Acórdão do Tribunal Constitucional 197/2023, de 10 de Maio
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 90/2023, Série I de 2023-05-10
- Data: 2023-05-10
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Sumário
Texto do documento
Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto (Novo regime do arrendamento apoiado para habitação); não toma conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica regulamentar, constante do artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira, entretanto revogada.
Processo 401/20
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - A Procuradora-Geral da República requereu, ao abrigo da competência que lhe é conferida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) e pela alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei 68/2019, de 27 de agosto, alterada pela Lei 2/2020, de 31 de março), a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica legal constante das disposições conjugadas dos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto; e, ainda, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica regulamentar constante do artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do "Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira", aprovado por deliberação de 29 de fevereiro de 2016, da Assembleia Municipal de Tavira.
2 - O fundamento do pedido radica na desconformidade «da norma jurídica legal constante das disposições conjugadas dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º (Âmbito), da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto», com «a proibição constitucional de emissão de habilitação legal para editar regulamentos municipais autorizados (ou delegados), modificativos ou integrativos, em matéria reservada à lei parlamentar», o que implicará a sua inconstitucionalidade material, em face dos artigos 111.º, n.º 2 e 112.º, n.º 5, da CRP; e no desrespeito, por parte da «norma jurídica regulamentar, municipal, constante do artigo 15.º (Causas de improcedência liminar da candidatura), n.º 1, alínea b), do RRAAGPH, aprovado por deliberação de 29 de fevereiro de 2016, da Assembleia Municipal de Tavira», dos artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 2, 65.º, n.º 3, l.ª parte, 112.º, n.º 5, e 241.º, todos da CRP, «por consagrar uma condição regulamentar de prévia residência no "concelho de Tavira há, pelo menos, 5 anos"», a qual «tem caráter modificativo, excessivo e restritivo dos pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", estabelecidos nos artigos 5.º, n.º 1 e 6.º, n.os 1 a 4, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (ulteriormente alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), assumindo assim prerrogativas que são do domínio reservado da lei parlamentar», o que implica a sua inconstitucionalidade material ou orgânica (itálicos no pedido).
Vem ainda peticionada a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade, de modo a que os mesmos se produzam apenas retrospetivamente, a partir da publicação no jornal oficial da "decisão limitativa" a proferir nos autos, e sem eficácia repristinatória (cf. artigo 282.º, n.º 4, da CRP).
Em termos mais específicos, o pedido de declaração de inconstitucionalidade encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição parcial, sem destaques e sem notas de rodapé):
«[...]
I
(Artigo 65.º, n.º 3, da Constituição)
a) Política de renda compatível com o rendimento familiar
1.º
A parte I (Direitos e deveres fundamentais), título III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), capítulo II (Direitos e deveres sociais), da Constituição, integra, designadamente, o artigo 65.º (Habitação e urbanismo).
2.º
No que agora especialmente releva, importa considerar o n.º 3 deste preceito, o qual dispõe: "O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria".
3.º
Este enunciado normativo tem como destinatário o "Estado", o qual está assim constitucionalmente adstrito à incumbência (fim ou tarefa) de criar, pôr em prática e manter "uma política tendente a estabelecer", nomeadamente, "um sistema de renda compatível com o rendimento familiar".
b) Idem: reserva constitucional de Estado
4.º
Importa aqui e agora salientar duas notas quanto à competência constitucional, prevista neste artigo 65.º, n.º 3, da Constituição, uma de cariz subjetivo (o destinatário em causa) e outra de cariz objetivo (o tipo de poder em causa).
5.º
Assim, quanto ao destinatário, a contraposição decorrente da epígrafe, "Habitação e urbanismo", e bem assim do confronto da previsão do preceito do n.º 3 com o ulterior preceito do n.º 4, ambos deste artigo 65.º, é instrutiva para os nossos efeitos.
6.º
Com efeito, no logo subsequente n.º 4, para as matérias atinentes à definição das "regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos", a imposição constitucional tem como destinatário não apenas o "Estado", mas, ainda as "regiões autónomas" e as "autarquias locais".
7.º
Assim, do ponto de vista das valorações e decisões constitucionais de fundo, enquanto o "urbanismo" (hoc sensu) é uma incumbência partilhada entre o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais, já a matéria da "política de renda compatível" é uma incumbência imputada ao Estado.
8.º
Isto, decerto, sem prejuízo das responsabilidades executivas das regiões autónomas e das autarquias locais, até mesmo porque esta "política de renda compatível" será tipicamente uma manifestação do que a melhor doutrina identifica como matéria "carec[endo] de disciplina normativa para a comunidade nacional, embora com execução relegada para os órgãos autárquicos".
9.º
Assim sendo, em conclusão, no plano das valorações e decisões constitucionais de fundo, a "política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar", pela sua relevância existencial, social e económica é de interesse, alcance e relevância nacional, sendo assim objeto de uma reserva constitucional de Estado, sem embargo das responsabilidades executivas das regiões autónomas e das autarquias locais.
10.º
Por outra parte, este preceito, tendo como destinatário declarado o Estado, exprime uma norma programática (ou imposição legiferante), recortada no âmbito de um direito fundamental social e que, ex vi constitutione, é posta a cargo do mesmo.
11.º
A propósito deste preceito constitucional, alude com efeito a melhor doutrina a uma "diretriz programática, de um dever político imposto ao Estado no sentido deste adoptar as providências adequadas à realização - tão desejável - do nobre ideal que é o de todos poderem realmente ter, para si e sua família, uma habitação condigna, com os requisitos enunciados no citado preceito constitucional [artigo 65.º]. Tanto isto assim é que o mesmo artigo, nos seus números seguintes, enuncia as grandes linhas do que o Estado deve fazer para atingir o assinalado objectivo [...] adoptar uma política de rendas compatíveis com o rendimento familiar [...] a este [Estado] cabe a responsabilidade política de planear, adoptar e executar providência[s] tendentes a criar as condições necessárias para todos poderem ter habitação condigna. E tarefa de que têm de se ocupar os órgãos legislativos, governativos, administrativos [...]".
12.º
Sendo uma norma programática, vinculada ao cumprimento da "política de renda compatível", os tempos e modos de materialização da mesma relevam da esfera da liberdade de conformação do legislador, e estão sob reserva do possível, aqui por maioria de razão, em face da particular natureza da realidade social, económica e financeira que lhe está subjacente.
13.º
Em qualquer caso, tal liberdade de conformação está sempre sujeita aos critérios e limites constitucionais gerais do exercício do poder legislativo, nomeadamente aos princípios da universalidade, igualdade e da proporcionalidade (arts. 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, e 18.º, n.º 2, enquanto lídima expressão do Estado de direito democrático, art. 2.º, todos da Constituição).
b) Reserva de lei
14.º
Em consonância com a aludida credencial constitucional, o Estado, pela Assembleia da República, assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, veio a decretar a Lei 81/2014, de 19 de dezembro (Estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação e revoga a Lei 21/2009, de 20 de maio, e os Decretos-Leis 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio), ulteriormente alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto (Primeira alteração à Lei 81/2014, de 19 de dezembro, que «estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação e revoga a Lei 21/2009, de 20 de maio, e os Decretos-Leis 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»).
15.º
Esse diploma legal tem por objeto estabelecer o regime do arrendamento apoiado para habitação e regular a atribuição de habitações no mesmo (art. 1.º).
16.º
Por conseguinte, a mais da reserva constitucional de Estado, por força do decretamento de tal acto legislativo, passou ainda a vigorar nesta matéria uma reserva de lei, pois "quando uma lei regula uma determinada matéria, ela estabelece, ipso facto uma reserva de lei, pois só uma lei ulterior pode vir a derrogar ou alterar aquela lei [...]".
17.º
Com o consequente congelamento do grau hierárquico, pois "regulada por lei determinada matéria, o grau hierárquico da mesma fica congelado e só uma outra lei poderá incidir sobre o mesmo objecto (cf. artigo 115.º, n.º 5)".
18.º
Essa reserva de lei implica, na noção da melhor doutrina, "Uma prioridade exclusiva de regulação primária de determinadas matérias previstas na Constituição por parte de atos legislativos, daqui resultando um domínio material necessário de norma legal inovadora e razoavelmente densa, não sendo no mesmo consentidos regulamentos independentes, mas apenas normas administrativas de execução que concretizem ou complementem as normas legais [...]".
19.º
Na jurisprudência constitucional, quanto a esta matéria é de assinalar, pela sua relevância, sobretudo o Acórdão 590/2004, proc.º n.º 9344/3003, do Tribunal Constitucional - Plenário, onde, "Como se esclareceu no referido Acórdão 32/97" ditou que "o principal destinatário (sujeito passivo) das imposições constitucionais em matéria de promoção do direito à habitação é o Estado (n.os 2, 3, e 4 do artigo 65.º)".
20.º
Adiante tal aresto, reiterando a tónica da imposição estadual, ajuizou que "A Constituição prevê diversas formas de prossecução daquele objectivo (n.os 2, 3 e 4 do artigo 65.º). Importa-nos, sobretudo, abordar as tarefas que o n.º 3 do artigo 65.º impõe ao Estado: a adopção de uma política de estabelecimento de um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de uma política de acesso à habitação própria. Trata-se de duas políticas distintas e necessariamente complementares, pelo que a prossecução de uma delas não pode dispensar nem substituir a outra".
21.º
E mesmo o dictum ali ulteriormente expresso, "Contudo, também as regiões autónomas e os municípios deverão ter um papel activo neste domínio", corrobora a exegese constitucional antes fixada, na medida em que logo especifica "como resulta do n.º 4 do mesmo artigo", ou seja, em matéria do ordenamento do urbanismo e não já da "política de rendas compatíveis".
22.º
Este quadro e premissas constitucionais gerais têm relevância determinante na análise dos específicos preceitos legais e regulamentar em causa. Vejamos qual.
II
(Artigo 2.º, n.os 4 e 5, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto)
a) Lei 81/2014, de 19 de dezembro
23.º
Como referimos, o Estado, pela Assembleia da República, veio a decretar a Lei 81/2014, de 19 de dezembro, que estabelece o regime do arrendamento apoiado para habitação e regula a atribuição de habitações neste regime.
24.º
Este diploma legal, no seu capítulo II (Acesso e atribuição das habitações em regime de arrendamento apoiado), secção I (Acesso), fixou as condições de acesso (artigo 5.º) e os impedimentos (artigo 6.º) relevantes para tal efeito.
25.º
Ficaram assim fixados, de uma vez por todas - salvo ulterior contrarius actus dimanado da própria lei - os pressupostos subjetivos, positivos (condições de acesso) e negativos (impedimentos), do direito de acesso às habitações em regime de arrendamento apoiado.
26.º
Em particular, ficou legalmente fixada no artigo 5.º (Condições de acesso) esta condição subjetiva: "Podem aceder à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado os cidadãos nacionais e os cidadãos estrangeiros detentores de títulos válidos de permanência no território nacional que reúnam as condições estabelecidas na presente lei e que não estejam em nenhuma, das situações de impedimento previstas no artigo seguinte" (n.º 1, itálico nosso).
27.º
O direito de acesso às habitações em regime de arrendamento apoiado é, pois, atribuído pela lei aos "cidadãos nacionais e os cidadãos estrangeiros detentores de títulos válidos de permanência no território nacional", que reúnam as condições e não estejam em nenhuma, das situações de impedimento nela. previstas, sem mais, sem outros condicionantes.
28.º
Portanto, em coerência com os princípios constitucionais que norteiam a liberdade de conformação do legislador, quanto à titularidade (a todos, universalidade) e ao conteúdo (os mesmos, igualdade) da outorga, quantitativa e qualitativa, dos direitos subjetivos públicos e privados, dentro de certo domínio de aplicação (Constituição, arts. 12.º, n.º 1, 13.º, e 15.º, n.os 1 e 3).
c) Idem: regulamento autorizado (ou delegado)
29.º
Sucede que, ulteriormente, a 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, veio proceder à "Primeira alteração à Lei 81/2014, de 19 de dezembro, que «estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação e revoga a Lei 21/2009, de 20 de maio, e os Decretos-Leis 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio».
30.º
O artigo 2.º desse diploma legal conferiu nova redação, nomeadamente, ao artigo 2.º da Lei 81/2014, cit., aditando dois números à redação inicial do mesmo, nos seguintes termos:
"4 - No quadro da autonomia das regiões autónomas e das autarquias locais, podem estas aprovar regulamentação própria visando adaptar a presente lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias.
5 - O disposto no número anterior não pode conduzir à definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários, quer quanto ao cálculo do valor de rendas, quer quanto às garantias de manutenção do contrato de arrendamento."
31.º
A norma jurídica expressa pela conjugação destes n.os 4 e 5, do artigo 2.º, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, veio assim, ex post, a habilitar as regiões autónomas e às autarquias locais a editarem "regulamentação própria", em ordem a "adaptar a [presente] lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias".
