Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012
Processo 139/09.7IDPRT.P1-A. S1 - 3.ª Secção
José Carlos Pinto Afonso veio, nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2 de Dezembro de 2010, proferido no Recurso Penal registado sob o n.º 139/09.71DPRT.P1, da 4.ª Secção, emergente do processo comum com intervenção de tribunal singular n.º 139/09.7IDPRT, do 1.º Juízo Criminal da Comarca de Vila Nova de Gaia, em que por sentença de 2 de Junho de 2010 foi julgado e condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p.
e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho.
Invoca oposição entre a solução deste acórdão, que confirmou a sua condenação, e a preconizada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 23 de Outubro de 2003, no Recurso Penal n.º 3208/03, da 5.ª Secção, e transitado em julgado em 10 de Novembro de 2003, proferido no âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 57/99.5IDSTR, do Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, sobre situação alegadamente similar.
Por Acórdão de 29 de Junho de 2011, foi decidido verificarem-se os pressupostos de admissibilidade do recurso, nomeadamente, a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, e ordenado o seu prosseguimento.
Alegaram, nos termos do artigo 442.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o recorrente e o Ministério Público.
O recorrente concluiu assim as alegações (em transcrição integral):
1 - Assim e em conclusão:
A) Um raciocínio acerca da legitimação do direito penal tributário, enquanto direito penal secundário, revela que o interesse protegido pelas normas incriminadoras constitui um posterius, que se infere do respectivo conteúdo típico;
B) No âmbito do ilícito penal tributário o bem jurídico protegido é a relação de confiança que se estabelece entre o sujeito passivo e o Estado no âmbito da retenção do tributo, cuja violação se traduz num prejuízo para o património do Estado;
C) As penas fiscais não têm por finalidade ressarcir prejuízos, reais ou presumidos, que a violação de um dever tributário tenha provocado à entidade credora do imposto, nem visam tutelar, de um modo imediato, os interesses do sujeito activo da relação jurídico-tributária;
D) Perspectivar de outro modo o direito penal tributário implicaria conceder que este constitui um mero instrumento ou extensão da faculdade de cobrança coerciva de tributos, por parte do sujeito activo da relação jurídica tributária; Por outro lado, E) O pagamento do tributo, após a prolação da sentença, não possui relevância em termos axiológico-sociais, no sentido de que não implica a extinção da responsabilidade criminal;
F) Esse pagamento apenas tem por efeito o restabelecimento da paz jurídica e a revalidação da norma violada, com vista a alcançar finalidades de prevenção geral e especial;
G) Daí a relevância fundamental da existência de um juízo de prognose da razoabilidade, no âmbito da condição a que fica sujeita a suspensão da execução da pena de prisão;
H) Sob pena de esta (condição) ser absolutamente desprovida de sentido ou alcance, quando a priori resultar perfeitamente inviável, em face das reais e concretas condições económicas e financeiras do arguido, consideradas à data da respectiva condenação;
I) Atento o facto de a suspensão da aplicação da pena de prisão estar sempre condicionada ao pagamento do tributo e legais acréscimos, a respectiva aplicação tem de obedecer a requisitos de adequação e proporcionalidade;
J) Sob pena de violação do disposto no artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal;
K) A própria natureza jurídica do instituto de suspensão da pena impõe a realização de um juízo de prognose favorável ao arguido, consubstanciado na esperança, fundada em factos concretos, de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e de que não cometerá no futuro nenhum crime;
L) Assumindo este pressuposto como verdadeiro, não vislumbramos fundamento precisamente para afastar a obrigatoriedade desse mesmo prognóstico, quando está em causa a suspensão da execução da pena nos termos previstos no artigo 14.º do RGIT;
M) Prognóstico esse que, muito pelo contrário, se impõe, conforme resulta do entendimento defendido no douto acórdão fundamento, sob pena de nulidade da correspondente decisão;
N) Tendo em conta quer a finalidade e legitimação das penas criminais;
O) Quer o aspecto fundamental que já ficou referido, relacionado com o bem jurídico tutelado pelo direito penal tributário, em geral, e pelo abuso de confiança fiscal, em particular;
P) Normas violadas pelo acórdão recorrido: artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal e artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Termina defendendo que o recurso deve ser julgado procedente, ser revogado o acórdão recorrido, e por via disso ser fixada jurisprudência, que propõe nos seguintes termos:
Quando, no âmbito da criminalidade fiscal, a suspensão da pena ficar condicionada ao pagamento ao Estado do imposto e acréscimos legais, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, da Lei 15/2001, de 5 de Junho, incumbe ao tribunal fazer um juízo prognóstico de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte do arguido, em face da concreta situação económica deste, resultante dos autos, sob pena da verificação da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Por seu turno, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto concluiu (incluídos os realces, com excepção do negrito por uma questão de tratamento paritário das teses em confronto) nos termos seguintes:
1.ª No regime geral consagrado no artigo 50.º do Código Penal, a aplicação da pena de suspensão de execução da pena de prisão pressupõe que haja uma prévia determinação de uma pena de prisão em medida não superior a 5 anos (pressuposto formal), como, também, a formulação de um juízo de prognose favorável, sem que, com a suspensão, se prejudiquem as finalidades da punição (pressuposto material);
2.ª No regime especial do RGIT, em vigor, introduzido pela Lei 15/2001, e como, aliás, já sucedia no Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, o legislador, no artigo 14.º, veio condicionar a suspensão da pena de prisão ao dever de pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, regulando especial e pormenorizadamente a falta de cumprimento da condição de suspensão (exigência de garantias de cumprimento, prorrogação do período de suspensão, ou revogação da suspensão);
3.ª Ocorrendo convergência de regimes no que respeita aos pressupostos formal e material, a mesma cessa quanto à possibilidade do julgador equacionar a conveniência e adequação de submissão do condenado a um dever: no geral o julgador formula o juízo adequado ao dever, regra ou regime de prova a impor (artigos 50.º, n.º 2, 51.º, 52.º e 53.º do Código Penal); no regime especial do RGIT, ao ponderar-se a suspensão da pena, subtrai-se ao julgador tal possibilidade;
4.ª Na verdade, o artigo 14.º do RGIT prevê uma especial e única modalidade de suspensão da execução da pena de prisão: a da suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos;
5.ª Assim, tratando-se da única forma admissível de suspensão da execução da pena, o juízo de antecipação (prognose) positivo que a lei exige visa, apenas, concluir (ou não) se a simples censura do facto e a ameaça de prisão acompanhadas do sacrifício de reparação do mal do crime através do pagamento da prestação tributária de que se apropriou e legais acréscimos realizam de forma adequada as necessidades de prevenção geral e especial;
6.ª A questão do dever de investigação e ou pronúncia sobre se o arguido terá ou não condições de efectuar o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão, prende-se não já com a escolha e determinação da pena mas sim com a sua execução e cumprimento;
7.ª E o cumprimento do dever não tem de ser imediato podendo o arguido cumpri-lo faseadamente durante o tempo de suspensão, ou, na impossibilidade, total ou parcial, justificá-la, relevantemente, no processo;
8.ª Uma interpretação como a do acórdão fundamento levaria a uma solução constitucionalmente inaceitável, por violadora do princípio da igualdade;
9.ª Sendo a suspensão da execução da pena de prisão uma pena de substituição, que pressupõe a fixação prévia de uma pena de prisão, verificar-se-ia que, caso o juiz chegasse à conclusão que o arguido, no momento em que é decretada a suspensão, não podia, face à sua situação económica, pagar a prestação tributária e acréscimos, então, só lhe restaria aplicar a pena principal de prisão efectiva a que, por razões de prevenção geral e especial, já havia chegado;
10.ª E não podendo, no momento em que pondera o decretamento da suspensão da prisão, optar pela pena de multa (que inicialmente repudiou por não satisfazer os fins das penas), apenas confrontaria com prisão os arguidos economicamente mais desfavorecidos;
11.ª Assim, como a jurisprudência citada do TC e STJ que acompanhamos, entendemos que o juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para o efeito, indiferente, posto que a lei não obriga a que, de antemão, se faça um juízo definitivo sobre a capacidade do arguido em solver a condição, não desempenhando as condições económicas do condenado [...] qualquer papel na determinação da condição de pagamento da prestação tributária;
12.ª O estabelecimento de uma correspondência entre o montante da quantia a pagar como condição da suspensão e o montante da quantia em dívida, revelador de uma mitigação do princípio da razoabilidade, não ultrapassa limites constitucionais, face ao disposto no n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, que só confere relevância à falta de pagamento culposo;
13.ª Não exigindo a lei que o juiz, antes de decretar a suspensão, averigúe da possibilidade económica de o arguido pagar a prestação tributária, legal e necessariamente imposta como condicionante da suspensão, ou seja, não se tratando de questão que devesse apreciar ou conhecer, não se verifica a nulidade por omissão de pronúncia prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Propõe-se, pois, que o Conflito de Jurisprudência existente entre os Acórdãos da Relação do Porto de 2 de Dezembro de 2010, proferido pela 4.ª Secção no processo 139/09.7IDPRT.P1 e o do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Outubro de 2003, proferido pela 5.ª Secção, no processo 3208/03-5, seja resolvido nos seguintes termos:
«Em caso de condenação de um agente por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, em pena de prisão suspensa na sua execução, condicionada, nos termos do artigo 14.º do mesmo diploma, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, não cumprindo ao juiz, nesse momento, conhecer da possibilidade de o arguido cumprir a condicionante, tendo em conta a sua situação económica, não se verifica a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal».
Deverá, assim, o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, fixar-se a jurisprudência acima proposta.
Colhidos os vistos, foi realizado o julgamento em conferência pelo Pleno das Secções Criminais, nos termos do artigo 443.º do CPP, cumprindo decidir.
Fundamentação
Reapreciando os pressupostos. - O recorrente funda o presente recurso na oposição entre o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 2 de Dezembro de 2010, e um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 23 de Outubro de 2003, indicado como acórdão fundamento, proferidos ambos no domínio da mesma legislação reguladora do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º da Lei 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), sem que durante o intervalo da respectiva prolação tivesse ocorrido modificação legislativa que, directa ou indirectamente, fosse susceptível de interferir na resolução de direito controvertida. De resto, o artigo 14.º de tal diploma legal, nuclear no ponto em discussão, ficou intocado em todas as alterações da lei em causa.Sendo manifesta a legitimidade e interesse em agir do recorrente, uma vez que foi julgada improcedente a por si arguida nulidade por omissão de pronúncia da decisão condenatória de primeira instância e negado provimento ao recurso por si interposto, bem como a tempestividade do recurso, passemos à questão.
Da oposição de julgados. - Certo sendo que a decisão tomada na secção criminal sobre a oposição de julgados não vincula o Pleno, que tem competência para reapreciar a verificação dos pressupostos processuais do recurso, há que proceder a esse reexame.
Começando pela análise do que estava em causa em cada um dos acórdãos em confronto, dos contornos das concretas situações versadas e do modo como foram abordadas as questões colocadas.
Em ambos os casos em causa está a questão de saber se ao condenar por crime de abuso de confiança fiscal, escolhida a pena de prisão e determinada a suspensão da respectiva execução, sabido que esta está subordinada sempre ao pagamento do imposto em dívida e acréscimos legais, o juiz deve ou não ponderar a capacidade do condenado em pagar a quantia condicionante da suspensão da execução da pena de prisão e se a falta dessa ponderação gera nulidade por omissão de pronúncia.
Há uma diferença de abordagem da questão num e noutro acórdão, a nível processual, que em nada colide com o essencial em discussão.
Referimo-nos ao tempo e modo como a questão foi tratada num e noutro recurso.
No caso do acórdão recorrido a questão da nulidade por omissão de pronúncia sobre a viabilidade ou razoável exigibilidade prática do cumprimento da obrigação condicionante da suspensão da pena foi suscitada pelo arguido, que em sede de alegações de recurso invocou, além do mais, a desconformidade da sentença proferida em primeira instância com a jurisprudência plasmada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 2003, ora acórdão fundamento.
No caso do acórdão fundamento a questão é abordada em apreciação vestibular, em conferência, destinada a apreciar a questão prévia suscitada no exame preliminar pelo relator.
Vejamos o que estava em causa em cada um dos acórdãos em confronto e o modo como foram abordadas as questões colocadas.
Em ambas as situações os recorrentes foram condenados por crime de abuso de confiança fiscal em pena de prisão, substituída por suspensão da respectiva execução, e condicionada ao pagamento das quantias em dívida, acrescidas dos legais acréscimos.
Começando pela identificação da situação de facto.
No caso do processo onde foi proferido o acórdão recorrido, o arguido, único sócio e gerente de uma sociedade comercial, deixou de declarar e entregar ao Estado/Serviços de Administração do IVA as quantias apuradas e que a sociedade representada deveria pagar a título de imposto de IVA.
No caso julgado no processo de Alcanena, donde emergiu o acórdão fundamento, sendo o arguido igualmente sócio gerente de sociedade comercial, e apenas ele, exercendo, de facto, funções de gerência, a sociedade deixou de pagar as quantias apuradas, fazendo seus os montantes de IVA.
Em ambos os casos, em termos de subsunção jurídico-criminal da conduta de um e outro dos arguidos, foi considerado que tal omissão integrava um crime de abuso de confiança fiscal, tendo optado, uma e outra das decisões, perante a prevista alternativa pena de multa/pena de prisão, por aplicação de pena de prisão.
Em ambos os casos, efectuada essa opção, e ultrapassado esse primeiro plano, foi considerado que na particular situação concreta submetida a juízo se impunha substituir essa decretada pena de prisão por pena suspensa na respectiva execução.
Mas, como decorre do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, que a suspensão da execução da pena de prisão é necessariamente condicionada ao pagamento da prestação em falta e acréscimos legais, em ambos os casos, assim foi determinado.
De ambas as condenações houve recurso.
No caso do processo do 1.º Juízo Criminal da Comarca de Vila Nova de Gaia, donde emergiu o acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a condenação, mas antes afastou a arguida nulidade por omissão de pronúncia suscitada na motivação do recurso pelo arguido, consistente na questão de saber se deveria ter tido lugar a formulação de um juízo de prognose sobre a viabilidade ou razoável exigibilidade da satisfação da condição da suspensão da pena, ou seja, um juízo sobre a razoabilidade da prática da obrigação condicionante e julgando improcedente a arguida nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.
No caso do processo de Alcanena - relembre-se, aquele que deu origem ao acórdão fundamento - o arguido não colocou aquela questão, mas o Supremo Tribunal, na sequência de «questão prévia» suscitada no exame preliminar pelo Exmo. Relator, deliberou em conferência que se verificava uma omissão de pronúncia e, por via disso, ocorria nulidade do acórdão recorrido.
Decidiu «declarar nulo o acórdão recorrido na parte em que não conheceu, dela devendo ter conhecido antes de partir para a 'suspensão' da pena de prisão por que optara, da questão da razoabilidade prática da obrigação condicionante (para que depois, se lhe viesse a responder negativamente, pudesse - revendo eventualmente a opção inicialmente tomada sob pressupostos entretanto não confirmados - retroceder à questão da escolha, facultada pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, entre a 'pena privativa da liberdade' e a alternativa 'pena de multa' - artigo 70.º do Código Penal».
A questão central em debate num e noutro dos processos em confronto gira em torno da questão de saber se, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal, que prevê, em alternativa, pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão, e optando-se depois pela substitutiva suspensão da execução de tal pena, o que acarreta face ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, incontornavelmente, necessariamente, a imposição de condição de pagamento da prestação em dívida e legais acréscimos, há que ponderar ou não a razoabilidade da condição imposta, na consideração de que, face ao concreto/real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, máxime, situação económica, será de exigir o cumprimento.
Por outras palavras, se face e não obstante o imperativo da imposição da condicionante há ainda alguma margem de liberdade do julgador e se é de ter em conta o princípio da razoabilidade previsto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal e, existindo essa possibilidade, a sua não consideração origina nulidade por omissão de pronúncia.
Os julgadores, em ambos os casos, tiveram de pronunciar-se sobre situações de facto e de direito semelhantes.
Vejamos os pontos concretos em causa em um e outro dos acórdãos em oposição, de forma mais detalhada.
Acórdão recorrido
No processo comum com intervenção de tribunal singular n.º 139/09.7IDPRT, do 1.º Juízo Criminal da Comarca de Vila Nova de Gaia, por sentença de 2 de Junho de 2010, foi decidido condenar os arguidos:- José Carlos Pinto Afonso, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 7 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 12 meses, sob a condição de, no prazo de 12 meses, comprovar documentalmente nos autos ter pago a quantia de (euro) 63 887,29 e legais acréscimos.
- A arguida Carlos Pinto Afonso Unipessoal, Lda., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do mesmo RGIT, na pena de 400 dias de multa, à razão diária de (euro) 5, o que perfaz o quantitativo de (euro) 2000.
A conduta do arguido, no essencial, consistiu no seguinte: sendo sócio gerente da sociedade comercial co-arguida, o arguido não declarou nem entregou ao Estado as quantias apuradas a título de imposto de IVA, nos montantes e períodos seguintes: 1.º, 2.º, 3.º e 4.º trimestres de 2005; 1.º, 2.º, 3.º e 4.º trimestres de 2006 e 1.º, 2.º, 3.º e 4.º trimestres de 2007, nos valores, respectivamente, de (euro) 6278,85, de (euro) 9535,06, de (euro) 9909,37 e de (euro) 7736,21; de (euro) 6845,82, de (euro) 7776,64, de (euro) 11 633 e de (euro) 7423,84; de (euro) 7763,25, de (euro) 9533,76, de (euro) 6079,90 e de (euro) 6561,98.
O arguido interpôs recurso, focando em primeira linha o facto de a decisão condenatória não se ter debruçado sobre a questão da viabilidade ou razoável exigibilidade do cumprimento da condição da suspensão da pena a si aplicada, defendendo impor-se a realização de um juízo de prognose razoável acerca da viabilidade da satisfação da condição legal para a suspensão de pagamento do imposto em falta e acréscimos legais, dizendo ser de repudiar a substituição da prisão por «suspensão» quando, como sucede nos autos e tendo em conta a matéria de facto assente, é possível, num juízo prognóstico de razoabilidade concluir que será inviável ao arguido o cumprimento da condição suspensiva e que ao não tomar posição explícita sobre se o «dever» de pagamento da prestação tributária representava ou não para o condenado uma «obrigação razoavelmente exigível», tendo em conta a respectiva situação laboral e patrimonial, a decisão recorrida padecia de nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
Subsidiariamente, pediu a substituição da pena de prisão por pena de multa.
O ora acórdão recorrido a propósito da norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, referiu que «encarada na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atenta a primazia que assume o interesse em arrecadar impostos, não pode ter-se como desproporcionada e, portanto, como violadora dos princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade», julgando improcedente o recurso, declarando não haver qualquer omissão de pronúncia, «porquanto nada na lei pressupõe que o julgador no momento de suspender a execução da pena, elabore um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, sendo que o que parece impossível num determinado momento, vem afinal, muitas vezes, a verificar-se de realização possível, num momento posterior».
Acórdão fundamento
No processo comum colectivo n.º 57/99.5IDSTR, de Alcanena, por Acórdão de 6 de Fevereiro de 2003, foi deliberado condenar o arguido Carlos Alberto da Silva Almeida como autor de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, na pena de 10 meses de prisão, suspensa pelo período de 3 anos, sob condição de no prazo de 2 anos e 6 meses, a contar do trânsito em julgado, proceder ao pagamento integral ao Estado dos montantes em dívida - 10 062 181$, correspondente a (euro) 50 189,95 e acréscimos.A conduta do arguido, no essencial, consistiu no seguinte: sendo sócio gerente da sociedade comercial co-arguida Anicate, Lda., o arguido não declarou nem entregou ao Estado as quantias apuradas a título de imposto de IVA, nos montantes de 532 892$, relativo ao mês de Setembro de 1995, cujo prazo para pagamento expirava a 30 de Novembro de 1995; de 1 308 647$, relativo ao mês de Outubro de 1995, cujo prazo para pagamento expirava a 20 de Dezembro de 1995; de 3 424 644$, relativo ao mês de Novembro de 1995, cujo prazo para pagamento expirava a 31 de Janeiro de 1996;
de 5 601 088$, relativo ao mês de Dezembro de 1995, cujo prazo para pagamento expirava a 29 de Fevereiro de 1996; de 864 386$, relativo ao mês de Janeiro de 1996, cujo prazo para pagamento expirava a 1 de Abril de 1996; de 1 105 839$, relativo ao mês de Julho de 1996, cujo prazo de pagamento expirava a 20 de Setembro de 1996;
de 1 193 571$, relativo ao mês de Junho de 1998, cujo prazo para pagamento expirava a 10 de Agosto de 1998.
A sociedade recebera dos seus clientes o IVA que liquidou e, por intermédio do arguido, que em nome e no interesse daquela actuou, fez seus os montantes de IVA.
Os montantes do imposto de IVA exigível, resultante da diferença entre o imposto liquidado aos clientes e o imposto por si suportado e dedutível, constante das referidas declarações perfazem o total de 14 031 067$.
O arguido interpôs recurso, pedindo a consideração de opção pela pena de multa, ou a suspensão da pena por cinco anos, sob a condição de pagamento ao Estado da quantia de (euro) 1000.
Por Acórdão de 23 de Outubro de 2003, o STJ, reunido em conferência para apreciar a questão prévia suscitada no exame preliminar, declarou nulo o acórdão recorrido nos termos referidos supra.
Do confronto dos dois acórdãos pode concluir-se que É patente que em ambos os acórdãos foram equacionadas situações de facto com contornos muitíssimo próximos, muito semelhantes.
A questão jurídica é a mesma, indagando se há omissão de pronúncia sobre a capacidade de pagamento da quantia condicionante da suspensão da execução da pena de prisão por parte do condenado.
De igual modo, hialino é que as soluções preconizadas no que ao específico ponto concreto importa são absolutamente antagónicas.
Enquanto o acórdão recorrido decidiu não ocorrer omissão de pronúncia quando o julgador subordina a suspensão da execução da pena ao pagamento das quantias em dívida ao Estado e acréscimos sem cuidar de averiguar se o condenado pode ou não cumprir a condição, não se impondo a formulação de qualquer juízo de prognose sobre a razoabilidade da exigência, seguindo o texto do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 256/03, o acórdão fundamento tem solução diametralmente oposta expressa nas conclusões que nele se contêm e passam a citar:
I - Devendo a suspensão da pena - no âmbito da criminalidade fiscal - ficar, «sempre», condicionada ao «pagamento ao Estado do imposto e acréscimos legais», de duas uma:
a) Ou esse pagamento é viável, caso em que a suspensão da pena - fazendo sentido, verificados os demais pressupostos - há-de ficar subordinada - sempre - ao pagamento integral, ainda que em prazo, da prestação tributária em dívida;
b) Ou esse pagamento não é viável, caso em que não terá sentido suspender-se a pena (pois a suspensão só ante o pagamento integral da prestação tributária realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição).
