida. O que se questiona - na sequência das alegações apresentadas, e na sequência da resposta que lhes foi dada pela sentença de que se interpôs recurso - é o modo do seu surgimento no ordenamento jurídico.
Diz-se, antes do mais, que é organicamente inconstitucional o Decreto-Lei 553/80 por ser ele acto legislativo governamental que invadiu a reserva de lei parlamentar. Depois, diz-se que são inconstitucionais as normas que se consagram no seu artigo 99.º por terem elas, especificamente, violado a proibição de deslegalização decorrente hoje do n.º 5 do artigo 112.º da Constituição. Finalmente, diz-se que são inconstitucionais as normas relevantes da Portaria 207/98 por disporem elas sobre matéria que é reservada à função legislativa. A violação da reserva de lei parlamentar, por um lado, e a violação da reserva da função legislativa, por outro, formam as razões pelas quais se questiona a validade constitucional do direito no caso aplicado: tais razões dizem portanto respeito, não ao sentido das normas, mas ao modo do sua aparição no ordenamento jurídico.
A ordem da colocação das questões obedece a uma sequência lógica.
Com efeito, e como a inconstitucionalidade orgânica é, em geral, um vício do acto legislativo, se se entender que é inconstitucional, por violação da reserva de lei parlamentar, o Decreto-Lei 553/80, prejudicada fica a necessidade de averiguação de todas as outras questões. Não será então já necessário saber se as normas contidas no seu artigo 99.º lesam, especificamente, a proibição de deslegalização constante do n.º 5 do artigo 112.º da Constituição, visto já se ter obtido quanto a elas um juízo de constitucionalidade; como não será necessário saber se são ou não inconstitucionais - desta feita, por violação da reserva de função legislativa - as normas da Portaria 207/98, que perderão naturalmente a sua habilitação legal caso seja negativo o juízo quanto à constitucionalidade do acto legislativo que autorizara a sua emissão.
Por outro lado, se se concluir que o Decreto-Lei 553/80 não invadiu a reserva de lei parlamentar e não é, por nenhum outro motivo, organicamente inconstitucional, o juízo quanto à eventual inconstitucionalidade - por «deslegalização» proibida - das normas contidas no seu artigo 99.º não será apenas, em si mesmo, necessário como continuará a ser prejudicial da questão colocada em último lugar. É que também aqui perderão as normas da portaria a sua habilitação legal, caso se conclua que é inconstitucional (mas já não por razões orgânicas) o regime de direito sancionatório estabelecido pelo artigo 99.º do Decreto-Lei 553/98.
Sendo esta a ordem lógica de colocação das questões, por ela se ordenará também a resposta que, agora, ao Tribunal se pede.
B) Da eventual inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei 553/80
7 - Os termos da questão
Data de 21 de Novembro de 1980 o Decreto-Lei 553/80, que estabeleceu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior.
Sustenta a recorrente que é inconstitucional tal acto legislativo governamental por ter ele invadido, sem autorização, a reserva de competência do Parlamento. Fundamenta-se a afirmação no 'facto' de o Estatuto regular matérias respeitantes a direitos, liberdades e garantias - maxime, o direito à criação de escolas privadas e, ainda, o direito de iniciativa económica privada - que sempre se encontraram sob reserva de competência da Assembleia da República e, portanto, subtraídas à competência legislativa não autorizada do Governo. Assim é agora - diz-se - nos termos do artigo 165.º, alínea b) da Constituição, na sua versão actual, como o era - diz-se ainda - nos termos do artigo do artigo 167.º, também alínea b), da versão originária da CRP, vigente ao momento da emissão do Decreto-Lei.
A afirmação, diga-se desde já, seria de todo procedente se se pudesse provar que o direito à criação de escolas privadas (e já não, pelos motivos adiante expostos, o direito de iniciativa económica privada) era, face à versão originária da Constituição, um direito fundamental, reconhecido inequivocamente como direito, liberdade e garantia pessoal pelo ordenamento constitucional.