32.º
Esta habilitação legal - que doravante vamos considerar apenas no seu aspeto municipal, por motivos evidentes - é de largo espetro, quanto ao seu conteúdo e âmbito objetivo.
33.º
Segundo os respetivos termos, com efeito, o regulamento municipal autorizado, ulteriormente prefigurado na lei, pode "adaptar a presente lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias" (n.º 4).
34.º
O único limite legal fixado para o exercício de tal "margem de adaptação" é mesmo o de que "[...] não pode conduzir à definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários, quer quanto ao cálculo do valor de rendas, quer quanto às garantias de manutenção do contrato de arrendamento." (n.º 5).
35.º
Ora, o termo "adaptar" é sinónimo, nomeadamente, segundo os usos lexicais, de "modificar", "alterar [...]" ou "transformar [...]" e, segundo os usos técnicos consagrados, ainda de "integrar", no caso os preceitos da lei habilitante.
36.º
Ou seja, a norma jurídica constante dos preceitos conjugados dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, em particular do primeiro deles, habilita o regulamento municipal autorizado, ali previsto, a "modificar" ou "integrar" os preceitos daquele diploma legal, em função das "realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias".
37.º
Porém, a "política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar", pelo seu interesse, alcance e relevância nacional, constitui uma incumbência e configura uma reserva constitucional de Estado (Constituição, art. 65.º, n.º 3), sem prejuízo das responsabilidades executivas municipais.
38.º
E, mais, por força do decretamento da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), a qual regula pormenorizadamente os pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", vigora ainda nessa matéria uma reserva de lei, com o consequente congelamento do grau hierárquico.
39.º
Ou seja, a norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na ulterior redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, consubstancia uma habilitação legal para editar um regulamento municipal, autorizado, competente para modificar ou integrar os preceitos desse mesmo diploma legal, conquanto o mesmo disponha em matéria reservada à lei parlamentar.
40.º
No precedente constitucional importa assinalar, em particular, o Acórdão 869/96, proc.º n.º 429/93, de 4 de julho, do Tribunal Constitucional, ao assinalar agudamente que uma habilitação legal [dito "reenvio normativo"] deste tipo "tem por efeito permitir que certos critérios legais, em princípio aplicáveis a todas as situações, sejam substituídos por outros, ainda que constantes de um regulamento".
41.º
Em conclusão, face ao exposto, a norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º (Âmbito), da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, viola a proibição constitucional de emissão de habilitação legal para editar regulamentos municipais autorizados (ou delegados), modificativos ou integrativos, em matéria reservada à lei parlamentar, pelo que tal norma jurídica é materialmente inconstitucional (Constituição, arts. 111.º, n.º 2, e 112.º, n.º 5).
II
[Artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do RRAAGPH, de Tavira]
a) Reserva de Estado e reserva de lei
42º
Já vimos que a "política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar", pelo seu interesse, alcance e relevância nacional, constitui uma incumbência e configura uma reserva constitucional de Estado (Constituição, art. 65.º, n. º3).
43.º
Sem prejuízo, certamente, das responsabilidades executivas municipais.
44.º
E assinalámos, ainda, que por virtude do decretamento da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), a qual regula pormenorizadamente os pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", vigora ainda nessa matéria uma reserva de lei, com o consequente congelamento do grau hierárquico.
45.º
Sendo certo que a lei regula pormenorizadamente os pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado".
46.º
Atribuído, em condições de universalidade e igualdade, aos "cidadãos nacionais e os cidadãos estrangeiros detentores de títulos válidos de permanência no território nacional", sendo pressuposto legal necessário, mas suficiente para tanto, apenas que "reúnam as condições e não estejam em nenhuma das situações de impedimento previstas na lei" (art. 5.º, n.º 1, itálico nosso).
47.º
Não prevê, pois, expressa ou implicitamente, como "condição de acesso" ou "impedimento", para tal efeito, qualquer condição de prévia residência no território municipal (cf. nomeadamente, os seus artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.os 1, 2 e 3).
48.º
Como aduz a melhor doutrina, em matérias reservadas à lei, "Quando [...] o legislador resolve tomar posição sobre dado assunto, o regulamento autárquico assume caráter só executivo da disciplina legal, quando esta se apresenta como densa" e "Nos casos [...] em que há tratamento legislativo com apreciável grau de densidade, os regulamentos autárquicos são (meramente) executivos, nem outra coisa sendo concebível".
49.º
E, prossegue, "Dentro da reserva de lei, estamos num terreno em que o legislador, para além do dever de legislar, se vê obrigado a fazê-lo em condições precisas de apreciável densidade normativa. Daí que o regulamento autónomo [autárquico] deva assumir carácter ainda executivo de um regime legislativo. Não é só o princípio de preferência da lei (parlamentar) que vincula os entes autárquicos locais: é também o próprio princípio da reserva de lei, desde que compreendido no seu alcance exato".
b) Inconstitucionalidade de norma jurídica regulamentar
50.º
Por deliberação de 29 de fevereiro de 2016, foi aprovado, pela Assembleia Municipal de Tavira, o "Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira" (doravante, RRAAGPH), publicitado no Aviso 3288/2016 (Diário da República, 2.ª série, n.º49, de 10 de março de 2016).
51.º
Ulteriormente, o RRAAGPH de Tavira foi alterado por deliberação 22 de junho de 2018, dessa mesma Assembleia Municipal de Tavira, publicitado no Edital 661/2018, de 26 de junho (Diário da República, 2.ª série, n.º 135, de 16 de julho de 2018, p. 19388).
52.º
O artigo 15.º (Causas de improcedência liminar da candidatura) n.º 1, alínea b), do RRAAGPH de Tavira, logo na sua redação originária, veio estabelecer o seguinte: "1 - Considera-se liminarmente improcedente a inscrição mencionada no artigo 13.º do presente regulamento, quando se verifique alguma das seguintes situações: [...] b) O candidato não seja residente no Concelho de Tavira há, pelo menos, 5 anos;".
53.º
Tal norma jurídica regulamentar, municipal, tem caráter inovatório, face ao regime legal, pois a condição de prévia residência no território municipal não consta da lei em causa, nomeadamente dos seus artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1 a 3, e excessivo, pela duração de "pelo menos, 5 anos".
54.º
E tal norma jurídica regulamentar, municipal, tem, ainda, caráter restritivo, face ao regime legal, pois é configurada no RRAAGPH como condição sine qua. non de atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado, exigência essa que não consta da lei em causa, nomeadamente dos seus artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1 a 3.
55.º
A este propósito a doutrina mais abalizada afirma que "[...] está de todo excluída a possibilidade de regulamentos nas áreas de reserva de lei. A reserva de lei pode ser absoluta, com exclusão total de intervenção regulamentar [...], ou apenas relativa, admitindo regulamentos simplesmente executivos (caso das matérias que fazem parte da reserva de competência legislativa da AR, mas que não façam parte da reserva material absoluta)".
56.º
Mais argumenta a doutrina qualificada: "os regulamentos podem enfermar de inconstitucionalidade orgânica ou formal e de inconstitucionalidade material [...]. Um regulamento enferma de inconstitucionalidade orgânica quando uma autoridade administrativa edita uma norma com força jurídica de regulamento que, com o conteúdo com que se apresenta, só poderia ser emanada por um órgão legislativo ou com poderes legislativos, com força jurídica de lei. Isto pode suceder com normas editadas por qualquer órgão da administração direta (central ou local) ou da administração indireta (local, corporativa ou institucional) no espaço constitucionalmente reservado à lei ou ocupado por lei ou decreto-lei. [...] O regulamento que verse matéria já versada por lei ou decreto-lei, enferma simultaneamente de inconstitucionalidade orgânica e de ilegalidade.".
57.º
Finalmente, em consonância com a doutrina exposta, assinala a melhor comentarística constitucional, com respeito ao artigo 112.º (Atos normativos), que "a ratio do n.º 5 visa somente limitar o poder do legislador, o poder de reenvio normativo de que este possa arrogar-se, impedindo-o de transferir para órgãos com mera competência regulamentária aquilo que lhe cabe? Ou visa, mais amplamente, impedir que estes órgãos assumam - com ou sem autorização dos órgãos legislativos - prerrogativas que os ultrapassam? O sentido da norma constitucional implica o entendimento mais abrangente e rigoroso, parece óbvio".
58.º
É este, precisamente, o caso, na medida em que o artigo 15.º n.º 1, alínea b), do RRAAGPH de Tavira expressa uma norma jurídica regulamentar, praeter legem, com caráter modificativo, excessivo e restritivo dos pressupostos legais, positivos e negativos, do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", estabelecidos nos artigos 5.º, n.º 1 e 6.º, n.os 1 a 4, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (ulteriormente alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto).
59.º
Assumindo, assim, prerrogativas que, por virtude de reserva constitucional de Estado e de reserva de lei, são do domínio reservado da lei parlamentar (Constituição, art. 68.º, n.º 3, e Lei 81/2014, de 19 de dezembro (alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto).
60.º
Em conclusão, face ao exposto, a norma jurídica regulamentar, municipal, constante do artigo 15.º (Causas de improcedência liminar da candidatura), n.º 1, alínea b), do RRAAGPH, aprovado por deliberação de 29 de fevereiro de 2016, da Assembleia Municipal de Tavira, por consagrar uma condição regulamentar de prévia residência no "concelho de Tavira há, pelo menos, 5 anos", tem caráter modificativo, excessivo e restritivo dos pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", estabelecidos nos artigos 5.º, n.º 1 e 6.º, n.os 1 a 4, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (ulteriormente alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), assumindo assim prerrogativas que são do domínio reservado da lei parlamentar, é materialmente (ou organicamente) inconstitucional (Constituição, arts. 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 2, 65.º, n.º 3, l.ª parte, 112.º, n.º 5, e 241.º).
IV
(Conclusões)
a) Artigo 2.º, n.os 4 e 5, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto)
61.º
O artigo 65.º (Habitação e urbanismo), n.º 3, da Constituição, expressa uma norma programática (ou "imposição legiferante"), em sede deste direito fundamental social, tendo como destinatário o Estado, o qual fica assim constitucionalmente adstrito à incumbência (fim ou tarefa) de criar, pôr em prática e manter "uma política tendente a estabelecer", nomeadamente, "um sistema de renda compatível com o rendimento familiar".
62.º
Em execução dessa credencial constitucional, o Estado, pela Assembleia da República, veio a decretar a Lei 81/2014, de 19 de dezembro (ulteriormente alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), a qual tem por objeto estabelecer o regime do arrendamento apoiado para habitação e regular a atribuição de habitações no mesmo (art. 1.º).
63.º
Por conseguinte, a mais da reserva constitucional de Estado, decorrente do artigo 65.º, n.º 3, da Constituição, por força do decretamento daquele diploma legislativo, passou ainda vigorar nesta matéria, ipso facto, uma reserva de lei, com o consequente congelamento do grau hierárquico da matéria em causa.
64.º
A Lei 81/2014, de 19 de dezembro, estabeleceu o regime do arrendamento apoiado para habitação e a regular a atribuição de habitações neste regime.
65.º
E concedeu, de uma vez por todas, salvo ulterior contrarius actus da própria lei, o direito de acesso às habitações em regime de arrendamento apoiado, aos "cidadãos nacionais e os cidadãos estrangeiros detentores de títulos válidos de permanência no território nacional", que reúnam as condições e não estejam em nenhuma das situações de impedimento nela previstas, sem mais, sem outros condicionantes (arts. 5.º, n.º 1, e 6.º, n.os 1 a 4, nomeadamente).
66.º
Portanto, em coerência com os princípios constitucionais que norteiam a liberdade de conformação do legislador, quanto à titularidade (a todos, universalidade) e ao conteúdo (os mesmos, igualdade) da outorga, quantitativa e qualitativa, dos direitos subjetivos públicos e privados, dentro de certo domínio de aplicação (Constituição, arts. 12.º, n.º 1, 13.º, e 15.º, n.os 1 e 3).
67.º
A 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, ex post, procedeu à "Primeira alteração à Lei 81/2014, de 19 de dezembro, que «estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação e revoga a Lei 21/2009, de 20 de maio, e os Decretos-Leis 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio».
68.º
O artigo 2.º desse diploma legal veio ulteriormente a conferir nova redação, nomeadamente, ao artigo 2.º da Lei 81/2014, cit., aditando dois números à redação inicial do mesmo, nos seguintes termos:
"4 - No quadro da autonomia das regiões autónomas e das autarquias locais, podem estas aprovar regulamentação própria visando adaptar a presente lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias.
5 - O disposto no número anterior não pode conduzir à definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários, quer quanto ao cálculo do valor de rendas, quer quanto às garantias de manutenção do contrato de arrendamento."
69.º
A norma jurídica legal expressa pela conjugação destes n.os 4 e 5, do artigo 2.º, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, configura assim uma habilitação legal às regiões autónomas e às autarquias locais, para estas editarem "regulamentação própria", em ordem a "adaptar a [presente] lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias".
