I - 1 - Um grupo de 27 deputados à Assembleia da República, com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, veio requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, esta com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88, de 30 de Dezembro (diploma que aprovou o Orçamento do Estado para 1989), e segundo o qual se determinou a suspensão da vigência da Lei 103/88, de 27 de Agosto.
2 - Segundo os requerentes, o preceito em causa ofende a alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da Constituição, pois que, ao suspender a vigência da referida Lei 103/88, deixou subsistir uma discriminação ilegítima no tocante a vencimentos dos professores portadores do curso especial a que se refere o Decreto-Lei 111/76, de 7 de Fevereiro, e dos ex-regentes escolares, que detinham os mesmos direitos e deveres de qualquer docente diplomado, discriminação essa que visou ser abolida pela dita lei, que, com tal finalidade, foi aprovada.
3 - Igualmente os requerentes invocaram que o n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88 teve um efeito retroactivo, assim violando os artigos 17.º, 18.º, n.º 3, e 277.º da lei fundamental, uma vez que, constando a sua publicação do Diário da República, cuja distribuição ao público só ocorreu em finais de Janeiro, consequentemente, só na data dessa distribuição, acrescida da respectiva vacatio, entrando em vigor, isso implicou uma ilegal destruição dos efeitos que seriam produzidos pela mencionada Lei 103/88, cujo artigo 3.º determinou que a respectiva vigência tivesse lugar em 1 de Janeiro de 1989.
II - Cumprido o artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, limitou-se o Presidente da Assembleia da República a oferecer o merecimento dos autos.
III - 1 - É do seguinte teor o n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88, artigo esse precisamente subordinado à epígrafe "Gestão de recursos humanos":
.........................................................................................................................
11 - É suspensa a vigência da Lei 103/88, de 27 de Agosto.
.........................................................................................................................
2 - Por outra banda, dispôs-se na Lei 103/88:
Artigo 1.º Os vencimentos dos professores profissionalizados do ensino primário habilitados com o curso especial a que se refere o Decreto-Lei 111/76, de 7 de Fevereiro, passam a corresponder aos vencimentos dos restantes professores habilitados com o curso normal, de acordo com a legislação em vigor sobre fases e diuturnidades a que já tinham direito.
Art. 2.º O disposto no artigo 1.º aplica-se a todos os ex-regentes escolares, mesmo que não profissionalizados ou na situação de aposentação.
Art. 3.º A presente lei entra em vigor em 1 de Janeiro de 1989.
3 - Conforme se extrai do Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 118, de 20 de Julho de 1988, aquando da votação (e subsequente aprovação por unanimidade) do texto alternativo da Comissão de Educação, Ciência e Cultura à proposta de Lei 27/V e ao projecto de Lei 176/V, os deputados António Braga (PS), Carlos Lélis (PSD), Lourdes Hespanhol (PCP), Barbosa da Costa (PRD), Narana Coissoró (CDS), Herculano Pombo (Os Verdes) e João Corregedor da Fonseca (ID) efectuaram a seguinte declaração de voto:
Votámos favoravelmente o texto acima referido, tendo em consideração o que a seguir se refere.
O Decreto-Lei 204/81, de 10 de Julho, corrigiu, na época, o diferencial entre a remuneração dos professores habilitados com o curso especial criado pelo Decreto-Lei 111/76, de 7 de Fevereiro, e dos professores eventuais de posto das ex-colónias e a dos restantes professores portadores de habilitação normal.
No preâmbulo desse Decreto-Lei 204/81 considerava-se que "os ex-regentes escolares habilitados com o curso especial e os professores eventuais e de posto das ex-colónias são professores profissionalizados do ensino profissionalizado do ensino primário, tal como os formados pelas escolas do magistério primário", e também que "a diferença de habilitações de base que uns e outros possuem não justifica a actual discriminação de vencimentos estabelecida pelo Decreto-Lei 513-M1/79, de 27 de Dezembro". Refere-se no mesmo preâmbulo a necessidade de uma equiparação total das remunerações que naquele momento, 10 de Julho de 1981, não era tida como possível e, por isso, apontava para "medidas adequadas a uma aproximação progressiva entre uns e outros, uma vez que, sendo todos eles professores profissionalizados do ensino primário, a todos é exigido o exercício de funções idênticas".
Por outro lado, não se poderá atribuir a actual situação como resultado de uma opção que o Decreto-Lei 111/76 previsse ou permitisse, dado que esse decreto não faz qualquer referência a opções: não refere a possibilidade de frequência do curso geral, mediante aprovação ou não em exame de admissão, nem tinha de o fazer, uma vez que isso era um direito adquirido anteriormente; não refere a frequência do curso geral, com dispensa de exame de aptidão, ao abrigo do Decreto-Lei 44560, de 8 de Setembro de 1962.
Mas, na hipótese de se querer referenciar o conteúdo do n.º 2, alínea a), do artigo 8.º do Decreto-Lei 111/76, concluiu-se não ser essa uma possibilidade real, em virtude de a maior parte dos professores com o curso oficial ter regressado das ex-colónias em fins de 1975 e o artigo 6.º do citado decreto-lei determinar que a partir do ano escolar de 1975-1976 não eram permitidas matrículas pela primeira vez nos cursos intensivos, únicos anos que o possibilitavam. Essa possibilidade foi também negada aos ex-regentes, que haviam transitado para o 2.º ou 3.º ano dos referidos cursos intensivos, já que imediatamente após a publicação do Decreto-Lei 111/76 lhes foi imposta administrativamente a transição para o curso oficial.
Os ex-regentes e os portadores do curso especial têm exactamente os mesmos direitos e deveres de qualquer docente diplomado com o curso geral, excepto no que diz respeito aos vencimentos, o que é uma discriminação que a Constituição da República não reconhece nem legitima.
Deste modo, e dado que nada justifica a manutenção de tal discriminação, o nosso voto foi favorável.
4 - Dos trabalhos parlamentares conducentes à aprovação da Lei 103/88, e ponderando a declaração vinda de citar, poder-se-á concluir que foi escopo de tal aprovação a igualização dos vencimentos dos professores profissionalizados do ensino primário habilitados com o curso especial reportado no Decreto-Lei 111/76 e dos ex-regentes escolares, mesmo que não profissionalizados ou já desligados do serviço por efeitos de aposentação, aos vencimentos dos professores habilitados com o curso das escolas de magistério primário, uma vez que foi entendido que, sendo os dois primeiros e os últimos detentores dos mesmos direitos e deveres, não se justificava a percepção de diferentes remunerações, o que, a subsistir, representaria uma discriminação não reconhecida ou legitimada pela Constituição.
4.1 - É certo que não se apresenta líquido o âmbito de aplicação do artigo 2.º da Lei 103/88.
Na verdade, tendo em referência o pertinente historial da figura dos regentes escolares, que adiante se efectuará, aquele artigo 2.º poderá ser entendido, ao se referir aos "ex-regentes" como querendo, e somente, abarcar os ex-regentes em sentido próprio, ou seja, os regentes escolares habilitados com o curso especial instituído pelo Decreto-Lei 111/76, de 7 de Fevereiro (e que assim foram designados nos diplomas posteriores, máxime os Decretos-Leis n.os 513-M1/79, de 27 de Dezembro, 204/81, de 10 de Julho, e 100/86, de 17 de Maio).
Neste entendimento, o âmbito do citado artigo 2.º reportar-se-ia a regentes escolares (rectius ex-regentes) habilitados com aquele curso especial, mas que não concorreram aos concursos a que alude o artigo 4.º do Decreto-Lei 111/76 ou, concorrendo, não alcançaram colocação, e a regentes escolares também habilitados com o curso especial e que, integrando já os quadros de professores efectivos e agregados do ensino primário (ou não os integrando por não terem concorrido ou, tendo-o, não terem conseguido alcançado colocação), se encontrassem na situação de aposentação.
4.2 - Todavia, uma outra interpretação, convém-se, poderia ser conferida. É ela a de a locução "ex-regentes" ter sido usada no referido artigo 2.º utilizando-se o prefixo e hífen "ex-" num sentido de estado anterior ou cessamento.
Nestes termos, a expressão "ex-regentes" comportaria, não já os "ex-regentes" em sentido próprio, mas os regentes escolares não habilitados com o curso especial e que desde a instituição da figura desse modo se designaram, continuando no desempenho de funções docentes após a vigência do Decreto-Lei 111/76, nos termos dos seus artigos 15.º e 16.º, alínea a), e até ao desaparecimento daquela figura operado pelo artigo 19.º do Decreto-Lei 409/89, de 19 de Novembro.