É que não restam dúvidas que o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo condiciona de forma essencial o exercício de um tal direito. Fá-lo desde logo quando prevê os modos de «criação e funcionamento dos estabelecimentos de ensino particular» (artigos 23.º a 33.º), mas também quando define em que consiste a «autonomia pedagógica» de que gozarão tais estabelecimentos (artigo 34.º 41.º); quando estabelece os direitos e deveres dos seus docentes (artigos 45.º a 74.º); quando estabelece os modos de apoio estadual às escolas, nomeadamente através de contratos de associação (artigos 8.º a 22.º); e quando, finalmente, prevê sanções aplicáveis às escolas inadimplentes que podem ir até ao encerramento das mesmas (artigos 94.º a 98.º). Assim, e de acordo com tudo quanto o Tribunal tem dito sobre o âmbito da reserva parlamentar referida aos direitos, liberdades e garantias - que, como se sabe, deve abranger não apenas os casos de restrição propriamente ditos, mas também aqueles em que se condicione de forma essencial o modo de exercício dos direitos: veja-se, entre outros, o Acórdão 373/91, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20.º vol., pp. 111-133 [124], bem como o Acórdão 207/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) - dúvidas não restariam que o Estatuto, por regular como regula o exercício do direito à criação de escolas privadas de ensino não superior, se deveria incluir no âmbito da reserva parlamentar. Ponto é, como já se disse - e esta ideia aparece agora como absolutamente central - , que se provasse que, ao tempo em que foi emitido o referido Estatuto, existia efectivamente no ordenamento jurídico português um tal direito: não como direito criado por lei, mas como direito e liberdade constitucionalmente protegido.
É com efeito sabido que, nos domínios das normas constitucionais relativas a formas e a competências, vale o princípio tempus regit actum. O parâmetro de aferição da constitucionalidade orgânico-formal de uma certa norma só pode ser portanto aquele que vigorava ao tempo da sua emissão. Como se disse no Acórdão 408/89 «[é] incontestável que, se a norma legal em causa tive[r] violado as normas constitucionais vigentes na altura em matéria de forma e competência legislativa, seguramente que essas normas teriam nascido inconstitucionais, e inconstitucionais continuariam a ser, mesmo que uma revisão constitucional viesse a alterar as regras constitucionais pertinentes» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., p. 1153).
A revisão constitucional de 1982 veio acrescentar ao artigo 43.º da Constituição (Liberdade de aprender e de ensinar) um n.º 4, onde se dispôs, em redacção que se mantém na versão actual, que «[é] garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas». Significa isto que na versão do texto constitucional vigente à emissão do Decreto-Lei 553/80 se não previa expressamente a existência de um tal direito. Posto que a inconstitucionalidade orgânica é, por definição, sempre originária, o referido Decreto-Lei só poderá ser julgado inconstitucional, por violação da reserva de lei parlamentar, se se provar que, não obstante a ausência de uma consagração constitucional expressa, o direito à criação das escolas privadas já era reconhecido pelo ordenamento português como direito fundamental, com a estrutura própria de um direito, liberdade e garantia.
Sustenta o recorrente que assim é, por desde sempre se ter reconhecido, no artigo 43.º, a liberdade de aprender e de ensinar, e por o direito à criação de escolas privadas não ser mais do que uma ilação necessária de uma tal liberdade, consagrada afinal pela Constituição portuguesa desde a sua versão originária.
Mas resta saber se há neste argumento alguma razão.
8 - Lei de autorização e lei de bases
Ao contrário do que parece pretender, nas suas alegações, a entidade recorrida, a necessidade de uma tal averiguação não é dispensada pelo facto de o Decreto-Lei 553/80 poder ser qualificado como acto legislativo de desenvolvimento de lei de bases.
É verdade que o legislador que, através do referido decreto-lei, estabeleceu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior quis dar cumprimento aos princípios programáticos definidos pela Lei 9/79, relativa às Bases do Ensino Particular e Cooperativo. Fê-lo aliás - como se reconhece na exposição de motivos do Decreto-Lei 553/90 - em obediência ao disposto no artigo 17.º da Lei de Bases, que estatuía:
No prazo de cento e oitenta dias a contar da data de publicação desta lei, deve o Governo publicar, por decreto-lei, o Estatuto dos Ensinos Particular e Cooperativo, de acordo com os princípios estabelecidos nesta lei e integrando, na medida do possível, a regulamentação prevista no âmbito dos diversos artigos, ouvidos os órgãos representativos dos estabelecimentos particulares e cooperativos e os sindicatos dos professores.