70.º
Ora, o termo "adaptar" é sinónimo, nomeadamente, de "modificar" ou "integrar", no caso os preceitos da lei habilitante.
71.º
Ou seja, a norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na ulterior redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, consubstancia uma habilitação legal para editar um regulamento municipal, autorizado, competente para modificar ou integrar os preceitos desse mesmo diploma legal, conquanto o mesmo disponha em matéria reservada à lei parlamentar.
72.º
Porém, a "política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar", pelo seu interesse, alcance e relevância nacional, constitui uma incumbência e configura uma reserva constitucional de Estado (Constituição, art. 65.º, n.º 3), sem prejuízo das responsabilidades executivas municipais.
73.º
E, mais, por força do decretamento da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), a qual regula pormenorizadamente os pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", vigora ainda nessa matéria uma reserva de lei, com o consequente congelamento do grau hierárquico.
74.º
Ou seja, a norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na ulterior redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, consubstancia uma habilitação legal para editar um regulamento municipal, autorizado, competente para modificar ou integrar os preceitos desse mesmo diploma legal, conquanto o mesmo disponha em matéria reservada à lei parlamentar.
75.º
Em conclusão, a norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º (Âmbito), da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, viola a proibição constitucional de emissão de habilitação legal para editar regulamentos municipais autorizados (ou delegados), modificativos ou integrativos, em matéria de reserva de lei, pelo que tal norma jurídica legal é materialmente inconstitucional (Constituição, arts. 111.º, n.º 2, e 112.º, n.º 5).
b) Artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do RRAAGPH, de Tavira
76.º
A "política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar", pelo seu interesse, alcance e relevância nacional, constitui uma incumbência e configura uma reserva constitucional de Estado (Constituição, art. 65.º, n. º3), sem prejuízo das responsabilidades executivas municipais.
77.º
E, por outra parte, por virtude do decretamento da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), a qual regula os pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", vigora ainda nessa matéria uma reserva de lei, com o consequente congelamento do grau hierárquico.
78.º
A lei em apreço regula pormenorizadamente os pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado".
79.º
Atribuídos, em condições de universalidade e igualdade aos "cidadãos nacionais e os cidadãos estrangeiros detentores de títulos válidos de permanência no território nacional".
80.º
O pressuposto legal necessário, mas suficiente para tanto, é o de que "reúnam as condições e não estejam em nenhuma das situações de impedimento previstas na lei" (art. 5.º, n.º 1, itálico nosso).
81.º
Não prevê a lei, pois, expressa ou implicitamente, como "condição de acesso" ou "impedimento", para tal efeito, qualquer condição de prévia residência no território municipal (cf. nomeadamente, os seus artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.os 1, 2 e 3).
82.º
Ora, o artigo 15.º (Causas de improcedência liminar da candidatura) n.º 1, alínea b), do RRAAGPH de Tavira, logo na sua redação originária, veio estabelecer o seguinte: "1 - Considera-se liminarmente improcedente a inscrição mencionada no artigo 13.º do presente regulamento, quando se verifique alguma das seguintes situações: [...] b) O candidato não seja residente no Concelho de Tavira há, pelo menos, 5 anos;".
83.º
Tal norma, jurídica regulamentar, municipal, tem caráter inovatório, face ao regime legal, pois a condição de prévia residência no território municipal não consta da lei, nomeadamente dos seus artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1 a 3, e excessivo, pela duração estabelecida de "pelo menos, 5 anos".
84.º
E tal norma jurídica regulamentar, municipal, tem, ainda, caráter restritivo, face ao regime legal, pois é configurada no RRAAGPH de Tavira como condição sine qua non de atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado, exigência essa que não consta da lei, nomeadamente dos seus artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1 a 3.
85.º
Ou seja, o artigo 15.º n.º 1, alínea b), do RRAAGPH de Tavira expressa uma norma jurídica regulamentar, praeter legem, com caráter modificativo, excessivo e restritivo dos pressupostos legais, positivos e negativos, do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", estabelecidos nos artigos 5.º, n.º 1 e 6.º, n.os 1 a 4, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (ulteriormente alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto).
86.º
Assumindo assim prerrogativas que, por virtude de reserva Constitucional de Estado e de reserva de lei, são do domínio reservado da lei parlamentar (Constituição, art. 68.º, n.º 3, e Lei 81/2014, de 19 de dezembro (alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto).
87.º
Em conclusão, a norma jurídica regulamentar, municipal, constante do artigo 15.º (Causas de improcedência liminar da candidatura), n.º 1, alínea b), do RRAAGPH, aprovado por deliberação de 29 de fevereiro de 2016, da Assembleia Municipal de Tavira, por consagrar uma condição regulamentar de prévia residência no "concelho de Tavira há, pelo menos, 5 anos", tem caráter modificativo, excessivo e restritivo dos pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", estabelecidos nos artigos 5.º, n.º 1 e 6.º, n.os 1 a 4, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (ulteriormente alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto), assumindo assim prerrogativas que são do domínio reservado da lei parlamentar, é materialmente (ou organicamente) inconstitucional (Constituição, arts. 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 2, 65.º, n.º 3, l.ª parte, 112.º, n.º 5, e 241.º).
V
(Pedidos declarativos e de restrição dos respetivos efeitos)
88.º
Em conformidade, vão formulados os seguintes pedidos declarativos:
- a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica legal, constante das disposições conjugadas dos n.os 4 e 5, do artigo 2.º (Âmbito), da Lei 81/2014 (Estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação), de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto;
e, ainda,
- a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma jurídica regulamentar, constante do artigo 15.º, n.º 1, alínea b), "Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira".
89.º
Finalmente, o regime do direito de habitação, nomeadamente do arrendamento apoiado, tem vincado cariz social e existencial, familiar e pessoal, pelo que, em nome da segurança jurídica, importa salvaguardar a estabilidade das situações eventualmente constituídas no âmbito de vigência das disposições legais e regulamentar em causa.
90.º
Assim, mais vai peticionada a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade, de modo a que os mesmos se produzam apenas retrospetivamente, a partir da publicação no jornal oficial da "decisão limitativa" a proferir nos autos, e sem eficácia repristinatória (art. 282.º, n.º 4).
Assim, requer a V. Exa. a admissão do presente requerimento e, após, a notificação dos autores das normas impugnadas (Assembleia da República e Assembleia Municipal de Tavira), para, querendo, se pronunciarem sobre o mesmo, seguindo o processo os demais trâmites legais até decisão final (LOFPTC, arts. 52.º e seguintes).».
3 - Notificados nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC), o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos, tendo enviado uma nota técnica, elaborada pelos serviços de apoio às Comissões Parlamentares, em virtude de a 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto (que procedeu à alteração dos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, de 19 de dezembro - as normas sindicadas) ter sido apreciada na (então) Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação.
Igualmente notificado para responder, o Presidente da Assembleia Municipal de Tavira juntou resposta enviada à Provedoria de Justiça pelo Município de Tavira, na qual se destaca a missiva enviada pela Presidente da Câmara Municipal de Tavira à Provedoria de Justiça, informando «que se perspetivava empreender alterações ao nível do referido regulamento municipal, no que à condição de residência diz respeito» (ofício n.º 2988, datado de 26/02/2020), bem como a expressão da intenção da própria Assembleia de «encetar todos os esforços com vista à revogação da alínea b) do n.º 1 do artigo 15.º do regulamento, passando a residência no concelho a ser considerada como critério referencial ou bonificação ao invés de limitar a sua exclusão». Transcrevendo a resposta do Presidente da Assembleia Municipal:
«[...]
«[...] esclarecimento da motivação que esteve na base da solução normativa que consta do "Regulamento de Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional" deste Município e estabelece o requisito de residência no concelho por um período mínimo de tempo (5 anos), no quadro do acesso a habitação municipal [...]».
O Município de Tavira, desperto para a sua função social, tem assumido a promoção de respostas habitacionais de cariz social como uma das prioridades na sua ação.
Assim, tendo por base o aprofundado conhecimento das preocupações sociais subjetivas implícitas ao território (nomeadamente, o fenómeno da sazonalidade que apresenta uma expressão e implicações significativas ao nível das dinâmicas locais em diversificados domínios e encontra-se diagnosticado como um denominador comum, com crescente impacte a nível das situações mapeadas, em termos das carências económicas e habitacionais), a par da evolução do quadro legal, em matéria de habitação, procurou adaptar o regime à realidade urbana e social do concelho, tendo em vista o reforço da coesão territorial, na salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em conformidade e em termos proporcionais com os respetivos fins.
Mais se refere que as soluções habitacionais para quem, em situação de insuficiência económica entre outras, não preencha o requisito de residência por um período mínimo no concelho, encontram-se acauteladas por via do artigo 5.º, nos termos do regime excecional, previsto no quadro regulamentar de acesso a habitação municipal e em consonância com o estabelecido no Regime de Arrendamento Apoiado para Habitação.
Em comunicado à Provedoria da Justiça (ofício n.º 2988, datado de 26/02/2020), que se junta, a Câmara Municipal de Tavira informou que se perspetivava empreender alterações ao nível do referido regulamento municipal, no que à condição de residência diz respeito.
Face ao exposto iremos encetar todos os esforços com vista à revogação da alínea b) do n.º 1 do artigo 15.º do regulamento, passando a residência no concelho a ser considerada como critério referencial ou bonificação ao invés de limitar a sua exclusão.».
4 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e tendo este sido submetido a debate, de acordo com o n.º 2 do referido preceito, cumpre agora decidir em conformidade com a orientação do Tribunal, que foi então fixada.
II - Fundamentação
5 - Assiste legitimidade à Procuradora-Geral da República para requerer a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas, com força obrigatória geral, por força do disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
6 - As normas cuja constitucionalidade é questionada pela requerente constam (i) do artigo 2.º, n.os 4 e 5, da Lei 81/2014, de 19 de dezembro (novo regime do arrendamento apoiado para habitação), na redação que lhe foi dada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, e (ii) do artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional de Tavira, e apresentam a seguinte redação:
[Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto]
Artigo 2.º
Âmbito
1 - [...]
2 - [...]
3 - [...]
4 - No quadro da autonomia das regiões autónomas e das autarquias locais, podem estas aprovar regulamentação própria visando adaptar a presente lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias.
5 - O disposto no número anterior não pode conduzir à definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários, quer quanto ao cálculo do valor de rendas, quer quanto às garantias de manutenção do contrato de arrendamento.
[Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional de Tavira]
Artigo 15.º
Causas de improcedência liminar da candidatura
1 - Considera-se liminarmente improcedente a inscrição mencionada no artigo 13.º do presente regulamento, quando se verifique alguma das seguintes situações:
[...]
b) O candidato não seja residente no Concelho de Tavira há, pelo menos, 5 anos;
[...]».
7 - Com vista a um melhor entendimento do pedido formulado, o mesmo é dizer, das questões de constitucionalidade que são suscitadas nos autos, importa começar por dizer algo mais em relação ao seu enquadramento jusconstitucional e, neste âmbito, sobre o sentido e o alcance das normas sindicadas.
O artigo 65.º da Constituição configura o direito à habitação como um direito fundamental de natureza social, o que pressupõe a mediação do legislador ordinário com vista à concretização do respetivo conteúdo, conforme tem sido sinalizado em jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 130/92, 131/92, 280/93, 829/96, 32/97, 508/99, 29/00, 374/02 e 590/2004). Como foi especialmente assinalado no Acórdão 829/1996, as especificidades e condições concretas do direito à habitação, na sua dimensão prestacional ou positiva, sempre dependerão «da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (itálico nosso), decorrendo desta conceção «que o único sujeito passivo do direito à habitação condensado no artigo 65.º é o Estado». Esta compreensão das coisas decorre, com meridiana clareza, do estatuto deste direito, ou seja, da sua inserção no catálogo dos direitos económicos, sociais e culturais - concretamente, dos direitos sociais - e não nos direitos, liberdades e garantias, razão pela qual não lhe é constitucionalmente atribuída, por via de regra, a aplicabilidade direta.
Nesta mesma linha, pronunciou-se já este Tribunal Constitucional, designadamente no seu Acórdão 32/97 (tendo reiterado este mesmo entendimento no Acórdão 590/2004), onde esclarece: «O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 205 e 209) ou, antes, como um autêntico direito subjetivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efetiva, já que não é diretamente aplicável nem exequível por si mesmo» o que confirma que «ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei.».
Assim, depois de confirmado que o regime jurídico-constitucional do direito à habitação lhe confere o estatuto de direito aplicável pela mediação do legislador, verifica-se também que a Constituição não contém uma ordem de legislar, concreta e precisa, que permita identificar os instrumentos de execução que o Estado deve utilizar na concretização do preceito constitucional em causa, deixando, assim, uma larga margem de conformação ao legislador que, dentro dos limites constitucionalmente exigidos, goza de liberdade de escolha quanto às opções de política social a implementar (cf. Acórdão 806/93).