Assim, o uso do prefixo e hífen "ex-" dever-se-ia a uma (errónea) consideração do legislador de 1988 e segundo a qual, aquando da edição da Lei 103/88, já não existiriam regentes escolares (qua tale) em docência.
Esta possibilidade de atribuição de diversos entendimentos à norma constante do artigo 2.º da Lei 103/88, contudo, como adiante se verá, não afectará a solução a conferir pelo presente aresto.
5 - Há, pois, que averiguar se a não igualização de vencimentos existentes antes do normativo consagrado pela Lei 103/88 era algo que implicava uma discriminação ilegítima, ofensiva, máxime, do n.º 2 do artigo 13.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º, da lei básica (versão da revisão de 1982).
É que, se o fosse, seríamos levados a concluir que aquela Lei 103/88 veio pôr cobro a um sistema que seria violador da Constituição, motivo por que a norma ora sindicada, ao repor esse sistema, estaria inquinada do mesmo vício de que aquele padeceria.
Prosseguindo:
6 - Comecemos por não olvidar que o regime que se visou instituir para igualização dos vencimentos em causa iniciaria a produção dos respectivos efeitos em 1 de Janeiro de 1989 (artigo 3.º da Lei 103/88).
Ora, a Lei 114/88, num preceito da qual se veio a suspender a vigência da Lei 103/88 (preceito sobre o qual incide o presente pedido), foi publicada no jornal oficial de 30 de Dezembro de 1988 (3.º suplemento), do qual foi iniciada a distribuição em 17 de Janeiro (cf. fl. 5 dos autos).
De harmonia com o que se normatiza no artigo 122.º da Constituição, são publicadas no jornal oficial as leis [alínea c) do n.º 1], constituindo aquela falta de publicidade a ineficácia jurídica do acto normativo (n.º 2).
De outro lado, perante o que se consagra nos n.os 2 e 3 do artigo 1.º da Lei 6/83, de 29 de Julho, a data dos diplomas legais é a da sua publicação, devendo o Diário da República ser distribuído no dia correspondente ao da sua data, estatuindo-se no artigo 2.º da mesma lei que o diploma entra em vigor no dia nele fixado ou, na falta de fixação, no continente, no 5.º dia após a publicação, nas regiões autónomas, no 15.º dia, e em Macau e no estrangeiro, no 30.º dia, não se contando o dia da publicação.
A necessidade da imposição aos cidadãos das normas jurídicas e a necessidade de certeza do ordenamento jurídico conduzem, assim, a que o direito escrito tenha de ser objecto de publicação e divulgação, operando-se esta quando o jornal oficial que aquela contém é colocado à disposição do público.
Tal colocação resulta entre nós da distribuição e expedição do Diário da República.
Acontece, todavia, que muitos diplomas (designadamente os que não indicam data concreta para a sua entrada em vigor, motivo pelo qual se terá de lançar mão dos períodos de vacatio estabelecidos na lei) são publicados em jornal oficial de determinada data, sob a forma de suplemento, ocorrendo a sua colocação à disposição do público muito depois da data que contém, e isto não obstante o comando do n.º 3 do artigo 1.º da Lei 6/83.
Em casos de divergência entre a data declarada de publicação desses diplomas e a data da distribuição do jornal oficial onde se inserem, a fim de se não operar a retroactividade, dever-se-á atender a esta última, ao início da distribuição ou ao envio do Diário da República.
Consequentemente, face ao preceituado no n.º 3 do artigo 1.º da Lei 6/83, é de presumir que a data do Diário da República que contém um dado diploma é a data da publicação deste. Porém, se existir divergência entre a data do diploma e o dia em que o jornal oficial que o contém foi colocado à disposição do público, uma vez que se demonstre que esse dia não foi o correspondente ao dessa efectiva colocação, será a esta que se terá de referir a publicação (cf. pareceres da Procuradoria-Geral da República de 1 de Março de 1979, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 290, pp. 115 a 123, e de 10 de Janeiro de 1985, ibid., n.º 348, pp. 107 e seguintes).
6.1 - As considerações e conclusões vindas de efectuar, e que, como é sabido, têm sido suportadas pela jurisprudência administrativa nacional (cf.
Acórdãos da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Janeiro de 1966 e do pleno do mesmo Tribunal de 14 de Maio de 1970, in Acórdãos Doutrinais, n.os 52, 479, 106 e 426) e pela jurisprudência deste Tribunal, admite-se poderem ser inflectidas se em causa se encontrarem diplomas de específica natureza, designadamente leis de aprovação do Orçamento do Estado.
6.2 - Poder-se-á, na verdade, ser levado a entender que as normas constantes das leis do Orçamento do Estado, por sua natureza, têm de reportar-se ao período temporal a que respeitam [anualidade correspondente ao ano civil (cf.
Lei 40/83, de 13 de Dezembro, e n.º 3 do artigo 108.º da Constituição, versão de 1982)] e, por isso, quanto a elas, poderia ser derrogado o princípio geral segundo o qual a vigência das normas é aferida pela data da sua publicação no jornal oficial (e nos casos em que tal vigência se reporte à data facial daquele jornal).
Nesta visão das coisas, mesmo que as leis de aprovação do Orçamento do Estado não contivessem norma indicadora de data de entrada em vigor, haveria de admitir-se que, perante a sua natureza, tal norma estaria implicitamente nelas contida, pelo que, nas hipóteses de aquelas leis virem a constar de jornal oficial distribuído posteriormente, se apresentaria um caso de verdadeira retroacção de eficácia reportada ao primeiro dia a partir do qual elas deviam valer [1 de Janeiro, dada a anualidade do Orçamento do Estado e a sua correspondência ao ano civil (cf., sobre o princípio da anualidade, Teixeira Ribeiro, "Os poderes orçamentais da Assembleia da República", separata do Boletim de Ciências Económicas, XXX, p. 10)].
6.3 - E, se bem que, verdadeiramente, numa tal postura, só relevassem as efectivas normas orçamentais (as de aprovação dos mapas de receitas e despesas do Estado, fundos e serviços autónomos e do orçamento de segurança social - no caso da Lei 114/88, os seus artigos 1.º e 2.º), não se poderia deixar de considerar que teriam de obter idêntico ou semelhante tratamento, quanto ao ponto em causa, aqueloutras normas de execução orçamental que, tantas vezes, se encontram elencadas nas leis de aprovação do Orçamento do Estado.
É que, como é bom de ver, existe uma verdadeira imbricação entre umas e outras, ficando, pois, as primeiras desprovidas de útil efeito se não fossem executadas.
A não ser assim, e ainda numa tal postura, poder-se-ia cair numa situação de difícil praticabilidade, qual fosse a de, contendo-se na lei de aprovação do Orçamento do Estado normas puramente orçamentais (as acima indicadas) e normas de execução, às primeiras se não aplicar o princípio geral de aferição de vigência pela data de publicação no jornal oficial e às segundas ser esse princípio aplicado.
6.4 - A questão, por isso (a admitir-se que relativamente às normas puramente orçamentais e às normas de execução patentemente indissolúveis daquelas se poderia inflectir o princípio geral já tratado), residirá em saber se a norma em apreciação nelas se insere.
6.5 - Temos por nós que a mesma se não apresenta, de um lado, como resulta óbvio, como uma norma estrita ou puramente orçamental (isto é, normas de aprovação dos mapas de receitas e despesas do Estado, fundos e serviços autónomos e do orçamento de segurança social).
Vem ela, todavia, inserida no capítulo III da Lei 114/88, subordinado ao título "Execução e alterações orçamentais".
Resultará daí que a norma contida no n.º 11 do artigo 14.º daquela lei se pode configurar como uma norma de execução orçamental? E, para além disso, como uma norma de execução orçamental de tal sorte ligada às normas dos artigos 1.º e 2.º do mesmo diploma que, por sua natureza, não possa deixar de ser sujeita à derrogação do princípio geral sobre vigência das leis, a aceitar-se o entendimento acima vindo de expor? 6.6 - A norma em questão, pese embora a sua repercussão indirecta na previsão das despesas e, por isso, com repercussão indirecta na política económico-financeira para o ano de 1989, não se apresenta como tendo, nitidamente, um carácter orçamental.
De todo o modo, a sua assinalada repercussão não pode, em rectas contas, afastar completamente a consideração de que ela é desprovida de natureza financeira.
Simplesmente, bem vistas as coisas, o que a falada norma visa é dar um tratamento legislativo a determinada matéria que, ela sim, está directamente relacionada com o estatuto remuneratório de uma dada categoria profissional.