No entanto, o facto de assim ser não torna inútil a questão de saber se, à altura em que foi emitido o Decreto-Lei, o direito constitucional vigente reservava ou não, à competência da Assembleia da República, a definição de regimes que, como este, viessem a definir aspectos essenciais do modo de exercício do direito à criação de escolas particulares.
Com efeito, a existência neste domínio de uma lei de bases não supre a eventual necessidade de existência de uma lei de autorização legislativa. Dizendo por outras palavras, e voltando à análise do caso sob juízo: ao comando fixado no artigo 17.º da Lei 9/79 não pode ser conferido o 'valor' ou a 'função' própria da autorização legislativa parlamentar, de modo a entender-se que, por força dele, estaria sempre o Governo legitimado a legislar - qualquer que fosse a 'matéria' objecto da legislação e quaisquer que fossem, sobre tal 'matéria', as normas constitucionais, vigentes ao tempo, sobre a competência reservada do Parlamento. Assim é por decorrer da Constituição uma distinção clara entre a 'natureza' da lei de bases (e o seu regime) e a 'natureza' da lei de autorização legislativa (e o seu regime).
Tal distinção - que se torna hoje evidente face ao actual sistema de repartição de competências legislativas entre Parlamento e Governo - existia já perante a versão originária da Constituição.
Na verdade, e ao tempo em foi emitido o Decreto-Lei 553/80, previa a CRP tanto a 'figura' da lei de bases (artigo 167.º, alíneas n) e r) da versão originária) quanto a de lei de autorização legislativa (artigo 164.º, alínea e); artigo 168.º; artigo 169.º, n.º 2, também da versão originária).
Tal como agora sucede, também nessa altura havia traços comuns entre estes dois tipos de lei.
Nenhuma delas pretendia esgotar a regulamentação da matéria sobre que versavam, 'devolvendo' ambas ao Governo uma função de normação posterior; e tanto uma com a outra delimitavam, de modo vinculativo, o conteúdo da normação governamental. Mas enquanto o Governo, perante uma lei de bases, se encontrava apenas vinculado a «[f]azer decretos-lei de desenvolvimento dos princípios (...) contidos em leis que a eles se circunscrev[esse]m» (artigo 201.º, n.º 1, alínea c), versão originária), perante a existência de uma lei de autorização legislativa a vinculação governamental aparecia já como algo bem mais intenso. De acordo com o artigo 168.º (sempre da versão originária) a autorização legislativa - que, aliás, ao contrário da lei de bases, devia definir a sua própria duração - não podia ser utilizada mais de uma vez, caducando quer com a exoneração do Governo a quem fosse concedida quer com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República. Nem o imperativo da utilização única nem as regras de caducidade valiam para as leis de bases.
São estes, aliás, aspectos centrais de regime que continuam hoje, no essencial e como muito bem se sabe, a distinguir o estatuto constitucional das leis de autorização do estatuto constitucional das leis de base. Não vale a pena analisar agora que precisões e aditamentos vieram as sucessivas revisões constitucionais acrescentar a estes dois regimes, desde o início tão diversos; o que importa salientar é apenas o seguinte.
O que sempre justificou a diversidade de regimes foi a diferença de 'natureza' - patente desde a versão originária da Constituição - entre os dois institutos. Enquanto a ratio da lei de bases se encontra na necessidade de uma repartição de tarefas no seio da função legislativa (entre o 'legislador' que fixa os grandes princípios e aquele 'outro' que os adapta à realidade parcelar e multiversa), a ratio da lei de autorização legislativa decorre de uma outra necessidade: aquela de fazer intervir, para a regulação de certas matérias, o legislador parlamentar, enquanto legislador dotado de uma maior intensidade de legitimação democrática. Ao implicar a única forma, constitucionalmente admitida, de «delegação» de uma competência reservada ao legislador democrático, a autorização pressupõe uma relação de confiança entre um certo parlamento e um certo governo, relação essa que justifica o seu regime próprio e que difere acentuadamente dos elos que se estabelecem entre a lei de bases e o seu desenvolvimento.