Todavia, para o caso dos autos, é indispensável convocar o disposto no n.º 3 do artigo 65.º da CRP, segundo o qual «[o] Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.». À semelhança do previsto no n.º 2 do mesmo artigo, e ao contrário do disposto no n.º 4, este último sobre a definição das regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos - e que prevê como destinatários da norma não só o Estado, mas também as regiões autónomas e as autarquias locais - , no que concerne à adoção de uma política de rendas que facilite o acesso à habitação, a Constituição estabelece que esta incumbência recai unicamente sobre Estado.
Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, «a garantia do direito à habitação implica o direito de acesso dos cidadãos às habitações, incumbindo ao Estado promover o acesso à habitação própria ou arrendada e estabelecer um regime de arrendamento que tenha em conta os rendimentos familiares» (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Ed., 2007, anotação ao artigo 65.º, p. 836). Em sentido idêntico, Jorge Miranda e Rui Medeiros concluem que do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 65.º da Constituição «extraem-se, concretamente, os princípios fundamentais que devem ser observados numa política de habitação constitucionalmente comprometida (cf., sublinhando que as diversas tarefas que o artigo 65. º impõe ao Estado são tarefas distintas e complementares, pelo que a prossecução por lei de uma delas não dispensa nem substitui a outra, Ac. n.º 590/04)» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição revista, Lisboa, Universidade Católica Ed., 2017, p. 959 e seg. - destacado nosso).
Foi neste contexto - mais exatamente, com vista à adoção de medidas concretas de prossecução de uma política de rendas que facilite o acesso à habitação - que a Assembleia da República aprovou a Lei 81/2014, de 19 de dezembro, diploma que «estabelece o regime do arrendamento apoiado para habitação», regulando a atribuição de habitações no âmbito de tal regime. Posteriormente, através da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, veio o mesmo órgão aprovar alterações àquela lei, tendo, nomeadamente, aditado os n.os 4 e 5 à redação original do artigo 2.º, com a seguinte redação:
4 - No quadro da autonomia das regiões autónomas e das autarquias locais, podem estas aprovar regulamentação própria visando adaptar a presente lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias.
5 - O disposto no número anterior não pode conduzir à definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários, quer quanto ao cálculo do valor de rendas, quer quanto às garantias de manutenção do contrato de arrendamento.
São estas as normas sindicadas, cabendo analisar, agora, e sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 5 do artigo 51.º da LTC, os parâmetros de constitucionalidade e legalidade invocados pela requerente, com vista à declaração da (sua) inconstitucionalidade com força obrigatória geral. É o que faremos de seguida.
8 - Um primeiro conjunto de parâmetros convocado no pedido com vista à declaração de inconstitucionalidades das normas legais sindicadas consubstancia-se nas normas constitucionais que fixam uma reserva de Estado e no princípio da indisponibilidade de competências. Analisemos tal linha argumentativa para descortinar se assiste ou não razão à requerente neste ponto.
A Procuradora-Geral da República alega que a redação conjugada dos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, configura uma habilitação legal concedida ex post às regiões autónomas e às autarquias locais, para estas editarem «regulamentação própria», em ordem a «adaptar a [presente] lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias», habilitação essa que, ainda nos termos do pedido, violaria - entre outras disposições constitucionais - a reserva de Estado imposta pelo n.º 3 do artigo 65.º, e o princípio da indisponibilidade de competências previsto no n.º 3 do artigo 111.º, ambos da CRP.
Não podemos acompanhar o pedido quanto aos parâmetros de constitucionalidade aqui convocados, pelas razões que veremos de seguida.
No que concerne à competência constitucional, no sentido de identificar a quem cabe o mandato constitucional de definir a medida do direito juridicamente assegurada (Manuel Afonso Vaz, ob. cit., p. 373 e segs.), é manifesto que o destinatário da norma contida no n.º 3 do artigo 65.º da Constituição é o Estado, cabendo a este o dever de implementar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria. No entanto, «[d]a natureza tendencial do artigo 65.º como direito social decorre [...] um amplo espaço de conformação do legislador», pelo que não só «a plena efetividade do direito à habitação "está dependente da reserva do possível, em termos políticos, económicos e sociais" (Ac. n.º 374/02)» como, a acrescer a essa liberdade constitutiva, «o legislador ordinário nem sequer está vinculado às opções legislativas adotadas num determinado momento histórico» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, cit., p. 960).
É importante assinalar que, ao contrário do previsto para a definição das regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos (cf. artigo 63.º, n.º 4 da CRP) - matéria que, pela sua evidente dimensão geográfica, concorre diretamente com interesses regionais e locais - na definição de um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria, não estamos perante matéria que a Constituição tenha entendido como sendo própria das regiões autónomas ou das autarquias locais ou que seja, sequer, concorrente com os interesses destas entidades, não devendo ser por estas tratada de modo autónomo e com responsabilidade própria. Tal não significa, porém, que a existência de regulamentação regional ou local nesta matéria seja constitucionalmente inadmissível: significa apenas que não estamos perante um conjunto de interesses específicos das comunidades locais e consequentemente, no contexto do espaço incomprimível da autonomia local (sobre este «espaço incomprimível» cf. o Acórdão 432/1993, onde se concluiu que as normas aí sindicadas não implicavam uma «alteração desproporcionada da competência das autarquias definida no artigo 65.º, n.º 4, da Constituição da República», pelo que o Tribunal Constitucional decidiu pela sua não inconstitucionalidade).
É relevante convocar outra jurisprudência do Tribunal Constitucional, constante do Acórdão 432/1993, na qual se confirma que a incumbência de concretização do direito à habitação cabe, em primeira linha ao Estado, não deixando, no entanto, de se reconhecer a existência de interesses legítimos das autarquias nesta sede:
«[...] incluem-se num complexo de regulação de tarefas constitucionais (Verfassungsaufträge) que não devem ser tratadas pelas autarquias de modo autónomo e com responsabilidade própria. Essas normas concretizam a escolha de meios para uma política de asseguramento do direito à habitação que a Constituição define como incumbência primária do Estado. Envolvem decisões em matéria de ordenamento do território e planeamento urbanístico que não são privativas das autarquias [cf. C.R.P., artigo 65.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e c)]. E não o são porque respeitam ao interesse geral da comunidade constituída em Estado. Estas matérias transcendem o universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e auto-responsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local.
Isso não significa a "indiferença" das autarquias perante o material normativo do artigo 2.º, n.os 1 e 2, aqui em apreço. A promoção habitacional, a gestão do território e do ambiente interessam às autarquias desde logo e ao menos na medida em que se desenvolvem no seu espaço geográfico.».
Uma vez que as disposições sindicadas se referem expressamente à atribuição às regiões autónomas e às autarquias locais de competências regulamentares, é relevante referir que também não estamos perante matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República, ou seja, as regiões autónomas, no âmbito da sua autonomia legislativa, podem legislar sobre arrendamento apoiado para habitação [cf. artigos 164.º, 165.º, 227.º, n.º 1, al. a), e 228.º da Constituição]. Refira-se, aliás, a título de exemplo, que no Acórdão 590/2004, o Decreto Legislativo Regional 14/95/A, de 22 de agosto (que aprovou um programa de apoio à habitação), foi reconhecido e citado como uma medida que, à data, contribuía para a efetivação do direito de especial proteção no acesso à habitação por parte dos jovens (incumbência que, à semelhança do previsto no artigo 65.º, n.º 3, de acordo com o disposto no artigo 70.º da Constituição, recai sobre Estado).
Por outro lado, considerando o regime atualmente em vigor, é evidente que o Estado, através da Lei 81/2014, concretiza o seu mandato constitucional, uma vez que através da mesma aprova, entre outras disposições relevantes, as condições de acesso e atribuição das habitações em regime de arrendamento apoiado (cf. Capítulo II da lei).
Assim, e no que especificamente diz respeito à questão suscitada no pedido em relação à reserva de Estado, entende-se que a redação dada a este regime pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, ao prever a possibilidade de aprovação de regulamentação secundária pelas regiões autónomas e pelas autarquias locais, não constitui uma violação da reserva de Estado, uma vez que a opção, pelo legislador constitucionalmente competente, de atribuir uma maior (ou menor) intervenção ao poder regional e local na concretização de uma política de rendas que facilite o acesso à habitação - naturalmente, dentro dos limites constitucionalmente exigidos - está situada dentro dos parâmetros de liberdade de escolha do legislador quanto às opções de política social a levar a cabo.
Seguindo ainda esta parte do pedido, é também convocado o princípio da indisponibilidade de competências o qual, pode desde já adiantar-se, também não justifica a sua convocação para sustentar o juízo decisório deste Tribunal.
De acordo com o artigo 111.º, n.º 2, da Constituição, «[n]enhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei.». Em anotação a este preceito, Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que este preceito «significa que nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou do poder local pode "transferir" para outros órgãos "poderes" que só a eles foram constitucionalmente atribuídos», impondo-se «não deixar subverter a ordenação de competências através de "delegações" ou "transferências" de poderes». Acrescentando: «[a] proibição de delegação de poderes abrange a delegação em sentido restrito e, por maioria de razão, a chamada transferência de poderes. Esta consiste na transmissão, a título definitivo, dos poderes de um titular para outro; a delegação caracteriza-se pela simples transferência do exercício da competência atribuída a um órgão para outro órgão. As consequências práticas mais relevantes, sob o ponto de vista constitucional, do princípio da indisponibilidade de competências são: (a) a proibição dos chamados «plenos poderes», através dos quais se possibilitava ao governo avocar o exercício de qualquer poder ou atribuição; (b) a proibição, mesmo nos casos de delegação constitucionalmente admitidos, das chamadas delegações genéricas, isto é, delegações respeitantes a funções globais (ex.: dos órgãos de soberania para os órgãos regionais); (c) a proibição de renúncia a competência, sendo nulos os atos dos órgãos de soberania cujo objeto seja a renúncia à titularidade ou ao exercício da competência» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2010, anotação ao artigo 111.º, p. 47).
Como decorrência deste princípio, e ainda como consequência dos termos que resultam da própria Constituição, «[a] possibilidade de a lei autorizar a delegação de poderes deve, pois, circunscrever-se aos poderes atribuídos por lei, excluindo os poderes constitucionalmente atribuídos [...]. De outro modo, a lei poderia subverter, não só o princípio da separação dos órgãos de soberania (n.º 1); mas, também, o princípio da fixação constitucional da sua competência (art. 110.º-2)» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., Vol. II, cit., p. 48). No mesmo sentido, e sublinhando nomeadamente que «[s]e fosse admitida sem limites de sujeitos, de conteúdo e de tempo, a delegação vulneraria a própria lógica interna do sistema», pelo que ela tem «de se entender excecional ou estritamente confinada a determinadas faculdades» e «[t]em de ser a norma jurídica a prevê-la, por o poder de a decidir fazer parte da competência do órgão, e este poder ter de ser exercido de forma expressa, nunca de forma tácita», cf. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, 2.ª edição revista, Lisboa, Universidade Católica Ed., 2018, p. 287. Autores que assinalam, ainda, a propósito do mesmo artigo 111.º da CRP (ob. cit., loc. cit.): «[s]e a competência é estabelecida por uma norma constitucional, apenas pode ser alvo de delegação quando outra ou a mesma norma constitucional a estabeleça». Na jurisprudência deste Tribunal Constitucional este entendimento tem sido também posto em evidência, nomeadamente no Acórdão 176/2017, onde é chamada à colação «a proibição constitucional de delegação de poderes não constitucionalmente prevista decorrente dos princípios da fixação constitucional da competência dos órgãos de soberania e da indisponibilidade de competências (v., respetivamente, os artigos 110.º, n.º 2, e 111.º, n.º 2, ambos da Constituição)».
Ainda a propósito do princípio da indisponibilidade de competências, revela-se pertinente convocar outra jurisprudência do Tribunal Constitucional, em particular a contida no Acórdão 296/2013:
«Constituindo corolário lógico do princípio do Estado de direito democrático e do princípio da separação de poderes, o princípio da indisponibilidade de competência, consagrado no artigo 111.º, n.º 2 da Constituição, proíbe a transferência ou delegação de poderes, sem previsão constitucional ou legal, designadamente entre os órgãos de soberania ou de poder local.
A transferência e a delegação de poderes entre estes órgãos estão, portanto, sujeitas à necessidade de um fundamento normativo expresso. No caso de poderes constitucionalmente definidos é necessário que a norma habilitante para a transferência ou delegação resulte do texto constitucional. A possibilidade de a lei autorizar a delegação de poderes apenas ocorre nos casos em que estes são originariamente atribuídos por lei.».