Seria perfeitamente concebível a elaboração, aprovação e publicação do orçamento respeitador do contido na Lei 103/88 (respeito esse que deflui do n.º 2 do artigo 108.º da Constituição da República Portuguesa) e, posteriormente, a edição de diploma legal que contivesse preceituado idêntico ao do constante do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88.
Ora, nessa hipotética situação, crê-se bem que dificilmente se deveria considerar o editando diploma como, e só, uma norma de incidência financeira no prisma de uma execução orçamental.
É evidente que, devendo os orçamentos de Estado ter em conta as obrigações decorrentes de lei, se se desejasse que o Orçamento para 1989 não incluísse a previsão de despesas acarretadas pela Lei 103/88, necessariamente que, ou em lei anterior à da aprovação desse orçamento ou na lei que o aprovava, teria de constar a estatuição revogadora ou determinadora da suspensão das obrigações estaduais impostas pela tal Lei 103/88.
Não se tendo enveredado pela primeira alternativa, restaria, pois, presente aquele desejo, enveredar pela segunda. E daí a edição da norma em apreciação.
6.7 - Ora, se assim é, poder-se-á, concluir que aquela norma, ainda quando se entenda que ela não integra nitidamente e qua tale um verdadeiro rider ou cavalier budgétaire [no ponto em que se trataria de uma estatuição incluída numa lei de aprovação do Orçamento do Estado, mas que, não obstante essa inclusão, não teria suficiente atinência com o diploma em que se insere, igualmente não tendo imediata incidência financeira (cf., Lobo Xavier, "Enquadramento orçamental em Portugal: alguns problemas", in Revista de Direito e Economia, IX, pp. 242 e seguintes, e Cardoso da Costa, "Sobre as autorizações legislativas da lei do orçamento", separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1982, pp. 19 e seguintes)], não deixa de apresentar, todavia, características que em muito a aproximam de tal tipo de normas [cf., sobre a admissibilidade constitucional dos cavaliers budgétaires, os Acórdãos deste Tribunal n.os 48/84 (Diário da República, 2.ª série, de 10 de Julho de 1984, 461/87, ibid., 1.ª série, de 15 de Janeiro de 1988, e 180/88, ibid., 2.ª série, de 10 de Dezembro de 1988)].
Noutra banda, ponderando o aventado desejo de não previsão no Orçamento do Estado para 1989 das despesas decorrentes do sistema consagrado pela Lei 103/88, a norma em questão não deixará também de apresentar cartacterísticas tais que impedem, de todo e liminarmente, de poder considerar-se como desprovida de carácter normativo de execução orçamental.
6.8 - Esta dualidade de caracterização, face a um tal raciocínio, conduzirá a que se deva saber qual o ponto mais saliente que ela reveste, ou seja, se deve ser mais sublinhado o "inserimento no articulado do orçamento" (para utilizar as palavras de Teixeira Ribeiro, ob. cit., p. 6) de uma disposição que é estranha à administração orçamental, visto haver na norma em causa, como se viu já, um directo relacionamento com o estatuto remuneratório de uma certa categoria profissional, ou se deve ser mais sublinhado o seu carácter normativo de execução orçamental, traduzido no desejo de corte de despesas acarretado pelo sistema instituído pela Lei 103/88.
6.9 - Entende-se que deve ser dada prevalência ao carácter não orçamental ou de não directa incidência financeira.
Efectivamente, por um lado, o directo relacionamento da norma do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88 com o estatuto remuneratório de uma dada categoria profissional confere-lhe uma inquestionável incidência recta sobre o tratamento legislativo definitório de um dos aspectos característicos da disciplina de um sector de funcionários da Administração - o seu vencimento.
Por outro, não se poderá escamotear que o desejo de conferir equivalência de vencimentos operada no articulado da Lei 103/88 traduz, como à frente se assinalará, uma opção político-legislativa informada, na óptica do legislador, por determinadas perspectivas sociais e de justiça. Se assim é, identicamente traduzirá uma (outra) opção de tal natureza a edição de diploma que venha a revogar ou a suspender o primitivo que determiou a aludida equivalência, sem que, por isso, se possa dizer que foram simplesmente critérios de ordem financeira - razões de economia de despesas - os iluminadores dessa opção.
Nesse particular, aliás, não custará reconhecer que, no universo orçamental, a equivalência de vencimentos ditada pela Lei 103/88 certamente não assumiria peso considerável.
A demonstrar estas duas últimas asserções, crê-se não ser incurial a invocação da regra contida no Decreto-Lei 409/89, que equiparou - com efeitos a partir de 1 de Outubro de 1989, ainda, pois, no âmbito do Orçamento para 1989 - as remunerações dos professores diplomados com o curso do magistério primário aos ex-regentes habilitados com o curso especial.
6.10 - Tudo, desta arte, aponta para que, ainda que se não confiram à norma em apreciação tão-só características de cavalier budgétaire, ela deverá ser tratada prevalentemente como tal, e não como norma onde sobressaia um carácter normativo orçamental, no prisma de execução da política económico-financeira.
6.11 - Face a tais parâmetros, na admissão da posição segundo a qual concernentemente às normas orçamentais pode ser afastado o princípio geral de que a vigência das normas é aquilatada pela data da distribuição do jornal oficial, então haver-se-á de concluir que, relativamente ao preceito constante do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88, continuará a reger tal princípio, não sendo lícito o seu afastamento.
7 - Alcançada esta conclusão, considerando que os exemplares do suplemento ao n.º 301 da 1.ª série do Diário da República, de 30 de Dezembro de 1989, no qual foi inserida a Lei 114/88, foram, como se constata a fl. 5, remetidos aos assinantes, pelo correio, em 17 de Janeiro de 1989, haverá que considerar, presente a vacatio estatuída no n.º 1 do artigo 2.º da Lei 6/83, que a norma em apreciação terá entrado em vigor, no continente, em 22 de Janeiro e, nas regiões autónomas, em 1 de Fevereiro, ambos de 1989.
(Note-se que a aludida lei não contém disposição específica fixadora do dia ou da data da sua vigência.) Decorre, em consequência, que a Lei 103/88 (nomeadamente os preceitos constantes dos seus artigos 1.º e 2.º) produziu efeitos, no continente, de 1 a 21 de Janeiro e, nas regiões autónomas, de 1 a 31 de Janeiro de 1989.
8 - Fechado este parêntesis, retomemos a questão de saber se, alcançada que foi a igualização de vencimentos entre os professores profissionalizados do ensino primário habilitados com o curso especial do Decreto-Lei 111/76 e os ex-regentes escolares, mesmo não profissionalizados ou já desligados do serviço em virtude de aposentação, e os professores habilitados com o curso normal, a sindicada norma do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88 veio a consagrar uma discriminação não consentida pela lei básica.
Para tanto, entende-se útil efectuar, em primeiro lugar, uma perfunctória incursão sobre a figura dos regentes escolares.
8.1 - Através do Decreto-Lei 20604, de 30 de Novembro de 1931, foi autorizada a criação dos postos de ensino "destinados à propagação dos conhecimentos que constituem o 1.º grau do ensino primário elementar", para cuja regência seria designada pessoa que, para o efeito, possuísse "a necessária idoneidade moral e intelectual".
Não foi por este diploma estabelecido qualquer vencimento como forma de remuneração aos regentes escolares, antes lhes sendo atribuída uma gratificação mensal (§§ 1.º e 2.º do seu artigo 3.º), que se manteve inalterada até 23 de Novembro de 1956, data da entrada em vigor do Decreto-Lei 40872, não obstante o Decreto 26115, de 23 de Novembro de 1935, ter vindo a uniformizar os vencimentos dos "servidores do Estado", os quais se encontravam estabelecidos dispersamente por vários diplomas.
Pelo dito Decreto-Lei 40872 a remuneração, sob a forma de gratificação, atribuída aos regentes escolares foi aumentada para o dobro (n.º 1 do artigo 1.º) e, verificada posterior alteração nos vencimentos dos funcionários públicos em geral e dos professores habilitados com o curso do magistério primário em particular (cf. Decreto-Lei 42046, de 23 de Dezembro de 1958, designadamente o § 1.º do seu artigo 1.º, letras P, Q, R e S), continuou a dita remuneração a processar-se sob a forma de gratificação, mas, desta feita, com base em percentagem que incidiu sobre a gratificação mensal inicialmente estabelecida (cf. o artigo 10.º do mencionado Decreto-Lei 42046).