Assim sendo, não pode conferir-se a uma lei de bases as funções que constitucionalmente são atribuídas, exclusivamente, à lei de autorização. Esta afirmação - que é válida ainda para a interpretação das normas constitucionais vigentes ao momento em que se emitiu o Decreto-Lei 553/80 - justifica que se entenda que ao artigo 17.º da Lei 9/79 não pudesse ser reconhecida uma qualquer função 'autorizadora' da emissão de actos legislativos governamentais em matéria que, eventualmente, estivesse reservada à competência da Assembleia da República.
Resta, por isso, averiguar se - como pretende a recorrente - a matéria em causa nos autos integrava já, na versão originária da Constituição, o âmbito da reserva parlamentar.
9 - O direito à criação de escolas privadas
A CRP consagra a liberdade de educação no artigo 43.º, que dispõe:
1. É garantida a liberdade de aprender e de ensinar
2. O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas ou religiosas
3 - O ensino público não será confessional
4. É garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas.
A inserção sistemática do preceito e os seus três primeiros números provêm da redacção originária da Constituição. A revisão constitucional de 1997 apenas melhorou a redacção do n.º 2, substituindo a sua frase inicial: onde, na versão aprovada em 1976, se dizia que o Estado não pode atribuir-se o direito de programar (...), passou a dizer-se simplesmente que o Estado não pode programar (...).
Em contrapartida, o n.º 4, que garante expressamente o direito de criação de escolas particulares e cooperativas foi, como já se disse, aditado pela revisão de 1982.
A alegação da recorrente, segundo a qual, não obstante o seu tardio reconhecimento expresso, tal direito já existiria como direito fundamental implícito durante a vigência da primeira versão da Constituição não deixa de ser, em alguma medida, uma alegação razoável. É que, não sendo o conceito de direito fundamental «implícito» um conceito estranho à jurisprudência do Tribunal [vejam-se os Acórdãos n.os 103/88 (DR, IIª Série, n.º 205, de 5 de Setembro de 1988, pp. 8107-8); 6/84 (DR, IIª Série, n.º 101, de 2 de Maio de 1984, pp. 3947-8) e, finalmente, 509/2002 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt)], onde se reconheceu a existência de direitos fundamentais não escritos), também não seria no caso ilógico que se admitisse que, na unidade de sentido da chamada «liberdade educativa», estaria não só implicada a liberdade na escola (essa mesma que desde sempre foi textualmente garantida) como ainda a liberdade de escola (ou o direito de criação de escolas privadas) que o texto só veio a consagrar a partir de 1982.
Com efeito, razões várias de direito internacional e de direito comparado fazem crer que, normalmente, estas duas liberdades - a liberdade na escola e a liberdade de escola - formam um corpo indissociável.
Assim é, por exemplo, face ao artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; face ao artigo 13.º n.º 3 do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais; face ao artigo 2.º do Protocolo 1 à Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Assim é ainda nos casos do artigo 33.º da Constituição italiana, do artigo 7.º da Constituição alemã e dos artigos 20.º e 27.º da Constituição espanhola.
Entende-se em geral que o conteúdo deste direito comum (e comum quer ao direito internacional quer a várias constituições nacionais) pode ser apreendido através de um sistema de valores onde vão incluídas, ao mesmo tempo, dois tipos diferentes de 'liberdades'. Uma - a que por antonomásia se chama por vezes 'liberdade de cátedra' - faz parte do conjunto das liberdades do espírito que decorrem do princípio do pluralismo de expressão ínsito na ideia de Estado de direito. Está próxima da liberdade de manifestação do pensamento, da liberdade de consciência e da liberdade de criação intelectual, artística e científica; e visa garantir para quem ensina (e, em certa medida, para quem aprende) um direito de defesa perante imposições 'ideológicas' estaduais. É a liberdade na escola, que se concretiza sobretudo na liberdade de expressão dos professores no contexto da sua específica função docente. Outra, desta diferente mas com ela conexa, é a liberdade de escola, entendida como liberdade de criação e de oferta de um certo projecto educativo. Decorrente, sobretudo, do direito dos pais a «escolher o género de educação a dar aos filhos» (artigo 26.º da DUDH), nela se realiza - diz-se - o encontro entre a liberdade de aprender e a liberdade de ensinar, que nunca estarão integralmente cumpridas aí onde se não reconhecer um direito dos privados à instituição de centros destinados a prosseguir um ideário educativo próprio. Nessa medida - diz-se ainda - o direito à criação de escolas privadas é algo de substancialmente diverso do direito à iniciativa económica privada. Enquanto esta última visa, primacialmente, a realização de um bem jurídico-económico, a primeira visa a realização de um bem diverso, que a liberdade educativa - quando entendida na sua unidade de sentido - pressupõe.