Procurando verter estas indicações constitucionais nas normas sindicadas, é importante notar que não se pode concluir que exista aqui uma reserva de conteúdo constitucional: não obstante a incumbência de estabelecer um regime de arrendamento que tenha em conta os rendimentos familiares caber ao Estado, a verdade é que o conteúdo da norma do artigo 65.º, n.º 3, depende de intervenção autónoma do legislador ordinário, razão que conduz à resposta negativa que antecipámos. Na verdade, a margem de liberdade dada ao legislador permite que a Assembleia da República possa optar por incluir as regiões autónomas e as autarquias locais na concretização da política social em causa, designadamente, através da atribuição, por via legislativa, de competências regulamentares. O que, a este respeito, é o suficiente para confirmar a inexistência da citada reserva de Estado.
Por outro lado, importa ainda sublinhar que a Assembleia da República, através da Lei 81/2014, definiu efetivamente um regime nacional de arrendamento apoiado, e que as alterações introduzidas pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016 não revogaram esse regime previsto na lei, não se tendo passado a remeter para os órgãos das regiões autónomas ou das autarquias locais a concretização do preceito constitucional em causa. Estas alterações representam, somente, a identificação, por parte do legislador competente - reconhecendo para o efeito poderes à pessoa coletiva Estado, por intermédio da Assembleia da República -, da existência de especificidades locais que justificam a atribuição de um papel de regulação - e, nestes termos, necessariamente secundário e complementar - a estes órgãos das pessoas coletivas regionais e locais, no contexto do regime legal já existente, e tal reconhecimento, como já se referiu supra, situa-se dentro dos parâmetros de liberdade de escolha do legislador.
Face ao exposto, resta concluir, reforçando a conclusão já avançada, que a mera previsão de competências regulatórias regionais e locais no regime aprovado por lei da Assembleia da República, não consubstancia uma delegação de poderes deste órgão de soberania nos órgãos das regiões autónomas ou das autarquias locais e, logo, não existe violação do princípio da indisponibilidade de competências previsto no n.º 2 do artigo 111.º da Constituição.
9 - Ainda no que toca às normas legais sindicadas, cumpre abordar outra questão - ou, que é dizer o mesmo, um outro parâmetro constitucional invocado pela requerente - , a de saber se, face à concreta redação dos n.os 4 e 5 do artigo 2.º, que confere uma ampla competência regulamentar às regiões autónomas e às autarquias locais («podem estas aprovar regulamentação própria visando adaptar a presente lei»), existe uma violação do princípio da preeminência (ou da preferência) da lei. Como assinala Ana Raquel Moniz, «[s]ublinhar o fundamento legal do poder regulamentar implica, desde logo, o reconhecimento do princípio da preeminência (da primazia ou da preferência) da lei», tratando-se «de uma questão conexionada de forma íntima com o problema dos limites do poder regulamentar e com a posição do regulamento no quadro das "fontes do direito"», proibindo este princípio, «nos termos do n.º 5 do artigo 112.º da Constituição, a existência de regulamentos modificativos, suspensivos, derrogatórios ou revogatórios das leis» (cf. Ana Raquel Moniz, A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade - Contributo para a Teoria dos Regulamentos, Almedina, Coimbra, 2012, p. 65).
Mais em concreto, está em jogo determinar se estas disposições consubstanciarão, ou não, a violação da reserva de lei prevista no n.º 5 do artigo 112.º da Constituição. Estatui este preceito constitucional que «[n]enhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.». Conforme refere Gomes Canotilho, «[a] reserva de lei comporta duas dimensões: uma negativa e outra positiva. A dimensão negativa significa que nas matérias reservadas à lei está proibida a intervenção de outra fonte de direito diferente da lei (a não ser que se trate de normas meramente executivas da administração). Em termos positivos, a reserva de lei significa que, nessas mesmas matérias, a lei deve estabelecer ela mesmo o respetivo regime jurídico, não podendo declinar a sua competência normativa a favor de outras fontes (proibição de «incompetência negativa do legislador»)» - Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 726. Em sentido próximo, Jorge Miranda põe em evidência, a propósito desta norma constitucional contida no n.º 5 do respetivo artigo 112.º, a necessidade de observância dos «limites decorrentes das reservas constitucionais de matérias e competências. Onde houver reserva de lei o legislador excederia as suas atribuições se reduzisse matérias aí compreendidas ao nível regulamentar», não sendo «lícito ao legislador, a pretexto da flexibilidade, criar insegurança acerca do valor das fontes e dos atos jurídico-constitucionais» (cf. Jorge Miranda, anotação ao artigo 112.º, in: Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição, cit., tomo II, p. 309).
Assim, e centrando-nos especificamente na relação entre a lei e o regulamento - o ponto que mais nos interessa -, o princípio da reserva da lei proíbe que a lei preveja a faculdade de um regulamento dispor do seu conteúdo, ou seja, que através de reenvios normativos a lei remeta para regulamento a sua interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação, entendendo-se que a modificação abrange a própria extensão ou redução do âmbito da lei (cf. Jorge Miranda, «Lei», in: Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume V, Lisboa, 1993, p. 381 e seg.). Assim, e acompanhando ainda Jorge Miranda, «[n]ão pode haver regulamentos delegados ou autorizados, ou regulamentos que assumiriam função de lei - que, em vez de se dirigirem à "boa execução das leis" [art. 199.º, alínea c)] fariam o mesmo que uma lei. [...] A hierarquia do ordenamento jurídico, a racionalização das tarefas normativas e a segurança dos cidadãos reclamam claramente o que a Constituição prescreve no art. 112.º, n.º 5» (Jorge Miranda, Atos legislativos, Almedina, Coimbra, 2019, p. 104). Sendo as normas regulamentares emanadas no exercício da função administrativa - função que deve ser levada a cabo com submissão à função legislativa, por se tratar de uma função secundária ou de segundo grau - isso implica que, para além do seu valor infra legal, têm sempre uma relação de dependência com a lei, sendo normas derivadas ou secundárias do ordenamento jurídico, ou seja, são sempre as leis que determinam o seu próprio conteúdo, não podendo tal tarefa caber aos regulamentos (neste sentido, cf. Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, Almedina, Lisboa, 1980, p. 109; e Jorge Miranda, Atos legislativos, cit., p. 103).
Deve reconhecer-se, porém, que os regulamentos das autarquias locais, e por maioria de razão, também os das regiões autónomas, colocam questões particulares, na medida em que «[a]s relações entre a lei e os regulamentos dos entes autónomos não é inteiramente semelhante à dos regulamentos da administração central. Os regulamentos das autarquias locais não são meros "prolongamentos das leis" mas a manifestação de um poder normativo descentralizado [...]. Se a lei pode regular os confins entre as duas fontes, ela não pode eliminar o próprio núcleo essencial de reserva autónoma regulamentar. Nesse sentido, os regulamentos dos entes autónomos são, nos próprios termos constitucionais (cf. art. 241.º), subordinados à lei, mas esta encontra limites inderrogáveis na natureza ordenamental autónoma (reserva do núcleo essencial da regulação autonómica como limite da preferência, precedência e reserva de lei)» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., p. 843).
Seguindo este entendimento e tendo em conta as especificidades locais, o legislador, nesta situação a Assembleia da República, pode «autorizar» complementações regulamentares a serem levadas a cabo por intermédio de regulamentos autónomos das autarquias locais, uma vez que estamos no âmbito de matérias que, embora exigindo um regime legal substancial, não implicam, pelo menos em termos estritos a referida complementação regulamentar - por ser esse o caso das medidas de concretização de uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria. Todavia, é importante sublinhar que tais regulamentos autónomos (não só neste domínio, mas em geral) nunca poderão substituir a lei e, muito menos, ocupar espaços constitucionalmente reservados à lei (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., p. 843, aludindo à admissibilidade do que chama de «reserva de administração vertical», mas sempre subordinada ao citado limite).
Assim, a Assembleia da República, ao reconhecer a existência de interesses próprios regionais e locais no contexto da realização de uma tarefa constitucional estadual, deve concretizar o âmbito de tais interesses através da clara definição das competências subjetivas, delimitando de forma rigorosa «o dualismo de tarefas traduzido na prossecução de "interesses próprios" e na cooperação para a concretização de tarefas estaduais» (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., p. 738). Ora, e aproximando-nos de novo das normas sindicadas, tal não se verifica na redação conjugada dos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, na redação dada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016. Estes preceitos conferem às regiões autónomas e às autarquias locais competência para adaptar a presente lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias (cf. n.º 4 do artigo 2.º - destacado nosso), competência essa que só pode ser entendida como uma autorização para modificar e - uma vez que, como vimos, a modificação da lei abrange a própria extensão ou redução do respetivo âmbito - revogar os preceitos constantes do regime legal.
Reside aqui o ponto central de análise da questão de constitucionalidade, do ponto de vista da alegada violação do princípio da reserva de lei: a possibilidade, conferida pela norma sindicada, de as regiões autónomas e as autarquias locais aprovarem regulamentação própria com vista à adaptação da lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias facultada pela norma sindicada, permite àquelas pessoas coletivas autónomas (regiões autónomas e autarquias locais) pelo menos modificar e revogar preceitos legais: não está em causa uma mera concretização do regime legal, mas um poder de modificação, que a Constituição não permite. "Adaptar" implica permitir uma derrogação, constitui uma credencial para as regiões autónomas e as autarquias locais modificarem a lei em derrogação do n.º 5 do artigo 112.º da Constituição. Ao permitir tal modificação, a norma sindicada está a permitir regulamentos autorizados ou delegados que, como vimos, contrariam a Constituição.
Não está aqui em causa uma lei que permita a emissão, nos termos constitucionalmente admitidos, de regulamentos independentes autónomos: «os regulamentos regionais e locais estão constitucionalmente garantidos (artigo 227.º/d) e 241.º) e a sua emissão está legalmente prevista e atribuída aos órgãos competentes pela lei (Estatutos das Regiões Autónomas, Lei das Autarquias Locais) (cf. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 3.ª ed., 2013, p. 135). Pelo contrário, abre-se a porta a regulamentos que podem modificar ou revogar preceitos legais pertinentes, pelo que também é claro estarmos para lá da figura de regulamento de execução ou mesmo de regulamentos complementares. E, não obstante a elasticidade da reserva de lei, o artigo 65.º, n.º 3, da Constituição não deve nem pode ser concretizado desta forma, uma vez que a lei remete para regulamentos autorizados ou delegados, proibidos pelo n.º 5 do seu artigo 112.º Convém a este propósito notar que, mesmo em análises de autores que se mostram mais favoráveis a uma tal «elasticidade» da reserva de lei - a propósito, precisamente, de jurisprudência mais antiga deste Tribunal, em que teria sido seguido um «entendimento estrito da reserva de lei» suscetível de levantar dúvidas «porque e na medida em que é confrontado com a reserva de autonomia que a Constituição por sua vez garante às autarquias locais» (cf. Vieira de Andrade, «Autonomia Regulamentar e Reserva de Lei - Algumas reflexões acerca da admissibilidade de regulamentos das Autarquias Locais em matéria de direitos, liberdades e garantias", in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró - Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Tomo I, 1984, p. 2) - o que na verdade está em causa é «abrir a possibilidade de o legislador remeter (ou não) para regulamento a definição de alguns aspectos do regime de situações incluídas na matéria reservada», sublinhando: «Naturalmente, esses aspectos não serão nunca aspectos essenciais ou primários, que impliquem opções fundamentais, pois estas pertencem ao núcleo típico da função legislativa e são por isso inequivocamente da responsabilidade própria e irrenunciável do legislador. Mas, por que há-de ser inconstitucional a autorização da lei aos órgãos da Administração para regularem questões secundárias ou menos importantes [...] desde que boas razões (de eficiência, de flexibilidade, de proximidade dos factos, por exemplo) o aconselhem?» (cf. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 14).
Acrescente-se que o n.º 5 do mesmo artigo 2.º («O disposto no número anterior não pode conduzir à definição de normas regulamentares menos favoráveis para os arrendatários, quer quanto ao cálculo do valor de rendas, quer quanto às garantias de manutenção do contrato de arrendamento»), define apenas dois limites aos poderes regulamentares atribuídos no n.º 4, o que não só é manifestamente insuficiente para delimitar adequadamente as competências subjetivas dos órgãos em questão, como a sua leitura a contrario pode conduzir ao entendimento de que, excecionados o cálculo do valor de rendas e as garantias de manutenção do contrato de arrendamento, é possível a aprovação, por via regulamentar, de normas menos favoráveis às previstas no regime legal.
Para além da necessidade de se garantirem «critérios objetivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo setor público» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., Vol. I, cit., p. 835), de modo a assegurar, nesta vertente, um real acesso ao direito à habitação - no caso, em relação à possibilidade de os interessados acederem à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado - , a regulamentação secundária/regulamentar não poderá substituir-se à lei na definição das relações entre o Estado e os cidadãos, não lhe podendo ser atribuída a capacidade de alterar as condições de acesso ao regime de arrendamento apoiado já definidas na lei, sob pena de inconstitucionalidade. Conforme refere Mário Esteves de Oliveira, os regulamentos autónomos, de que são exemplo paradigmático os regulamentos emanados pelas autarquias locais, «só são de equiparar, como regulamentos "praeter legem", aos regulamentos delegados, na medida em que neles se conterão prescrições ou disciplina para além daquela fixada em lei anterior», mas «têm uma natureza e fundamento completamente distintos» de tais regulamentos delegados e estão, também eles, limitados pelo disposto na lei: não podem violar comandos legislativos anteriores, ou seja, não podem ser contra-legem. Tal significa que o legislador, ao prever medidas legislativas gerais, está necessariamente a condicionar ou limitar as manifestações regulamentares dos entes autónomos (cf. Mário Esteves de Oliveira, ob. cit., p. 116-118).