Essa percentagem, posteriormente, veio a ser aumentada de 50% (n.º 3 do artigo 41.º do Decreto-Lei 49410, de 24 de Novembro de 1969), sendo que os professores habilitados com o curso normal (do magistério primário) continuaram a auferir pelo sistema de remuneração instituído para a maioria dos funcionários públicos, ou seja, pela inclusão das várias categorias em que se inseriam em escalões de letras.
Em 26 de Fevereiro de 1973 foi publicado o Decreto-Lei 67/73, que, visando "uma constante melhoria de preparação de todos os agentes do ensino primário" (cf. o seu relatório preambular), determinou a extinção dos postos escolares do ensino primário e a sua substituição por escolas primárias, cuja criação seria regulamentada por decreto (artigo 1.º, n.os 1 e 3).
Para tanto impor-se-ia "assegurar idêntica qualificação a todos os docentes daquele grau de ensino" e "atender à situação dos regentes escolares", realizando-se "todos os esforços necessários à sua efectiva promoção (citado relatório), o que acarretou a instituição nas escolas do magistério primário de um curso intensivo destinado a possibilitar o ingresso no curso do magistério primário a regentes escolares, efectivos ou agregados, que não possuíssem as habilitações exigidas (artigo 3.º, n.º 1).
O decreto-lei em questão veio ainda permitir a colocação nas escolas de regentes escolares, efectivos ou agregados, em lugares vagos ou em lugares cujos titulares estivessem temporariamente impedidos, e desde que não fosse possível assegurar o ensino por professores, atribuindo-lhes então gratificação igual à retribuição para os agentes de ensino incumbidos da regência de escolas vagas ou de escolas cujos titulares estivessem impedidos (artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5), determinando a manutenção nas respectivas categorias dos regentes do ensino primário (artigo 6.º, n.º 1) e proibindo, a partir da sua entrada em vigor, a abertura de concursos de admissão aos quadros distritais de regentes agregados (artigo 6.º, n.º 1).
Com o Decreto-Lei 290/75, de 14 de Junho, opera-se uma mais profunda modificação quanto à situação do "pessoal docente", de entre o mais reajustando-se as suas categorias de vencimentos, fazendo-os coincidir, "tanto quanto possível", com "as correspondentes a outros trabalhadores da função pública com qualificações iguais ou equiparadas", abolindo-se o então vigente sistema de diuturnidades e integrando-se tal "pessoal" numa série de fases.
Este diploma teve igualmente por finalidade compensar os regentes escolares pela "grave situação de desfavor em que, apesar de incumbidos de responsabilidades docentes, estiveram durante longo período colocados em matéria de remuneração", e daí que determinasse a abolição das gratificações que lhes eram atribuídas pelo exercício das respectivas funções, incluindo-os no escalão VII, a que correspondia a letra R (cf. o artigo 1.º, n.os 1 e 2, e mapa anexo).
Todavia, os professores do ensino primário foram pelo mesmo decreto-lei incluídos no escalão V, vencendo os não profissionalizados pela letra K e os profissionalizados das fases 1, 2 e 3, respectivamente, pelas letras J, I e H.
Invocando que os cursos intensivos criados pelo Decreto-Lei 67/73 se não tinham "revelado via eficiente para atingir" a necessária preparação científica e pedagógica dos professores, o legislador, em 7 de Fevereiro, editou o Decreto-Lei 111/76, pelo qual criou cursos especiais para regentes escolares efectivos e agregados, aos quais podiam ser admitidos, entre outros, regentes que provassem ter prestado, pelo menos, determinado tempo de serviço docente qualificado de Suficiente, estivessem habilitados com o ensino preparatório ou equivalente e não tivessem mais de 55 anos de idade (artigos 1.º e 3.º, n.º 1).
A quem obtivesse aproveitamento em tais cursos facultou o Decreto-Lei 111/76 a habilitação aos concursos para quadros de professores efectivos e agregados do ensino primário em igualdade de condições com os professores diplomados pelas escolas do magistério primário, desde que possuíssem um mínimo de 10 anos de serviço bem qualificado, ou no escalão imediatamente inferior ao daqueles professores, caso não possuíssem tais condições (artigo 4.º).
Este decreto-lei proibiu, a partir do ano escolar de 1975-1976, a matrícula, pela primeira vez, em qualquer dos cursos intensivos previstos no Decreto-Lei 67/73 (artigo 6.º), permitindo aos regentes escolares que frequentassem tais cursos continuar essa frequência até ao seu termo ou transitar para os cursos especiais, mediante determinadas condições (artigos 7.º e 8.º, n.º 1).
Igualmente se determinou a conversão em escolas dos postos escolares então vagos e que ainda se mantinham nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 67/73, permitindo-se aos regentes escolares de tais postos que tivessem obtido aproveitamento nos cursos geral ou especiais das escolas do magistério primário, e desde que o requeressem no prazo de 30 dias, o provimento em lugares daquelas escolas (artigo 4.º), dispondo-se que os regentes escolares efectivos que se não tivessem inscrito em tais cursos ou que neles não tivessem obtido aproveitamento se manteriam ou seriam colocados, respectivamente, nos postos escolares de que eram titulares ou em lugares das escolas em que aqueles se transformaram (artigo 15.º) ou ainda que poderiam ser providos em lugares dos serviços centrais ou externos do Ministério da Educação Científica, bem como em estabelecimentos deles dependentes (artigo 19.º).
Em matéria de vencimentos, este diploma atribuiu aos professores efectivados e agregados do ensino primário provindos dos ex-regentes escolares habilitados com os cursos especiais e que concorreram aos quadros daqueles professores as letras P, O, N ou M, conforme se integrassem, respectivamente, nas fases 1, 2, 3 ou 4 (artigo 5.º), enquanto que aos regentes escolares que se não inscreveram nos cursos geral ou especial, ou neles não obtiveram aproveitamento, atribuiu o vencimento correspondente à letra R (artigo 17.º, n.º 1), nada se dispondo em especial quanto aos professores diplomados pelas escolas do magistério primário, pelo que, quanto a eles, continuava a reger o Decreto-Lei 290/75.
O Decreto-Lei 513-M1/79, de 27 de Dezembro, concedeu aos professores diplomados pelas escolas do magistério primário os vencimentos correspondentes às letras J, I, G e F, consoante se encontrassem nas 1.ª, 2.ª, 3.ª, ou 4.ª fases, enquanto que aos ex-regentes escolares habilitados com o curso especial, e consoante tais fases, concedeu os vencimentos correspondentes às letras M, L, K e J e aos regentes escolares sem tal habilitação concedeu o vencimento correspondente à letra N, sistema que, em parte, veio a ser alterado pelo Decreto-Lei 204/81, de 10 de Julho, ao estatuir que os vencimentos dos ex-regentes escolares habilitados com o curso especial criado pelo Decreto-Lei 111/76 passavam a corresponder às letras L, K, J e I, consoante eles se integrassem nas 1.ª, 2.ª, 3.ª ou 4.ª fases.
Com o Decreto-Lei 100/86, de 17 de Março, efectuou-se nova restruturação da carreira dos docentes dos ensinos pré-escolar, primário, preparatório e secundário, comandando-se, no que ora interessa, que a carreira dos professores do ensino primário se desenvolveria em seis fases - nível 3 (artigo 2.º, n.º 1) -, a dos ex-regentes escolares habilitados com o curso especial previsto no Decreto-Lei 111/76 - nível 4 - em cinco (artigo 3.º, n.º 1) e a dos regentes escolares - nível 6 - em três escalões (artigo 6.º, n.º 1), atribuindo-se aos primeiros os vencimentos correspondentes às letras I, H, F, E, D e C (consoante as 1.ª a 6.ª fases), aos segundos os vencimentos correspondentes às letras L, K, I, G e F (também consoante as fases) e aos terceiros os vencimentos correspondentes às letras M, L e J (consoante os escalões).
A Lei 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), veio determinar que o sistema educativo compreende a educação pré-escolar, a educação escolar e a educação extra-escolar, na segunda se compreendendo os ensinos básico, secundário e superior (artigo 4.º, n.os 1 e 3), comportando o ensino básico três ciclos sequenciais, o primeiro de quatro anos, o segundo de dois anos e o terceiro de três anos (artigo 8.º, n.º 1).
Pelo artigo 31.º desta lei os docentes do ensino básico dos 1.º e 2.º ciclos desse ensino adquirem qualificação profissional em cursos específicos destinados à respectiva formação, de acordo com as necessidades curriculares do respectivo nível de educação e ensino, em escolas superiores de educação [artigo 31.º, n.º 1, alínea a)] ou em universidades que, para o efeito, atribuem os mesmos diplomas que os das escolas superiores de educação [citados artigo e número, alínea b)].