Sendo este o conteúdo que, quer em direito internacional quer em direito comparado, comummente se atribui à liberdade de educação (vejam-se entre outros Paulo Pulido Adragão, A liberdade de aprender e de ensinar, Lisboa, 1995 e Carlos Vidal Prado, La libertad de cátedra: un estúdio comparado, Madrid, 2001), não seria em princípio ilógico que se entendesse que, consagrando desde o seu início a Constituição portuguesa uma das vertentes de tal liberdade - nomeadamente aquela que se consubstancia na liberdade na escola, claramente inscrita nos princípios de pluralidade e neutralidade do Estado em matéria de projectos educativos, princípios esses decorrentes dos n.os 1 a 3 do artigo 43.º da CRP - , não deixaria o 'sistema' de conter implicitamente o reconhecimento do direito dos privados à criação de escolas, destinadas à realização de ideários pedagógicos próprios. Sobretudo se se tiver em conta que a chamada «cláusula aberta dos direitos» (artigo 16.º, n.º 1) provém, justamente, da primeira versão da Constituição.
No entanto, e apesar de tudo, é esta uma conclusão que nada permite retirar. Nem o «sistema» da versão originária da Constituição nem a sua história a legitimam.
Com efeito, no texto aprovado pela Constituinte era claro o carácter primordial que se atribuía ao Estado nas funções de ensino e de educação. Tal decorria, não só do n.º 2 do artigo 73.º («O Estado promoverá a democratização da educação e as condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para o desenvolvimento da personalidade e para o progresso da sociedade democrática e socialista») como do n.º 2 do artigo 75.º, que consagrava o princípio da supletividade do ensino particular: «O Estado fiscaliza o ensino particular supletivo do ensino público».
Por mais ambíguo que fosse este conceito de supletividade (e da sua dilucidação tratou o Parecer 4/79 da Comissão Constitucional: Pareceres da Comissão Constitucional, 7.º vol., pp. 235-278) o que é certo é que através dele se entendia que o «ensino particular» deveria ser algo destinado a desaparecer, que subsistiria aí onde não chegasse (ou enquanto não chegasse) o ensino público. Este mesmo entendimento é aliás corroborado pela leitura das Actas das sessões da Assembleia Constituinte em que foi discutida a questão (Diários da Assembleia Constituinte, n.º 41, de 3 de Setembro de 1975; n.º 60 de 10 de Outubro; n.º 62 de 11 de Outubro; n.º 63 de 15 de Outubro; n.º 64 de 16 de Outubro): para a orientação maioritária, que então vingou, não havia qualquer ligação, nem 'filosófica' nem 'prática', entre liberdade de aprender, liberdade de ensinar, e escolas privadas.
Não vale a pena averiguar agora da coerência e da clareza do sistema que, assim, se instituiu; o que é certo é que o direito à criação de escolas privadas não era, nem sequer implicitamente, um direito fundamental face à versão originária da Constituição. Tal não impediu que a lei ordinária o viesse entretanto a reconhecer e a regular, como sucedeu, precisamente, com a Lei de Bases n.º 9/79 e com o Decreto-Lei 553/80. No entanto, a sua condição de direito fundamental - e mais propriamente, de direito, liberdade e garantia pessoal - só se torna certa após a revisão de 1982 (veja-se, quanto a este ponto, o Diário da Assembleia da República, Iª Série, n.º 103, de 16/6/82, pp. 4248-4257).
Por este motivo, improcede a alegação da recorrente, segundo a qual seria o Decreto-Lei 553/80 organicamente inconstitucional, por incidir sobre matérias referentes a direitos, liberdades e garantias, reservadas ao Parlamento.
Resta averiguar se as normas contidas no seu artigo 99.º lesam especificamente - e por outros motivos - a Constituição.