II - A lei penal tributária, ao exigir que a suspensão fique subordinada ao pagamento integral da «prestação tributária», deixa subentendido o repúdio dessa «substituição» se a obrigação condicionante não for viável (designadamente, se representar para o condenado uma obrigação cujo cumprimento for inexigível ou, mais precisamente, não for razoavelmente de exigir).
III - Em caso de suspensão condicionada, justificar-se-á - sob pena de o processo (e com ele, assim desincentivado, o próprio condenado) entrar em letargia durante o período do pagamento condicionante - que o tribunal estabeleça um apertado calendário de entregas à administração fiscal, por conta da prestação tributária e respectivos acréscimos, de mensalidades de montante que, proporcionado ao valor global da dívida, antecipe a sua integral satisfação ao cabo do prazo fixado.
IV - Concluindo-se pela inviabilidade, num juízo prognóstico de razoabilidade, da satisfação da condição legal, será de repudiar a substituição da prisão por «suspensão» (pois que esta, sem o pagamento integral da prestação tributária não realiza de forma adequada e suficiente - na perspectiva do próprio RGIT - as finalidades da punição), haverá que se retroceder, revendo-se porventura a solução a seu tempo provisoriamente adiantada, à questão da opção entre a «prisão» (ainda que «suspensa») e a «multa» (que, numa primeira abordagem, se rejeitara no pressuposto de que a «suspensão» - se condicionada - satisfaria adequada e suficientemente «as finalidades da punição»).
V - Se o tribunal - quando substituiu a «prisão» por «prisão suspensa» e condicionou a suspensão ao pagamento integral da «prestação tributária» - não tomou posição explícita sobre se esse «dever» representava ou não para o condenado [tendo em conta a sua situação laboral e patrimonial] uma «obrigação razoavelmente exigível», deixou de se pronunciar sobre uma questão - a da razoabilidade prática da obrigação condicionante - que devia ter apreciado, assim viciando a sentença, nessa parte, de nulidade [artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal].
Definida a questão de direito que suscita a pedida fixação de jurisprudência e enunciadas as posições em confronto, Cumpre decidir. - Antes de avançarmos, porque nos dois processos donde emergiram os acórdãos em oposição houve condenação dos arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.os 1 e 2, da Lei 15/2001, de 15 de Junho, importará passar em revista a evolução legislativa verificada na criminalidade tributária e na caracterização do tipo legal em questão.
Do Crime de Abuso de Confiança Fiscal
De 1976 até à actualidade
Vejamos a evolução legislativa no que concerne à consagração e autonomização dos crimes tributários - comuns, fiscais, contra a segurança social e aduaneiros -, no plano do chamado direito penal secundário (ou acessório, na denominação de Faria e Costa), por contraposição, ou à margem do direito penal clássico, ou direito penal de justiça, procurando corresponder a solicitações de neocriminalização, já antes presentes a estudo e ponderação, máxime, em 1976, e após, na década seguinte, já em 1984, transcorridos já oito anos, mas claramente exponenciadas a partir de 1990, com a consagrada inserção/integração do País no então «novo mundo económico europeu», cujas portas, 1986, com o ingresso na então CEE, abriu.Sobre a evolução do crime de abuso de confiança fiscal, desde 1990, passando por 1993, e até chegar a 2001, pode ver-se Manuel da Costa Andrade, in «O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza (de um acórdão) do Tribunal Constitucional», publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134.º (2005), pp. 307 a 325, e na colectânea Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 2009, vol. iii, pp. 229 a 236, traçando a trajectória da figura do abuso de confiança fiscal e suas metamorfoses na experiência jurídica portuguesa, desde a primeira «codificação» do direito penal fiscal português até 2001. (O acórdão que ao Autor despertou «algum espanto e alguma perplexidade» foi o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 54/2004, de 20 de Janeiro de 2004, proferido no processo 640/03, da 2.ª Secção, que apreciou, confirmando-a, a conformidade constitucional do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, na medida em que prevê o crime de abuso de confiança fiscal - infra, referir-nos-emos a este aresto, aquando do tratamento da questão da «prisão por dívidas»).
Posteriormente, o mesmo Autor retoma o tema, agora em parceria com Susana Aires de Sousa, em «As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto, Reflexões críticas a propósito da alteração introduzida pela Lei 53.º-A, de 29-12» (publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 17, n.º 1, 2007, pp. 53 a 72 e na já citada colectânea Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, 2009, vol. iii, pp. 321 a 335).
Vejamos o então, à época, inovador Decreto-Lei 619/76, de 27 de Julho.
Considerado o antecedente próximo das incriminações vigentes no domínio tributário, o diploma em causa visou, pela primeira vez, combater eficazmente a expansão dos «fenómenos de evasão e da fraude fiscal», com a criminalização das infracções tributárias mais graves e introdução de pena de prisão com limites máximos de 30 dias, 3, 6, 9 e 12 meses, consoante o valor do imposto, e, não sendo possível determinar o imposto em falta, com prisão entre 20 dias e 1 ano.
A pena de prisão podia ser substituída por multa - artigo 4.º Como constava do preâmbulo, pretendeu o diploma eliminar do direito penal tributário o benefício da suspensão da pena (previsto apenas para o imposto de transacções), estabelecendo o artigo 6.º que «Não há suspensão condicional da pena aplicada a qualquer infracção tributária».
Já então o crime tributário não implicava novação objectiva ou subjectiva da dívida tributária, nem o cumprimento da pena exonerava do pagamento da prestação em dívida, como se retira do artigo 3.º, que estipulava que «A pena de prisão nunca exonera do pagamento do imposto», disposição que assim se encontra na génese do actual artigo 9.º do RGIT.
Entre outros, previa como crime, no artigo 1.º, n.º 1, alínea f), «a não entrega total ou parcial nos cofres do Estado do imposto descontado ou recebido nos casos de autoliquidação ou retenção na fonte».
As restantes infracções fiscais previstas nos vários códigos fiscais consistiam genericamente em transgressões fiscais.
Tal diploma veio a ser revogado pelo artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei 20-A/90.
O diploma foi inovador, pois a esse tempo, no domínio do direito penal económico com afinidades com as infracções tributárias, a pena de prisão estava prevista apenas nos crimes fiscais aduaneiros, passando a estar igualmente prevista no dia seguinte nas infracções cambiais - artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 630/76, de 28 de Julho.
Como se pode ler em Alfredo José de Sousa, «Direito penal fiscal - Uma prospectiva», Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, vol. ii, Problemas Especiais, 1999, pp. 147 a 172 [e antes publicado in «Centro de Estudos Judiciários», Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico (1985), pp. 189 a 224], anteriormente à reforma fiscal (concretizada com a publicação dos códigos dos respectivos impostos de Novembro de 1958 a Junho de 1965, incluído o Código de Processo das Contribuições e Impostos - CPCI -, aprovado pelo Decreto-Lei 45 005, de 27 de Abril de 1963), as infracções fiscais eram constituídas predominantemente pelas transgressões puníveis apenas com multas, dantes aplicadas pelo chefe da Secção de Finanças e posteriormente objecto de sistematização e tipificação, com tendência para o abandono das penas fixas e jurisdicionalização da aplicação das multas às infracções fiscais com a entrada em vigor do CPCI.
Como anota o Autor, a p. 165, a partir de 1978, o legislador passou a agravar as molduras das multas cominadas nos diversos códigos fiscais para as transgressões integradas pelos mesmos factos que no domínio do Decreto-Lei 619/76 eram puníveis com pena de prisão.
A p. 171, para o crime de abuso de confiança fiscal, propunha o Autor a preferência a dar a certas reacções não institucionais relativamente à aplicação da pena de prisão, como a suspensão da execução da pena de prisão com a condição de o arguido pagar o imposto dentro de certo prazo.
Para Germano Marques da Silva, em trabalho elaborado em Loures, em Setembro de 1998, inserto na colectânea Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martinez, ii vol., Ciências Jurídico-Económicas, Almedina, Junho de 2000, intitulado «Imposto, Ética e Crime», a pp. 73 a 83, o diploma em referência era o embrião da responsabilidade por actuação em nome próprio e no interesse de outrem, que veio a ser consagrado no regime das infracções contra a economia e saúde pública (artigos 2.º e 3.º, n.º 3, do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro) e depois nos regimes jurídicos de infracções fiscais aduaneiras (Decreto-Lei 376-A/89, de 25 de Outubro) e não aduaneiras (Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro).
A codificação
A Lei de autorização legislativa n.º 89/89, de 11 de Setembro, que veio a dar origem à emissão do Decreto-Lei 20-A/90, permitiu ao Governo, em matéria penal, adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, podendo tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o Código Penal, podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria.Com o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro [publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 12 (suplemento), de 15 de Janeiro de 1990, rectificado pela Declaração de Rectificação, publicada no 2.º suplemento do Diário da República, 1.ª série, n.º 49, de 28 de Fevereiro de 1990, constando o Regime em anexo ao diploma em causa], foi sistematizada num só diploma a legislação, até então dispersa, relativa aos crimes e contra-ordenações fiscais, como corolário da profunda reforma do sistema jurídico - tributário português, com a entrada em vigor dos novos regimes jurídicos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), da Contribuição Autárquica (CA) e do Estatuto dos Benefícios Fiscais, constantes dos Decretos-Leis n.os 442-A/88, 442-B/88 e 442-C/88, todos de 30 de Novembro, e n.º 215/89, de 1 de Julho, num quadro emergente da então recente entrada do País na Comunidade Económica Europeia em 1986, sendo por isso um diploma datado.
Tratava-se de um «código tributário», «específico», contendo um direito penal especial, distanciando-se do direito penal comum ou «clássico», criando - na senda da segmentação e da especialização que actualmente se impõem, dos novos direitos penais emergentes, a par do chamado direito penal económico (a partir do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, no preâmbulo auto denominada «legislação penal secundária», muito embora aqui com o relevante contributo do antecedente e por aquele substituído, Decreto-Lei 41 204, de 24 de Julho de 1957 - primeira «codificação» do Direito Penal Económico -, mas com a novidade, fazendo eco de recomendações do Conselho da Europa, da consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas colectivas e sociedades), ou direito penal informático, ou do ambiente, ou do consumo, ou das infracções contra a concorrência, ou ainda a regulamentação da Bolsa - uma «região normativa especial, situando-se na esteira de um movimento de neocriminalização do chamado direito penal tributário iniciado com o referido Decreto-Lei 619/76, de 27 de Julho.
Como claramente enunciava o preâmbulo do Decreto-Lei 20-A/90 - p. 220 (2) do citado Diário da República - em causa estava criminalidade económica com prejuízo da Fazenda Nacional.
A parte ii do RJIFNA, sob a epígrafe «Das infracções fiscais em especial», continha um capítulo i, «Dos crimes fiscais», abrangendo os ilícitos criminais de:
Artigo 23.º - Fraude fiscal;
Artigo 24.º - Abuso de confiança fiscal;
Artigo 25.º - Frustração de créditos fiscais;
e um capítulo ii dedicado às contra-ordenações fiscais (artigos 28.º a 40.º) Como decorria do artigo 2.º, n.º 2, 2.º, da Lei de autorização de 1989, o sentido da autorização, no que tocava então à integração do crime de abuso de confiança fiscal passava pela verificação, suposta a existência de dolo, dos seguintes factos: «Não entrega, com intenção de assim obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, de todo ou parte do imposto ou prestação tributária que hajam sido retidos na fonte, ainda que por conta da prestação devida ou que, tendo sido recebidos, haja obrigação legal de os liquidar».
Estabelecia o artigo 24.º do RJIFNA (na versão originária):
«Abuso de confiança fiscal
1 - Quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, e estando legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a prestação tributária que nos termos da lei deduziu, não efectuar tal entrega total ou parcialmente será punido com pena de multa até 1000 dias.2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 50 000$, a pena será de multa até 180 dias, e se for superior a 1 000 000$, a pena não será inferior a 700 dias de multa.
5 - Para instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
6 - Se a obrigação da entrega da prestação for de natureza periódica, haverá tantos crimes quantos os períodos a que respeita tal obrigação.» (Itálicos nossos, para realçar a exclusiva/única previsão de pena de multa).
O Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, aprovado na sequência da autorização legislativa conferida pela Lei 61/93, de 20 de Agosto, alterou a redacção de vários preceitos do RJIFNA, i. a., do artigo 24.º (aqui introduzindo a exigência de apropriação na factualidade típica da incriminação, aproximando-se do correspondente crime de abuso de confiança comum, passando a exigir a apropriação, total ou parcial, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o sujeito passivo estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário), e introduzindo a previsão de pena de prisão, a título principal, até 5 anos.
De acordo com a lei de autorização o sentido da autorização legislativa quanto ao crime de abuso de confiança fiscal passava pela alteração da tipificação «no sentido da inclusão da apropriação total ou parcial de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o agente esteja legalmente obrigado a entregar ao credor tributário» - artigo 3.º, n.º 2.
E no que toca a definição de novas penas principais, segundo a alínea b) do artigo 4.º, «Para o crime de abuso de confiança fiscal, prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação tributária em falta não superior ao dobro sem que possa ultrapassar os limites máximos abstractamente estabelecidos, salvo se se verificar que a não entrega é superior a 5000 contos, em que a pena aplicável é de prisão de um até cinco anos, ou que a não entrega é inferior a 250 000$, caso em que a pena aplicável é de multa até 120 dias».
O artigo 24.º do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro (RJIFNA), na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, passou então a estabelecer:
«1 - Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até 3 anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior a dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2 - (Inalterado.) 3 - (Inalterado.) 4 - Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250 000$, o agente será punido com multa até 120 dias.
5 - Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5 000 000$, o crime será punido com prisão de um até 5 anos.
6 - (Anterior n.º 5.)» O Decreto-Lei 140/95, de 14 de Junho, iniciou a confluência dos crimes contra a segurança social com os crimes fiscais e integrou uns e outros num único diploma.
[A razão de ser da inovação introduzida colhe-se do diploma de autorização respectivo, a Lei 39-B/94, in Diário da República, 1.ª série-A, 2.º suplemento, n.º 298, de 27 de Dezembro de 1994 (Orçamento do Estado para 1995), segundo o qual, no artigo 58.º da citada lei, o Governo era autorizado a rever o Regime das Infracções Fiscais Não Aduaneiras].
De acordo com o artigo 1.º do diploma, a parte ii do RJIFNA passou a ter a epígrafe «Das infracções fiscais em especial e das infracções contra a segurança social».
O artigo 2.º aditou na parte ii, a par do preexistente capítulo i, dedicado aos «Crimes fiscais», um capítulo ii, com a epígrafe «Dos crimes contra a segurança social», integrado por quatro novos tipos de ilícitos criminais, a saber: fraude à segurança social - artigo 27.º-A; abuso de confiança em relação à segurança social - artigo 27.º-B; frustração de créditos da segurança social - artigo 27.º-C; violação de sigilo sobre a situação contributiva - artigo 27.º-D.
O diploma de 1995 alargou o campo de aplicação do RJIFNA às infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social pelos respectivos contribuintes, definindo os crimes contra a segurança social.
Seguiu-se a Lei 15/2001, de 5 de Junho, a qual sofreu várias alterações ao longo dos anos [com a respectiva redacção sucessivamente revista pelos seguintes diplomas: Lei 109-B/2001, de 27 de Dezembro (artigo 51.º), Decreto-Lei 229/2002, de 31 de Outubro (artigo 3.º), Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2003), Lei 107-B/2003, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2004 - artigo 45.º), Lei 55-B/2004, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2005 - artigo 42.º), Lei 39-A/2005, de 29 de Julho (alteração do Orçamento do Estado para 2005 - artigo 19.º), Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2006 - artigo 60.º), Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007 - artigos 95.º e 96.º), Lei 22-A/2007, de 29 de Junho (artigos 8.º e 9.º), Decreto-Lei 307-A/2007, de 31 de Agosto (artigo 3.º), Lei 67-A/2007, Diário da República, 1.ª série-A, suplemento, de 31 de Dezembro de 2007 (Orçamento do Estado para 2008 - artigos 86.º, 87.º e 88.º), Lei 64-A/2008, in Diário da República, 1.ª série-A, suplemento, de 31 de Dezembro de 2008 (Orçamento do Estado para 2009 - artigos 113.º, 114.º e 115.º), Lei 3-B/2010, de 28 de Abril (Orçamento do Estado para 2010), Decreto-Lei 73/2010, de 21 de Junho (artigo 3.º, alterando o artigo 109.º, e artigo 7.º, n.º 3, revogando as alíneas g), i) e j) do n.º 2 do artigo 109.º), Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011, altera pelo artigo 128.º o artigo 25.º e Lei 64-B/2011, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2012].
A Lei 15/2001 aprovou:
O Regime Geral das Infracções Tributárias, constante de anexo ao diploma (capítulo i);
A reformulação da organização judiciária tributária, com alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e da Lei das Finanças Locais (capítulo ii); e, O reforço das garantias do contribuinte e a simplificação processual, com alterações ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, à lei geral tributária, aprovada pelo Decreto-Lei 398/98, de 17 de Dezembro, e Código do IRC (capítulo iii).
Estabelece o artigo 1.º da Lei 15/2001:
1 - É aprovado o Regime Geral das Infracções Tributárias anexo à presente lei e que dela faz parte integrante.
2 - O regime das contra-ordenações contra a segurança social consta de legislação especial.
Estabelece, por seu turno, o artigo 1.º do Regime Geral, publicado em anexo com a epígrafe «Âmbito de aplicação»:
1 - O Regime Geral das Infracções Tributárias aplica-se às infracções das normas reguladoras:
a) Das prestações tributárias;
b) Dos regimes tributários, aduaneiros e fiscais, independentemente de regulamentarem ou não prestações tributárias;
c) Dos benefícios fiscais e franquias aduaneiras;
d) Das contribuições e prestações relativas ao sistema de solidariedade e segurança social, sem prejuízo do regime das contra-ordenações que consta de legislação especial.
2 - As disposições desta lei são aplicáveis aos factos de natureza tributária puníveis por legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário.
Segundo a sistemática do Regime Geral, na parte que ora nos interessa, há que atender à parte iii do anexo, com a epígrafe - Das infracções tributárias em especial.
Aí incluem-se no título i - Crimes tributários - as seguintes categorias:
Capítulo I - Crimes tributários comuns (artigos 87.º a 91.º);
Capítulo II - Crimes aduaneiros (artigos 92.º a 102.º);
Capítulo III - Crimes fiscais (artigos 103.º a 105.º);
Capítulo IV - Crimes contra a segurança social (artigos 106.º e 107.º).
No título ii, dedicado às «Contra-ordenações tributárias», incluem-se o capítulo i - Contra-ordenações aduaneiras (artigos 108.º a 112.º) - e o capítulo ii - Contra-ordenações fiscais (artigos 113.º a 127.º).
O crime de abuso de confiança fiscal está actualmente previsto no artigo 105.º da Lei 15/2001, de 5 de Junho, como crime tributário, na específica categoria de crimes fiscais. [Integram ainda a categoria de crimes fiscais a fraude (artigo 103.º) e a fraude qualificada (artigo 104.º).] Estabelecia o artigo 105.º da Lei 15/2001, na versão originária:
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
As alterações mais significativas no que tange ao preceito ora em causa são as decorrentes dos seguintes diplomas legais:
Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro, publicada no Diário da República, 1.ª série, suplemento, de 30 de Dezembro de 2005 (Lei do Orçamento do Estado para 2006), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2006, que, pelo artigo 60.º, n.º 1, alterou o valor constante do n.º 6 (elevando de (euro) 1 000 para (euro) 2 000);
Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2007), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2007, que, pelo artigo 95.º, alterou o n.º 4, criando uma nova condição objectiva de punibilidade, como definido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 6/2008, de 9 de Abril de 2008, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, passando a estabelecer:
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
[No actual n.º 4 compreende-se na alínea a) o anterior texto do corpo do mesmo n.º 4, correspondendo a alínea b) a inovação.] Com a Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2009 - Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro (publicada no Diário da República, 1.ª série, suplemento, de 31 de Dezembro de 2008, entretanto alterada pela Lei 10/2009, de 10 de Março, in Diário da República, 1.ª série, n.º 48, de 10 de Março de 2009, e pela Lei 118/2009, de 30 de Dezembro, in Diário da República, 1.ª série, n.º 251, de 30 de Dezembro de 2009), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2009, conforme o artigo 174.º, foram introduzidas, no capítulo xi, novas alterações ao RGIT.
Pelo artigo 113.º foi dada nova redacção aos artigos 18.º, 25.º, 98.º, 105.º, 109.º e 114.º do RGIT, e no que respeita especificamente ao artigo 105.º, foi alterado o n.º 1, introduzindo no preceito o elemento valor e passando a dispor:
«Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.» A inovação consistiu na introdução das palavras «de valor superior a (euro) 7500».
Foi revogado o n.º 6.
Ou seja, mantém-se inalterado o quadro punitivo dos n.os 1 e 5, nos termos que seguem:
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
O RGIT retomou quanto ao elemento estrutural apropriação a orientação da redacção originária do RJIFNA, mas não considerou como elemento constitutivo do crime o dolo específico, a «intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida», simplificando os elementos constantes do crime que passam a ser a não entrega atempada da prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o contribuinte estava legalmente obrigado a entregar. Não se exige agora nem apropriação, nem aquela referida intenção.
O legislador de 2001 prescindiu do momento apropriação, que no contexto do RJIFNA integrava a factualidade típica da incriminação, convertendo a infracção num crime de mera inactividade, esgotando-se na mera não entrega à administração fiscal, dentro de determinado prazo, de prestações tributárias deduzidas nos termos da lei pelo substituto fiscal.
O ilícito em causa passou a assentar na violação do comando legal de entregar ao Estado prestações tributárias deduzidas e retidas.
Ao afastar-se do regime penal comum, afirma Germano Marques da Silva, em Direito Penal Tributário, UCE, 2009, p. 46, o crime de abuso de confiança passou a configurar-se essencialmente como um crime de violação do dever funcional do substituto tributário.
E a p. 58, diz «O que verdadeiramente se verifica nos crimes de abuso de confiança é o incumprimento do dever funcional do substituto: a entrega nos cofres do Estado dos bens que arrecadou em nome e por conta do Estado. É a infidelidade a razão da punição».