No desenvolvimento da Lei 46/86, editou o Governo o Decreto-Lei 409/89, de 18 de Novembro, que aprovou, de entre o mais, a estrutura da carreira do pessoal docente em exercício efectivo do ensino básico (cf. os artigos 1.º e 2.º, n.º 1), considerando-se como tal o pessoal portador de qualificação profissional certificada pelo Ministério da Educação para o desempenho de funções de educação ou de ensino com carácter permanente, sequencial ou sistemático (artigo 3.º, n.º 1), sendo que os docentes não portadores daquela qualificação permanecerão em situação de pré-carreira até à sua aquisição (artigo 6.º).
Como meio de transição, estipulou-se no artigo 14.º do Decreto-Lei 409/89 que "os docentes da educação pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico que se 'encontrem' no nível de qualificação 3 previsto no mapa anexo ao Decreto-Lei 100/86 (professores do ensino primário diplomados com o curso das escolas do magistério primário), bem como os ex-regentes escolares habilitados com o curso especial previsto no Decreto-Lei 111/76 [...] que se 'encontrem' no nível de qualificação 4 previsto no mesmo mapa, transitam, para o índice 88 do 1.º escalão ou para o 2.º, 3.º, 4.º, 5.º ou 6.º escalões" [a que correspondem 3, 6, 11, 15, 19 ou 23 anos de tempo de serviço (cf. artigos 4.º e 8.º)], "conforme se encontrem, respectivamente", na 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª ou 6.ª fases, mais se estipulando no artigo 19.º que os regentes escolares que se encontrem "no nível de qualificação 6 do mapa nexo ao 'referido Decreto-Lei 100/86' transitam para a carreira administrativa das direcções escolares onde são integrados na categoria a que correspondia em 30 de Setembro de 1989 a mesma letra de vencimento".
Segundo o comando do artigo 28.º deste diploma, as disposições constantes dos artigos 14.º a 27.º iniciaram a produção de efeitos em 1 de Outubro de 1989.
Pelo n.º 1 do artigo 4.º do recente Decreto-Lei 139-A/90, de 28 de Abril, e conferindo-se a tal norma "natureza interpretativa" (n.º 2 daquele artigo), determinou-se o trânsito para nova estrutura da careira, nos termos do disposto no artigo 14.º do Decreto-Lei 409/89, dos ex-regentes escolares habilitados com o curso especial previsto no Decreto-Lei 111/76 e que se encontravam no nível de qualificação 4 constante do mapa anexo ao Decreto-Lei 100/86, trânsito esse para os escalões para que transitaram os educadores de infância e os professores do ensino primário com igual tempo de serviço.
9 - Sem se entrar agora em linha de conta com a Lei 103/88, verifica-se da história legislativa atrás sumariamente efectuada respeitante à figura dos regentes escolares que desde a instituição dessa figura e durante cerca de 58 anos sempre existiu diferenciação de vencimentos entre aqueles agentes de ensino e os professores diplomados com o curso das escolas do magistério primário, devendo-se ter em conta que, mesmo perspectivando os ex-regentes que tiveram aproveitamento no curso especial criado pelo Decreto-Lei 116/76, não podem os primeiros ser considerados como detentores do que se poderia chamar "habilitação própria".
Ora, se se tiver como assente que esses agentes de ensino desempenhavam um conteúdo funcional em tudo idêntico ao desempenhado pelos professores diplomados com o curso normal, poder-se-á considerar que o sistema que perdurou durante largo espaço de tempo, no que à diferenciação de vencimentos concerne, após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa, consagrava, como alegam os requerentes, uma discriminação não consentida pela lei básica [artigo 13.º da versão originária e da resultante da revisão de 1982, alínea a) do artigo 53.º da versão originária e alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da versão de 1982]? 9.1 - Segundo aquele artigo 13.º, "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, ninguém podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social".
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., pp. 148 e seguintes), "o princípio da igualdade conjuga dialecticamente as dimensões liberais, democráticas e socialistas inerentes ao conceito de Estado de direito democrático, impondo a igualdade na aplicação do direito, fundamentalmente assegurada pela tendencial universalidade da lei e pela proibição de diferenciação de cidadãos com base em considerações meramente subjectivas, garantindo a igualdade de participação na vida política da colectividade e de acesso aos cargos públicos e funções políticas, e exigindo a eliminação das desigualdades de facto".
O princípio de que curamos vincula de modo directo os poderes públicos, qualquer que seja a competência que detenham (cf., em tal sentido, Jorge Miranda, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, III, p. 404; cf. ainda n.º 1 do artigo 18.º da Constituição da República Portugesa), pelo que, como se viu acima, impõe a dação de tratamento igual para situações fácticas iguais e, concomitantemente, um tratamento desigual para situações fácticas desiguais.
Isso implica, consequentemente, que o legislador não veja vedada a possibilidade de elencar e estatuir condições e factores que, marcantes que sejam, se tornem, dentro da liberdade que lhe é assegurada, fundamentadores da instituição de regimes diversos de situações que, em si, diversas sejam também.
Ponto é que essa diversidade não seja discriminatória, infundada materialmente e irrazoável.
Se o for, revestirá ela caracterização arbitrária, cuja proibição é postulada pelo princípio ínsito no falado artigo 13.º (cf., sobre este ponto, de entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.º 44/84, in Diário da República, 2.ª série, de 11 de Julho de 1984, 76/85, ibid., de 8 de Junho de 1985, 309/85, ibid., de 11 de Abril de 1986, 103/87, ibid., 1.ª série, de 6 de Maio de 1987, 433/87, ibid., 2.ª série, de 12 de Fevereiro de 1988, 39/88, ibid., 1.ª série, de 3 de Março de 1988, e 157/88, ibid., de 26 de Julho de 1988).
A proibição do arbítrio, embora não elimine a liberdade de conformação legislativa, acarretará, pois, a censura que os juízes (máxime os constitucionais), perante a normação que patentemente estabeleça desigual tratamento para situações de facto em tudo idênticas, a ela farão.
10 - Isto posto, impõe-se analisar se a desigualdade remuneratória anteriormente existente entre os agentes de ensino a que se destinou a Lei 103/88 e os professores diplomados com o curso do magistério primário era algo irrazoável ou infundada materialmente.
Desde logo, há que ponderar que sempre foram diferentes os níveis de preparação profissional de uns e de outros.
Na verdade, enquanto que para os professores diplomados com o curso do magistério primário era exigida a conclusão de, pelo menos, o então 2.º ciclo do ensino liceal e a conclusão de um curso professado nas escolas do magistério primário, com prévia aprovação (ou dispensa) de um exame de aptidão (o que equivaleria a um mínimo de 11 ou 12 anos de preparação académica), aos regentes escolares foi possibilitada, na vigência do Decreto-Lei 111/76, a frequência de um curso especial e, caso nele tivessem aproveitamento, foi calculada a habilitação aos concursos para os quadros de professores efectivos e agregados do ensino primário, sendo que para tal frequência não era exigida preparação escolar superior ao ensino preparatório ou equivalente.
10.1 - Diferentes qualificações, pois, tendo uns (os professores diplomados com os cursos do magistério primário) o que se poderá designar por "habilitação própria" e outros (os ex-regentes) não dispondo dessa habilitação, mas sim de uma outra de menor exigência.
Esta diferenciação não poderá, como primeiro subsídio, deixar de se perfilar como um fundamento para o legislador e, visualizando só a sua liberdade de conformação, tratar de modo não idêntico agentes de ensino cujas respectivas qualificações não eram iguais.
10.2 - A isto acresce que os diplomas tendentes a integrar nos quadros de professores efectivos e agregados os regentes habilitados com o curso especial mais não são do que medidas pontuais destinadas a, transitoriamente, prover a colocação destes, criando uma oportunidade de integração daquela categoria profissional, que se tornava necessária face à desejada extinção de tal categoria.
Aquela integração (vertida na possibilidade de acesso aos quadros de professores) de modo algum, assim, representou, ou quis representar, a afirmação de aceitação de diferentes (e normais) formas de acesso aos quadros de professores do ensino básico.
O modo normal desse acesso era a frequência e o aproveitamento do e no curso do magistério primário. Por isso, o aproveitamento nos cursos especiais, como condição de acesso aos quadros de professores, não pode ser figurado como uma forma ou modo normal para esse acesso.
Tratou-se, repete-se, de uma medida transitória e de acolhimento de uma situação ditada pela desejada extinção da figura dos regentes.