Prever a possibilidade de adaptação da lei através de regulamento, não é senão habilitar as regiões autónomas e as autarquias locais a aprovarem regulamentos modificativos capazes de alterar e, consequentemente, revogar os preceitos normativos previstos na lei, pelo que se considera que a redação conjugada dos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, na redação dada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, é inconstitucional, consubstanciando uma violação do disposto no n.º 5 do artigo 112.º da Constituição.
Não se trata, assim, de um vício formal ou procedimental, uma vez que é o próprio conteúdo das normas em apreço - por violar uma norma relativa ao teor dos atos legislativos - que é contrário à norma constitucional, pelo que se considera que tal vício configura uma inconstitucionalidade material: como ficou dito no Acórdão 289/2004, «é o legislador que é destinatário da proibição constante do n.º 6 [atual n.º 5] do artigo 112.º da Constituição, como tem sido afirmado em jurisprudência uniforme deste Tribunal», pelo que «o que importa determinar é se a norma legislativa confere a um ato regulamentar uma força jurídica equivalente à da lei e, por isso, padece do vício de inconstitucionalidade». O que deve ser articulado com a ideia, também desde há muito plasmada na jurisprudência deste Tribunal, segundo a qual a regra constitucional em apreço «não é uma regra respeitante à competência e forma dos actos normativos, mas sim uma norma relativa ao conteúdo dos atos legislativos. Ela proíbe que os diplomas legislativos autorizem a sua revogação, modificação, interpretação ou integração, ou a suspensão da sua eficácia, por ato não legislativo, designadamente por via de regulamento. Uma norma legal que contrarie tal preceito será materialmente inconstitucional» (Acórdão 303/85, ponto 2.2., itálicos nossos).
Em suma: os parâmetros de constitucionalidade convocados pela requerente com vista à declaração de inconstitucionalidade das normas sindicadas, se perecem em relação a uma eventual violação da reserva de Estado e do princípio da indisponibilidade de competências - por nós afastados - devem vingar no tocante à argumentação que encontra arrimo na violação do princípio da reserva da lei.
10 - Ainda antes de nos debruçarmos sobre o pedido formulado em relação ao Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional de Tavira (doravante, Regulamento ou RRAAGPH), uma última nota: as normas sindicadas deste Regulamento permitem precisamente aquilatar os riscos que as normas legais impugnadas comportam, na medida em que "autorizam" a edição de regulamentos autónomos, em contradição com regras jurídico-constitucionais relativas à reserva de lei.
Isto é, o pedido, ao ser dirigido contra normas regulamentares de um município - entretanto revogadas, como veremos de seguida - apresenta-nos uma concretização dos preceitos legais sindicados que demonstram que a ofensa ao direito fundamental à habitação não é meramente potencial, mas real, ao dar-se a possibilidade às regiões autónomas e aos municípios de, no uso do seu poder regulamentar, modificarem a lei que disciplina o regime do arrendamento apoiado para habitação.
11 - O pedido formulado pela Procuradora-Geral da República incide também, como vimos, sobre uma norma do RRAAGPH. De qualquer forma, não se revela sequer necessário entrar na apreciação dos fundamentos do pedido em relação a este Regulamento, pelas razões que passaremos a explicar.
Através do Edital 1166/2021 do Município de Tavira, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de outubro de 2021, a Assembleia Municipal de Tavira veio revogar a norma sindicada no pedido - a referida alínea b) do n.º 1 do artigo 15.º do Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional - conforme foi indicado. Para uma melhor compreensão da situação normativa vigente, transcreve-se de seguida o Edital de onde resulta a mencionada alteração:
«MUNICÍPIO DE TAVIRA
Edital 1166/2021
[...]
Artigo 1.º
Alteração do Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional
Os artigos 10.º e 15.º passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 10.º
[...]
1 - ...
2 - ...
a) ...
b) ...
c) ...
d) ...
e) ...
f) ...
g) ...
h) ...
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1 do presente artigo, sempre que a tipologia e as condições das habitações, objeto de procedimento, o permitam o órgão executivo do município pode deliberar conferir prioridade às candidaturas para atribuição de uma habitação em regime de arrendamento apoiado em função do estabelecimento da condição de residência por um período mínimo de tempo.
Artigo 15.º
[...]
1 - ...
a) ...
b) (Revogada.)
c) ...
d) ...
2 - ...»
Artigo 2.º
Norma revogatória
É revogada a alínea b) do artigo 15.º do Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional.
Artigo 3.º
Entrada em vigor
A presente alteração regulamentar entra em vigor no dia útil seguinte à sua publicação do Diário da República.»
Como é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência deste Tribunal, e como é sintetizado nas palavras de Gomes Canotilho (cf. Direito Constitucional..., cit, p. 946), «[o] controlo de constitucionalidade visa, em princípio, apreciar a conformidade ou desconformidade com a Constituição de normas existentes no ordenamento jurídico. Consequentemente, ficam, prima facie, fora do objeto de controlo normas já revogadas.». Todavia, de acordo com a posição do mesmo Autor e, em geral, da doutrina e da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não estamos perante uma regra absoluta, razão pela qual é necessário ir mais longe, primeiro no enquadramento do problema e, depois, na análise da situação normativa em apreciação. Nas palavras plasmadas no Acórdão 127/2022, «[o] Tribunal Constitucional dispõe de abundante jurisprudência acerca da utilidade do conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas entretanto revogadas» e, «[d]e acordo com a orientação desde há muito firmada, a revogação da norma objeto do pedido de declaração de inconstitucionalidade não determina, sem mais, a inutilidade da intervenção do Tribunal Constitucional.».
A questão discutida tem enorme relevo dogmático e prático uma vez que, ao contrário da revogação, que produz apenas efeitos para o futuro (ex nunc), a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos retroativos (ex tunc), em princípio desde o momento em que a norma entrou em vigor. Ou, dito de outra forma, segundo as palavras deste Tribunal, «a diferença entre a revogação por via de lei e a declaração de inconstitucionalidade reside apenas - ainda que decisivamente - no efeito prospetivo (ex nunc) da primeira, por oposição ao efeito retroativo (ex tunc) da segunda» (Acórdão 127/2022).
A regra geral assinalada, da produção de efeitos retroativos por parte da declaração de inconstitucionalidade, apenas tem sido afastada em situações excecionais nas quais o Tribunal Constitucional entende que deve haver lugar à apreciação de constitucionalidade de normas revogadas, situações essas que dependem fundamentalmente da existência de um interesse jurídico relevante, que justifique a adequação, necessidade e proporcionalidade de avaliação do pedido (ver, nomeadamente, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 17/83, 238/88, 135/90, 308/93, 397/93, 804/93, 806/93, 186/94, 57/95, 580/95, 117/97, 673/99, 45/2000, 32/2002, 140/2002, 187/2003, 76/2004, 19/2007, 31/2009, 539/2012, 171/2021, 127/2022, 255/2022 e 420/22).
Conforme é referido no Acórdão 171/2021 (e reiterado nos mais recentes Acórdãos n.os 127/2022, 255/2022 e 420/22, que para ele remetem), não existirá o assinalado interesse jurídico relevante «sempre que se verifique uma de três situações. Em primeiro lugar, quando seja previsível que a declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade venha acompanhada de uma decisão de fixação de efeitos, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, que mitigue ou elimine a sua repercussão no passado (v. os Acórdãos n.os 238/88, 135/90, 308/93, 186/94, 57/95, 580/95, 497/97, 671/99. 45/2000, 531/2000, 140/2002, 404/2003, 497/2007 e 31/2009). Em segundo lugar, quando se demonstre que a declaração de inconstitucionalidade de normas não alteraria a posição jurídica dos interessados, designadamente porque as decisões que as aplicaram transitaram em julgado (v. os Acórdãos n.os 188/94, 592/99, 45/2000, 32/2002 e 76/2004), as normas eventualmente inconstitucionais seriam mais favoráveis aos arguidos (Acórdão 288/88) ou os efeitos jurídicos produzidos são, por natureza, irreversíveis (Acórdão 135/90). Em terceiro lugar, quando seja reduzido o número de casos em que sejam aplicáveis as normas revogadas, casos esses em que permanece aberta a via do recurso de constitucionalidade (v. os Acórdãos n.os 17/83, 32/2002, 187/2003, 485/2003 e 539/2012). A estas três categorias de casos aplica-se o entendimento segundo o qual, "seria inadequado e desproporcionado acionar um mecanismo de índole genérica e abstrata, como é a declaração de inconstitucionalidade (...) para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos por outro modo. Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade" (Acórdão 238/88).».
No mesmo Acórdão 171/2021 explica-se ainda que aquele interesse jurídico relevante se afere «em função de uma dupla exigência: por um lado, que a norma revogada tenha produzido efeitos jurídicos constitucionalmente relevantes durante a sua vigência; por outro, requer-se que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral seja "indispensável para atingir efeitos corretivos ou eliminatórios de largo alcance, mormente quando seja conhecida a pendência de número significativo de casos em que foram aplicadas as normas objeto de controlo" (v. os Acórdãos n.os 238/88, 186/94, 188/94, 57/95, 117/97, 497/97, 45/2000, 32/2002, 485/2003, 76/2004, 19/2007, 497/2007, 31/2009, 539/2012), devendo tal indispensabilidade ser evidente e manifesta (v. os Acórdãos n.os 238/88 e 32/2002). O alcance desta jurisprudência é o seguinte: como o único efeito útil potencial da invalidação é o que se projeta no passado, é necessário que a norma tenha produzido efeitos relevantes antes de ter sido revogada, efeitos estes a que só com a declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade se possa obviar de forma cómoda e segura.».
Ainda sobre o interesse jurídico relevante na declaração de inconstitucionalidade de normas revogadas, veja-se o que foi dito no Acórdão 238/1988, ainda recentemente convocado pelo Acórdão 420/2022: «há de [...] tratar-se de um interesse com "conteúdo prático apreciável", pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, "seria inadequado e desproporcionado acionar um mecanismo de índole genérica e abstrata, como é a declaração de inconstitucionalidade [...] para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo. Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade».
Ora, na situação em apreço, não só a norma sindicada do RRAAGPH - a alínea b) do n.º 1 do seu artigo 15.º - foi entretanto revogada, como não se dilucida um qualquer interesse prático relevante na respetiva declaração de inconstitucionalidade. Mais: em função da peticionada limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a que este Tribunal dará uma resposta positiva, nos exatos termos constantes do ponto seguinte deste Acórdão, o resultado seria sempre o de salvaguardar as situações jurídicas validamente constituídas ao abrigo do regime anterior.
No entanto, não se mostra necessário tal percurso argumentativo em relação ao Regulamento: na verdade, o artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do RRAAGPH - entretanto revogado - instituía como causa de improcedência liminar da candidatura à atribuição de uma habitação a circunstância de o candidato não ser residente no concelho de Tavira há, pelo menos, cinco anos. Esta norma insere-se no Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira, no qual se prevê um concurso para a atribuição de habitações sociais, que obedece a critérios como o tipo e a gravidade da carência habitacional dos agregados familiares e a composição, caracterização e escalão de rendimentos dos agregados, sendo a habitação atribuída aos candidatos por ordem decrescente de classificação.
Ora, é plausível que a imposição de tal requisito tenha tido como consequência a rejeição liminar de candidaturas que poderiam ter sido aceites e, eventualmente, graduadas numa posição que lhes conferisse o direito à atribuição de uma habitação social. Assim, a apreciação e a eventual declaração de inconstitucionalidade desta norma, com a produção de efeitos retroativos, teria como consequência a invalidação dos resultados dos concursos já realizados, a consequente necessidade de reavaliação de todas as candidaturas apresentadas até à data, e a provável anulação de contratos entretanto celebrados. Se, por um lado, tal efeito poderia corrigir situações de injustiça relativamente a eventuais candidatos liminarmente preteridos, por outro, afetaria de forma muito significativa e desproporcional os candidatos beneficiados e respetivos agregados, na medida em que, muito provavelmente, estes passariam a estar em risco de ter de deixar as suas atuais habitações e de ficar em situação de considerável precariedade, por motivos que não lhes são imputáveis.
Entende-se que tais consequências gerariam instabilidade e incerteza no tecido socioeconómico, lesando a segurança jurídica, sendo evidente a afetação de um interesse público de excecional relevo, que importa evitar. Acresce que os direitos dos candidatos excluídos pela falta de preenchimento do requisito do tempo de residência no Concelho de Tavira estarão, agora, acautelados, na medida em que, doravante, poderão apresentar nova candidatura, sem que sejam liminarmente excluídos com base nesse requisito.