Como assinala Susana Aires de Sousa, na obra Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador, edição da Coimbra Editora, Julho de 2006 (depósito legal n.º 246 019/2006), p. 126, citando - nota 241 - Acórdãos do STJ de 2 de Julho de 1998 e de 13 de Dezembro de 2001, para que a não entrega constitua crime de abuso de confiança fiscal é necessário que a prestação tributária em causa tenha sido efectivamente deduzida ou recebida pelo agente. Se o substituto não deduziu sequer a prestação, não está preenchido o tipo do artigo 105.º do RGIT.
Objecto de previsão específica do crime de abuso de confiança fiscal é, no artigo 105.º, o que se contém nos n.os 1, 2 e 3, definindo os elementos do crime (as «extensões» do conceito de prestação tributária constantes dos n.os 2 e 3 reproduzem na íntegra o texto dos n.os 2 e 3 do artigo 24.º do RJIFNA originário).
No crime de abuso de confiança fiscal, objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é a prestação tributária, conceito referido no artigo 1.º, n.º 1, alínea a), e definido no artigo 11.º, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias (anexo), englobando os impostos e outros tributos cuja cobrança caiba à administração tributária, abrangendo o artigo 105.º três tipos de prestações pecuniárias cuja não entrega faz recair sobre o agente a responsabilidade penal por tal crime - para além da prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o agente estava obrigado legalmente a entregar, prevista no n.º 1, o objecto da omissão é «alargado» pela definição extensiva ou equiparações do n.º 2 («considera-se também prestação tributária») do artigo 105.º (abrangendo prestação deduzida por conta de uma prestação tributária, v. g., a retenção na fonte no âmbito do IRS ou o pagamento por conta em sede de IRC ou a prestação que tenha sido recebida havendo a obrigação legal de a liquidar, como no IVA) e do n.º 3 (aqui abrangendo prestações com natureza parafiscal) do citado preceito legal.
Pressupõe o crime uma relação em que intercedem três sujeitos: o Estado, enquanto Administração Fiscal, titular do crédito do imposto; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.
O artigo 105.º, como, de resto, o artigo 107.º, têm em vista situações de substituição tributária, mas no primeiro caso, como assinala Susana Aires de Sousa, in Os Crimes Fiscais, pp. 125-127, seja a substituição própria ou imprópria, não se reconduzindo aos casos em que é usada a técnica de retenção na fonte do imposto devido.
Como refere a mesma Autora a p. 126, «O legislador penal, ao equiparar à prestação tributária aquela prestação que foi deduzida por conta dela (artigo 105.º, n.º 2), quis deixar claro que também as situações que a doutrina designa por substituição imprópria cabem no âmbito do Abuso de Confiança fiscal, uma vez que a violação das obrigações e deveres tributários constitui um meio de prejudicar as receitas tributárias.
A dedução do montante do imposto, seja de forma definitiva, seja por conta da prestação tributária que no futuro se liquidará, permite abreviar e assegurar a obtenção de receitas tributárias. Todavia, a completa ilustração do tipo pressupõe um reenvio para as normas fiscais que contemplam os casos de substituição tributária, seja ela própria ou imprópria».
Segundo Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, p. 228, «A substituição fiscal, que corresponde geralmente à adopção do processo financeiro designado por retenção na fonte, verifica-se sempre que a lei impõe o dever de imposto, não à pessoa em relação à qual se verificam os pressupostos de facto da tributação, mas a um terceiro que vem, assim, a ocupar na relação, desde o início até à sua extinção, o lugar de sujeito passivo».
E segundo Helder Leitão, Código de Processo Tributário Anotado, Elcla, 1999, p. 489, quanto à razão de ser da figura diz que é por facilidade na cobrança e pela criação de um mais constante afluxo à tesouraria pública, que surgiu a liquidação por intermédio da retenção na fonte.
Estamos perante um crime omissivo, um crime de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução ou retenção ou recebimento de determinado valor, que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas/retidas/recebidas, figurando como um intermediário no processo de arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do deduzido/retido/recebido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária.
Assenta o crime numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita - a dedução/retenção/recebimento - que funciona como seu pressuposto, uma outra, traduzida numa omissão.
O bem jurídico tutelado. - Segundo algumas posições doutrinárias, no direito penal económico, o critério do bem jurídico tutelado não será determinante, por se estar face a crimes de natureza artificial.
Ou seja, crimes artificiais, de criação meramente estatal, meramente proibidos, ou noutra terminologia, mala prohibita, em contraposição com o «crime natural» ou «mala in se», correspondendo a incriminações do direito penal de justiça, a verdadeiros delitos «a se», ou «naturais», em que o seu fundamento ético e o consequente desvalor da ilicitude são tão evidentes e indiscutíveis que tornam irrelevante o desconhecimento da proibição, por traduzirem um valor fundamental de solidariedade ou convivência social, ínsito e conatural a qualquer sociedade (cf. Figueiredo Dias, O Problema da Consciência da Ilicitude, 1978, p. 394, a propósito do erro sobre as circunstâncias do facto e erro sobre a ilicitude).
Neste sentido, Augusto Silva Dias, em «O novo Direito Penal Fiscal não Aduaneiro (Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro) - Considerações dogmáticas e político-criminais», publicado in Fisco, n.º 22, Julho de 1990, pp. 16 e seguintes, e in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Problemas Especiais, Coimbra Editora, Limitada [com depósito legal datado de 1998 (n.º 125 502/98), mas composto e impresso em Março de 1999], vol. ii, de p. 239 a p. 285, refere, a p. 263, reportando-se concretamente aos crimes fiscais:
«A respeito do fundamento concreto da intervenção penal no âmbito do ilícito fiscal e diferentemente do que sucede nos chamados 'crimes clássicos', não se apresenta à partida um (ou vários) bem jurídico de contornos definidos, concretamente apreensível, que funcione como constituens da estrutura do ilícito e vincule a uma certa direcção de tutela. Ao invés, o objecto da protecção penal é um 'constituto', uma resultante de objectivos e estratégias de política criminal previamente traçados. O legislador não parte aqui das representações de valor preexistentes na consciência jurídica da comunidade, mas intervém modeladoramente no sentido de uma ordenação da convivência. Por outras palavras, o interesse protegido pelas normas penais fiscais não é um prius, que sirva ao legislador de instrumento crítico da matéria a regular e do modo de regulação, mas um posterius, com uma função meramente interpretativa e classificatória dos tipos, construído a partir da opção por um dos vários figurinos dogmáticos e político-criminais que o legislador tem à sua disposição. Com este sentido pode dizer-se que os crimes tributários têm natureza 'artificial'.» Este trecho é não só citado, mas transcrito integralmente por Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em «O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português (considerações sobre a factualidade típica e o concurso de infracções)», publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 6 (1996), pp. 71 a 110, e no referido Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, Coimbra Editora, publicado em Março de 1999, vol. ii, pp. 411-438, mais concretamente a p. 418, após considerarem que «Já no direito penal secundário muitas vezes só a partir da consideração do comportamento proibido é possível identificar e recortar em definitivo o bem jurídico. Aqui, e pelo menos do ponto de vista heurístico-hermenêutico, isto é, na perspectiva do intérprete e aplicador do direito, a determinação do bem jurídico é normalmente, um posterius em relação à conformação legal-positiva da incriminação».
Costa Andrade, em «A nova lei dos crimes contra a economia (Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro) à luz do conceito de 'bem jurídico'», in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. i, Problemas Gerais, Coimbra Editora, 1998 [publicado anteriormente in Centro de Estudos Judiciários, Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico (1985), pp. 69-105], referia então a concepção do Direito Penal Económico como um conjunto de delicta mere prohibita em relação aos quais não teria sentido falar-se de bem jurídico (p. 399), reportando o carácter de bens jurídicos, social, histórica e hoc sensu «artificialmente» construídos, podendo o bem jurídico em Direito Penal Económico ser posterior à identificação da respectiva área de tutela ou protecção (p. 404). (Sublinhados nossos.) A propósito da relevância jurídico-penal da reparação no âmbito do RGIT, apontado como paradigmático neste aspecto, por conter algumas disposições que conferem à reparação lato sensu um papel de relevo, v. Mário Ferreira Monte, «Da reparação penal como consequência jurídica autónoma do crime», in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 129 a 155, maxime, no que aqui importa, a pp. 134-135, 145, 151 e 153-155, anotando a concepção do bem jurídico em certos crimes económicos como um posterius relativamente ao tipo, bem como a artificialidade dos bens jurídicos em presença, por um lado, e a função simbólica de tais normas, por outro.
Contra estas posições, pronunciou-se Susana Aires de Sousa, na obra citada, editada em Julho de 2006, já, pois, no domínio do RGIT, a pp. 293 e 295, nota n.º 672.
Depois de, a p. 292, dar conta de que o delito fiscal é apontado como exemplo da expansão do direito penal e espectro de um direito penal simbólico e promocional, servindo as incriminações fiscais para ilustrar o «fenómeno da expansão do direito penal moderno» e consideradas paradigma de infracção artificial que reflecte a «administrativização» do direito penal e de se invocar como argumento a favor dessa administrativização o delito fiscal como protótipo de um delito cumulativo, próprio, do ilícito administrativo, afirma a Autora não concordar com tal análise, não tendo qualquer dúvida sobre a dignidade penal de algumas condutas com relevância fiscal.
Afirma a pp. 294-295, que «a conformação do ilícito fiscal e das condutas que hão-de entrar na esfera penal devem estar sujeitos, quer aos princípios de um direito penal fragmentário, subsidiário e de ultima ratio, quer ao exame crítico do bem jurídico-penal protegido».
E que «para cumprir a sua função crítica, o bem jurídico não pode ser definido como resultado posterior à configuração do ilícito, antes tem de preexistir e presidir materialmente à incriminação fiscal».
A pp. 299, 300 e 315, refere que o bem jurídico-penal protegido pelos crimes fiscais coincide com a obtenção das receitas fiscais.
Por outras palavras, o objecto de tutela dos crimes fiscais coincide com o conjunto das receitas fiscais de que o Estado é titular.
Trata-se de um bem jurídico colectivo ou supra individual, na medida em que ninguém pode ser excluído dos benefícios que dele advêm, cuja titularidade pertence à comunidade dos indivíduos, por meio do Estado que se compromete a realizar uma gestão adequada e a prosseguir objectivos económicos e sociais reconhecidos como fundamentais pela sociedade, havendo que assinalar que, sendo o benefício por parte de um cidadão independente da sua contribuição, cada indivíduo sabe que a sua não comparticipação não põe em causa a produção do bem, colocando-se na posição de free rider e adianta «assim se justifica que cada um seja chamado coactivamente a contribuir, e que a conduta do free rider seja criminalizada, em determinadas circunstâncias decorrentes dos princípios e garantias próprias do direito penal».
(Sobre bens jurídicos colectivos, delitos cumulativos ou aditivos, dinâmica de sociedade do risco e as figuras de free-rider ou free-loader, ou «viajante sem bilhete», veja-se na mesma obra, pp. 226-238, 255, 293 e 300, e Augusto Silva Dias, «'What if everybody did it?': Sobre a '(in)capacidade de ressonância' do Direito Penal à figura da acumulação», in RPCC, ano 13, n.º 3, Julho-Setembro de 2003, pp. 303-345, versando a tutela jurídico-penal do ambiente, e ainda Rafael Alcácer Guirao, «Protecção de bens jurídicos ou protecção da vigência do ordenamento jurídico?», in RPCC, ano 15, n.º 4, Outubro-Dezembro de 2005, pp. 511-555, referindo-se o Autor ao paradoxo do free rider como o homem não cooperante, não fiel ao direito, maxime, de p. 545 a p. 549 e com referência ao princípio da acumulação, Germano Marques da Silva, em Direito Penal Tributário, UCE, 2009, pp. 55-56).
José de Faria Costa, em Direito Penal Económico (em trabalho de Julho de 2002, conforme a p. 67, nota n.º 30), edição de Quarteto Editora, Coimbra, Setembro de 2003, pp. 41-42, alude ao tema, quando depois de afirmar que «face ao grau de complexidade dos mecanismos económicos e financeiros, mas não só, a protecção penal não se pode quedar nos clássicos crimes de furto, abuso de confiança ou burla», refere «Comportamentos há que, não obstante não prejudicarem ou ofenderem directamente uma concreta pessoa, lesam indiscriminadamente todos os membros da comunidade económica», dando como exemplos o branqueamento de capitais e o abuso de informação privilegiada, concluindo que a ordenação dominial merece dois níveis de tutela penal, e, a partir daí, distinguindo entre o direito penal patrimonial inserido no Código Penal (expressando-se em crimes que visam a defesa do património, através da forma de crimes de resultado de dano-violação) e o direito penal económico em legislação avulsa, de matriz supra-individual, na área do direito penal secundário ou acessório em que por força da fragmentaridade de 2.º grau, se sente a tendência para se construírem crimes de perigo. «De perigo concreto e sobretudo de perigo abstracto».
Como assinala Germano Marques da Silva, em Direito Penal Tributário, UCE, 2009, p.
99, o que distingue as diferentes categorias de crimes tributários não é a natureza do bem jurídico tutelado, mas a natureza dos regimes tributários violados.
E a p. 243 refere que o tipo em questão tutela o sistema fiscal na perspectiva patrimonial: arrecadação dos tributos recebidos ou retidos pelo substituto do imposto.
Mário Ferreira Monte, Da Legitimação do Direito Penal Tributário - Em Particular, os Paradigmáticos Casos de Facturas Falsas, Coimbra Editora, 2007, p. 280, defende que no âmbito do ilícito penal tributário o bem jurídico protegido é a relação de confiança que se estabelece entre o sujeito passivo e o Estado no âmbito da retenção do tributo, cuja violação se traduz num prejuízo para o património do Estado.
No fundo o que estes crimes visam é a optimização de arrecadação de receitas, visando impedir, obstar a evasão fiscal e a fraude, pois a pretensão primeira é a recepção completa e oportuna de impostos e contribuições, traduzindo-se a não arrecadação de receitas por falta de entrega num efectivo dano patrimonial e punindo-se a forfait a entrega em mora [artigo 105.º n.º 4, alínea b)]; o crime surge a partir do momento em que falha o estímulo e o convite ao contribuinte para que regularize a sua situação fiscal.
Tenha-se em vista que, numa primeira fase, no plano fiscal, há que aguardar pelo pagamento dentro de 90 dias e só depois é que surge o crime; após notificação, aguarda-se por 30 dias; se o faltoso pagar, incorre em contra-ordenação, mas se o não fizer, a situação que configuraria uma simples contra-ordenação converte-se, pelo não acatamento do convite, em figura criminal.
A finalidade de obtenção de receitas está presente em vários outros institutos, através dos quais é tentada a regularização tributária pós-delitiva; para além da causa de extinção do antigo n.º 6 do artigo 105.º, a possibilidade prevista no artigo 22.º, de dispensa ou atenuação especial da pena, se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária, a possibilidade de outras soluções que passam pela reparação, como o artigo 43.º, com a remissão que faz para os artigos 277.º a 283.º do Código de Processo Penal, com a possibilidade de suspensão provisória do processo e de arquivamento em caso de dispensa de pena prevista no artigo 44.º Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, no já citado trabalho «O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português», em 1996, a p. 436, referiam que o abuso de confiança fiscal integra, entre os pressupostos da factualidade típica, a efectiva produção de um dano patrimonial. Em termos rigorosamente idênticos ao que sucede com o abuso de confiança do artigo 205.º do Código Penal.
Os crimes de abuso de confiança, quer fiscal quer contra a segurança social, pressupõem na verdade a efectivação de um dano/enriquecimento sob a forma de descaminho de prestações correspondentes a créditos tributários (diversamente da fraude que corresponde a um crime de resultado cortado).
Com a punição da persistente omissão de acção de entrega, da falta de entrega da prestação/contribuição e da violação do dever de colaboração e lealdade, do incumprimento da obrigação de entrega, procura evitar-se a produção do dano, a não obtenção integral das receitas, a evasão ou redução fiscal.
Já em 1973, em estudo apresentado no Centro de Estudos Fiscais, Eliana Gersão, «Revisão do sistema jurídico relativo à infracção fiscal», in Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, vol. ii, pp. 89 e 93, referia-se à justificação e conveniência da criação de tipo legal de crime, com o objectivo específico de proteger os direitos do credor da relação jurídica tributária.
Sobre a caracterização destes crimes, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 2008, proferido no processo 4079/06-3.ª, in CJSTJ, 2008, t. 3, p. 236, onde se pode ler: «Foram razões de técnica de tutela que levaram o legislador a não só autonomizar (distinguindo-o do direito penal comum), em legislação especial (estabelecendo 'sanções especiais' em relação às 'sanções comuns'), os crimes tributários, como simultaneamente a fazer aquela subdivisão, onde as diferentes espécies de crimes acabam por ter como nota comum 'a tutela dos interesses tributários do Estado'.»
Da punição do crime de abuso de confiança fiscal - Da espécie da pena
Como se viu, em 1990 - artigo 24.º do RJIFNA, na versão originária - o crime em referência era punível apenas com pena de multa, prevista como pena principal, sendo logo na sentença fixada a prisão alternativa pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, imediatamente cumprida quando o condenado não pagasse voluntariamente a multa no prazo legal - artigo 11.º, n.º 4.
Augusto Silva Dias, em «O novo direito penal fiscal não aduaneiro», in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. ii, Coimbra Editora, 1999, criticando a supremacia ou eleição da pena de multa como pena principal cominada, ocupando a pena de privação de liberdade o lugar, não de pena alternativa (muitas vezes destinado à própria pena de multa), mas de pena subsidiária ou suplente, infligida apenas quando o condenado não cumpre a pena pecuniária, dizia a p. 257: «Não nos parece correcta esta renúncia à pena de privação da liberdade no Direito Penal Secundário, em geral, e no Direito Penal Fiscal, em particular», adiantando a p. 260 «ser mais eficaz e até mais justo recorrer aqui, em alternativa com a pena de multa, às penas curtas de privação de liberdade, no seguimento, de resto, de recomendações modernas. O efeito criminógeno destas sanções, que levou ao seu afastamento em nome do ideário da ressocialização, é minorado no domínio da criminalidade económica, porquanto grande parte dos delinquentes são pessoas que não necessitam de qualquer reabilitação, mas podem ser fortemente dissuadidas pela actuação sharp-short-shock da pena curta de prisão».
Posteriormente, em 1993 - com as alterações operadas pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, no artigo 24.º do RJIFNA - foi introduzida a pena de prisão, como pena principal, a par da pena de multa (para além de no n.º 5 figurar como única pena no caso do crime qualificado).
Versando esta solução, Anabela Miranda Rodrigues, em «Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal», em texto datado de 6 de Novembro de 1997, publicado in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. ii, Coimbra Editora, 1999, refere a p. 484 que «A previsão, ao nível legal, da pena de prisão como pena principal aplicada a pessoas singulares surge como inteiramente correcta».
E após referir as vantagens e eficácia da pena curta de prisão, refere a pp. 484-485, que «importa, no entanto, prevenir o perigo de uma aplicação do sharp-short-shock da pena curta de prisão para todos os delinquentes de white collar em relação a todos os crimes que cometam. O que aqui justifica a utilização da pena de prisão, como afirmou Figueiredo Dias, 'não é, ou não é tanto, o estatuto pessoal do agente, quanto a natureza da infracção que este praticou' e para cuja prevenção aquela pena se mostra particularmente adequada e eficaz».
Dizendo de seguida, a Autora, a p. 485: «Que o tribunal dê esta preferência à pena de prisão com mais frequência no direito penal fiscal do que no direito penal geral é circunstância que apenas pode ficar a dever-se ao facto de as exigências de prevenção geral de integração serem aqui acrescidas e não se satisfazerem, no caso concreto, com a aplicação de uma pena de multa.» Após referir, a p. 486, in fine, os casos em que o tribunal deve escolher e aplicar pena de prisão, defendendo uma autonomia relativa do sistema punitivo do direito penal fiscal em relação ao direito penal geral, a p. 489, termina do seguinte modo: «É preciso ter em conta que a punição adquire uma particular ressonância simbólica e justifica, assim, algumas particularidades: designadamente, maior frequência dos casos em que se aplica a pena de prisão; utilização de penas curtas de prisão que bastarão para satisfazer as exigências de prevenção geral; especial aptidão da prisão de curta duração para satisfazer as necessidades de prevenção especial.» Sobre a pertinência das penas curtas de prisão neste domínio, Figueiredo Dias em «Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em direito penal económico», publicado in CEJ, Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, Coimbra, 1985, pp. 38 e segs., e em Direito Penal Económico e Europeu:
Textos Doutrinários, vol. i, Problemas Gerais, 1998, pp. 375-386, onde para além do excerto citado por Anabela Rodrigues, concluía, a p. 385, que na aplicação das penas em direito penal económico «a preferência pela pena de prisão - mesmo se se trata de penas curtas - em confronto com a pena de multa, impõe-se numa gama mais larga de hipóteses», neste aspecto se distinguindo do direito penal geral.
(Sobre penas curtas de prisão, pode ver-se Manuel Costa Andrade, em trabalho inserto na colectânea Jornadas de Direito Criminal, o Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, fase i, abrangendo conferências proferidas em Novembro de 1982, publicado pelo CEJ, em Abril de 1983, a p. 212, e enquanto dirigido apenas ao campo do direito penal económico, e, em concreto, aos delitos económicos previstos no Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, e José Faria Costa, in Direito Penal Económico, Quarteto, Setembro de 2003, pp. 91-94.) Como resulta do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, e agora em aplicação, fora, pois, do quadro da qualificativa do n.º 5, que prevê apenas a pena de prisão de 1 a 5 anos, o crime por que foram, aliás, condenados os arguidos nos dois processos, de que emergiram os acórdãos ora em confronto, é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Em ambos os casos, o concreto julgador na primeira instância, afastando a aplicação de pena de multa, optou por aplicar a pena de prisão, sendo depois considerada a aplicação da suspensão da execução da pena, sujeita, num e noutro caso, à condição de pagamento das prestações em dívida e acréscimos.
Feita, em ambos os casos, a opção pela pena de prisão, e de seguida, incidindo a subsequente opção pela suspensão da execução da pena de prisão eleita, segue-se o passo seguinte.