Ora, esta consideração, aditada àqueloutra de os ex-regentes não serem portadores de habilitação própria e ainda acrescida de uma outra segundo a qual, ao menos, em abstracto, a sua preparação pedagógica é, à partida, inferior à dos professores provindos das escolas do magistério primário, leva a que se deva entender que havia fundamento manterial bastante para a diferenciação nos vencimentos de uns e de outros.
10.3 - E, se o que se veio de dizer se reporta directamente ao confronto entre as categorias de professores diplomados com o curso normal e de ex-regentes habilitados com o curso especial providos em lugares dos quadros de professores efectivos e agregados, no posicionamento de quem entenda que no artigo 2.º da Lei 103/88 se abarcam os regentes não habilitados com o curso especial (cf., supra, n.º 4.1), por maioria de razão, os considerandos atrás formulados são aplicáveis para justificar a conclusão de não ter havido na diferenciação remuneratória violação do princípio da igualdade.
10.4 - No fundo, há uma desigualdade de situações que envolve, tácita e reconhecidamente, uma diferenciação positiva com cabido suporte a que se terá de atender e, em consequência, o desigual tratamento não poderá ser perspectivado como violador do artigo 13.º da Constituição (cf., sobre este ponto, Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, 1982, pp. 380 e seguintes).
Se assim é, a liberdade de conformação do legislador (designadamente do que editou a legislação posterior à lei fundamental que nos rege e antes da Lei 103/88) permitir-lhe-ia estabelecer a diferenciação remuneratória a que se assistiu, pois que se não deparava desrespeito aos limites de tal liberdade e, logo, não se deparava desigualdade discriminatória e arbitrária (cf. citado Acórdão 157/88).
11 - Estas considerações serão de aplicar com enfoque no preceito constitucional vertido na alínea a) do artigo 53.º da versão originária, na alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da versão de 1982 e na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da actual versão da Constituição.
Segundo tal preceito, "todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem (nacionalidade, no texto do proémio do n.º 1 do artigo 53.º da versão originária), religião, convicções políticas ou religiosas (ideologia, no texto do proémio daquele n.º 1), têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna".
Aqui se reafirma o princípio fundamental da igualdade consagrado no artigo 13.º (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 323), mas de uma igualdade material exigente da consideração da realidade social, assim se não focando uma mera igualdade formal (cf., em tal sentido, Francisco Lucas Pires, in Uma Constituição para Portugal, 1977, pp. 62 e seguintes).
Desta sorte, se o trabalho produzido por diferentes trabalhadores for, em sede quantitativa, qualitativa e por natureza, igual, a esses trabalhadores deve ser conferido igual salário.
Como se disse no Acórdão deste Tribunal n.º 313/89 (Diário da República, 2.ª série, de 16 de Junho de 1989), "o princípio 'para trabalho igual salário igual' não proíbe, naturalmente, que 'o mesmo tipo de trabalho' seja remunerado em termos quantitativamente diferentes, conforme seja feito por pessoas com mais ou menos habilitações [...] pagando-se mais, naturalmente, aos que maiores habilitações possuem [...]".
O que seria arbitrário era que o desempenho de trabalho da mesma natureza e quantidade por trabalhadores com as mesmas habilitações fosse diferentemente remunerado, pois que então estar-se-ia a efectuar ferimento do princípio "para trabalho igual salário igual".
Claro que, face à liberdade de conformação que detém, não será vedado ao legislador conceder igual remuneração a situações de prestação de trabalho da mesma natureza e quantidade por trabalhadores dotados de diferentes habilitações. Mas, perante tal liberdade, poderá identicamente o legislador atribuir desiguais remunerações, sem que, por isso, esteja a ferir o princípio do salário igual para trabalho igual, uma vez que não discrimina, visto existir fundamento material e objectivo razoável para essa desigualdade, que não assenta em meros critérios e características subjectivos.
Perante estas considerações, forçoso é concluir que o sistema legal remuneratório antecedente à Lei 103/88, estabelecedor de diferentes vencimentos aos ex-regentes escolares e aos professores diplomados com o curso das escolas do magistério primário, igualmente não era feridente da alínea a) do artigo 53.º da versão originária e da alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da versão de 1982 da Constituição da República Portuguesa.
12 - Invocam os requerentes que a norma sindicada - n.º 1 do artigo 14.º da Lei 114/88 - teve um efeito retroactivo, assim violando o n.º 3 do artigo 18.º da lei básica.
Desenhar-se-á, porém, no caso, uma situação objectiva de retroactividade? Entendemos que não.
Efectivamente, concluiu-se acima (cf., supra, n.os 6 e 7) que a norma da Lei 114/88 e que se aprecia somente iniciou a sua vigência, no continente, em 22 de Janeiro de 1989 e, nas regiões autónomas, em 1 de Fevereiro do mesmo ano.
Por seu turno, a Lei 103/88 iniciou a produção de efeitos em 1 de Janeiro de 1989 (cf. seu artigo 3.º).
Ora, a norma cuja conformidade constitucional é questionada não determinou a suspensão da vigência da Lei 103/88 desde o momento em que a mesma passou a produzir efeitos, ou seja, não determinou a destruição dos efeitos já produzidos enquanto tal diploma se manteve plenamente em vigor, que substituiu pelos efeitos decorrentes do sistema anteriormente consagrado.
Daí que, ponderando a data a partir da qual se deverá entender ter entrado em vigor a norma do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88, e tendo em consideração o excurso imediatamente acima efectuado, ser-se-á levado a que, no caso, tal norma não se revestiu de eficácia retroactiva.
Donde se não colocar a questão da (possível) ofensa do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição.
13 - Resta abordar uma última questão, não suscitada expressamente pelos requerentes, qual seja a de saber se a norma sindicada é passível de ferir o princípio da confiança ínsito naquele outro do Estado de direito democrático, este consagrado no artigo 2.º da actual versão da Constituição e, bem assim, na versão da revisão operada em 1982, sendo que tal questão é suscitada atento o que se dispõe no n.º 5 do artigo 51.º da Lei 28/82.
Na verdade, os vencimentos a auferir pelos professores habilitados com o curso especial previsto no Decreto-Lei 111/76 (e pelos regentes não habilitados com tal curso, para quem defenda a interpretação do artigo 2.º da Lei 103/88 do modo expresso no n.º 4.2) determinados por tal lei, a partir da data em que se deve entender como tendo entrada em vigor o n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88, passaram a ser de menor montante até 1 de Outubro de 1989 (data do início da produção de efeitos do Decreto-Lei 409/89 e referentemente àqueles primeiros agentes de ensino).
Ora, pergunta-se, aquela diminuição no montante do vencimento é algo de constitucionalmente válido, presente o princípio do Estado de direito democrático? 13.1 - Neste princípio está, entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.
Por isso, a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica [cf. Acórdãos da Comissão Constitucional n.os 463 e 437, de 13 de Janeiro de 1983 e 26 de Janeiro de 1982 (apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983), 78 (ibid., de 23 de Agosto de 1983) e 133 (o primeiro também no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 314, p. 141), parecer da mesma Comissão n.º 27/79 (Pareceres da Comissão Constitucional, 9.º vol., p. 115) e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 11/83, 10/84, 17/84, 86/84, 89/84 e 93/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º vol., p. 11, 2.º vol., p. 285, ibid., p. 375, 4.º vol., p. 253, ibid., p. 153)].
Consoante o que se referiu no dito Acórdão deste Tribunal n.º 17/84, "o cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas. Ele deve poder confiar em que a sua actuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes. Esta confiança é violada sempre que o legislador ligue a situações de facto constituídas e desenvolvidas no passado consequências jurídicas mais desfavoráveis do que aquelas com que o atingido podia e devia contar.
Um tal procedimento legislativo afrontará frontalmente o princípio do Estado de direito democrático."
Daí que se possa falar em que os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor.
Mas, se não obstante esse alcance, normação posterior vier, acentuada ou patentemente, alterar o conteúdo dessas situações, é evidente que a confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico ficará fortemente abalada, frustrando a expectativa que detinham da anterior tutela conferida pelo "direito" (cf. o citado Acórdão 86/84).
13.2 - No que diz respeito à possibilidade de diminuição dos vencimentos dos funcionários públicos, conquanto que sem directo enfoque constitucional, sustentam diferentes posições Marcello Caetano e Mário Esteves de Oliveira.
Assim, o primeiro (Manual de Direito Administrativo, 1980, II vol., p. 759) doutrinou que, "quando a lei altera a categoria do lugar, entende-se que não pode fazê-lo de modo que corresponda menor vencimento à nova categoria, pois isso importaria para o funcionário uma degradação ou baixa de posto, que só se concebe como grave sanção penal", enquanto que o segundo (Direito Administrativo, I vol., 1980, pp. 366 e 367) refere que "a mais importante característica do regime jurídico das situações estatutárias é a de que os direitos e deveres que as integram são, em cada momento, para cada um dos sujeitos, aqueles que a lei ou o regulamento autorizado definem [...]"