Por outro lado, e como veremos no ponto seguinte, concorda-se com o pedido da Procuradora-Geral da República de, ao abrigo do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, e por razões de segurança jurídica, se restringirem os efeitos da decisão deste Tribunal, com o objetivo central de acautelar as situações jurídicas validamente constituídas ao abrigo das normas legais declaradas inconstitucionais - e o mesmo aconteceria se as normas regulamentares também o fossem. Isto é, caso o artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento não tivesse sido revogado e que da sua análise se concluísse pela sua inconstitucionalidade, a declaração desta viria acompanhada de uma decisão de fixação de efeitos.
Face ao exposto, entende-se que o Tribunal Constitucional não deve tomar conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica regulamentar, constante do artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira.
12 - Como vimos já, por força do disposto no n.º 1 do artigo 282.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos retroativos (ex tunc) - sendo agora de pôr em evidência a possibilidade da restrição de efeitos prevista no n.º 4 do mesmo artigo. Com efeito, o Tribunal Constitucional pode restringir tais efeitos quando razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público de excecional relevo o justifiquem.
Ora, no pedido dirigido a este Tribunal pela Procuradora-Geral da República é igualmente peticionada - para além dos pedidos declarativos de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas sindicadas - «a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade, de modo a que os mesmos se produzam apenas [...] a partir da publicação no jornal oficial da "decisão limitativa" a proferir nos autos, e sem eficácia repristinatória (art. 282.º, n.º 4)», por se dever tomar em consideração que «o regime do direito de habitação, nomeadamente do arrendamento apoiado, tem vincado cariz social e existencial, familiar e pessoal, pelo que, em nome da segurança jurídica, importa salvaguardar a estabilidade das situações eventualmente constituídas no âmbito de vigência das disposições legais e regulamentar em causa.».
Tomando em conta este pedido, deve sublinhar-se que, a propósito de uma questão análoga, o Tribunal Constitucional reconheceu já que medidas adotadas para promover o direito à habitação poderiam ser revistas num sentido regressivo por motivos justificados, de modo a equilibrar direitos em conflito [(cf. Acórdão 590/2004, em especial II., D)].
De facto, o efeito retroativo da declaração de inconstitucionalidade das normas, ao abrigo das quais foram muito provavelmente aceites candidaturas e celebrados contratos de arrendamento apoiado, significa que os respetivos beneficiários poderiam ser confrontados com a invalidade de tais atos e com a correspondente obrigação de anulação dos contratos celebrados. Tais consequências gerariam instabilidade e incerteza no tecido socioeconómico, lesando a segurança jurídica, pelo que é plenamente justificado proceder a uma limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por forma a proteger as situações concretas que se tenham constituído ao abrigo das normas que se propõe eliminar.
Concorda-se, assim, com o pedido da Procuradora-Geral da República de, ao abrigo do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, e por razões de segurança jurídica, se restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de modo a que os mesmos se produzam apenas a partir da data da publicação no Diário da República do Acórdão do Tribunal Constitucional.
III - Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, por violação do disposto no n.º 5 do artigo 112.º da Constituição;
b) Não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica regulamentar, constante do artigo 15.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira, entretanto revogada; e
c) Ressalvar, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, por motivos de segurança jurídica, os efeitos produzidos até à publicação do Acórdão no Diário da República pelas normas declaradas inconstitucionais na alínea a).
Lisboa, 18 de abril de 2023. - José Eduardo Figueiredo Dias - Maria Benedita Urbano - Gonçalo Almeida Ribeiro - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão (com declaração de voto) - José João Abrantes - José Teles Pereira - Pedro Machete - Mariana Canotilho (vencida, no essencial, pelas razões constantes da declaração de voto da Senhora Conselheira Assunção Raimundo) - Lino Rodrigues Ribeiro (Vencido, conforme declaração junta) - António José da Ascensão Ramos [vencido quanto à alínea a), pelas razões constantes da declaração de voto da Senhora Conselheira Assunção Raimundo] - Assunção Raimundo [vencida quanto a alínea a) do dispositivo nos termos da declaração de voto que junto] - João Pedro Caupers.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a alínea a) da decisão, por entender que as normas fiscalizadas, ao permitirem que normas regulamentares adaptem as disposições da lei, conferem a atos de outra natureza «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar» a lei, em termos expressamente proibidos pelo disposto no n.º 5 do artigo 112.º da Constituição.
O juízo de inconstitucionalidade depende, pois, do significado de adaptação: haverá transgressão do comando constitucional se, ao admitir à Administração adaptar os preceitos legais, o legislador lhe atribuiu o poder de modificar a disciplina legal.
Ora, a razão pela qual considero que o legislador conferiu a atos regulamentares o poder de modificar normas legais reside na circunstância de a Constituição utilizar o termo «adaptar» apenas uma vez, na alínea i) do artigo 227.º, quando atribui às assembleias legislativas das regiões autónomas, no uso de poderes legislativos, o poder de alterar certos aspetos do regime fiscal. Sendo este o sentido constitucionalmente atribuído ao termo, as normas fiscalizadas, ao permitirem que regulamentos administrativos possam «adaptar a presente lei» às realidades locais ou regionais - invocando justamente o «quadro da autonomia das regiões autónomas e das autarquias locais» - , outorga a prerrogativa de modificar normas legais, deixando estas de constituir parâmetro de validade dessa regulamentação. - Afonso Patrão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto à alínea a) do dispositivo.
Contrariamente ao que entendeu a maioria que fez vencimento, não interpreto as normas sindicadas - as contidas nos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação dada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto - , no sentido de possibilitar a modificação ou substituição regulamentar do regime jurídico imperativo estabelecido no diploma.
As normas destes preceitos permitem que as regiões autónomas e as autarquias locais, no quadro da sua autonomia, aprovem «regulamentação própria», visando adaptar a lei às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietários. Com estes pressupostos, o reenvio normativo não implica a assunção, por parte das regiões autónomas e das autarquias, de um poder que lhe é estranho, apenas utilizável mediante delegação do legislador; diversamente, a habilitação legislativa destina-se ao exercício de um poder próprio (poder normativo das regiões autónomas e das autarquias), ainda que ampliado por força do reenvio.
No que se refere aos municípios - a entidade administrativa que editou o regulamento questionado - , até se pode admitir um poder regulamentar autónomo diretamente fundado no artigo 241.º da CRP, desde que vise a prossecução dos «interesses próprios das populações respetivas», como é o caso da gestão do «património próprio» das autarquias locais (artigos 235.º, n.º 2 e 238.º, n.º 1, da CRP), sem precisar de estar abrangido pela obrigação constante da segunda parte do n.º 7 do artigo 112.º da CRP.
Todavia, admitindo que o regime de arrendamento apoiado é de interesse nacional e que os municípios destinam o seu património imobiliário a essa finalidade, as normas sindicadas, ao conferir poderes aos municípios para regulamentar decisões previamente conformadas pelo Estado, fá-lo tendo em conta também a necessidade de adaptar a normação previamente estabelecida a cada realidade local em concreto, reconhecendo assim, ainda que de forma meramente implícita, a existência de uma concorrência entre interesse local e interesse nacional.
Assim sendo, há que reconhecer que os municípios têm interesse em regulamentar os espaços deixados livres pela natureza supletiva de algumas das normas do regime do contrato de arrendamento apoiado para habitação, assim como pormenorizar determinações contidas nos preceitos normativos, tendo em vista a realidade física e social existente nos bairros e nas habitações de que são proprietários, ou mesmo integrar lacunas subsistentes na lei.
A Lei 81/2014, alterada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, regula um contrato de arrendamento para habitação, qualificando-o como «contrato administrativo», regido pela lei, regulamentos nela previstos e pelo Código Civil (artigo 17.º, n.º 2) - e o procedimento que conduz à sua celebração. Mas várias das normas relativas ao procedimento pré-contratual e ao conteúdo do contrato concedem à "entidade locador" margens de livre decisão administrativa que por ela podem e devem ser regulamentadas (cf. artigos 8.º, 10.º 11.º 14.º, n.º 2, 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 28.º-A; não estando excluída a possibilidade de introdução de cláusulas suplementares, no âmbito da autonomia pública de que gozam as entidades locadoras, desde que não contrariem as normas injuntivas estabelecidas na lei.
Tratando-se de um contrato administrativo, cujo objeto é passível de contrato privado - contrato de arrendamento para habitação - , o problema colocado pelas normas sindicadas é sobretudo uma questão de precedência de lei: o regulamento não pode contrariar o disposto nas normas legais injuntivas que estabelecem o regime do contrato. A natureza dispositiva (permissiva ou supletiva) de algumas das normas que compõem o regime legal do contrato, permite a edição de normas regulamentares sem pôr em causa o princípio constitucional da legalidade administrativa na vertente de reserva total de norma jurídica. Em tudo o que contrarie as normas injuntivas - dada a natureza administrativa do contrato, existe, como critério de interpretação, a presunção de injuntividade - a «adaptação» prevista nas normas sindicadas não consubstancia um regulamento delegado, a que o legislador atribua força de lei. A norma do n.º 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, na redação dada pelo 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, afasta mesmo a ideia de o legislador pretender operar uma «deslegalização» da matéria legislada mediante a remissão para regulamento. Sendo a maior parte das normas do regime procedimental e contratual normas imperativas absolutas, no sentido de que não podem ser alteradas por fontes de direito inferiores, o sentido da norma daquele n.º 5 é o de afirmar que, nos aspetos essenciais que justificam regime - cálculo do valor da renda e manutenção do contrato - , as normas do contrato de arrendamento são normas imperativas relativas, no sentido de que podem ser alteradas por fontes de direito inferiores apenas na medida em que estabeleçam melhores garantias para os arrendatários.
Portanto, não estamos perante uma situação em que a lei permite a sua alteração ou revogação futura por regulamento, em desconformidade com o n.º 5 do artigo 112.º da CRP; nem existe proibição constitucional de o legislador reenviar para instrumento regulamentar a continuação ou concretização de uma regulamentação por si iniciada, pois a lei reenviante apenas se encontra sujeita aos limites constitucionais da reserva de lei parlamentar (Acórdãos n.os 519/2018 e 390/2022). Mas as normas sindicadas não autorizam as regiões autónomas e os municípios a editar normas regulamentares modificativas das normas injuntivas do regime do arrendamento apoiado para habitação, nomeadamente as que estabelecem os requisitos de acesso. É por isso que o Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional de Tavira, na parte em que alterou os requisitos de acesso, era ilegal, sendo tais normas impugnáveis na jurisdição administrativa. - Lino José Batista Rodrigues Ribeiro
Declaração de voto
Vencida quanto a alínea a) do dispositivo.
1 - Conclui o acórdão, no ponto 9., que as normas contidas nos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, de 24 de agosto, violam o n.º 5 do artigo 112.º da Constituição, porque «[p]rever a possibilidade de adaptação da lei através de regulamento, não é senão habilitar as regiões autónomas e as autarquias locais a aprovarem regulamentos modificativos capazes de alterar e, consequentemente, revogar os preceitos normativos previstos na lei».
2 - Importa recordar que, de acordo com o n.º 1 do artigo 2.º da Lei 81/2014, alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, o regime de arrendamento apoiado é aplicável às habitações detidas, a qualquer título, no que para aqui releva, por autarquias locais ou por entidades dos setores intermunicipais e municipais, que sejam arrendadas ou subarrendadas com rendas calculadas em função dos rendimentos familiares a que se destinam. Assim, muito embora a regulamentação primária desta matéria incumba ao Estado - tendo a injunção constitucional sido cumprida com a adoção do regime legal aprovado com a Lei 81/2014 - as alterações decorrentes da 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, representam apenas um reconhecimento pelo legislador da existência de especificidades locais que justificam a atribuição um papel regulatório, necessariamente secundário e complementar, a estes órgãos no contexto do regime legal já existente, que respeita e se enquadra na margem de liberdade de escolha do legislador.
Para este efeito, é também necessário ter presente que a Lei 81/2014, alterada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, tem uma especial densidade normativa, pelo que a margem conformadora ou concretizadora, que é remetida (ou deixada) para adaptação, por via regulamentar, dirá respeito, forçosa ou necessariamente, a aspetos menores ou incidentais deste regime, legitimando as regiões autónomas e as autarquias locais (apenas e só) a adaptar o diploma às realidades física e social existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias (cf. n.º 4 do artigo 2.º na nova redação).
3 - Porém o alcance material da reserva de lei, situa-se no (novo) n.º 5 do artigo 2.º e, nessa medida, não somos do entendimento que a autorização concedida pelo n.º 4 da mesma norma, constitua uma "substituição" do legislador, mas antes uma autorização para regulamentar os direitos nela definidos.