Da suspensão da execução da pena de prisão
Na origem
Como se pode ler em Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Almedina, 1965, «§ 21.Substituição da Pena. A reacção contra as penas curtas de prisão», pp. 392 e segs., a propósito da suspensão condicional da pena, o instituto da suspensão da pena («sursis») corresponde a uma individualização nascida contra as curtas penas de prisão e foi traçado no projecto francês de Bérenger, de 1884, que veio a ser consagrado legislativamente na Bélgica, pela primeira vez, em 31 de Maio de 1888, e depois na França, em 26 de Março de 1891.
O modelo franco-belga da condenação condicional veio a ser, depois, adoptado por vários países da Europa, como o Luxemburgo, em 1892, e Portugal, em 1893.
A ideia fundamental que dominava o instituto era nas palavras de então subtrair os criminosos às penas curtas de prisão, que, por um lado, envolvem um grande perigo de contágio com maus elementos e, de qualquer modo, fazem sofrer a quem são infligidas uma degradação social irreparável, sem a compensação de uma possibilidade séria - justamente pela sua curta duração - de reeducação dos criminosos.
Esse pensamento estava presente no espírito do legislador português de 1893, que na respectiva proposta de lei às cortes, ponderava:
«Ninguém desconhece que a pena de prisão correccional, pelo modo como se cumpre, nem reprime, nem educa, nem intimida, mas perverte, degrada e macula. É um verdadeiro estágio de corrupção moral.
É mister, pois, que se economize esta pena, e que não se ponha um delinquente, que infringiu a lei, pela primeira vez, num momento de paixão ou de fraqueza, um delinquente ainda não ferreteado pela aplicação da pena anterior, em contacto com a vil escória dos cárceres e num meio tão nocivo fisicamente como moralmente.» A p. 397, refere o Autor que a condenação condicional não deixa de funcionar com uma eficácia retributiva e preventiva e, portanto, como uma pena, citando a propósito Beleza dos Santos (cf. infra).
A condenação condicional de tipo franco-belga contava com o poder intimidativo da ameaça da pena já fixada; considerava a ameaça da execução da pena de prisão, fixada na sentença, como suficiente para afastar os delinquentes da prática do crime, não se ordenando ou prevendo qualquer espécie de direcção, apoio, orientação, supervisão ou de assistência externas a dar ao condenado.
Muitos dos sistemas que adoptaram a condenação condicional de tipo franco-belga procuraram completar a suspensão da pena com uma orientação e uma vigilância levadas a cabo por entidades particulares ou oficiais.
A integração da condenação condicional por um conjunto de condições visando planificar a vida dos delinquentes e dar-lhes apoio e vigilância é produto da influência da Probation, instituto surgido em Boston, no Estado do Massachussetts, nos Estados Unidos da América, e desenvolvido igualmente em Inglaterra.
Sobre a evolução histórica e político-criminal do instituto, veja-se ainda Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, ii, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 337-341.
Entre nós - In illo tempore
A suspensão condicional da pena de prisão foi regulada, entre nós, pela primeira vez, através da Lei de 6 de Julho de 1893 (volvidas as codificações operadas pelo Visconde de Seabra e Veiga Beirão, nos planos civilístico e comercial, de 1867 e 1888), completada depois pelo artigo 633.º do Código de Processo Penal de 1929, pelo Decreto-Lei 29 636, de 27 de Maio de 1939, e posteriormente integrada, com algumas modificações, no artigo 88.º do Código Penal de 1852-1886, na redacção que lhe foi dada pela reforma de 1954, introduzida pelo Decreto-Lei 39 688, de 5 de Junho de 1954.Pressuposto inicial de aplicação do instituto, em 1893, era que a condenação tivesse sido em pena de prisão, procedendo-se mais tarde nesse plano a um alargamento, previsto em 1939 no Decreto-Lei 29 636, segundo o qual a suspensão passou a poder aplicar-se à pena de multa, incluindo aquela em que fosse convertida a prisão (o diploma declarou no artigo 9.º que a pena de multa, incluindo aquela em que for convertida a prisão, pode ser suspensa nos mesmos termos em que o pode ser a pena de prisão) e posteriormente a prisão e multa no artigo 88.º do Código Penal de 1852-1886, na versão de 1954.
Defendendo que o instituto podia considerar-se uma verdadeira pena, o Professor Beleza dos Santos em «A suspensão condicional da execução da pena e os efeitos do não cumprimento das condições», na Revista de Legislação e Jurisprudência, 74.º ano (1941-1942), n.os 2691, pp. 3-5, 2692, pp. 17-19, 2698, pp. 113-116, 2700/1/2, pp.
145-148, 2705, pp. 225-227, e 2706, pp. 247-249, afirmava, a p. 115: «A suspensão da pena implica a substituição desta pela coacção constituída pela ameaça de se executar aquela pena quando não se cumprirem as condições impostas, o que é ainda uma pena», e a p. 147 dizia: «A medida de 'suspensão condicional da pena' é uma verdadeira sanção penal. Suspender uma pena é afinal aplicar outra pena.» E de seguida, dá nota de que o relatório que precedeu a proposta ministerial que se converteu na Lei de 6 de Julho de 1893 chamava à suspensão condicional da pena repressão moral.
Dizia então o citado relatório: «Tente-se primeiro a repressão moral da suspensão da sentença e no caso de que seja baldada aquela coacção psicológica, mais pesada seja a lei para o réu incontrito.»
Código Penal de 1852-1886
A substituição das penas estava então sujeita ao princípio da legalidade - artigo 85.º - estando previstas duas modalidades: substituição da prisão por multa - artigo 86.º - e a suspensão da execução da pena, quer de prisão quer de multa - artigo 88.º, na redacção introduzida pela reforma de 1954.Estabelecia o artigo 88.º:
«Em caso de condenação a pena de prisão, ou de multa, ou de prisão e multa, o juiz, tendo ponderado o grau de culpabilidade e comportamento moral do delinquente e as circunstâncias da infracção, poderá declarar suspensa a execução da pena, se o réu não tiver ainda sofrido condenação em pena de prisão. A sentença indicará os motivos da suspensão da pena.
§ 1.º O tempo de suspensão não será inferior a dois anos, nem superior a cinco, e contar-se-á desde a data da sentença em que tiver sido consignada.
§ 2.º A suspensão pode ser subordinada ao cumprimento de obrigações similares às que acompanham a concessão da liberdade condicional.» As obrigações do libertado condicionalmente estavam previstas no artigo 121.º do mesmo Código, em que se incluía, logo à partida, no n.º 1.º: «A reparação, por uma só vez ou em prestações, do dano causado às vítimas do crime.» No caso de infracção das obrigações impostas poderia o juiz revogar a suspensão, ordenando a execução da pena, alterar ou manter o condicionamento da condenação - § 2.º do artigo 89.º A impossibilidade legal de suspensão da execução da pena estava prevista para o comércio de estupefacientes - artigo 13.º, g), do Decreto 12 210, de 27 de Agosto de 1926; falsificação de géneros alimentícios e seu comércio - artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei 41 204, de 24 de Julho de 1957; o referido Decreto-Lei 619/76, de 27 de Julho - artigo 6.º, «não há suspensão condicional da pena aplicada a qualquer infracção tributária», e Decreto-Lei 625/76, de 28 de Julho, quanto ao crime do artigo 411.º do Código Penal.
Prescrevendo sobre «requisitos da sentença de condenação em pena suspensa», dizia o artigo 451.º do CPP que, se a sentença suspender a execução da pena, assim o declarará, indicando as razões desta medida e o prazo da suspensão.
Estabelecia o § 1.º que a suspensão da pena pode tornar-se dependente do pagamento da respectiva indemnização por perdas e danos, dentro de um prazo fixado na sentença.
Código Penal de 1982
O Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, no título iii - «Das penas» - «Capítulo I» - «Penas principais» - depois de tratar, na secção i, as «Penas de prisão e de multa», tratava, na secção ii, a «Suspensão da execução da pena», ao longo dos artigos 48.º a 52.º No preâmbulo do Decreto-Lei 400/82, «II - Parte geral», após tratar da pena de multa, enunciava-se no n.º 11:«Outras medidas não detentivas são a suspensão da execução da pena (artigos 48.º e seguintes) e o regime de prova (artigos 53.º e seguintes).
Substitutivos particularmente adequados das penas privativas de liberdade, importa tornar maleável a sua utilização, libertando-os, na medida do possível, de limites formais, por forma a com eles cobrir uma apreciável gama de infracções puníveis com pena de prisão. Assim se prevê a possibilidade da suspensão da execução da pena ou da submissão do delinquente ao regime da prova sempre que a pena de prisão não seja superior a 3 anos.
É evidente, todavia, que a pronúncia de qualquer destas medidas não é nem deve ser mera substituição automática da prisão. Como reacções penais de conteúdo pedagógico e reeducativo (particularmente no que diz respeito ao regime de prova), só devem ser decretadas quando o tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias indicadas no artigo 48.º, n.º 2 (aplicável também ao regime de prova por força do artigo 53.º), serem essas medidas adequadas a afastar o delinquente da criminalidade.
Compete ao tribunal essa indagação e a escolha responsável que sobre ela vier a fazer entre a suspensão da execução da pena e o regime de prova [...].
Com efeito, a condenação condicional, ou instituto da pena suspensa, correspondente ao instituto do sursis continental, significa uma suspensão da execução da pena, que embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime (artigo 48.º, n.º 2). A possibilidade de imposição de certas obrigações ao réu (artigo 49.º) destinadas a reparar o mal do crime ou a facilitar positivamente a sua readaptação social reforça o carácter pedagógico desta medida que o nosso direito já de há muito conhece, embora em termos não totalmente coincidentes com os que agora se propõem no Código (v. g., em matéria de pressupostos).» (Itálico nosso.) No projecto de 1963, e particularmente na discussão travada na Comissão Revisora, houve a intenção bem vincada de considerar tanto a suspensão da pena como o regime de prova como verdadeiras penas, e justamente penas principais, a fim de que o ponto deixasse de ser duvidoso, perfilhando-se a orientação então considerada preferível.
Como se viu, o instituto figura no capítulo i, dedicado a «Penas principais».
Estabelecia então, na versão originária, subordinado ao título «Pressupostos e duração», o artigo 48.º do Código Penal, na secção ii, «Suspensão da execução da pena», do capítulo i, «Penas principais», do título iii, «Das penas», relativa a «Suspensão da execução da pena»:
«1 - O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão não superior a 3 anos, com ou sem multa, bem como a da pena de multa imposta a condenado que não tenha possibilidade de a pagar.
2 - A suspensão será decretada se o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto punível, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
3 - A decisão condenatória especificará sempre os fundamentos da sua suspensão.
4 - O período de suspensão será fixado entre 1 e 5 anos, a contar do dia em que a decisão transitar em julgado.» O artigo 49.º especificava os deveres que podiam condicionar a suspensão:
«1 - A suspensão da execução da pena pode ser subordinada ao cumprimento de certos deveres impostos ao réu destinados a reparar o mal do crime ou a facilitar a sua readaptação social, nomeadamente a obrigação de:
a) Pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b) Dar ao lesado uma satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado certa quantia sem atingir o limite máximo estabelecido para o quantitativo da pena de multa.» Sobre as consequências da falta de cumprimento dos deveres versava o artigo 50.º
No Código Penal de 1995
(versão introduzida pela terceira alteração do Código Penal de 1982, operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro de 1995) A lei de autorização legislativa para revisão do Código Penal de 1982 - Lei 35/94, de 15 de Setembro - apontou como um dos objectivos a alcançar a valorização da pena de multa e outras reacções não detentivas na punição da pequena e média baixa criminalidade, de modo a optimizar vias de reinserção social do delinquente - artigo 2.º, alínea c).E no artigo 3.º, apontava como soluções neste âmbito:
«15) Modificar os artigos 48.º e 49.º, nos seguintes termos:
a) Suspensão da pena de prisão não só subordinada ao cumprimento de determinados deveres mas também a certas regras de conduta;
b) Possibilidade, para o tribunal, de determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova;
c) Possibilidade de os deveres e regras de conduta serem impostos cumulativamente;
d) Cingir a finalidade dos deveres impostos ao condenado à reparação do mal do crime;
e) Substituir o n.º 2 do artigo 49.º por novo texto em que se dirá que os deveres impostos não podem, em caso algum, representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir;
f) Modificar o texto da actual alínea c) do artigo 49.º no sentido de que a entrega de prestações pode consistir numa contribuição monetária ou em espécie de valor equivalente.» (Itálicos nossos.) A partir da reforma de 1995 a suspensão ganhou maior amplitude, pois o regime de prova foi encarado em novo enquadramento, perdendo autonomia e foi descaracterizado como pena autónoma de substituição - os artigos 53.º a 58.º foram eliminados, conforme o n.º 23 do preâmbulo - passando a ser configurado como uma modalidade da suspensão da execução da pena, ao lado da suspensão pura e simples e da suspensão com deveres ou regras de conduta, acentuando a vertente ressocializadora e responsabilizante da suspensão da execução da pena de prisão.
Na sequência, o artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 48/95 determinou a revogação das disposições legais que em legislação penal avulsa proibiam ou restringiam a substituição da pena de prisão por multa ou a suspensão da pena de prisão.
A pena de multa deixou de ser abrangida pela suspensão, determinando o artigo 7.º do citado decreto-lei que «Enquanto vigorarem normas que prevejam cumulativamente penas de prisão e multa, a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo tribunal não abrange a pena de multa».
O artigo 50.º do Código Penal, na secção ii, «Suspensão da execução da pena de prisão», do capítulo i, «Penas», do título iii, «Das consequências jurídicas do facto», com a epígrafe «Pressupostos e duração», dispunha:
«1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.» E estabelecia o artigo 51.º do mesmo Código, versando «Deveres»:
«1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b) Dar ao lesado uma satisfação moral adequada;
c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação em espécie de valor equivalente.
2 - Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
3 - Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento.» Sobre as consequências da falta de cumprimento das condições da suspensão versa o artigo 55.º E sobre a revogação da suspensão, o artigo 56.º
Reforma de 2007
Com a 23.ª alteração do Código Penal, introduzida com a Lei 59/2007, de 4 de Setembro, foi modificado o pressuposto formal, alargando o campo de aplicação da pena de substituição a penas de prisão até 5 anos, em vez do limite anterior de 3 anos, e alterando o período de suspensão, fazendo-o coincidir com a duração da pena.O artigo 50.º passou a estabelecer:
«1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.»
Pressupostos da suspensão
A partir de 15 de Setembro de 2007 alargou-se assim o campo de aplicação da pena de substituição a penas de prisão até 5 anos, em vez do limite anterior de 3 anos.A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do artigo 50.º Circunscrevendo-se estas, a partir de 1 de Outubro de 1995, de acordo com o artigo 40.º do Código Penal, à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas - prevenção geral e especial - que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa.
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518, pp. 342-343, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente:
que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade».
E acrescentava: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.
Adverte ainda o citado Professor - § 520, p. 344 - que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime».
Reafirma que «estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa».
Como refere Hans Heinrich Jescheck, Tratado, Parte Geral, versão espanhola, vol. ii, pp. 1152 e 1153, «na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade».
Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança fundada e não uma certeza - assumida sem ausência de risco - de que a socialização em liberdade se consiga realizar, que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência séria e solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.
A suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos - assim, Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Abril de 2003, processo 865/03-5.ª, CJSTJ 2003, t. 2, p. 157, e de 25 de Outubro de 2007, processo 3247/07-5.ª, CJSTJ 2007, t. 3, pp. 233-236.
De certo modo em paralelo com o disposto no artigo 664.º do CPC, dispõe o n.º 4 do artigo 339.º do CPP que a discussão da causa tem por objecto todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º, nomeadamente deste no que se reporta à determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar.
A suspensão como um poder-dever, exercício de um poder vinculado. - A aplicação de uma pena de substituição não é uma faculdade discricionária do tribunal mas, pelo contrário, constitui um verdadeiro poder/dever.
Como afirmava Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 515, p. 341, face ao artigo 48.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, não se trata de mera «faculdade» em sentido técnico-jurídico, antes de um poder estritamente vinculado e portanto, nesta acepção, de um poder-dever.
Maia Gonçalves, no Código Penal Português Anotado, 8.ª ed., 1995, p. 314, afirmava:
«Trata-se de um poder-dever, ou seja de um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos.» O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o tribunal sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão.
Como se extrai do Acórdão de 11 de Maio de 1995, proferido no processo 46.233, CJSTJ 1995, t. 2, p. 196, a suspensão da execução da pena não constitui uma mera faculdade de que o julgador possa livremente dispor, mas antes um verdadeiro poder-dever funcional, o que supõe que o tribunal só a pode declarar caso se verifiquem os pressupostos formais e materiais previstos no artigo 48.º do Código Penal.
O Acórdão de 4 de Junho de 1996, proferido no processo 47.969, in CJSTJ 1996, t.
2, p. 186, já face ao artigo 50.º do Código Penal de 1995, afirma estar-se perante um poder-dever, um poder vinculado do julgador, que terá, obrigatoriamente, de suspender a execução da pena de prisão, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, realçando que a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.
O Acórdão de 27 de Junho de 1996, proferido no processo 581/96, in CJSTJ 1996, t. 2, p. 204, do mesmo Colectivo do anterior, em caso de condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, reafirmando tratar-se de um poder-dever e de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, pondera que «A finalidade político-criminal que a lei visa com este instituto é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, estando aqui em causa uma questão de 'legalidade' e não de 'moralidade', citando, a propósito, Figueiredo Dias, Direito Penal Português - Das Consequências Jurídicas do Crime, 1993», p. 343.
No mesmo sentido, os Acórdãos de 10 de Outubro de 1996, proferido no processo 583/96-3.ª, in SASTJ, n.º 4, pp. 76-77; de 13 de Fevereiro de 1997, processo 40/96, SASTJ, n.º 8, p. 91; de 17 de Fevereiro de 2000, processo 1162/99-5.ª, SASTJ, n.º 38, p. 82; de 11 de Janeiro de 2001, processo 3095/00-5.ª; de 24 de Maio de 2001, CJSTJ 2001, t. 2, p. 201; de 8 de Novembro de 2001, processo 3130/01; de 14 de Novembro de 2001, processo 3097/01; de 29 de Novembro de 2001, processo 1919/01; de 20 de Fevereiro de 2003, CJSTJ 2003, t. 1, p. 206; de 25 de Junho de 2003, processo 2131/03-3.ª, CJSTJ 2003, t. 2, p. 221 (a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos legais; no mesmo sentido e do mesmo relator os Acórdãos de 16 de Fevereiro de 2005, processo 3491/04-3.ª, e de 13 de Abril de 2005, processo 459/05-3.ª, CJSTJ 2005, t. 2, p. 176); de 25 de Julho de 2003, processo 2131/03 (a suspensão da execução da pena, prevista no artigo 50.º do Código Penal, depende não de considerações de culpa, mas apenas de juízos de prognóstico sobre o desempenho da personalidade do agente perante as suas condições de vida e perante o seu comportamento, e deve ser decretada, como poder-dever do juiz, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos); de 2 de Outubro de 2003, processo 2615/03; de 2 de Dezembro de 2004, processo 4219/04; de 19 de Janeiro de 2005, processo 4000/04; de 25 de Maio de 2005, processo 1939/05; de 9 de Junho de 2005, processo 1678/05; de 9 de Novembro de 2005, CJSTJ 2005, t. 3, p. 209; de 8 de Março de 2006, CJSTJ 2006, t. 1, p. 203; de 10 de Maio de 2006, processo 1184/06-3.ª; de 21 de Setembro de 2006, processo 3132/06; de 14 de Março de 2007, processo 617/07-3.ª; de 18 de Abril de 2007, processo 1120/07-3.ª; de 19 de Abril de 2007, processo 1424/07-5.ª; de 10 de Outubro de 2007, processo 3407/07-3.ª, CJSTJ 2007, t. 3, p. 210; de 25 de Outubro de 2007, processo 3213/07-5.ª, CJSTJ 2007, t. 3, pp. 239-242 (o artigo 50.º consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades previstas no preceito, sempre que se verifiquem os necessários - respectivos - pressupostos); de 14 de Novembro de 2007, processo 3305/07-3.ª;
de 20 de Fevereiro de 2008, processo 118/08-3.ª; de 4 de Dezembro de 2008, processo 3279/08-3.ª; de 18 de Dezembro de 2009, processo 3060/08-3.ª; de 14 de Maio de 2009, processos n.os 96/09 e 19/08.3PSPRT.S1-3.ª A caracterização da suspensão da execução da pena de prisão como um poder vinculado conduz à necessidade de fundamentação da decisão que a aplica, ou a desconsidera.
Da específica fundamentação da suspensão da execução da pena de prisão. - O regime da suspensão da execução da pena enquadra-se na filosofia consagrada no sistema punitivo do Código Penal, no sentido de que a pena de prisão constitui a ultima ratio da política criminal, devendo sempre que possível ser aplicada pena não detentiva.
Privilegiando o Código Penal, como princípio, a aplicação de penas não detentivas, sempre que o tribunal seja colocado perante a possibilidade de optar entre os dois tipos de penas, deve fundamentar adequadamente a opção tomada.
Afloramento deste princípio é o disposto no artigo 70.º do Código Penal, que se refere à escolha das penas aplicáveis em alternativa, dele resultando a necessidade de fundamentar a opção pela pena privativa ou não privativa de liberdade.
Na sequência do que dizia o n.º 3 do artigo 48.º do Código Penal de 1982, na versão originária, «A decisão condenatória especificará sempre os fundamentos da sua suspensão», estabelece o n.º 4 do artigo 50.º do Código Penal actual, desde 1995: «A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições», alargando a necessidade de fundamentação de modo a abranger não apenas a opção de suspensão, mas mesmo as condições que a acompanham.
Já anteriormente, a suspensão tinha lugar na própria sentença de condenação, devendo ser motivada, como constava do artigo 8.º, § 1.º, da Lei de 6 de Julho de 1893, onde se consignava: «Serão expressos na sentença os motivos da suspensão da pena», e da última parte do corpo do artigo 88.º do Código Penal de 1886, onde se dispunha: «A sentença indicará os motivos da suspensão da pena», e, posteriormente, do artigo 451.º, corpo, do CPP de 1929, que rezava: «Se a sentença suspender a execução da pena, assim o declarará, indicando as razões desta medida e o prazo de suspensão.» A disposição do artigo 50.º, n.º 4, do Código Penal actual mais não é do que um afloramento do dever geral de fundamentação das decisões judiciais imposta em comando constitucional desde a 4.ª Revisão Constitucional (introduzida pela Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro - Diário da República, 1.ª série-A, n.º 218/97, de 20 de Setembro de 1997, entrada em vigor em 5 de Outubro de 1997) - actualmente, artigo 205.º da CRP - e presente na lei adjectiva penal, nos artigos 97.º, n.º 4, 194.º, n.º 3, 213.º, n.º 4, 374.º, n.º 2, e ainda no artigo 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, do seguinte teor: «A sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, indicando nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social.» Decorrem dos textos legais especiais exigências a nível de fundamentação, a propósito da aplicação ou da desconsideração do instituto, ou seja, quer esta específica pena de substituição seja concedida ou denegada.