E, mais adiante, exemplifica o citado autor: "[...] um funcionário que foi provido como terceiro-oficial num momento em que a tal categoria correspondia a letra M e um vencimento de 10000$00 na tabela do funcionalismo só terá direito a reclamar da Administração o pagamento mensal de 10000$00 enquanto, nos termos da lei, for essa a letra correspondente à categoria de terceiro-oficial e aquele o vencimento que cabe a tal letra. Se, por força da lei, os terceiros-oficiais passarem para a letra N ou se à letra M passar a corresponder o vencimento de 9000$00, os direitos dos terceiros-oficiais, como direitos integrantes de uma situação estatutária, passam a ter o conteúdo actual desta."
Colocadas estas referências jurisprudenciais e doutrinais, cabe volver a atenção para a questão que ora se analisa, ou seja, a de saber se a objectiva diminuição de vencimentos dos professores habilitados com o curso especial instituído pelo Decreto-Lei 111/76 e dos ex-regentes escolares (no sentido próprio ou abarcando ainda os regentes escolares, para quem entenda conferir ao artigo 2.º da Lei 103/88 o sentido indicado no n.º 4.2), diminuição essa que ocorreu após a entrada em vigor da norma constante do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88 (e falamos em objectiva diminuição, pois que, como se viu, aqueles agentes de ensino, no continente, teriam jus ao vencimento igual ao dos professores primários diplomados com o curso normal desde 1 a 22 de Janeiro de 1989 e, nas regiões autónomas, de 1 a 31 de Janeiro), é algo susceptível de violar o princípio da confiança.
13.3 - Havendo, pois, os "ex-regentes" (ainda que usada esta expressão em qualquer dos analisados sentidos) já alcançado uma remuneração cujo quantitativo então se fixava no montante da remuneração atribuída aos professores que detinham o curso do magistério primário, há que saber se a esse "direito" poderia por normação posterior ser retirada eficácia (in casu, ser ela suspensa).
Por outro lado, é de aceitar que, após a publicação da Lei 103/88, se teria criado no espírito dos agentes de ensino a quem ela se destinava a convicção, certeza ou, pelo menos, a fundada expectativa segundo a qual, a partir de 1 de Janeiro de 1989, os mesmos assistiram a uma melhoria dos seus vencimentos, no ponto em que, como se determinava naquela lei, se iniciaria uma equiparação aos vencimentos dos professores diplomados com o curso normal.
E falamos de, ao menos, uma expectativa fundada, já que a equiparação não surgia como algo de inopinado ou fora de qualquer processo intencional do legislador. De facto, como deflui da evolução legislativa atrás resenhada, designadamente após o 25 de Abril de 1974, assistiu-se a uma preocupação do legislador (o que bem ressalta da leitura dos relatórios preambulares dos sucessivos diplomas editados) em, tanto quanto possível, ainda que paulatinamente, atingir a citada equiparação.
Dada a suspensão operada pela norma sob censura, tem-se por certo que, objectivamente, resultou uma afectação de, ao menos, expectativas legítimas fundadas por banda dos ex-regentes.
13.4 - A questão residirá, assim, em saber se aquela afectação se reveste de jeito inadmissível, arbitrário ou excessivamente oneroso, sendo que o primeiro daqueles modos - a inadmissibilidade -, se é implicante de uma mudança na ordem jurídica, com repercussão nas situações de facto já alcançadas, com a qual, razoável e normalmente, os cidadãos destinatários das normas preexistentes e das que operaram a modificação, não podiam e deviam contar, terá também de ser completado com a circunstância de a mutação normativa afectadora das expectativas não ter sido imposta por prossecução ou salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e que, na dicotomia com os afectados, se postem em grau tal que lhes confira prevalência, pois, se não se postarem, haverá então falta de proporcionalidade e, logo, uma forma de abrítrio (v., sobre o ponto, o Acórdão 287/90, ainda inédito).
Não nos dá a Lei 114/88, nem os seus trabalhos preparatórios, qualquer indicação sobre a existência de motivos ligados à prossecução ou salvaguarda de interesses (designadamente económicos ou financeiros) tais que, de um ponto de vista proporcional, aconselhassem à suspensão do "vencimento adquirido" pelos agentes de ensino em causa e, por isso, afectasse esse direito, sob pena de se não alcançar aquelas prossecução ou salvaguarda.
De outro lado, devidamente ponderando a evolução legislativa neste domínio, onde tansparece a preocupação do legislador atrás apontada, não poderia constituir excessiva surpresa a edição de diploma tal como o da Lei 103/88.
Torna-se, desta arte, indiscortinável qual seja o interesse e a sua suficiente relevância que levaram à suspensão do regime da Lei 103/88.
De concluir, pois, neste particular, pela inexistência de circunstâncias donde se pudesse extrair que a mutação normativa operada pela norma do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88 se destinou a prosseguir ou salvaguardar direitos ou interresses que, confrontadamente com a, ao menos, fundada expectativa criada pela Lei 103/88, se colocassem prevalentemente.
13.5 - Atingido um nível remuneratório que lhes conferia, na ocasião da entrada em vigor desta última lei, um quantitativo então igual ao percebido pelos professores diplomados com os cursos das escolas do magistério primário, é perfeitamente compreensível que os destinatários daquele diploma ficassem possuídos da convicção de que esse "direito" subjectivado a tal quantitativo, já concretizado objectivamente, para o futuro, e sem que surgissem acentuadas alterações da conjuntura económico-financeira, era algo de reconhecido pela ordem jurídica e com o qual eles podiam e deviam contar, deste modo ficando convencidos que o dito montante não seria diminuído.
Ao suspender o referido "direito", o n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88 veio, de forma efectiva, frustrar a indicada convicção, sem que se anteolhe a existência de situação de interesse geral ou conformação social de suficiente peso que pudessem tornar previsível ou verosímil tal suspensão.
Por isso se depara uma inadmissível (porque irrazoável, extraordinariamente onerosa e excessiva) afectação levada a cabo pela norma sindicada.
14 - Atingida que está esta conclusão, não importará sequer colocar, analisando-a com a devida profundidade, a questão de uma eventual postergação pela norma em causa do princípio da igualdade, traduzida no retrocesso legislativo na construção da igualdade social.
IV - Perante o exposto, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, declara-se, com força obrigatória geral, insconstitucional a norma constante do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88, de 30 de Dezembro.
Lisboa, 21 de Novembro de 1990. - Bravo Serra - Mário de Brito - Vítor Nunes de Almeida - Alberto Tavares da Costa - Fernando Alves Correia - Armindo Ribeiro Mendes - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino - Luís Nunes de Almeida - Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido. Mesmo a entender-se que a norma em causa só terá entrado em vigor com a distribuição do Diário da República em que veio publicado o respectivo diploma - ponto que deixo em aberto -, mesmo assim, entendi não se verificar violação do princípio da protecção da confiança, pelo essencial das razões constantes das declarações de voto dos Exmos. Conselheiro Messias Bento e Conselheira Assunção Esteves).
Declaração de voto 1 - Entendi que a norma do n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88, de 30 de Dezembro, não é inconstitucional, uma vez que não viola de forma "intolerável, arbitrária ou demasiado acentuada" a confiança que a comunidade jurídica deve depositar no legislador, ou seja, que não pode haver-se por violado o princípio da protecção de confiança que vai ínsito na ideia de Estado de direito.
Assim entendi, no pressuposto mesmo - pressuposto cuja justeza não vou aqui discutir - de que a norma sub iudicio só entrou em vigor, no continente, em 22 de Janeiro de 1989 e, nas regiões autónomas, em 1 de Fevereiro de 1989 - caso em que, por força do preceituado nos artigos 1.º e 2.º da Lei 103/88, de 27 de Agosto, os ex-regentes escolares adquiriram o direito de auferir, a partir de 1 de Janeiro de 1989, um vencimento igual ao dos professores habilitados com o curso das escolas do magistério primário (cf. o artigo 3.º da citada Lei 103/88).
2 - É certo que, na perspectiva apontada, que é a do acórdão, a norma sub iudicio veio suspender o direito dos ex-regentes escolares a perceber um vencimento superior àquele que até à data da entrada em vigor da Lei 103/88 (ou seja, até 1 de Janeiro de 1989) vinham auferindo, continuando, por via dessa suspensão, a receber o vencimento antigo de montante inferior.