Como sugestivamente refere Vieira de Andrade, a reserva material da lei, mesmo que tendencialmente total, há de ser elástica, capaz de permitir ou suportar algumas compressões, a fim de se adaptar à diversidade dos tipos de intervenção normativa, nesse sentido, sendo impraticável um modelo definitório rigoroso, não deixa de ser possível ou conveniente descobrir, na base de ordenação constitucional de competências, uma teoria material das funções, utilizando um modelo tipológico para distinguir materialmente as funções fundamentais do Estado, abrindo a possibilidade de o legislador remeter (ou não) para regulamento a definição de alguns aspetos do regime de situações incluídas na matéria reservada. Naturalmente, esses aspetos não serão nunca aspetos essenciais ou primários que impliquem opções fundamentais, pois estas pertencem ao núcleo da função legislativa e são inequivocamente da responsabilidade própria e irrenunciável do legislador. Mas matérias haverá que correspondem a um desenvolvimento ou adaptação de normas legais ditadas por razões de eficiência, de flexibilidade e de proximidade dos factos e, nesses casos, a inovação será sempre controlada pela necessidade de prosseguir o quadro normativo primário estabelecido na lei, acrescendo que, efetivamente, não se trata aí já do exercício de uma competência legislativa (cf. "Autonomia Regulamentar e Reserva de Lei", Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Afonso Queiró, 1986, p. 12 e 15-16).
4 - Seguindo esta linha de pensamento, as regiões autónomas e as autarquias locais terão uma competência para adotar regulamentos executivos ou complementares, em aspetos acessórios, secundários ou periféricos, pormenorizando ou procedimentalizando as normas contidas na lei regulamentada, devendo os mesmos respeitar a habilitação legal ou autorização específica e, como tal, respeitar a hierarquia das fontes normativas, assegurando a sua conformidade à vontade do legislador.
É esta a interpretação com que o n.º 5 do artigo 112.º da CRP onera o legislador, aliás, recentemente acolhida no Acórdão 83/2022:
«[...]
A revisão constitucional de 1982 "[...] veio a proibir em geral as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos praeter legem, ou seja, de regulamentos que venham a 'interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar [...]' quaisquer preceitos da própria lei 'habilitante' (artigo 112.º, n.º 5, da versão atual da CRP). Este princípio constitucional, introduzido em 1982, não pode deixar de ser considerado como um princípio de índole material ou substancial. O que nele se contém é algo mais do que uma regra ou conjunto de regras relativas a formas ou a competências. Com efeito, do princípio contido no n.º 5 do artigo 112.º da CRP decorre uma proibição (de reenvios normativos para regulamentos praeter legem) que, para além de incidir diretamente sobre o âmbito da conformação do legislador ordinário, limitando-o, reflete a intenção do regime aprovado em 1982: a de conferir uma outra, e mais intensa, tutela constitucional à reserva da função legislativa - enquanto delimitação daqueles domínios de vida que só podem ser regulados por atos legislativos com exclusão de quaisquer outras fontes normativas - , «reserva» essa que, em última análise, decorre do princípio mais vasto do Estado de direito (que, recorde-se, só veio a ser consagrado pelo texto da Constituição a partir de 1982)" (Acórdão 398/2008, ponto 12.). Esta interpretação do artigo 112.º, n.º 5, da CRP parece vedar ao legislador a possibilidade de remeter para fontes infralegais a regulação em termos inovatórios de matérias inicialmente reguladas em ato legislativo, e isto ainda que tais matérias extravasem do âmbito da reserva de lei. Tal interpretação não é, porém, incontestável. Como reconhece o próprio Acórdão citado, recorrendo à letra do artigo 112.º, n.º 5, os regulamentos administrativos prater legem são simplesmente aqueles que "[...] venham a 'interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar' quaisquer preceitos da própria lei habilitante". Ora, neste plano há que distinguir entre uma "lacuna de regulação" e "um espaço vazio (dir-se-ia, propositadamente vazio) nessa regulação" (Acórdão 620/2007, ponto 11.).
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, sustentam que "[...] a intervenção regulamentar visa regular aquilo que a lei se absteve de regular, e não "integrar" a regulamentação administrativa (o n.º 5 exclui expressamente os regulamentos integrativos), pelo que o regulamento nunca pode intervir sub specie legis; o poder exercido pela administração é um poder regulamentar próprio e não uma "delegação" do poder legislativo feita pela norma legal habilitante, daí resultando também que o reenvio tem natureza meramente formal, pois a lei reenviante não incorpora o conteúdo da norma regulamentar nem lhe pode atribuir força legal; ambas as normas mantêm a natureza e hierarquia respetivas, não se verificando qualquer fenómeno de integração" (Constituição...cit., vol. II, p. 70). Foi esta a posição que o Tribunal acolheu no Acórdão 519/2018, ao afirmar (ponto 6.) que, "[...] no âmbito da proibição estabelecida no n.º 5 do artigo 112.º da CRP[,] não se incluem as remissões normativas que consistem no facto de a lei remeter para normas regulamentares executivas ou complementares da disciplina por ela estabelecida. A proibição constitucional compreende apenas os reenvios normativos que se traduzem nos chamados 'regulamentos delegados' ou 'autorizados' (proibição dos regulamentos modificativos, suspensivos ou revogatórios das leis)"
São estes, pois, os limites a considerar em matéria de remissão para diploma regulamentar, que não deixam de ser coerentes com a delimitação do espaço normativo que cabe ao regulamento ocupar. Na verdade, os regulamentos "[...] desempenham um papel importante - o de descarregar o legislativo de tarefas com que não deve arcar: ou as relativas a matérias de pequena importância, ou as que tocam assuntos de dimensão acentuadamente técnica, ou, finalmente, as que implicam com situações facilmente mutáveis. E também prestam um inestimável serviço quando se exigem soluções rápidas, que o aparelho normativo originário não pode fornecer. Finalmente manifestam a sua utilidade quando se trata de aproveitar a experiência da administração em face de situações dificilmente previsíveis" (Rogério Soares, Direito Administrativo, lições ministradas no Curso de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, policópia s/d, p. 84). Assim, "[o] punctum crucis reside no equilíbrio entre, por um lado, o princípio do Estado de direito e o princípio democrático e, por outro lado, as exigências de eficiência e competência técnica para a disciplina jurídica da matéria em causa" (Ana Raquel Moniz, A Recusa...cit., p. 113). [...]".»
5 - Assim sendo, à luz do princípio da preeminência (da primazia ou da preferência da lei), os regulamentos que venham a ser adotados, em execução ou complemento da Lei 81/2014, alterada e republicada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, pelo seu inequívoco valor infralegal, não poderão, sob pena de violação do n.º 5 do artigo 112.º da Constituição, modificar, suspender, derrogar ou revogar a referida Lei.
No entanto, para aferir dessa violação ter-se-á de analisar a situação ou a sua normação específica, não se podendo, a priori, prescindindo duma análise concreta, ou num mero juízo prima facie, entender que a mera autorização legal, inserta no n.º 4 do artigo 2.º da mencionada Lei, para adotar regulamentos que a adaptem às realidades física e local existentes nos bairros e habitações de que são proprietárias, contenha qualquer habilitação legal, para a emissão de regulamentos praeter legem, que se encontram claramente vedados pelo referido parâmetro constitucional.
Os regulamentos devem, como ilustra Ana Raquel Moniz, estar "em estreita cumplicidade com a lei" (cf. "A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade", Almedina, Coleção Teses, p. 96). O poder regulamentar não é, assim, um poder livre da Administração, é um poder necessariamente vinculado, nomeadamente em termos de conteúdo, pela norma legal primária.
6 - Ora, neste caso concreto, a normação legal primária contém uma disciplina particularmente rigorosa e densa que, naturalmente, reduzirá o espaço para a discricionariedade regulamentar. Tais limites, referentes ao «cálculo do valor de rendas» e às «garantias de manutenção do contrato de arrendamento», por serem matérias de normação essencial e não meramente acessória, constituem, sem dúvida, reserva de lei ou o "núcleo essencial" das matérias reservadas. O legislador, ao deixá-lo explícito, não pretendeu, abrir o flanco a qualquer outra interpretação que contenda com os princípios anteriormente referidos.
Mas, qualquer que seja a interpretação, a sua apreciação, só caso a caso, é verificável. Como se disse, Administração dispõe de um poder necessariamente vinculado, quer em termos de conteúdo, quer em termos de legalidade.
Nesta conformidade, não acompanho o acórdão quando considera que a redação conjugada dos n.os 4 e 5 do artigo 2.º da Lei 81/2014, na redação dada pela 608/73, de 14 de novembro e 166/93, de 7 de maio»">Lei 32/2016, é inconstitucional, consubstanciando uma violação do disposto no n.º 5 do artigo 112.º da Constituição. - Maria Assunção Raimundo.
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Anexos
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Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
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1973-11-14 -
Decreto-Lei
608/73 -
Ministério das Obras Públicas - Secretaria de Estado do Urbanismo e Habitação
Define o regime aplicável às casas de renda limitada.
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1982-11-15 -
Lei
28/82 -
Assembleia da República
Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.
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1993-05-07 -
Decreto-Lei
166/93 -
Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações
ESTABELECE O REGIME DE RENDA APOIADA, CONFORME DISPOE O ARTIGO 82 DO REGIME DE ARRENDAMENTO URBANO (RAU), APROVADO PELO DECRETO LEI 321-B/90, DE 15 DE OUTUBRO. IDENTIFICA OS ARRENDAMENTOS SUJEITOS AO REGIME DE RENDA APOIADA. DEFINE OS CRITÉRIOS E A FÓRMULA QUE DETERMINAM O VALOR DA RENDA, SUA FORMA DE PAGAMENTO E RESPECTIVAS ALTERAÇÕES E REAJUSTAMENTOS NO SEU MONTANTE.
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1995-08-22 -
Decreto Legislativo Regional
14/95/A -
Região Autónoma dos Açores - Assembleia Legislativa Regional
CRIA UM CONJUNTO DE APOIOS A HABITAÇÃO A CONCEDER PELO GOVERNO REGIONAL DOS AÇORES. DISPOE SOBRE OS REFERIDOS APOIOS, TIPIFICADOS DA SEGUINTE FORMA: - CEDENCIA DE PROJECTO DE LOTEAMENTO, DE INFRA-ESTRUTURAS E PROJECTOS TIPO DE HABITAÇÃO, - COMPARTICIPACAO NA RECUPERAÇÃO DE HABITAÇÃO DEGRADADA, - CEDENCIA DE SOLOS, - COMPARTICIPACAO NA CONSTRUCAO, AMPLIAÇÃO E/OU REMODELAÇÃO DE HABITAÇÃO PRÓPRIA, - COMPARTICIPACAO NA AQUISIÇÃO DE HABITAÇÃO PRÓPRIA, - CONSTRUCAO E/OU AQUISIÇÃO DE HABITAÇÃO SOCIAL DESTINADA A R (...)
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1996-09-03 -
Acórdão
869/96 -
Tribunal Constitucional
DECLARA, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA CONSTANTE DO ARTIGO 3, NUMERO 3 - CRITÉRIO DE ATRIBUIÇÃO DE LICENÇAS -, DO DECRETO LEI 74/79, DE 4 DE ABRIL, - REGIME DE PRIORIDADE NA ATRIBUIÇÃO DE LICENÇAS PARA A EXPLORAÇÃO DA INDÚSTRIA DE TRANSPORTES DE ALUGUER EM VEÍCULOS LIGEIROS DE PASSAGEIROS -, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 115, NUMERO 5, DA CONSTITUICAO. RESTRINGE, POR RAZÕES DE SEGURANÇA JURÍDICA, E AO ABRIGO DO DISPOSTO NO ARTIGO 282, NUMERO 4, DA CONSTITUICAO, OS EFEITO (...)
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2008-01-14 -
Acórdão
620/2007 -
Tribunal Constitucional
Pronuncia-se pela inconstitucionalidade [fiscalização preventiva] da norma do art. 2.º, n.º 3, do Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, que estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, na parte em que se refere aos juízes dos tribunais judiciais (e, consequencialmente, das normas dos arts. 10.º, n.º 2, e 68.º, n.º 2), por violação do art. 215.º, n.º 1, da Constituição, e considera prejudicada a apreciação das normas constantes do (...)
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2009-05-20 -
Lei
21/2009 -
Assembleia da República
Revoga o Decreto n.º 35106, de 6 de Novembro de 1945, que insere várias disposições relativas à ocupação e atribuição de casas destinadas a famílias pobres.
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2016-08-24 -
Lei
32/2016 -
Assembleia da República
Primeira alteração à Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, que «estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação e revoga a Lei n.º 21/2009, de 20 de maio, e os Decretos-Leis n.os 608/73, de 14 de novembro, e 166/93, de 7 de maio»
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2019-08-27 -
Lei
68/2019 -
Assembleia da República
Aprova o Estatuto do Ministério Público
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2020-03-31 -
Lei
2/2020 -
Assembleia da República
Orçamento do Estado para 2020
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