C) Da constitucionalidade do direito sancionatório fixado pelo artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80
10 - Os termos da questão
Como já se viu, estabelece o n.º 1 do artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80 que «[à]s entidades proprietárias que violem o disposto neste decreto-lei podem ser aplicadas, pelo Ministro da Educação e da Ciência, as seguintes sanções, de acordo com a natureza e a gravidade da violação». Segue-se o elenco das sanções, definido nas alíneas a) a d): advertência; multa de valor entre dois e vinte salários mínimos nacionais; encerramento da escola por período até dois anos e encerramento definitivo. (Além disso, e no seu n.º 2, prevê o preceito o elenco de sanções a aplicar também aos directores pedagógicos das escolas, questão, no caso, de abordagem inútil).
A lei não previu os comportamentos típicos a que deveriam corresponder as sanções que fixou. Tão pouco estabeleceu o modo da sua graduação (aos ilícitos típicos a que correspondessem) ou o procedimento que deveria ser adoptado para a sua aplicação. Limitou-se a dizer - como já foi salientado - que o regime sancionatório assim definido seria aplicável às escolas que violassem o disposto no decreto-lei; que as sanções deveriam ser aplicadas de acordo com a natureza e a gravidade da infracção e que, finalmente, «a [sua] cominação ser[i]a objecto de regulamentação específica, a definir por Portaria (...)». Foi assim que a Portaria 207/98 veio determinar a que tipos de comportamentos seria aplicável cada uma das sanções, identificando portanto os ilícitos típicos que a lei não identificara e estabelecendo as graduações sancionatórias que ela própria não estabelecera (artigo 1.º). Além disso, e como já se referiu, foi também o regulamento administrativo que veio a eleger o procedimento a aplicar, ao determinar (artigo 11.º) que «[a] aplicação das sanções previstas no presente diploma é precedida de processo disciplinar (...)».
Sustenta a recorrente que são inconstitucionais as normas contidas no artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80, que estabelece, com a densidade que acabámos de descrever, o direito sancionatório aplicado ao caso. E fundamenta a alegação de inconstitucionalidade em dois tipos diferentes de razões: quer na violação da reserva de competência do Parlamento quer na violação, tout court, da reserva de função legislativa. Importa, no entanto, distinguir.
11 - Reserva de competência legislativa parlamentar
Decorre de tudo quanto atrás se disse que não pode proceder, também quanto às normas contidas no artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80, a ideia segundo a qual tais normas seriam organicamente inconstitucionais por implicarem invasão da reserva de competência legislativa do Parlamento. Por um lado, volta a recorrente, a este propósito, a esgrimir o mesmo argumento que invocara para sustentar a inconstitucionalidade orgânica de todo o decreto-lei: o de que se estaria aqui perante matérias atinentes a direitos, liberdades e garantias, incluídas na alínea b) do artigo 165.º (versão actual da CRP) e só passíveis de serem reguladas por decreto-lei autorizado. Já vimos por que razão assim não é. Por outro lado, diz-se agora que, para além disso, a matéria em causa seria ainda especificamente respeitante ao «regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo», constante igualmente do âmbito da reserva relativa da competência legislativa do Parlamento nos termos da alínea d) do artigo 165.º da CRP. No entanto, tendo sido esta alínea aditada ao elenco das matérias reservadas apenas aquando da revisão constitucional de 1982, não procede - pelos motivos já vistos - a alegação de inconstitucionalidade orgânica.
Nada permite concluir, portanto, que o Governo não poderia - à luz das normas constitucionais vigentes ao momento da emissão do Decreto-Lei 553/80 - fixar o regime sancionatório constante do seu artigo 99.º por motivos atinentes às regras de repartição de competências legislativas entre ele próprio e o Parlamento. É seguro que não havia na versão inicial da CRP norma competencial alguma que vedasse a regulação de um regime sancionatório como este à competência legislativa do Governo. Por este motivo - e só por ele - não pode a constitucionalidade das normas constantes do artigo 99.º ser posta em causa por razões orgânicas. A argumentação da entidade recorrida, segundo a qual, ainda aqui, o Decreto-Lei 553/80 nada mais teria feito do que dar cumprimento ao estatuído pela Lei de Bases n.º 9/79 (que dispunha, no n.º 5 do seu artigo 8.º: «Incumbe ao Governo estabelecer a regulamentação adequada para a celebração dos contratos e concessão dos apoios e subsídios previstos neste artigo, com especificação dos compromissos a assumir por ambas as partes, bem como a fiscalização do cumprimento dos contratos estabelecidos»), é, para o caso, irrelevante. Como já se viu, a existência de um comando de legiferação contido numa leis de bases nunca poderia suprir a necessidade de existência de uma autorização legislativa, se, de facto, tal necessidade resultasse da Constituição. Não resultava. Por isso - e só por isso - não são organicamente inconstitucionais as normas contidas no artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80.