Simplesmente - e ainda na mesma perspectiva -, esse direito a um vencimento de montante mais elevado só se tornou eficaz devido a uma circunstância exterior e acidental - à circunstância de ter havido atraso na distribuição do Diário da República contendo a Lei 114/88. Não fora esse atraso e a norma sub iudicio, entrando em vigor a 1 de Janeiro de 1989, teria impedido que produzissem efeitos os artigos 1.º e 2.º da Lei 103/88, de 27 de Agosto.
E mais: esse direito, criado pelos artigos 1.º e 2.º da Lei 103/88, de 27 de Agosto, é um direito a um aumento de vencimentos que, muito antes da data em que devia concretizar-se (1 de Janeiro de 1989), já se sabia que se não concretizaria.
De facto, a Lei 114/88, de 30 de Dezembro, é a lei do orçamento. Foi, por isso mesmo, sujeita a debate parlamentar, amplamente divulgado pelos órgãos de comunicação social. Desse modo, os ex-regentes escolares ficaram a saber que o seu anunciado aumento de vencimentos, afinal, não teria lugar a partir de 1 de Janeiro de 1989, uma vez que a Assembleia da República, ao votar o Orçamento para 1989, deliberou suspender a vigência da Lei 103/88, que o continha.
O legislador, por conseguinte, o que fez foi suspender um aumento de vencimentos antes de ele se concretizar. Apenas aconteceu - ainda na perspectiva do acórdão - que essa suspensão, por virtude de um atraso na distribuição do jornal oficial, não pôde operar atempadamente.
3 - Neste quadro factual, tenho para mim que é perfeitamente excessiva uma censura, sub specie constitutionis, da opção do legislador - opção que se traduziu, afinal, em travar, suspendendo-a, uma opção que antes ele próprio fizera sobre a matéria e que mais tarde veio a retomar (cf. o Decreto-Lei 409/89, de 18 de Novembro).
Não vejo, na verdade, que as expectativas dos ex-regentes escolares - expectativas de, daí em diante, ganharem como se professores diplomados pelas escolas do magistério primário fossem - tivessem uma consistência tal que delas se pudesse dizer haverem-se radicado na consciência jurídica da comunidade de tal modo que - à parte a ocorrência de excepcionais e ponderosas razões de interesse público - se tivesse tornado impossível um retrocesso nessa matéria.
Ora, não se verificando um tal condicionalismo, não pode dizer-se que a confiança que os ex-regentes escolares depositavam no aumento de vencimentos (e, assim, em que o legislador honraria o compromisso assumido nesse sentido) foi abalada de forma "opressiva", "intolerável" ou "demasiado acentuada".
E, como tal não aconteceu, não pode, em consequência, concluir-se que foi violado o princípio do Estado de direito democrático. - Messias Bento.
Declaração de voto Votei vencida. Entendo que a norma do artigo 14.º, n.º 11, da Lei 114/88, de 30 de Dezembro, não viola o princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República.
A Lei 114/88 - que aprovou o Orçamento do Estado para 1989 - veio, no artigo 14.º, n.º 11, suspender a vigência da Lei 103/88, a qual previa um aumento dos vencimentos dos ex-regentes escolares, fazendo-os corresponder aos vencimentos dos restantes professores habilitados com o curso normal.
A lei suspensa fora elaborada previamente à lei que aprovou o orçamento, mas ambas se propunham vigorar a partir de 1 de Janeiro de 1989.
Na lei que aprovou o orçamento o legislador pretendeu suspender em tempo o aumento de despesas implicado pela Lei 103/88, de 27 de Agosto.
Incidentalmente, porém, o Diário da República, de 30 de Dezembro de 1988, em que aquela lei foi publicda, só foi distribuído em 17 de Janeiro de 1989.
Para a tese vencedora a distribuição tardia do jornal oficial, implicando uma vigência diferida da lei que aprovou o orçamento e, portanto, afastando a sincronia do seu início de vigência com o da lei que vinha suspender, configura uma situação susceptível de pôr em causa a protecção da confiança dos cidadãos no direito, decorrente do princípio do Estado de direito democrático.
Não acompanho esta argumentação.
Não está, desde logo, afastada a caracterização orçamental da norma do artigo 14.º, n.º 11, da Lei 114/88. Trata-se de uma norma inscrita em lei que aprovou o orçamento e que, ao dispor "é suspensa a vigência da Lei 103/88, de 27 de Agosto", bem se poderá traduzir pela ideia "é suspensa a despesa x". É que a Lei 103/88, a lei suspensa, tratando matéria de vencimentos, assume uma dimensão marcadamente financeira.
Nesta perspectiva, a norma do artigo 14.º, n.º 11, da Lei 114/88 participará da natureza das normas orçamentais, subordinando-se aos seus princípios orientadores. Por virtude da regra da anualidade, a entrada em vigor da norma em apreço seria referida ao dia 1 de Janeiro de 1989. Por outro lado, o regime de suspensão assumiria o carácter temporário ínsito na anualidade da própria norma que o consagra e a sua permanência no tempo dependeria de nova consagração em lei orçamental ulterior.
Mas, mesmo admitindo, como no acórdão se admite, que a norma em apreço não é "puramente orçamental" e que a distribuição tardia da Lei 114/88 implica a sua vigência tardia, ainda assim haverá violação do princípio da protecção da confiança? Entendo que não.
O princípio do Estado de direito democrático é um princípio directivo, e não um princípio normativo. A sua concretização só pode operar-se com recurso a valorações complementares. A protecção da confiança dos cidadãos que lhe vai ligada, como subprincípio não expresso, não se deduz linearmente do artigo 2.º da Constituição.
Se é verdade, como diz Larenz, que a razão de ser da protecção da confiança é a mesma no direito público e no direito privado - "possibilitar a confiança e proteger a confiança justificada" de modo a evitar "o oposto de um Estado jurídico" -, também não pode deixar de se sublinhar que isso não implica a simples "transferência" para o direito público de princípios como o da boa fé ou do non venire contra factum proprium, destinados a desencadear mecanismos de responsabilidade pela confiança, no âmbito da auto-regulação de interesses.
A realização do princípio do Estado de direito, no quadro da Constituição, significa o asseguramento de um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, a garantia da confiança na actuação dos entes públicos. Mas não pode deixar de conjugar-se com a liberdade do legislador, não pode deixar de ter em conta os desideratos do princípio democrático.
Como diz Vieira de Andrade, a "liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade, ainda que limitadas, constituem características típicas da função legislativa e elas seriam praticamente eliminadas se o legislador fosse obrigado a manter integralmente o nível de realização e a respeitar os direitos por ele criados" (Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, p. 309).
É a ponderação do equilíbrio entre o princípio do Estado de direito e o princípio democrático que importa ao intérprete na avaliação das situações concretas, de tal modo que a protecção da confiança há-de reconhecer-se, não apenas a partir do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, mas com recurso a outras valorações que justifiquem a limitação da liberdade do legislador.
É que, como diz Gomes Canotilho, "uma argumentação ancorada exclusivamente em princípios abstractos reconduzir-se-á a um infrutífero esquema tautológico (por exemplo, 'deve ser protegida a confiança do cidadão digna de ser protegida', 'devem proteger-se os direitos adquiridos por serem direitos adquiridos')" (Direito Constitucional, 4.ª ed., Coimbra 1986, p. 313).
Ao averiguar se numa situação concreta está em causa a protecção da confiança dos cidadãos, não pode o intérprete orientar-se simplesmente ao artigo 2.º da Constituição, devendo indagar da existência de outros valores constitucionalmente relevantes que rejeitem a "inversão de sentido" do legislador.
Confirmar-se-á no caso em apreço um "retrocesso", uma "perda de direitos", susceptível de atingir momentos materiais relevantes da Constituição? Trata-se aqui da suspensão de um aumento de vencimento, que impede um progresso, não provoca um retrocesso. Além disso, a lei suspensa dependia do Orçamento de 1989 e, assim, da lei que o aprovasse (cf. artigo 170.º, n.º 3, da Constituição da República).
Verifica-se aqui uma escassa consolidação de posições subjectivas, apenas ocasionada por um incidente de distribuição da lei que aprovou o orçamento.
E, assim, parece impor-se a seguinte norma de concretização: não há violação da protecção da confiança quando uma lei, prevendo um aumento de vencimentos de um grupo de cidadãos e dependendo de ulterior lei de aprovação orçamental, vem por esta ser suspensa, apesar de um incidente de distribuição. - Maria da Assunção Esteves.