Relativamente ao instituto em causa é hoje dado adquirido um nível de exigência acrescido, no que respeita à fundamentação, quer da sua concessão quer da denegação.
A este respeito, ainda antes da revisão de 1995, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 523, p. 345, a propósito do n.º 3 do artigo 48.º, que corresponde ao actual artigo 50.º, n.º 4 - necessidade de especificação na sentença dos fundamentos da suspensão -, defendia que o texto devia ser interpretado em termos amplos e os únicos correctos.
E explicitava: «O tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão, quer a denegação da suspensão, nomeadamente no que toca ao carácter favorável ou desfavorável da prognose e (eventualmente) às exigências de defesa do ordenamento jurídico. Outro procedimento configuraria um verdadeiro erro de direito, como tal controlável em revista, por violação, para além do mais, do disposto no artigo 71.º» Maia Gonçalves, no Código Penal Português Anotado, 8.ª ed., 1995, referia a propósito da norma, na p. 316: «O comando do n.º 4 tem nítido cariz processual. Foi, porém, introduzido no CP em atenção à relevância dos fundamentos da execução da prisão para a realização das finalidades da pena e para a sua correcta execução. A omissão da especificação dos fundamentos constitui nulidade de sentença, com o regime regulado no CPP.» Na jurisprudência, foi defendida a necessidade de fundamentação, tanto no Tribunal Constitucional, como neste Supremo Tribunal, face à versão anterior, justificando-se de pleno a mesma posição, face à nova lei, em que apenas foi alterado o pressuposto formal, passando do limite de 3 para 5 anos de prisão e fazendo-se coincidir os tempos de suspensão e de pena.
Assim, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/2006, da 2.ª Secção, de 18 de Janeiro de 2006, proferido no processo 442/05, in Diário da República, 2.ª série, de 28 de Fevereiro de 2006, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 64.º vol., pp. 427 e segs., julgou inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do CPP, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.
Aí se pode ler:
«A decisão que venha a ser adoptada quanto à suspensão da execução da pena de prisão não pode deixar de ser objecto de fundamentação específica (não fungível com a fundamentação da determinação da medida da pena), por imposição do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, quer seja no sentido da suspensão, quer no sentido da não suspensão, sendo, aliás, de salientar que esta última solução, porque contrária à preferência do legislador pelas penas não privativas de liberdade (artigo 70.º do Código Penal), surge como a decisão mais desfavorável para o arguido, pelo que o dever da sua fundamentação até se pode considerar mais premente.» Neste sentido, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, veja-se o acórdão de 14 de Dezembro de 2000, proferido no processo 2769/00-5.ª, in SASTJ, n.º 46, p.
54 (a fundamentação da decisão de suspender ou não a execução da pena, nos casos em que formalmente ela é possível, é uma fundamentação específica, que é como quem diz, mais exigente que a decorrente do dever geral de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, postulado, nomeadamente, no artigo 205.º, n.º 1, da CRP. Decorre do exposto o dever de o juiz assentar o incontornável «juízo de prognose», favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza, sem que, todavia, se exija uma certeza quanto ao desenrolar futuro do comportamento do arguido), e de 20 de Fevereiro de 2003, processo 373/03-5.ª, CJSTJ 2003, t. 1, p. 206 - citando Figueiredo Dias no local supra indicado, defende a necessidade de fundamentar especificamente quer a concessão quer a denegação da suspensão.
A inobservância da consideração/ponderação desta necessidade de fundamentação consubstancia omissão de pronúncia que conduz a nulidade, de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2 do CPP.
Assim se pronunciaram os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Dezembro de 2000, processo 3036/00-5.ª; de 9 de Janeiro de 2005, processo 123/05-5.ª; de 9 de Novembro de 2005, processo 2234/05-3.ª, CJSTJ 2005, t. 3, p. 209, onde se refere: «[N]o caso de aplicação de pena de prisão não superior a 3 anos, deve o tribunal fundamentar a sua opção pela aplicação de pena detentiva, sob pena de tal omissão constituir uma nulidade, que é de conhecimento oficioso - artigo 379.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 do CPP.» No mesmo sentido, i. a., os Acórdãos de 12 de Outubro de 2006, processo 3523/06-5.ª; de 10 de Outubro de 2007, processo 3407/07-3.ª, CJSTJ 2007, t. 3, p.
210 (seguindo o Acórdão de 29 de Maio de 2007, processo 1598/07, refere: a omissão de pronúncia sobre a questão da não suspensão da execução da pena de prisão imposta em medida igual ou inferior a 5 anos constitui nulidade insanável e de conhecimento oficioso); de 14 de Novembro de 2007, processo 3305/07-3.ª; de 19 de Dezembro de 2007, processo 2806/07-3.ª, em caso de omissão de pronúncia sobre aplicação de regime de prova; de 20 de Fevereiro de 2008, processo 118/08-3.ª
Da aposição de condição à suspensão da execução da pena de prisão no
regime geral - Direito penal clássico
Em causa o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão a deveres, maxime, de conteúdo económico, como o pagamento de quantia fixada a título de «indemnização», ou «compensação», ou «reparação lato sensu», ou seja, concretizações do objectivo de «reparar o mal do crime».Conforme estabelecia o artigo 10.º da Lei de 6 de Julho de 1893, «A suspensão não abrangerá o pagamento de custas, a indemnização do dano causado pelo delito, ou qualquer restituição a que for obrigado».
Presente era então a ideia de que o benefício da suspensão da execução não podia prejudicar os interesses particulares do Estado ou de terceiros.
O Decreto-Lei 29 636, de 27 de Maio de 1939, facultou a suspensão da execução da pena nas mesmas condições em que podia ser concedida a liberdade condicional e aproximou a suspensão condicional da pena da liberdade condicional, permitindo que, em relação à primeira, se impusessem obrigações idênticas às que podiam então prescrever-se, quando se concedia a segunda.
O artigo 10.º da lei de 1893 veio estabelecer que «A pena pode ser suspensa nas mesmas condições em que pode ser concedida a liberdade condicional», sendo uma dessas condições nos termos do artigo 396.º, n.º 1, do Decreto-Lei 26 643, de 28 de Maio de 1936 (Reforma Prisional) «que (o recluso) repare o dano causado às vítimas do delito».
Beleza dos Santos, na citada obra «A suspensão condicional...», Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 74, p. 3, afirmava: «[D]aqui resultou que a execução da pena condicionalmente suspensa não ficou só dependente de o réu ter sido ou não condenado por crime cometido durante o período de suspensão da pena, mas ainda do cumprimento de outras condições.» A relação entre o instituto da suspensão e a liberdade condicional estabelecida em 1939 passou para o Código Penal de 1886, na versão de 1954, sendo adoptada no artigo 88.º, § 2.º, que prescrevia então: «A suspensão pode ser subordinada ao cumprimento de obrigações similares às que acompanham a concessão da liberdade condicional.» E, como vimos, o artigo 451.º do Código de Processo Penal estabelecia, no § 1.º, que «A suspensão da pena pode tornar-se dependente do pagamento da respectiva indemnização por perdas e danos, dentro de um prazo fixado na sentença».
O artigo 49.º do Código Penal de 1982 especificava os deveres que podiam condicionar a suspensão da execução da pena de prisão.
«1 - A suspensão da execução da pena pode ser subordinada ao cumprimento de certos deveres impostos ao réu destinados a reparar o mal do crime ou a facilitar a sua readaptação social, nomeadamente a obrigação de:
a) Pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea [...].» A única limitação à condição resultava do n.º 2, onde se dizia não poder o tribunal exigir do condenado nenhuma acção vexatória, nem impor-lhe nenhum dever contrário aos bons costumes ou susceptível de ofender a sua dignidade pessoal.
O princípio da razoabilidade
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, os deveres impostos para a suspensão não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.Este n.º 2 corresponde a uma inovação, que foi introduzida pela reforma de 1995 - cf.
artigo 3.º, n.º 15), alínea e), da lei de autorização legislativa n.º 35/94, de 15 de Setembro, ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março (3.ª alteração ao Código Penal), muito embora, já na vigência do Código Penal de 1982, se entendesse que no n.º 2 do artigo 49.º estava inscrito o princípio.
Consagra-se no n.º 2 o princípio da razoabilidade, a que tem de obedecer a imposição dos deveres.
Comentando-o, dizia Maia Gonçalves no Código Penal Anotado, 13.ª ed., p. 209: «O texto tem um conteúdo algo vago, e nem poderia ser de outro modo, dada a amplitude dos deveres que podem ser impostos. Trata-se de exprimir um princípio de orientação para o tribunal, de modo a habilitá-lo a delimitar o domínio em que há-de mover-se na sua faculdade de determinação dos deveres a cumprir pelo condenado em vista da reparação do mal causado pelo crime.» (Fazendo aplicação concreta deste princípio, vejam-se, i. a., os acórdãos do STJ de 11 de Fevereiro de 1999, CJSTJ 1999, t. 1, p. 212, de 1 de Março de 2001, processo 3904/00, e de 30 de Abril de 2008, processo 687/08-3.ª, CJSTJ 2008, t. 2, p.
217.) Ao impor a condição de pagamento de quantia ou outra, o juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão.
Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres.
Como pondera Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. iii, p. 208, prática contrária significaria apenas adiar a execução da pena de prisão.
Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 533, p. 350, antes da revisão de 1995, que introduziu o n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, observava que a imposição de deveres e regras de conduta haveria forçosamente de sofrer uma dupla limitação: «[A] de que, em geral, eles sejam compatíveis com a lei, nomeadamente com todo o asseguramento possível dos direitos fundamentais do condenado; e a de que, além disso, o seu cumprimento seja exigível no caso concreto.» Acrescentava, a p. 351, § 535: «Quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados.» Quanto à obrigação do condenado de pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado enquanto condição de suspensão da execução da pena consagrada no artigo 49.º, n.º 2, alínea a), da versão originária [actual artigo 51.º, n.º 1, alínea a)] entendia o mesmo Professor, a p. 352, § 537, que «Conexionando esta obrigação com a cláusula de exigibilidade contida no artigo 49.º, n.º 3, parece dever concluir-se que a suspensão é ainda compatível com um pagamento parcial, se o tribunal concluir que só este é concretamente exigível» (itálico nosso).
Prisão por dívidas?
A propósito da aposição da condição de reparar o mal do crime através de uma indemnização ao lesado como pressuposto da suspensão da execução da pena (artigo 49.º CP/1982 e artigo 51.º CP/1995), colocou-se o problema de saber se o condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria, quando o pagamento não viesse a ser feito, uma situação de «prisão por dívidas», proibida pela Constituição.A mesma questão de «prisão por dívidas» foi abordada noutro enquadramento, a propósito da específica questão da constitucionalidade da criminalização da emissão de cheque sem provisão.
Reportando-se ao artigo 49.º, n.º 1, alínea a), da versão originária do Código Penal de 1982, na parte em que permitia que a suspensão da execução da pena fosse subordinada à obrigação de o réu «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado», em situação em que estava em causa um crime de emissão de cheque sem cobertura, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/87, de 4 de Novembro de 1987, proferido no processo 188/86, da 2.ª Secção, publicado in Diário da República, 2.ª série, n.º 39, de 17 de Fevereiro de 1988, e no BMJ, n.º 371, p.
178, e ainda nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º vol., 1987, p. 521, no sentido de que o preceito em causa ao permitir que a suspensão da execução da pena seja condicionada ao pagamento da indemnização devida ao ofendido - conjugado com o artigo 50.º, alínea d), do mesmo diploma, que possibilita ao tribunal revogar a suspensão por falta de cumprimento, com culpa, dos deveres impostos - não configura uma prisão em resultado do não pagamento de uma dívida, pois a causa primeira da prisão é a prática de um facto punível (artigo 48.º do Código Penal), além de que a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas ao tribunal.
A solução do acórdão mereceu o aplauso de Figueiredo Dias, em Direito Penal Português, 1993, p. 353, que considerava o problema colocado absolutamente infundado.
Foi igualmente colocada a questão da inconstitucionalidade por violação do artigo 27.º, n.º 1, da CRP, da norma constante do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, na parte em que permite ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido, em situação em que do mesmo modo estava em causa crime de emissão de cheque sem provisão, tendo o Tribunal Constitucional emitido pronúncia pela negativa, afastando o entendimento de previsão de uma situação de prisão por dívidas, no Acórdão 596/99, de 2 de Novembro de 1999, proferido no processo 162/97, da 2.ª Secção, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, e no BMJ, n.º 491, p. 5, e ainda na colectânea ATC, 45.º vol., p. 273.
Aí se ponderou: «[...] não se trata aqui da impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela - suspensão da execução - se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.» Fora do quadro da consideração da reparação como condição de suspensão da execução da pena, pronunciou-se o Tribunal Constitucional sobre a questão da prisão por dívidas no Acórdão 663/98, de 25 de Novembro de 1998, processo 235/98, da 3.ª Secção, publicado in Diário da República, 2.ª série, n.º 12, de 15 de Janeiro de 1999, e em ATC, 41.º vol., p. 457, tirado em plenário, em caso de apreciação de alegada inconstitucionalidade do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei 316/97 (crime de emissão de cheque sem cobertura), por configurar um caso de prisão por dívidas, afirmando que «a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual»; o princípio só se aplica aos «devedores de boa fé», dele se excluindo os casos de provocação dolosa de incumprimento, acrescendo que as razões aduzidas para a proibição da prisão por dívidas não se aplicam quando a obrigação não deriva do contrato mas da lei, e concluindo «que as normas penais sobre os vários tipos de crime de emissão de cheque sem cobertura não violam o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição)».
(A jurisprudência deste acórdão foi reiterada no Acórdão 596/99, supra referenciado, na parte em que vinha igualmente alegada a inconstitucionalidade da aludida norma do Decreto-Lei 454/91.) No Acórdão 312/2000, de 20 de Junho de 2000, proferido no processo 442/99, 1.ª Secção, publicado in Diário da República, 2.ª série, de 17 de Outubro de 2000, e no BMJ, n.º 498, pp. 16-21, em causa estava a norma penal incriminadora do crime de abuso de confiança fiscal.
A questão colocada era simplesmente esta: podendo os meros devedores fiscais ser sancionados criminalmente, tal situação implicaria prisão por dívidas, em violação do preceituado no artigo 1.º do Protocolo 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (que estabelece que «Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual», sendo que o que se proíbe no artigo 1.º é a «prisão por dívidas»).
O acórdão concluiu que «a norma constante do artigo 24.º do RJIFNA (versão de 1993) não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, princípio implicado no direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1.º do Protocolo 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
O acórdão alude a, e acompanha de perto, os supra referidos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 663/98 e 440/87, no que respeita à prisão por dívidas e conclui que a obrigação em causa - o dever fundamental de pagar impostos - não é meramente contratual, mas antes deriva da lei fiscal - que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos.
Foca o aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação contratual porque decorre da lei fiscal, pois no imposto sobre o valor acrescentado e no imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares, o devedor tributário encontra-se instituído em posição que se aproxima da figura do fiel depositário, pois os respectivos valores são deduzidos nos termos legais, devendo depois o respectivo montante ser entregue ao credor tributário, que é o Estado.
Releva finalmente que a impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança fiscal.
A decisão, e respectiva fundamentação, no sentido da não inconstitucionalidade do citado preceito foi retomada no Acórdão 389/2001, que confirmou decisão sumária do relator no mesmo sentido, e na decisão sumária de 24 de Maio de 2005, confirmada pelo Acórdão 336/2005, de 22 de Junho de 2005, proferida no processo 346/2005-2.ª Secção, in Diário da República, 2.ª série, n.º 199, de 17 de Outubro de 2005.
No caso da emissão dos cheques, há originariamente uma dívida, começando por estar presente uma obrigação contratual; na base está uma relação de direito privado, civil ou comercial, uma relação jurídica fundamental, o negócio executivo, como compra e venda, mútuo, locação (pagamento de rendas), prestação de serviços, etc., de que emerge a obrigação cartular, autónoma daquela relação subjacente, titulada pelo cheque, título de crédito, cuja indevida utilização pode conduzir a responsabilidade criminal.
No Acórdão 516/2000, de 29 de Novembro de 2000, proferido no processo 80/00 - 1.ª Secção, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 2001, em causa estava a conformidade constitucional do crime de abuso de confiança em relação à segurança social, p. p. pelo artigo 27.º-B, aditado pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 140/95, de 14 de Junho, com referência ao artigo 24.º do Decreto-Lei 20-A/90, na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro.
Transpondo os fundamentos utilizados no supra citado Acórdão 312/2000, por valerem as considerações feitas a propósito do abuso de confiança fiscal, por a obrigação em causa não ser meramente contratual, antes derivando da lei, invoca, para além daquele, o Acórdão 663/98, para afastar a questão da prisão por dívidas, concluindo que «a norma constante do artigo 27.º-B do RJIFNA não viola o princípio segundo o qual ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa», e não julga inconstitucional a norma constante do artigo 27.º-B do RJIFNA.
No Acórdão 54/2004, de 20 de Janeiro de 2004, proferido no processo 640/03-2.ª Secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 58.º vol., p. 1170, apenas sumário), tal como no caso do Acórdão 312/2000, em causa estava a norma penal incriminadora do crime de abuso de confiança fiscal, mas agora previsto no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, cabendo apreciar a conformidade constitucional de tal norma com a proibição da prisão por dívidas (a norma seria inconstitucional por consagrar um caso de prisão por dívidas). O acórdão reitera a fundamentação dos Acórdãos n.os 312/2000 (retomado no Acórdão 389/2001) e 516/2000, defendendo que as considerações que se contêm na fundamentação dos dois arestos mantêm-se aplicáveis mesmo em face da norma do artigo 105.º, pese embora a diversa configuração do crime, por a obrigação tributária não ter por fonte qualquer contrato e antes deriva da lei, decidindo não julgar inconstitucional o referido artigo 105.º, n.º 1, do RGIT. (Sobre este acórdão debitou Costa Andrade, focando a «insustentável leveza» do mesmo, como se referiu supra.) O Acórdão 357/2004, de 19 de Maio de 2004, processo 504/02 - 2.ª Secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 59.º vol., p. 887, apenas sumário), abordou duas questões: a da inconstitucionalidade da criminalização da emissão de cheque sem provisão e a questão da constitucionalidade do condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da indemnização arbitrada ao ofendido, prevista no artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Quanto à primeira, reiterando os fundamentos constantes dos Acórdãos n.os 663/98 e 596/99, não julga inconstitucionais as normas do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), e 2 do Decreto-Lei 454/91, na redacção do Decreto-Lei 316/97.
E quanto à segunda, julga improcedente a inconstitucionalidade, sufragando a fundamentação dos Acórdãos n.os 440/87, 596/99 e 305/01, essencialmente pelo segundo.
Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, UCE, 2009, pp. 57 a 60, afasta a ideia de prisão por dívidas no crime de abuso de confiança fiscal, adiantando ser a infidelidade a razão da punição.
O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que é constitucional e legal a imposição de condições de suspensão da execução da pena, independentemente de ter sido formulado pedido de indemnização.
Assim no Acórdão de 3 de Abril de 1991, processo 41431, Colectânea de Jurisprudência, ano xvi, 1991, t. 2, p. 14, e BMJ, n.º 406, p. 499, decidiu-se que «Pode suspender-se a execução da pena, sob a condição de pagar uma indemnização ao ofendido, de acordo com o que dispõe o artigo 49.º-1 do Código Penal, mesmo que não haja sido requerida por este no processo qualquer pedido de indemnização».
No mesmo sentido, o Acórdão de 11 de Novembro de 1992, processo 41820, Colectânea de Jurisprudência, 1992, t. 5, p. 10, e BMJ, n.º 421, p. 305, em que se defendia que «a fixação de uma compensação pecuniária pelo julgador, a favor do ofendido, como condicionante de uma suspensão da execução da pena, ainda que não pedida, aparece [...] ao arguido, como uma contrapartida económica da manutenção da sua liberdade, ameaçada por ter cometido um acto ilícito, e tem, nessa medida, um efeito dissuasor muito significativo, numa sociedade que defende, na medida do possível, a primazia das sanções não detentivas», o que foi reafirmado no Acórdão do STJ de 10 de Dezembro de 1996, processo 48364-3.ª Secção.
No Acórdão de 11 de Fevereiro de 1999, processo 1339/98 - 3.ª, in CJSTJ, 1999, t.