Resta saber se não serão elas inconstitucionais por um outro motivo.
12 - Reserva de função legislativa
Com efeito, diversa da questão da (inexistente) invasão da reserva competencial do Parlamento é a questão da (eventual) invasão da reserva de função legislativa.
Sustenta a recorrente que é inconstitucional o regime sancionatório definido pelo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo por nele se não ter respeitado a reserva da função legislativa: ao remeter para normação administrativa (mais exactamente para portaria) a tipificação dos comportamentos puníveis; a adequação das sanções aos tipos; a escolha do procedimento sancionatório a aplicar, o legislador do Estatuto - diz a recorrente - fez aquilo que a Constituição lhe proíbe: deixou de regular matérias que só poderiam ser reguladas por acto da função legislativa, reenviando portanto para uma outra autoridade (no caso, a administrativa) o exercício de uma competência que só a ele pertencia.
É certo - e a doutrina assim o tem consensualmente defendido (por todos: Afonso Queiró, «Teoria dos Regulamentos», em Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXVII, p. 11) - que até 1982 nada havia na Constituição que impedisse o legislador, quer parlamentar quer governamental, de «deslegalizar» certa normação por ele iniciada, reenviando a sua continuação para regulamentos administrativos que dispusessem sobre a matéria em termos novos e originários, desde que a referida matéria não estivesse ela própria, por imposição constitucional, sujeita a reserva de lei.
Foi exactamente isso que fez - e validamente, à luz da primeira versão da Constituição - o legislador que definiu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
Com efeito, por um lado e como já se viu, não estava então reservada à lei a «matéria» por ele regulada. Por outro, o «reenvio» que se fazia no artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80 implicava uma verdadeira «deslegalização», na medida em que através dele se habilitava a administração a emitir, sobre a matéria, uma verdadeira regulação praeter legem, porque primária e inovatória. Atentemos agora, com mais vagar, neste segundo aspecto.
Não é fácil - como bem se sabe - estabelecer traços seguros entre aqueles regulamentos administrativos que são secundum legem e aqueles que vão para além da lei, ou que são praeter legem. No entanto, se se tomar como bom o critério doutrinário segundo o qual «o regulamento executivo não pode inovar no domínio das restrições à esfera individual, nem criar preceitos que se não liguem por um vínculo de pormenorização ou procedimentalização às normas contidas na lei regulamentada», por ser ele um regulamento «secundário ou derivado, relativamente ao regime estabelecido pelo legislador» (José Manuel Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 241), limitando-se a «editar as providências necessárias para assegurar a fidelidade ou (...) a conformidade à vontade do legislador (...)» sem dar vida a nenhuma regra de fundo, a nenhum preceito jurídico «novo» e originário» (Afonso Queiró, ob.cit., p. 9), então parece certo que na categoria destes regulamentos se não insere aquele para o qual reenviou o legislador que estabeleceu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
Na verdade - e ao contrário do que sustenta a entidade recorrida - a lei não definiu então, com densidade suficiente, o regime sancionatório que deveria ser aplicado às escolas inadimplentes. Limitou-se a estabelecer o elenco das sanções a cominar «em caso de violação do disposto no decreto-lei», afirmando ainda que tais sanções deveriam ser aplicadas de acordo com a natureza e a gravidade da violação. Foi, pois, o regulamento administrativo que veio densificar todo este regime, que a lei, finalmente, apenas desenhou a título principial: como já vimos, a Portaria 207/98 definiu os ilícitos sancionáveis; estabeleceu as sanções correspondentes a cada um; fixou o procedimento a adoptar na aplicação das sanções. É bem difícil sustentar que um regulamento assim não inova no domínio das restrições à esfera individual, ou não cria normação primária, dando vida a preceitos jurídicos «novos» ou «originários». Seguro é porém que a habilitação legal para a emissão deste tipo de regulamentos não era proibida pela primeira versão da Constituição.
Veio no entanto a proibi-la a revisão constitucional de 1982, o que não pode deixar de ser tido em conta no caso agora sob juízo. É que, nele, se não manteve apenas a habilitação legal para a emissão de regulamentos praeter legem; mais do que isso, tal habilitação só veio a ser cumprida pela Portaria 207/98, anos após a entrada em vigor da Lei de Revisão Constitucional n.º 1/82.
E não restam dúvidas que a Lei de Revisão pretendeu, justamente, vedar ao legislador este 'tipo' de reenvios normativos.
Antes do mais, ficou claro, a partir de 1982, que o direito à criação de escolas privadas era para a CRP uma liberdade fundamental constitucionalmente tutelada.
O direito sancionatório previsto pelo artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80 - esse mesmo que remete para regulamento administrativo a definição, inovatória, dos ilícitos cometidos; a graduação das sanções que se lhes deveria aplicar; o procedimento a adoptar na sua aplicação - passou assim a ser direito sancionatório incidente sobre o exercício de uma liberdade fundamental, com todas as consequências que daí advêm quanto à extensão e à densidade da reserva de lei na regulação de matérias que lhe digam respeito. Com efeito, e como muito bem se sabe - e como sempre o tem dito o Tribunal: vejam-se, entre outros, o Acórdão 307/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12.º volume, p. 499 e ss.), e ainda os Acórdãos n.os 174/93 e 185/96 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) - em matérias que impliquem restrições ou condicionamentos essenciais ao exercício de liberdades fundamentais só são constitucionalmente admissíveis os regulamentos de execução.
Mas, além disso, a revisão constitucional de 1982 veio a proibir em geral as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos praeter legem, ou seja, de regulamentos que venham a "interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar" quaisquer preceitos da própria lei "habilitante" (artigo 112.º, n.º 5, da versão actual da CRP). Este princípio constitucional, introduzido em 1982, não pode deixar de ser considerado como um princípio de índole material ou substancial. O que nele se contém é algo mais do que uma regra ou conjunto de regras relativas a formas ou a competências. Com efeito, do princípio contido no n.º 5 do artigo 112.º da CRP decorre uma proibição (de reenvios normativos para regulamentos praeter legem) que, para além de incidir directamente sobre o âmbito da conformação do legislador ordinário, limitando-o, reflecte a intenção do regime aprovado em 1982: a de conferir uma outra, e mais intensa, tutela constitucional à reserva da função legislativa - enquanto delimitação daqueles domínios de vida que só podem ser regulados por actos legislativos com exclusão de quaisquer outras fontes normativas - , «reserva» essa que, em última análise, decorre do princípio mais vasto do Estado de direito (que, recorde-se, só veio a ser consagrado pelo texto da Constituição a partir de 1982).
Por todos estes motivos, tem dito o Tribunal, em jurisprudência constante, que a proibição de habilitações legais para a emissão de regulamentos praeter legem afecta directamente, não os regulamentos que tenham sido emitidos ao abrigo de «habilitações legais» indevidas, mas as próprias normas legais que os habilitaram, ainda que estas tenham sido aprovadas antes da revisão de 1982. Entende-se, com efeito, que, nesses casos, tais normas se tornam supervenientemente inconstitucionais, precisamente por ser de ordem material - e não orgânica ou formal - o novo regime constitucional que veio dar outra, e mais intensa, tutela ao princípio da reserva de função legislativa (assim, e entre outros, Acórdão 203/86, no Diário da República, IIª série, n.º 195, 26/8/1986, pp. 7978 e ss; Acórdão 458/89, no Diário da República, IIª série, n.º 25, 30/1/1990, pp. 1019 e ss; Acórdão 1/92, no Diário da República, Iª série, n.º 43, 20/2/1992, pp. 1026 e ss.; Acórdão 869/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
É esta a doutrina que se deve aplicar às normas contidas no artigo 99.º do Decreto-Lei 553/80, que fixaram, sem a densidade que, ratione materiae, seria constitucionalmente exigida, o regime sancionatório aplicável às escolas privadas.
Prejudicada fica, assim, a questão de saber se as normas da Portaria 207/98 lesam, em si mesmas, algum parâmetro constitucional. A análise do problema torna-se inútil, face ao juízo, que acabou de ser feito, quanto à invalidade das normas legais que habilitaram a sua emissão.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Julho de 2008. - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.