1, p. 212, em caso de condenação (por crime de receptação), em pagamento de quantia ao lesado como condicionante de suspensão da execução da pena de 22 meses de prisão, pode ler-se:
«A condição de reparar o mal do crime através de uma indemnização ao lesado, como pressuposto da suspensão, não está dependente do pedido de indemnização referido no artigo 71.º C. P. Penal. Sempre foi esta a jurisprudência deste Supremo Tribunal, como pode ver-se dos seus Acórdãos de 9 de Abril de 1991, in CJ xvi, 2, 14, de 20 de Janeiro de 1993, no rec. n.º 43271 e de 15 de Setembro de 1994, no processo 46587. E o próprio Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 49.º, n.º 1, c), do C. Penal/82, enquanto condiciona a suspensão da pena ao pagamento de uma indemnização (Ac. n.º 440/87, in Diário da República, 2.ª série, de 17 de Fevereiro de 1988).» Afirmam igualmente a constitucionalidade e legalidade da imposição da condição, mesmo que não tenha sido pedida a indemnização, os Acórdãos de 20 de Janeiro de 1993, processo 43271; de 25 de Março de 1993, processo 42471; de 15 de Setembro de 1994, processo 46587; de 14 de Novembro de 1996, processo 652/96; de 11 de Junho de 1997, recurso n.º 82/97, CJSTJ 1997, t. 2, p. 226, invocando o Acórdão de 11 de Novembro de 1992 já citado e com um voto de vencido, entendendo que a suspensão não pode ser condicionada ao pagamento de indemnização que não tenha sido pedida; de 11 de Fevereiro de 1999, processo 1178/98, CJSTJ 1999, t. 1, p. 212; de 24 de Março de 1999, processo 1422/98-3.ª, CJSTJ 1999, t. 1, p. 254; de 13 de Outubro de 1999, processo 665/99; de 20 de Outubro de 1999, processo 317/99; de 11 de Outubro de 2000, processo 1110/99-3.ª, com um voto de vencido do mesmo Conselheiro por entender que «a 'indemnização' a que se refere o artigo 51.º, 1, a), do CP é apenas aquela em que o arguido foi condenado, em virtude da procedência do pedido cível, ou por se ter verificado o caso excepcional previsto no artigo 82.º-A, n.º 1, do CPP; fora desses casos a suspensão não pode ser condicionada ao pagamento de indemnização»; de 11 de Janeiro de 2001, processo 2789/01; de 22 de Fevereiro de 2001, processo 3829/00-5.ª; de 1 de Março de 2001, processo 3904/00-5.ª; de 17 de Maio de 2001, processo 683/01-5.ª; de 24 de Maio de 2001, processo 1092/01-5.ª; de 20 de Junho de 2001, processo 1678/01-3.ª; de 27 de Junho de 2001, processo 767/01-3.ª; de 18 de Janeiro de 2002, processo 1680/02-3.ª; de 31 de Janeiro de 2002, processo 4006/01-5.ª; de 26 de Fevereiro de 2003, processo 250/03-3.ª
Natureza jurídica da condição
Em causa a tomada de posição sobre a natureza jurídica da obrigação de pagamento de quantia certa ou determinável (ou de complexo obrigacional albergando a vertente de obrigação pecuniária), enquanto condicionante da suspensão de execução da pena.Não se está perante uma indemnização objecto de pedido formulado pelo lesado, um caso de responsabilidade civil conexa com a criminal, no âmbito de um processo de adesão da acção civil à acção penal, mas antes perante arbitramento de «reparação lato sensu», autónomo, fora daquele quadro, como complemento penal, mais especificamente, como componente de pena de substituição, evitando aplicação de pena privativa de liberdade, v. g., aposição de condição para que opere e se viabilize a suspensão da execução da pena de prisão.
No domínio do direito anterior, a par da acção civil conexa com a criminal, regulada nos artigos 29.º a 33.º do CPP de 1929, e do caso especial da responsabilidade rodoviária do artigo 67.º do Código da Estrada de 1954, em que estava em causa a indemnização por perdas e danos resultante de facto punível, por que fossem responsáveis os seus agentes, estabelecia o artigo 34.º, sob a epígrafe «Reparação por perdas e danos», que «O juiz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida».
Mais tarde, em 1975, o Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, estabeleceria no artigo 12.º, sob a epígrafe «Da reparação do dano civil», que: «Nos casos de absolvição da acusação crime, o juiz condenará o réu em indemnização civil, desde que fique provado o ilícito desta natureza ou a responsabilidade fundada no risco.
Nestes casos, aplicar-se-á o disposto no artigo 34.º e seus parágrafos do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações.» Figueiredo Dias, em «Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal», Almedina, reimpressão, 1972 (trabalho escrito em 1963 como contribuição para os Estudos «in memoriam» do Prof. Beleza dos Santos que, em 1966, formaram o volume xvi do suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra), debruçou-se sobre o tema a propósito do artigo 34.º do CPP de 1929, afirmando a distinção entre a indemnização civil de perdas e danos e a reparação arbitrada em processo penal, por se tratar de coisas diferentes, aquela ligada ao dano e esta ligada à culpa, o que de resto, como dá nota, era assinalado em jurisprudência do STJ.
Quanto à natureza desta última, colocavam-se duas teses: não é nem pode ser coisa diferente da indemnização que o tribunal civil decretaria se o pedido surgisse perante ele, segundo uns, enquanto para outros tratava-se de efeito penal da condenação, que não tem de coincidir com a sanção de natureza civil.
Afirmava o citado Autor, a p. 34, que sendo a reparação um efeito necessário, como que automático, da condenação penal, logo se exclui que o dano que a fundamenta tenha de ser exactamente aquele mesmo dano que fundamenta a responsabilidade civil.
Mais adiante - p. 56 - considera a reparação como parte integrante da própria sanção penal, tendo uma função adjuvante da pena - p. 57.
A propósito da caracterização da «indemnização» a cujo pagamento fica condicionada a suspensão da execução da pena de prisão, o mesmo Autor, agora em Direito Penal Português, 1993, § 531, pp. 348-349, afirma que a imposição de deveres de natureza económica, situados como que a meio do caminho entre meios de reparação do dano e instrumentos adjuvantes da compensação da culpa, constitui sempre um poder-dever e no § 538, pp. 352-353, versando os deveres de conteúdo económico que podem condicionar a suspensão de execução da pena de prisão, focando as dúvidas que se podem colocar à correlacionação entre este dever e o pedido de indemnização civil, conclui: «Do que se trata, em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade da punição, não de reeditar a tese do carácter penal da indemnização civil proveniente de um crime, que o artigo 128.º (actual 129.º) quis postergar.» Para Mário Ferreira Monte, em «Da reparação penal como consequência jurídica autónoma do crime», in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 129-155, trata-se de um instituto autónomo num duplo sentido:
relativamente à indemnização de natureza civil; e como verdadeira consequência jurídico-penal, independente de outras como as penas ou as medidas de segurança.
Assim concebida, à reparação penal é de conceder um estatuto de verdadeira consequência jurídica autónoma do crime, como terceira via ou terceiro degrau nas reacções criminais, a par com as penas e as medidas de segurança.
A reparação penal não coincide com a indemnização civil nem com a pena, sendo autónoma, conclui.
O Supremo Tribunal de Justiça tem tomado posição sobre a natureza jurídica do dever económico imposto como condição da suspensão nos seguintes acórdãos:
Acórdão de 29 de Janeiro de 1997, em cujo sumário se pode ler:
«I - A suspensão da pena pode ser condicionada ao dever de pagar em certo período uma indemnização ao ofendido.
II - Porém, não se trata de obrigação de pagamento, de realização de uma prestação, ou de efeito civil da condenação, mas apenas da própria pena de suspensão da execução.» No Acórdão de 11 de Junho de 1997, recurso n.º 82/97, CJSTJ 1997, t. 2, p. 226, diz-se (realces do texto):
«A quantia cujo pagamento ao lesado é imposto ao arguido como condição da suspensão da execução da pena não constitui uma verdadeira indemnização, mas apenas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição e a dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, podendo assim ser fixada ainda que não tenha sido formulado pedido de indemnização [invocando aqui o Acórdão de 11 de Novembro de 1992, CJ 1992, t. 5, p. 10, e BMJ n.º 421, p. 305 (quanto a este segmento com voto de vencido)].
Por isso a modificabilidade do quantum arbitrado se tal vier a justificar-se - cf. artigo 49.º, 3, do CP de 1982 (artigo 51.º, 3, do CP de 1995).
E por isso também que o montante assim arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação de indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil).» Acórdão de 29 de Outubro de 1997, processo 551/97-3.ª, Sumários de Acórdãos, Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, vol. ii, p. 165, onde se pode ler:
«I - A suspensão da execução da pena com o dever económico de reparar o mal do crime não importa uma obrigação de indemnização em sentido restrito. Esse dever (ou obrigação em sentido lato) vale apenas no seio do referido instituto, sendo o sancionamento pelo não cumprimento apenas o que deriva das regras da própria suspensão da execução.
II - Quando se suspende uma pena sob condição do pagamento de uma indemnização por perdas e danos ao ofendido, nem o Estado nem o beneficiário da reparação ou indemnização ficam, por virtude da imposição do dever, na situação de credores e, por consequência, também o arguido não fica adstrito ao cumprimento da uma prestação, com todas as consequências jurídicas civis derivadas do incumprimento pontual.» Acórdão de 27 de Maio de 1998, processo 274/98-3.ª - Não se prevê no artigo 51.º do Código Penal uma obrigação em sentido técnico ou relação jurídica de crédito (artigo 397.º do C. Civil). Os deveres do artigo 51.º fazem parte do conteúdo do instituto da suspensão da execução da pena, participando, portanto, da natureza penal do referido instituto. Composta a suspensão da execução da pena de prisão com o dever económico de reparar o mal do crime, não fica constituída e imposta uma obrigação de indemnização civil, dotada da tutela das demais indemnizações em sentido estrito. Tal dever ou obrigação em sentido lato vale apenas no seio do dito instituto, sendo o sancionamento pelo não cumprimento o que deriva das regras do instituto da suspensão da execução da pena.
No sumário do Acórdão de 2 de Junho de 1999, processo 38/98-3.ª escreve-se:
«Não se trata, porém, de uma condenação em indemnização mas, unicamente, da imposição de um dever que, reforçando o sancionamento penal, visa levar o arguido a tomar a iniciativa de reparar o dano, não conferindo ao lesado qualquer direito a exigir o seu cumprimento.» Para o Acórdão de 1 de Março de 2001, processo 3904/00-5.ª - A imposição de deveres condicionantes da suspensão de execução da pena aplicada (mormente se consubstanciado em pagamentos pecuniários) representa, essencialmente, um reflexo da razão de ser da medida penalizadora, destinado a fazer sentir ao condenado, apesar da suspensão, a gravidade do ilícito que haja cometido, destarte funcionando como um complemento penal.
Segundo o Acórdão de 17 de Maio de 2001, processo 683/01-5.ª, como resulta claramente do disposto nos artigos 128.º e 129.º do Código Penal, versões de 1982 e 1995, a indemnização de perdas e danos, ainda que emergentes de crimes, deixou de constituir um efeito penal da condenação (como sucedia no CP/1886 - artigo 76.º, § 3.º) para passar a ser regulada pela lei civil, assumindo, pois, a natureza de uma obrigação civil em sentido técnico, nos termos do artigo 397.º do CC, com o seu regime específico.
Diferentemente, a «obrigação» de pagar essa indemnização, imposta nos termos do artigo 51.º, n.º 1, al. a), do CP, embora não constitua um efeito penal da condenação, assume natureza penal, na medida em que se integra no instituto da suspensão da execução da pena, no quadro do qual o dever de indemnizar, destinado a reparar o mal do crime, assume uma função adjuvante da realização da finalidade da punição.
No Acórdão de 4 de Junho de 2003, processo 1094/03-3.ª, dizia-se que o pagamento do imposto não constitui uma verdadeira indemnização, mas antes uma simples condição da pena de substituição, reforçando o conteúdo reeducativo e pedagógico.
Sobre a questão de saber se a indemnização devida ao lesado a que se refere o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal tem diferente natureza da que é objecto do pedido de indemnização cível, debruçou-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 305/2001, processo 412/2000, de 27 de Junho de 2001, in Diário da República, 2.ª série, n.º 268, de 19 de Novembro de 2001, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., p. 715, onde se analisa a jurisprudência do STJ sobre o tema e recorda o Acórdão do TC n.º 596/99, retirando-se que a «indemnização» ou «compensação» é tida - bem ou mal - como que um tertium genus, com uma natureza jurídica própria (cumprindo a «função adjuvante da realização da finalidade da punição»), onde desde logo avulta como traço diferenciador o facto de ela não ser exigível pelo lesado.
Do incumprimento da condição
O sancionamento pelo não cumprimento do dever económico de reparar o mal do crime imposto como condição da suspensão é o que deriva das regras do próprio instituto da suspensão da pena, não ficando subordinado aos condicionalismos específicos substantivos e processuais próprios do direito civil.Neste sentido, abordando o tema, podem ver-se os seguintes acórdãos do STJ de:
31 de Maio de 2000, processo 67/00-3.ª, CJSTJ 2000, t. 2, p. 208, em caso de peculato e falsificação de documento, citando Figueiredo Dias, refere que os deveres do artigo 51.º fazem parte do conteúdo do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, participando, portanto, da natureza penal do instituto; a imposição do dever em causa é compatível com a ausência do respectivo pedido civil; ainda que não tenha sido deduzido pedido cível, é admissível condicionar-se a suspensão da pena ao pagamento, ao ofendido, de uma quantia, a título de indemnização, a qual poderá ser inferior à totalidade do valor dos danos por ele sofridos, caso o réu não disponha de suficiência económica bastante para tanto.
Pela sua função integrativa das finalidades da punição se explica que ao arguido possa ser imposto apenas um dever de pagamento parcial [n.º 1, alínea a), do artigo 51.º], que os deveres impostos não possam em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir (n.º 2 do artigo 51.º), e que os deveres impostos possam ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento (n.º 3 do artigo 51.º). Com um voto de vencido do Conselheiro Leonardo Dias.
19 de Fevereiro de 2003, processo 1899/02-3.ª, CJSTJ 2003, t. 1, p. 201 - Em caso de crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção (artigo 36.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro), em que foi deduzido pedido de indemnização civil pelo IGFSS, pode ler-se no sumário: «O pagamento condicionante da suspensão da execução da pena não fica subordinado aos condicionalismos específicos substantivos e processuais próprios do direito civil ou comercial.» Invocando a jurisprudência constante dos Acórdãos de 27 de Maio de 1998, processo 274/98-3.ª, de 11 de Fevereiro de 1999, processo 1339/98 - 3.ª, in CJSTJ 1999, t. 1, p. 212, e de 31 de Maio de 2000, processo 67/00-3.ª, CJSTJ 2000, t. 2, p. 208, e a posição de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353, após acentuar que a indemnização a cujo pagamento foi subordinada a suspensão da execução da pena, ao abrigo do disposto nos artigos 50.º, n.º 2, e 51.º, n.º 1, alínea a), do CP, é regulada, no sistema do Código actual, pela lei civil, assumindo pois a natureza de uma obrigação civil em sentido técnico, nos termos do artigo 397.º do CC, com o seu regime específico, afirma: «conforme entendimento dominante a 'obrigação' de pagar a indemnização imposta nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do CP, embora não constitua um efeito penal da condenação, assume natureza penal, na medida em que se integra no instituto da suspensão da execução da pena, no quadro do qual este dever de indemnizar, destinado a reparar o mal do crime, assume uma função adjuvante da realização da finalidade da punição, na expressão de Figueiredo Dias».
Este acórdão embora não o invoque, segue de muito perto o acórdão de 11 de Outubro de 2000, processo 1110/99, do mesmo relator.
26 de Fevereiro de 2003, processo 250/2003-3.ª, in CJSTJ 2003, t. 1, p. 220 - Condicionada a suspensão da execução da pena ao pagamento de uma quantia, esta, quando satisfeita, é dedutível no montante da indemnização arbitrada ao ofendido, na procedência de pedido cível por ele formulado. Acompanhando os Acórdãos de 27 de Maio de 1998 já citado no anterior e de 11 de Outubro de 2000, processo 1110/99-3.ª, acabado de referir, afirma: a «obrigação» de pagar o dever económico ou indemnização imposta nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do CP, embora não constitua um efeito penal da condenação, assume natureza penal, na medida em que se integra no instituto da suspensão de execução da pena, no quadro do qual se insere este dever de indemnizar, destinado a reparar o mal do crime, valendo apenas no seio do instituto, sendo o sancionamento pelo não cumprimento o que deriva das regras da própria suspensão da execução da pena.
(Cf. Acórdão de 30 de Abril de 2008, processo 687/08-3.ª, CJSTJ 2008, t. 2, p. 217.) Concluindo.
A «indemnização», rectius, «reparação» arbitrada como condicionante da suspensão da execução da pena de prisão não está dependente da dedução do pedido civil (artigo 71.º do CPP), não se confunde com este (tendo natureza jurídica diferente da que é objecto do pedido de indemnização cível, de modo tal que não se pode afirmar que a improcedência deste pedido determina a impossibilidade da atribuição daquela), nem tem a ver com o arbitramento ao abrigo do artigo 82.º-A, n.º 1, do CPP (reparação da vítima em casos especiais) e com a disciplina do artigo 377.º do mesmo CPP, nem mesmo com a responsabilidade civil emergente do crime, consubstanciando uma forma de reparação autónoma, complemento integrante da sanção penal, que deve ser vista nas suas consequências, nomeadamente, em sede de incumprimento, apenas dentro dos contornos do instituto.
A suspensão da execução da pena no quadro das sanções fiscais Antes de avançarmos, vejamos quais as consequências jurídicas do crime fiscal e em geral, do crime tributário.
A nível de responsabilidade emergente/subsequente a prática de infracção tributária, há que distinguir três vectores.
Uma coisa é a responsabilidade tributária, originada pela dívida de imposto. Pelo imposto evadido é responsável o sujeito passivo do imposto ou o seu substituto: o sujeito passivo da relação tributária de imposto.
Outra, é a responsabilidade criminal, emergente do incumprimento dos deveres tributários, tratando-se de responsabilidade do devedor originário do tributo ou do substituto.
E outra ainda, no plano da responsabilidade civil, ou seja, a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do crime, causador de dano à administração tributária, geradora de direito a indemnização, aqui apenas possível no quadro de responsabilidade por dívida própria (do devedor originário ou de substituto) e afastada em sede de responsabilidade por dívida de outrem.
Como refere Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, UCE, 2009, p. 114, diversa é a questão de responsabilidade de terceiros (responsabilidade por dívida de outrem), solidária ou subsidiária, pelo pagamento do imposto, a qual nada tem a ver com a responsabilidade pelos danos emergentes do crime tributário.
Assinala que «O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime e por isso que a extinção da responsabilidade penal tributária, seja qual for o fundamento, não implica por si só a extinção da responsabilidade pelo pagamento da prestação tributária».
Segundo o artigo 9.º do RGIT (com antepassado, como vimos, na lei de 1893) o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária devida e acréscimos legais, o que significa que o crime tributário não implica extinção por novação objectiva ou subjectiva da dívida tributária; a dívida existe e mantém-se independentemente da prática do crime tributário, mas se o crime causar danos os seus agentes são responsáveis pela indemnização dos danos dele emergentes nos termos gerais.
Da prática do crime resulta responsabilidade penal e responsabilidade civil pelos danos emergentes, sendo responsáveis por estes danos os agentes do facto ilícito típico, nos termos da lei penal e civil (quanto a esta, as disposições do Código Civil e legislação complementar - artigo 3.º do RGIT e Germano Marques da Silva, ob. cit., p.
121).
Para além destas formas de responsabilidade, tal como no regime geral, pode ser imposto dever económico destinado a reparar o mal do crime e independentemente de pedido cível, o que acontece em forma de exigência quando aposta como condicionante da suspensão.
A suspensão da execução das sanções fiscais impostas por crimes tributários no direito penal secundário está sujeita a um regime específico, extravasando os quadros do regime geral do direito penal clássico traçado no Código Penal.
No Decreto-Lei 237/70, de 25 de Maio, pelo artigo 17.º, n.º 1, era admitida, por via judicial, a suspensão condicional das penas respeitantes a infracções ao Código do Imposto de Transacções, excepto se o infractor, nos últimos cinco anos, tivesse cometido infracção dolosa a preceitos contidos no mesmo diploma, seguindo doutrina que já fora sustentada em matéria de sisa, pelo Acórdão do STA de 31 de Julho de 1963 (Acórdãos Doutrinais, ii, p. 1406). A esse tempo a razão de algumas reacções contrárias à suspensão condicional de penas fiscais de multa resultava da impossibilidade de remunerar os denunciantes e autuantes, perturbando a regular colheita de receitas.
A corrente contrária viria, como se viu, a ser adoptada no Decreto-Lei 619/76, de 27 de Julho, com o artigo 6.º a estabelecer: «Não há suspensão condicional da pena aplicada a qualquer infracção tributária.»
A (inevitável) sujeição da suspensão a condicionamento
Manuel Cortes Rosa, in «Natureza jurídica das penas fiscais», trabalho inserto na colectânea Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, vol. ii, Problemas Especiais, Coimbra Editora, Março de 1999, pp. 1 a 16, já anteriormente publicado in Boletim da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos (1960, 2.º semestre), pp.
1269 e segs., tratando-se de um trabalho datado, pois que produzido no domínio do Código Penal de 1886, a fls. 10, de «penas fiscais» dá a seguinte noção: sanções cominadas para a violação de deveres fiscais e que não têm por fim ressarcir um eventual prejuízo do sujeito activo da relação jurídico-tributária.
Excluía o Autor dessa noção as sanções consistentes no dever de pagar determinada quantia à entidade credora, destinadas a ressarcir prejuízos (reais ou presumidos) do sujeito activo da relação jurídico-tributária e que em seu entender, embora apresentando especialidades perante a indemnização por perdas e danos característica das relações de direito privado, se integram no amplo instituto da responsabilidade civil.
Segundo o Autor as penas fiscais não «visam tutelar de um modo imediato os interesses do sujeito activo da relação jurídico-tributária».
E repetia a fls. 11: «As penas fiscais, como acentuámos, não têm por finalidade ressarcir prejuízos, reais ou presumidos, que a violação de um dever tributário tenha provocado à entidade credora do imposto.» O condicionamento da suspensão da execução da pena está presente desde logo na primeira versão do RJIFNA.
Como vimos, na versão originária do RJIFNA (1990), no artigo 24.º, estava prevista como sanção criminal apenas a pena de multa, ao tempo passível no regime geral - artigo 48.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 - de substituição por pena suspensa.
O artigo 11.º, sob a epígrafe «Pena de multa», estabelecia: - Em caso de suspensão de execução da pena, entre os deveres a impor ao condenado pode figurar o de pagar previamente a dívida de imposto e acréscimos legais, dentro de certo prazo.
Como os tempos eram outros, a propósito da opção, que não da injunção, quanto ao pagamento do devido, transcreve-se, por elucidativo, o que constava do preâmbulo do Decreto-Lei 20-A/90 [Diário da República, 1.ª série, n.º 12, de 15 de Janeiro de 1990, p. 220 - (2)], a propósito da liberdade do julgador: «Mas a própria necessidade de individualização da condenação fiscal, se aconselha que se estabeleça uma ponderada gravosidade da sanção económica aplicável, de modo que constitua contra-estímulo e desincentivo, que tornem, antieconómico o risco assumido com a ilicitude que se pretende prevenir e reprimir, também aconselha a que a liberdade do julgador ao determinar concretamente a sanção seja suficientemente ampla, de tal modo que assegure a justiça no caso concreto.» O artigo 5.º da Lei 61/93, de 20 de Agosto (Lei de autorização legislativa), donde emergiu o Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, enunciava o sentido e extensão da autorização, no que respeita a alteração do regime das penas, nestes termos:
d) Possibilidade de suspensão da pena de prisão nos termos do Código Penal, mas ficando a suspensão sempre condicionada ao pagamento em prazo a fixar pelo juiz, do imposto e acréscimos legais ou do montante dos benefícios indevidamente auferidos, podendo igualmente o juiz também condicionar a suspensão ao pagamento, em prazo a fixar, de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa, sendo aplicável, em caso de falta de cumprimento das condições, apenas o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 50.º do Código Penal. (Realces nossos.) Na sequência passou a estabelecer o artigo 11.º do RJIFNA, na redacção de 1993, para além das previsões de penas de prisão e multa:
Artigo 11.º
6 - É admissível nos termos do Código Penal a suspensão da pena, com as particularidades constantes do n.º 7.7 - A suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz nos termos do n.º 8, do imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, e caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa, sendo aplicável, em caso de falta de cumprimento do prazo, apenas o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 50.º do Código Penal.
8 - Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justifique, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa em prestações não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data de condenação.
9 - Dentro dos limites referidos no número anterior e quando motivos bastantes o justifiquem, os prazos e os planos de pagamento inicialmente estabelecidos podem ser alterados. (Realces obviamente nossos.) Com o RGIT a matéria passou a ser regulada no artigo 14.º, norma inserta no capítulo ii - Disposições aplicáveis aos crimes tributários - do Regime Geral, parte i - Princípios gerais.
Estabelece o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT:
1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.
As disposições dos artigos 11.º, n.º 7, do RJIFNA e 14.º, n.º 1, do RGIT divergem substancialmente do regime do Código Penal, no respeitante aos deveres que podem condicionar a suspensão da execução da pena.
Em primeiro lugar, nem na redacção originária do Código Penal (artigo 49.º) nem na emergente da revisão de 1995 (artigo 51.º) se sujeita obrigatoriamente a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de quantia devida à vítima ou ao lesado.
Em segundo lugar, porque o artigo 51.º, n.º 2, dispõe expressamente que os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir (princípio da razoabilidade).
No regime do RJIFNA, a partir de 1993, como agora no RGIT, a lei impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida; o n.º 7 do artigo 11.º daquele condicionava e o artigo 14.º, n.º 1, deste continua a condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações em falta e legais acréscimos.
Em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever, ou seja, aparentemente, sem se possibilitar a aplicação do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.
A norma estabelece uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, sem possibilidade de graduação, tendo de ser a totalidade do devido sem possibilidade de uma qualquer redução.
É evidente a particularidade, a especial configuração que o regime tributário assume em relação ao conteúdo do artigo 51.º do Código Penal, divergindo em relação a vários pontos.
No que toca ao conteúdo da condição, enquanto à face do artigo 51.º, as hipóteses de configuração do complexo de deveres têm a amplitude que é concedida pela utilização do advérbio «nomeadamente» da parte final do n.º 1, sendo meramente exemplificativo, no domínio tributário há uma, apenas uma espécie pré-definida de dever, de sentido e expressão única, circunscrita apenas ao dever económico, mas com uma dimensão económica pré-definida, exacta, intocável, incontornável, sem possibilidade de configuração parcial, de qualquer redução, corte, desconto, configurando-se como pena fixa.
Por outro lado, enquanto no regime do Código Penal, no caso de o dever a impor ser de ordem económica, este não tem de ser total, podendo ser parcial, podendo passar pelo pagamento, mas também por garantia do mesmo [cf. alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º], enquanto nos termos do artigo 14.º procura-se a cobrança da totalidade do imposto e acréscimos legais, expressão que no fundo, sem qualquer explicitação, aponta para a conformação de uma prestação indeterminada.
Por último, a aplicação do princípio da modificabilidade previsto no n.º 3 do artigo 51.º estará afastado no âmbito do crime tributário.
Se o montante do imposto em dívida é certo e determinado porque cristalizada a dívida de capital, a condenação nos legais acréscimos, expressão na qual se conterá a obrigação acessória de juros, será sempre uma condenação em prestação indeterminada, não concretizada na sentença condenatória, não se definindo em que consistem os acréscimos legais.
Resta a liberdade quanto à fixação do prazo para o pagamento «em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação».
Na redacção anterior do artigo 50.º do Código Penal, o prazo de suspensão não tinha que coincidir com a duração da pena, mas actualmente, após a reforma de 2007, de acordo com o n.º 5 do artigo 50.º, o período de suspensão coincide com a duração da pena determinada na sentença, mas é de defender a aplicação da norma especial, que originariamente já previa como período concedido para pagamento tempo superior não coincidente com o limite máximo previsto para a suspensão.
No âmbito do RJIFNA (artigo 11.º, n.os 7 e 8) o prazo a conceder ia até dois anos subsequentes à data de condenação e em 2001 tal prazo foi alargado até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação e tanto em 1993, como em 2001, foram marcados prazos de pagamento diversos do período de duração que à época tinha como limite máximo três anos.
Uma coisa é o prazo de suspensão, outra é o prazo de concessão para pagamento, pois como diz o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), o pagamento, ou a prestação de garantia, deverá ter lugar «dentro de certo prazo».
Nestes casos, em obediência a um critério de razoabilidade por que tem de pautar-se esta forma de reparação penal forçada, alguns acórdãos deste STJ têm optado pela solução de não correspondência de prazos.
Como se extrai do Acórdão de 9 de Janeiro de 2008, processo 4632/07-3.ª, «entende-se que nestes casos não é fazer corresponder o período de suspensão ao da medida da pena substituída, como o impõe o actual artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, por se estar face a um caso especial, em que a condição é imposta, quando nos termos gerais se trata de uma faculdade, sendo que a aplicação do novo regime, no concreto, redundaria em agravamento da situação do arguido (no caso com a manutenção da pena de prisão de 18 meses, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, sob condição de, no prazo de 5 anos, comprovar nos autos o pagamento do devido e acréscimos legais); de 10 de Julho de 2008, processo 103/06-5.ª, em que se considera que o tempo de duração da medida não pode deixar de ter em consideração o valor das importâncias a pagar ao Estado. Mais se pondera em tal acórdão: «Tendo o legislador português, ao criminalizar as infracções fiscais, optado por uma concepção de carácter patrimonialista do bem jurídico tutelado, centrada na obtenção das receitas tributárias, procurando a administração fiscal a outrance obter o pagamento dos impostos em dívida, compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena por infracções fiscais se afaste, neste ponto, do novo regime geral do Código Penal, continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que, na realidade, permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta, existindo, nesta matéria, uma nova especialidade no RGIT.» E no mesmo sentido, do mesmo relator, o Acórdão de 18 de Dezembro de 2008, processo 20/07 - 5.ª O Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por na matéria reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos.
As três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa, são: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena (dos Acórdãos n.os 256/03 e 427/08).
Neste sentido podendo ver-se os acórdãos a seguir indicados, todos concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade do artigo 14.º n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais:
N.º 256/2003, de 21 de Maio de 2003, processo 647/02 - 1.ª Secção, in Diário da República, 2.ª série, n.º 150, de 2 de Julho de 2003, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º vol., p. 265 - decidiu não julgar inconstitucionais as normas contidas no artigo 11.º, n.º 7, do RIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90 (na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro), e no artigo 14.º do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001. (Cita os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 440/87 e 596/99);
N.º 335/2003, de 7 de Julho de 2003, processo 282/03-3.ª Secção - Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º vol., p. 952 (apenas sumário - Não julga inconstitucional a norma do artigo 14.º do RGIT). Cita igualmente os Acórdãos n.os 440/87 e 596/99;
N.º 376/2003, de 15 de Julho de 2003, processo 3/03 - 3.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º vol., pp. 737 a 755; integra esta decisão o voto de vencido da Conselheira Maria Fernanda Palma, expondo as razões segundo as quais a obrigatoriedade fixada pelo artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao condicionar, sempre, a suspensão da execução da pena ao pagamento das prestações tributárias e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, sem admitir a ponderação casuística do julgador viola os princípios constitucionais da igualdade, da culpa, da necessidade e da proporcionalidade da pena;
N.º 500/2005, de 4 de Outubro de 2005, da 3.ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 63.º vol., p. 880 (apenas sumário - Não julga inconstitucional a norma do artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho);
N.º 309/2006, de 11 de Maio de 2006, da 3.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 65.º vol., p. 718 (apenas sumário - no mesmo sentido);
N.º 543/2006, de 27 de Setembro de 2006, da 2.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 66.º vol., p. 822 (apenas sumário - Não julga inconstitucional a norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na medida em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento dos montantes devidos à administração fiscal);
N.º 29/2007, de 17 de Janeiro de 2007, processo 677/05-2.ª Secção, in Diário da República, 2.ª série, de 26 de Fevereiro de 2007, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 67.º vol., pp. 147 a 168 (reitera fundamentação dos Acórdãos n.os 256/03, 335/03 e 500/05, na afirmação de inexistência de inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais (com um voto de vencido da mesma Exma.
Conselheira, no que toca ao artigo 14.º, tal como no Acórdão 376/03), mas aqui conjugada com a do artigo 9.º do mesmo diploma (o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária devida e legais acréscimos), na medida em que possibilita o cumprimento da sanção aplicada, por um lado, e a condenação no pagamento do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais, por outro);
N.º 61/2007, de 30 de Janeiro de 2007, processo 642/06 - 3.ª Secção, in Diário da República, 2.ª série, de 20 de Março de 2007, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 67.º vol., pp. 273 a 302, onde se pondera que «Não julga inconstitucionais as normas dos artigos 14.º, 105.º e 107.º do RGIT [reporta os Acórdãos do TC n.os 663/98, 440/87 - artigo 49.º CP 1982 - e 596/99 - artigo 51.º, n.º 1, alínea a), CP 1995 e segue a fundamentação dos Acórdãos n.os 256/2003, 335/2003 e 500/2005].
Neste caso acórdão recorrido era o Acórdão do STJ de 31 de Maio de 2006, proferido no processo 1294/06, da 3.ª Secção, que foi confirmado no que toca às questões de inconstitucionalidade;
N.º 360/2007, de 19 de Junho de 2007 - 2.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 69.º vol., p. 853 (sumário);
N.º 377/2007, de 3 de Julho de 2007 - 2.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 69.º vol., p. 855 (sumário);
N.º 327/2008, de 18 de Junho de 2008 - 3.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 72.º vol., p. 803 (sumário - Não julga inconstitucional a norma que se extrai do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, em conjugação com o n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e acréscimos legais);
N.º 563/2008, de 19 de Novembro de 2008 - 1.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 73.º vol., p. 807 (sumário);
N.º 242/2009, de 12 de Maio de 2009, processo 250/09, da 2.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 75.º vol., p. 169 (cita Acórdãos n.os 440/87 e 596/99) - não julga inconstitucionais as normas do artigo 105.º, n.º 1, do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), e do artigo 14.º do RGIT, seguindo nesta parte os anteriores;
N.º 556/2009, de 27 de Outubro de 2009, da 2.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 76.º vol., p. 567 (sumário: em termos semelhantes aos do Acórdão 327/2008);
N.º 587/2009, de 18 de Novembro de 2009, da 3.ª Secção, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 76.º vol., p. 570 (sumário - Não julga inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, quando interpretada no sentido de impor, em qualquer circunstância, a condição do pagamento do devido, para que possa ser decretada a suspensão de execução da pena de prisão aplicada);
N.º 91/2010, de 3 de Março de 2010, processo 966/09-2.ª Secção - (Caso de reclamação indeferida, mas lembrando-se que sempre seria manifestamente improcedente o recurso, citando os Acórdãos n.os 256, 335 e 376 de 2003, 500/2005, 543/2006, 29/2007, 61/2007, no que respeita ao artigo 14.º do RGIT, e ainda os Acórdãos n.os 327/2008 e 556/2009, no que toca a esta norma em conjugação com as normas dos artigos 50.º e 51.º do Código Penal);
N.º 237/2011, de 5 de Maio de 2011, processo 766/10-3.ª Secção. Este acórdão remete para a fundamentação constante dos Acórdãos n.os 256, 335 e 376 de 2003, 500/2005, 309/2006, 543/2006, 587/2006, 29/2007, 61/2007, 327/2008 e 556/2009.
Abordou uma questão adicional, consistente em saber se a interpretação conjugada das normas extraídas do artigo 50.º do CP e 14.º do RGIT, segundo a qual cabe a um juiz criminal aferir da falta de pagamento de dívidas de natureza fiscal, para efeitos de aplicação da suspensão da execução da execução de pena de prisão por abuso fiscal, atenta contra a reserva constitucional de jurisdição administrativa e tributária [artigos 209.º, n.º 1, alínea b), e 212.º, n.º 3, da CRP], defendendo que a ponderação acerca da eventual suspensão da execução da pena insere-se ainda dentro da competência dos tribunais comuns.
O Supremo Tribunal de Justiça afastou a arguição de inconstitucionalidade da citada norma do RGIT nos seguintes acórdãos:
8 de Novembro de 2001, processo 2988/01-5.ª;
9 de Maio de 2002, processo 1231/02-5.ª;
12 de Dezembro de 2002, processo 4218/02-5.ª - «Não é desconforme à Constituição o condicionamento da pena suspensa, nomeadamente ao pagamento da indemnização devida ao lesado ou do imposto em dívida ao Estado, no caso das infracções tributárias»;
22 de Janeiro de 2003, processo 972/02-3.ª;
29 de Janeiro de 2003, processo 983/02-3.ª, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 93, p. 141;
4 de Junho de 2003, processo 1094/03-3.ª;
13 de Outubro de 2004, processo 2370/04-3.ª;
14 de Outubro de 2004, processo 3274/04-5.ª;
6 de Janeiro de 2005, processo 4204/04-5.ª;
3 de Novembro de 2005, processo 2646/05-5.ª;
14 de Março de 2006, processo 804/06-5.ª;
31 de Maio de 2006, processo 1294/06-3.ª (como se referiu supra, este acórdão foi objecto de recurso no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/2007);
18 de Outubro de 2006, processo 2935/06-3.ª, com o mesmo relator do anterior, em cujo sumário se lê: «III - A exigência de pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena, à margem da condição económica do responsável tributário, e do princípio da razoabilidade, previsto para a suspensão nos termos do artigo 51.º, n.º 2, do CP, nada tem de desmedida, justificando-se pela necessidade da eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado pelo interesse preponderantemente público a acautelar» - com um voto de vencido;
21 de Dezembro de 2006, processo 2946/06-5.ª, invocando os Acórdãos do TC n.os 440/87, de 4 de Novembro de 1987, 596/99, de 2 de Novembro de 1999, 305/91 e 357/2004, de 19 de Maio de 2004;
6 de Fevereiro de 2008, processo 4097/06-3.ª, com o mesmo relator dos Acórdãos de 31 de Maio de 2006 e de 18 de Outubro de 2006.
Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, 2009, começa por afirmar - p. 133 - que o artigo 14.º nada dispõe sobre os pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, sendo aplicável o artigo 50.º do Código Penal, sendo que o artigo 51.º, na redacção vigente à data da publicação do RGIT, dispunha que a suspensão da execução da pena de prisão podia ser subordinada ao pagamento dentro de certo prazo da indemnização devida ao lesado.
Após acentuar que a especialidade do artigo 14.º do RGIT consiste em que a imposição da condição é obrigatória, afirma, de seguida, a p. 136: «Não faz sentido a obrigatoriedade da imposição deste dever. Pode suceder que logo no momento da condenação seja desde logo previsível que o condenado não terá condições económico-financeiras para proceder ao pagamento e por isso que a imposição desse dever constituirá apenas o adiamento da decisão sobre o cumprimento da pena de prisão. Ora, a prisão só deve ser imposta se necessária e o critério da necessidade não pode ser apenas a impossibilidade de pagamento da prestação tributária em dívida. A prestação tributária mantém-se e por isso que a Administração poderá sempre executá-la, sendo possível. Se o incumprimento fica a dever-se a impossibilidade e esta situação não foi causada culposamente não há justificação para a prisão.» Coloca de seguida a questão: «O que sucede se o condenado não cumprir a condição de pagamento da prestação tributária?», a que responde assim: «Cremos que pode ser revogada a suspensão da execução, desde que o incumprimento seja culposo e só se o for.» A propósito da invocada inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º do RGIT por violadora do princípio da igualdade constante do artigo 13.º da CRP, na medida em que importa a imposição de uma obrigação que pode ser impeditiva da efectividade da suspensão da execução da pena de prisão, apenas em razão da insuficiente situação económica do condenado para satisfazer essa obrigação, defende que no entendimento já referido (o de que só o não pagamento culposo da condição de suspensão pode determinar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão) não há qualquer inconstitucionalidade na norma.
A finalizar três abordagens sobre a bondade da solução da imposta condição.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2003, proferido no processo 983/02-3.ª, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 93, p. 141, apreciou a alegada inconstitucionalidade da norma do artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA, mantida no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, com o fundamento de que viola os princípios constitucionais da separação de poderes, da reserva judicial da função jurisdicional e da independência dos juízes, respectivamente, artigos 111.º, n.º 1, 202.º, n.os 1 e 2, e 203.º da CRP.
Refere o acórdão: a atribuição constitucional da função jurisdicional implica necessariamente a separação e exclusividade da função de julgar por parte dos juízes, não apenas no sentido da existência de um poder judicial separado dos outros poderes, mas também no de postular «o reconhecimento de uma reserva de jurisdição entendida como reserva de um conteúdo material típico da função jurisdicional».
«Esse conteúdo material típico da função jurisdicional a que respeita o n.º 2 do artigo 202.º, no âmbito jurídico-penal implica intervenção que, assegurando o respeito pela defesa dos direitos e interesses em causa legalmente protegidos, visa essencialmente decisão concreta sobre a integração dos elementos constitutivos do tipo de crime, a culpabilidade e a punibilidade, a escolha da sanção criminal, a ponderação da respectiva medida, a suspensão da sua execução e os respectivos termos.
Quanto à questão concreta importa avaliar se a imposição legal da obrigatoriedade do condicionamento da decisão de suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento total das quantias não entregues e acréscimos legais importa ofensa da 'proibição de ingerência do legislador na reserva de jurisdição', com o sentido de que ao legislador é vedado invadir a função jurisdicional praticando actos constitucionalmente reservados aos órgãos jurisdicionais.» Entende o acórdão que não pode ter-se por violado o princípio de reserva de jurisdição por determinações da lei em função de opções de política criminal admissíveis, desde que não atinjam intoleravelmente a liberdade de decisão judicial concreta em função de princípios fundamentais à natureza e exigências específicas da intervenção judicial em causa, defendendo que é o que se verifica no caso.
«A disposição legal que prescreve a obrigatoriedade do condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações (em dívida) não viola o núcleo essencial do conteúdo material típico da específica função jurisdicional a exercer - [...] não interfere com a escolha da pena [...], o mesmo se verificando com a decisão sobre o decretar ou não, em conformidade com o disposto no artigo 50.º do C. P., a suspensão da execução da pena de prisão e o período dessa suspensão», terminando, após a argumentação que consta de p. 157, por considerar que a opção em causa não atinge em grau intolerável o núcleo essencial da reserva de jurisdição, improcedendo o fundamento da invocada inconstitucionalidade.
Antonieta Nascimento, em «Regime Geral das Infracções Tributárias - Dificuldades de aplicação dos artigos 14.º/1 e 22.º», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 20, n.º 1, Janeiro-Março 2010, pp. 73 a 95, após referir a p. 77 que «Encontra-se a pena de suspensão da execução da pena de prisão sujeita ao mesmo modelo de determinação de penas que as demais, jurídico-constitucionalmente vinculado, de cooperação entre o legislador e o juiz, segundo uma repartição de competências próprias, separação de tarefas e responsabilidades distintas», afirma a p. 85: «a imposição pelo legislador no regime da suspensão da pena em matéria tributária do concreto dever e da concreta medida do dever que condicionam - sempre - a suspensão da pena de prisão nos crimes tributários, leva, a um só tempo, à subversão do sistema de cooperação vinculada das intervenções do legislador e do juiz e, por isso, destrói completamente o modelo de determinação da pena, tal como se encontra jurídico-penalmente e jurídico-constitucionalmente consagrada a determinação e aplicação de penas no ordenamento jurídico português e, por via dessa violação da reserva da função jurisdicional do juiz, leva, também, à violação do princípio da culpa».
Patrícia Naré Agostinho, em «A relevância da reposição da verdade sobre a situação tributária e a regularização de dívidas tributárias no RGIT» (relatório final apresentado no âmbito do 6.º Curso de Pós-Graduação em Direito Penal Económico e Europeu, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sob a orientação do Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade), in Revista do Ministério Público, n.º 109, ano 28, Janeiro-Março de 2007, pp. 97 a 145, diz a p. 127 que em seu entender não deveria a condição de pagamento da prestação tributária ser prevista como obrigatória, mas sim como uma faculdade à semelhança do previsto no Código Penal e conclui que o artigo 14.º do RGIT não exclui a aplicação dos artigos 50.º a 57.º do Código Penal, e remata, dizendo «quanto às condições económicas do condenado se as mesmas não desempenham qualquer papel na determinação da condição de pagamento da prestação tributária, terão, no entanto, a sua relevância na fixação do prazo para proceder a tal pagamento, prazo que inclusive, foi alargado pelo RGIT para 5 anos».
A questão da omissão de pronúncia
De acordo com o artigo 13.º do RGIT, na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.Com a aposição da condição a que fica subordinada a suspensão pretende-se a reparação integral do prejuízo causado, mas não só.
A razoabilidade da condição tem, a nosso ver, de ser necessariamente avaliada e ponderada a montante, isto é, antes da declaração de imposição.
Pelos montantes em dívida, por vezes exorbitantes, devidos muitas das vezes à não actuação tempestiva da autoridade tributária, à adopção de uma postura de «laissez faire, laissez passer» (o que indubitavelmente transparece no processo executivo civil na abertura do litisconsórcio activo necessário sucessivo por altura das convocações de credores ao abrigo do artigo 864.º do CPC), pela duração do prazo de pagamento concedido e capacidade de resposta do condenado, ou melhor, falta de tal capacidade, muitas das vezes fácil será antecipar o desfecho da imposição de uma «missão impossível», em que o agente, por muita boa vontade que tenha e empenho que demonstre, não consegue cumprir o guião, desempenhar o papel de cumpridor, do bom aluno, que consegue levar a carta a Garcia.
De pouco valerá impor um dever económico de forma cega só porque a lei a impõe de forma automática, dir-se-ia, num posicionamento que roça a total e completa alienidade em relação ao concreto ser julgado e condenado, quando não só pelo exagero do montante, não arbitrado, mas imposto, pelo muito curto prazo assinado para o cumprimento e sobretudo pela já consabida sua deficiente capacidade de solvência, de cumprir o imposto, seria dentro de um juízo de normalidade das coisas da vida do cidadão comum, de um juízo de verosimilhança, de antever o inevitável incumprimento, a menos que lhe sorrisse em sorte a «sorte grande», ou mesmo uma média, com que pudesse recompor a sua vida e cumprir a injunção condicionante da suspensão.
Ao decretar-se a imposição da condição deve ter-se uma imagem global do condicionamento, da real dimensão económica do dever imposto, que a opaca fórmula legal de jeito algum deixa transparecer, em que se incluem juros compensatórios e moratórios, com vista à reparação integral, plena, a que pode ser acoplada, caso o juiz o entenda, o montante previsto na segunda parte do n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, ou seja, uma «quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa», o que tendo em conta que a pena de multa (artigo 105.º, n.º 1) vai até 360 dias e que cada dia de multa pode ir até (euro) 500 (artigo 15.º, n.º 1), significa que se estará a falar de uma quantia que terá como limite máximo (euro) 180 000.
Na avaliação da opção pela suspensão não podem ser olvidados os condicionalismos inerentes ao agente e se é certo que a impossibilidade de cumprimento não integra os elementos constitutivos do tipo, tal avaliação tem de estar presente no juízo de opção pela substituição.
Apenas como adjuvante de compreensão não será despiciendo deitar um olhar sobre a situação pessoal e económica de cada um dos arguidos nos processos onde foram proferidos os acórdãos em confronto.
O arguido no processo de Vila Nova de Gaia (acórdão recorrido), de acordo com os factos provados n.os 14, 21, 22 e 23, exerce a actividade de treinador profissional de futebol, tendo emigrado para Marrocos, onde exerce tal actividade ao serviço de um clube de futebol da segunda divisão, auferindo mensalmente (euro) 500, sendo que a única residência que possui em Portugal situa-se na casa de sua mãe e que - facto provado n.º 20 -, perante dificuldades económicas, optou por manter a laboração da sociedade arguida e garantir o pagamento dos salários dos seus trabalhadores que deles dependiam para manterem as respectivas famílias.
O arguido no processo de Alcanena (acórdão fundamento) é motorista, auferindo (euro) 358,25, tendo chegado a vender bens do seu património para colocar fundos na sociedade, que veio a ser declarada falida em 2 de Fevereiro de 2001.
Perguntar-se-á qual o sentido pedagógico/reeducativo da aplicada pena de substituição quando ao condenado é exigida reparação total, condicionante da suspensão, quando não tenha capacidade económica e financeira de resposta adequada, capacidade de resposta num domínio onde já foram dadas provas de que não é possível cumprir o programa traçado, pois se não o foi, enquanto ainda receptor de receitas, indevidamente desviadas, é certo, como esperar que o seja depois da falência, após o termo da actividade económica, sem possibilidades de soluções paliativas, tipo lei Catroga ou lei Mateus, restando ficar à espera da tão ventilada hipótese de possível melhor fortuna. É que por vezes a crença, só por si, não basta! Necessário é que se diga que no plano das coisas práticas, do dia-a-dia do cidadão comum deste País, do pequeno empresário, tão prestimosamente acolitado nas soluções da «empresa na hora» e tipo novas oportunidades, estamos a falar de um tecido empresarial ao nível das PME, sobretudo das pequenas, que no concreto contexto dos acórdãos em confronto, nem sequer - obviamente - se entrecruzam e muito menos digladiam, ao nível internacional, mas apenas interno - prestação de serviços de limpeza, no acórdão recorrido, e fabrico e comércio de vestuário desportivo e malhas exteriores, no caso do acórdão fundamento.
A jusante, como facilmente se antevê, a culpa morrerá, uma vez mais, solteira, porque o incumprimento da condição necessariamente culposo, como não deixam de assinalar todos os arestos do TC e STJ, face aos cenários catastróficos, de rotura com o mercado, de incumprimento em incumprimento, de insolvência em insolvência, ditará a ausência de culpa, o que conduzirá a que, em linha recta, a condição, obviamente, não se cumpra e que, por força do enredo, nada acontecerá, isto é, a revogação tout court será sempre uma miragem situada do outro lado da margem, in casu, da, a priori, bem intencionada condenação condicional.
Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP.
Com a aplicação da condição não se trata de pagar determinada quantia à entidade credora para a compensar do prejuízo por ela sofrido. Mais do que isso, trata-se de um crédito garantido pelo jus puniendi de que o Estado está armado (Costa Andrade, Direito Penal Económico, vol. iii, p. 249).
No caso, a arrecadação de receitas, complementos e seus derivados é assegurada através da imposição de uma sanção penal; a subordinação obrigatória da suspensão da execução da pena de prisão à exigência do pagamento do montante da dívida volve o instituto em instrumento de recuperação de dívidas fiscais, tornando-se numa medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente.
Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.
A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente. Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta? Aliás, na lei de autorização de 1993 referia-se a possibilidade de suspensão com imposição de pagamento; não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido, mas não só, pois acresce o demais, ultrapassando a condenação o montante do imposto e demais acréscimos, sem reduções, sem cortes, sem descontos.
Para que sobrevenha a aplicação da pena fixa em que consiste a «condição», necessário é que se opte pela suspensão; de contrário, que sentido teria falar em medida de sentido pedagógico e reeducativo? Assim descaracterizada sempre seria de colocar a questão de saber se ainda se estará perante uma pena suspensa.
Não colhe grande sentido que o mesmo preceito tenha dois pesos e duas medidas para a concretização, composição, da condição. O artigo 14.º, n.º 1, alberga duas hipóteses. Uma primeira em que impõe o condicionamento e uma segunda, prevista na última parte do mesmo n.º 1, em que sem qualquer dúvida se abre a janela da liberdade de escolha e ponderação, pois caso o juiz o entenda, fica a suspensão condicionada ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
A óbvia, patentemente expressa e declarada compressão da liberdade do julgador, levada em forma de lei no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, reeditando semelhante «diktat» proveniente do n.º 7 do artigo 11.º do RJIFNA, não se verifica, em nosso entender, de forma inexorável, em toda a linha, afigurando-se-nos que a impossibilidade de ultrapassagem surge apenas num segundo momento, num subsequente/ulterior estádio de cognição da concreta situação, avaliação e ponderação das variáveis em equação, na análise do circunstancialismo concreto e decisão, até porque a própria suspensão, sendo um exercício ainda em liberdade, de um poder-dever, de um poder vinculado, é ainda um exercício de plena liberdade de apreciação/valoração, está ela própria subordinada a condições de êxito, como a imprescindível verificação dos pressupostos do artigo 50.º, aplicáveis ex vi do artigo 3.º do RGIT.
A suspensão em si mesma não deixa de ser uma faculdade, como se acentua no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2009, de 12 de Maio de 2009, processo 250/09, da 2.ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 75.º vol., p. 209, onde se afirma: «a norma do artigo 14.º do RGIT, ao estabelecer, de forma geral e abstracta, uma condição à faculdade de o tribunal decretar a suspensão da execução da pena de prisão, em todas as situações em que essa faculdade se lhe depare, assume claramente natureza de acto legislativo».
A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.
Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.
A conformidade constitucional da norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT sempre foi apreciada na óptica dos interesses do arguido, na perspectiva da violação dos princípios da igualdade, adequação e proporcionalidade, e nunca analisada na perspectiva de limitação da liberdade de julgar.
Por outro lado, todas as decisões incidem sobre a primeira parte do n.º 1, sendo certo que a composição da condição pode abranger, para além do pagamento da prestação tributária evadida e legais acréscimos (1.ª parte do n.º 1), o pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa (parte final do mesmo n.º 1).
O argumento usado pelo Tribunal Constitucional e no acórdão recorrido da possibilidade de ingresso de melhor fortuna pode certamente parecer aliciante, mas só pode ser entendido como mero exercício de fé em dias melhores, de esperança no anúncio de uma inesperada herança e de perseverança (no caso de aposta, jogo de fortuna e azar).
A margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção.
Feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento.
Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.
Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial.
Pelo exposto, opta-se pela solução do acórdão fundamento.
Decisão Pelo exposto, acorda-se no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em, na procedência do presente recurso extraordinário, revogar o acórdão recorrido e fixar jurisprudência nos seguintes termos:
«No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p.
no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.» Em consequência ordena-se que, oportunamente, o processo seja remetido à Relação do Porto para que profira nova decisão em conformidade com a jurisprudência fixada - artigo 445.º do Código de Processo Penal.
Não é devida taxa de justiça - artigo 513.º, n.º 1, do CPP.
Cumpra-se oportunamente o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do CPP.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Setembro de 2012. - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges (relator) - Isabel Celeste Alves Pais Martins (vencida conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Santos Cabral) - Manuel Joaquim Braz (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - António Artur Rodrigues da Costa (vencido, conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Santos Cabral) - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral (vencido de acordo com declaração que junto) - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes (voto a decisão) - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa (vencido nos termos da declaração do Conselheiro Santos Cabral) - António Pires Henriques da Graça (em conformidade ainda com a fundamentação que junto) - Luís António Noronha Nascimento.
Declaração de voto
Nos termos da jurisprudência fixada, decidida a suspensão da execução da pena de prisão aplicada por crime de abuso de confiança fiscal, o juiz deve «conhecer da possibilidade de o arguido cumprir» a condição prevista no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT.Deve fazê-lo, segundo parece resultar do texto, porque, se concluir pela impossibilidade de cumprimento, não haverá lugar à imposição da condição. E não haverá imposição da condição pela simples razão de que não se manterá a suspensão. Não tendo o arguido, em função da sua situação económica, possibilidade de pagar as quantias em dívida, abandona-se a opção pela substituição da prisão pela suspensão da sua execução e volta-se atrás no processo de determinação da pena, para levar em linha de conta a impossibilidade de cumprir a condição.
Designadamente, nos casos dos crimes abrangidos na previsão do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, puníveis, em alternativa, com pena de prisão e com pena de multa, deve reequacionar-se, à luz do artigo 70.º do CP, a aplicação da pena de multa [cf. fls.
69: «Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP»].
Mas, desde logo, a previsível impossibilidade de o arguido pagar a prestação tributária e acréscimos legais é alheia ao processo de escolha da espécie da pena, no qual intervêm exclusivamente considerações de prevenção.
Além disso, tendo-se concluído pela verificação dos pressupostos da suspensão da execução da prisão, de acordo com o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do CP, não pode deixar de aplicar-se essa pena de substituição, seja por se concluir pela impossibilidade de o condenado cumprir a condição a que obrigatoriamente a suspensão deve ficar subordinada, seja por outra razão.
Por outro lado, se, em relação aos crimes puníveis, em alternativa, com pena de prisão e pena de multa o recuo na aplicação da suspensão, por constatação da impossibilidade de o arguido cumprir a condição, ainda pode levar à opção pela pena de multa (por razão alheia ao processo de escolha da espécie da pena, repete-se) ou, no caso de se manter a preferência pela pena de prisão, à aplicação de outra pena de substituição, desde que a respectiva medida o permita, em relação aos crimes do n.º 5 do artigo 105.º do RGIT isso não é, em muitos casos, possível, pois, no que se refere a pessoas singulares, são puníveis só com pena de prisão.
Pense-se no seguinte exemplo: o tribunal, num caso de crime do n.º 5 do artigo 105.º, tem como medida adequada da pena 4 anos de prisão, de acordo com os critérios e factores dos artigos 71.º do CP e 13.º do RGIT, e considera verificados os pressupostos da suspensão da execução da pena, mas, no momento seguinte, concluindo pela impossibilidade de o arguido cumprir a condição a que a suspensão obrigatoriamente teria de ser subordinada, deixa de suspender a execução da pena de prisão, que, assim, irá ser executada. E substancialmente nada muda mesmo que, nesse segundo momento, sem se ver com que fundamento, se reduza a medida da pena de prisão para 2 ou 3 anos, por exemplo.
Quer dizer: nesses casos, o arguido, se tivesse capacidade económica para pagar a prestação tributária e os acréscimos legais, veria a pena ser suspensa na sua execução; como a não tem, vai cumprir a prisão, visto estar afastada, em função da sua medida, a possibilidade de a substituir por outra pena não privativa da liberdade.
Sofre, assim, parece-me, um prejuízo em razão da sua situação económica, em violação do artigo 13.º da Constituição.
O processo de determinação da pena inicia-se com a identificação da pena aplicável ao crime. Sendo aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal opta por uma ou por outra, fazendo uso do critério estabelecido no artigo 70.º do CP. Feita a escolha, se esta recair na pena de prisão, o tribunal encontrará a sua medida concreta, equacionando de seguida a possibilidade de a substituir por pena não privativa da liberdade, nomeadamente por suspensão da execução da prisão. Aplicando-se esta, cuidará então o tribunal de decidir a sua modalidade, isto é, se a suspensão é simples ou com imposição de deveres e ou regras de conduta.
Mas a posição que tomar sobre essa matéria não terá quaisquer reflexos na decisão de decretar a suspensão, pois esta em nada depende daquela.
No caso de crime tributário, decidida a aplicação de pena de prisão e a sua substituição por suspensão da sua execução, esta fica obrigatoriamente condicionada ao pagamento das quantias em dívida, como dispõe o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT («A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento [...] da prestação tributária e acréscimos legais [...]»).
A lei presume que, estando em causa crime tributário, a suspensão da execução da pena de prisão aplicada só realiza as finalidades da punição se for condicionada ao pagamento das quantias em dívida. Mas não faz depender o decretamento da suspensão, nem poderia, da possibilidade de o condenado cumprir a condição. O que satisfaz ou não as exigências de prevenção em cada caso convocadas é a suspensão da pena de prisão acompanhada da condição. Só. Não se exige a possibilidade de cumprir, que, existindo no momento da condenação, pode deixar de existir até ao fim do prazo de cumprimento. Como a impossibilidade que exista na altura da condenação pode ser revertida dentro do prazo da condição.
Devendo a suspensão ser sempre subordinada ao pagamento das quantias em dívida, não há que averiguar da possibilidade de o condenado fazer esse pagamento, por se tratar de actividade inútil e, portanto, não lícita, nos termos dos artigos 137.º do CPC e 4.º do CPP. A necessidade dessa averiguação só se coloca na fase de execução da pena suspensa, em caso de incumprimento da condição, com vista a decidir se é culposo, pois só este permite que se lance mão de uma das alternativas previstas no artigo 14.º, n.º 2, do RGIT.
Deveria por isso fixar-se jurisprudência no sentido em que decidiu o acórdão recorrido.
- Manuel Joaquim Braz.
Partindo do pressuposto da sua constitucionalidade o preceito sob crivo interpretativo não admite, em nosso entender, qualquer interpretação que legitime um juízo de prognose no que toca à capacidade do arguido em termos de cumprimento da condição que lhe é imposta. Entende-se que, ultrapassada a fase em que se equacionaram os factores que, nos termos da lei penal, modelam a escolha da pena e decidida a opção por uma pena de substituição, não se pode condicionar o ónus que envolve a suspensão, nos termos do citado artigo 14.º, a um critério de razoabilidade de cumprimento do ónus que não está compreendido na letra, ou no espírito, da lei.
Aliás, o admitir este juízo valorativo na fase de determinação da pena de substituição tem como consequência que, no caso de consideração da incapacidade do arguido para resolver o ónus que lhe era imposto, se retorne à fase da escolha da pena, levando, necessariamente a uma reponderação da aplicabilidade de uma pena de multa ou de uma pena de prisão efectiva. Porém, isto sucede por virtude da força de um critério inscrito num juízo de prognose que é inadmissível como determinante da escolha da pena.
Em nosso entender o juízo sobre a capacidade económica do arguido neste específico tipo legal de crime - abuso de confiança fiscal - tem lugar apenas no momento de aferir sobre a culpa na impossibilidade de cumprir a condição imposta.
Termos em que entendo que presente a uniformização de jurisprudência se deveria orientar em sentido inverso ao decidido. - Santos Cabral.
Processo 139/09.7IDPRT.P1-A. S1-3.ª
Rec. fixação de jurisprudência
Votei a favor da decisão, considerando ainda o seguinte:1 - Poderia pensar-se que, se o instituto de suspensão da execução da pena se encontra definido pelo artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, nos seus pressupostos materiais, ainda que condicionado a deveres ou imposição de regras de conduta, o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT ao impor a obrigatoriedade de determinada condição à suspensão da execução da pena, presumiria que o arguido era possuidor de solvabilidade económica à data da decisão, pelo menos no tocante ao montante integrante da condição.
2 - Nessa ficção presuntiva, o montante atinente à condição imposta não representaria para o arguido obrigação cujo cumprimento não fosse razoavelmente de lhe exigir, uma vez que seria proporcional à prestação tributária, e seus acréscimos, devida e não entregue, sendo-lhe exigível, e, por conseguinte, podendo e devendo satisfazê-la.
3 - Essa presunção de solvabilidade económica do arguido explicaria ainda que os limites de eventual modificabilidade da condição em caso de incumprimento fossem apenas os determinados pelo n.º 2 do artigo 14.º do RGIT.
4 - Mas a insolvabilidade económica do arguido no momento da decisão ou, até, posteriormente, perante a condição imposta pelo n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, convocaria a perplexidade, e interpelação do substrato teleológico da dogmática legal geral no âmbito de aplicação do disposto na lei geral criminal substantiva, o artigo 55.º do Código Penal, mais abrangente quanto à falta de cumprimento das condições da suspensão.
5 - Aliás, em termos garantísticos mais alargados, poderia até pensar-se na vinculação da suspensão da execução da pena ao regime geral do Código Penal, e nesta ordem de ideias se poderá compreender a tese por exemplo defendida por Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, 2009, e referida no presente acórdão, ao afirmar - p. 133 - «que o artigo 14.º nada dispõe sobre os pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, sendo aplicável o artigo 50.º do Código Penal, sendo que o artigo 51.º, na redacção vigente à data da publicação do RGIT, dispunha que a suspensão da execução da pena de prisão podia ser subordinada ao pagamento dentro de certo prazo da indemnização devida ao lesado».
Após acentuar que a especialidade do artigo 14.º do RGIT consiste em que a imposição da condição é obrigatória, afirma, de seguida, p. 136: «Não faz sentido a obrigatoriedade da imposição deste dever. Pode suceder que logo no momento da condenação seja desde logo previsível que o condenado não terá condições económico-financeiras para proceder ao pagamento e por isso que a imposição desse dever constituirá apenas o adiamento da decisão sobre o cumprimento da pena de prisão. Ora, a prisão só deve ser imposta se necessária e o critério da necessidade não pode ser apenas a impossibilidade de pagamento da prestação tributária em dívida. A prestação tributária mantém-se e por isso que a Administração poderá sempre executá-la, sendo possível. Se o incumprimento fica a dever-se a impossibilidade e esta situação não foi causada culposamente não há justificação para a prisão».
6 - Porém, com o devido respeito, não nos parece ser esta solução adequada ao regime penal fiscal.
Pois que:
A suspensão da execução da pena de prisão é hoje considerada uma outra modalidade ou espécie de pena, uma pena de substituição.
Como salienta Figueiredo Dias, «as penas de substituição são verdadeiras penas autónomas» - Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 329, § 494.
E, como bem observa o presente acórdão, «A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição».
7 - O problema radica assim, em última análise em «divisar um critério geral de escolha e de substituição da pena. Uma resposta afirmativa impõe-se. Um tal critério é, em toda a sua simplicidade, o seguinte: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição.» Figueiredo Dias, ibidem, p. 331, § 497.
8 - É, com este sentido, que o critério geral legal se encontra definido pela verificação dos parâmetros indicados pelo artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, no sentido de se concluir que «a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», sem prejuízo de, conforme n.º 2 do preceito: «O tribunal se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.» 9 - Por outro lado, é importante dizê-lo, porque é jurídico-penalmente essencial, «são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação.» Figueiredo Dias, ibidem, § 497.
Acrescenta o mesmo insigne Professor - § 498 - «Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena.» 10 - Ora o direito penal fiscal, como direito especial - perante o direito criminal comum - consagrado na Lei 15/2001, de 5 de Junho, com actualizações posteriores, ao estabelecer o regime geral das infracções tributárias (RGIT), caracteriza-se pelas suas especificidades dogmáticas, face aos bens jurídicos que pretende tutelar.
Como refere Frederico Lacerda da Costa Pinto, Crimes Tributários - Portugal, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa: «Podemos assim afirmar, sem grande margem de erro, que a generalidade dos crimes tributários visa em última instância proteger realidades patrimoniais afectas a finalidades de direito público: de forma genérica, o erário público e o património da segurança social.» 11 - Por isso se compreende que: «Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.» - artigo 13.º do RGIT.
As disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar; apenas são aplicáveis subsidiariamente: a) Quanto aos crimes e seu processamento - v. artigo 3.º do RGIT.
Por isso se compreende também que a pena de substituição se oriente por uma vertente patrimonial de salvaguarda ou reparação patrimonial, do património público lesado, ao prescrever no artigo 14.º, n.º 1, do RFGIT: «A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.» Por isso, se compreende ainda a restrição ao regime penal comum, no eventual incumprimento da condição da suspensão, uma vez que não é aplicável o regime do artigo 55.º do CP, mas sim o dos limites impostos pelo n.º 2 do artigo 14.º do RGIT que apenas dispõe:
«2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.» 12 - A determinação da situação económica do arguido, durante a audiência de discussão e julgamento, é pois necessária, desde logo com vista à aquilatar da aplicação de pena de substituição pois que a suspensão da execução da pena obriga sempre ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos.
13 - Se o arguido não tiver solvabilidade económica, no momento da decisão, arredada fica logo na teleologia da pena tributária, a aplicação da pena de substituição.
14 - A indagação da situação económica do arguido é sempre necessária, na determinação da medida concreta da pena, como resulta do disposto no artigo 71.º, n.º 2, alínea d), do Código Penal.
15 - A pena fiscal, atentos os bens jurídicos inerentes ao direito penal fiscal, tem em conta, sempre que possível, a vertente económica ou patrimonial, da lesão patrimonial havida, como resulta do citado artigo 13.º do RGIT.
16 - A condição obrigatória imposta à suspensão da execução da pena, pelo n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, integra esta, é ainda um pressuposto constitutivo da pena de substituição.
17 - O conhecimento da situação económica do arguido, no âmbito de aplicação da suspensão da execução da pena, tem uma dupla função: por um lado, na escolha da espécie de pena, ou seja se é adequada a aplicação da pena de substituição, e, por outro lado, se o for, pelos efeitos relevantes na determinação da sua medida concreta, desde logo, pela maior ou menor compressão na determinação do prazo de pagamento.
18 - Donde, o juízo de prognose favorável inerente aos pressupostos materiais comuns de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, é necessariamente complementado, a nível do direito penal fiscal previsto no RGIT, pela averiguação da situação económica do arguido, no momento da decisão, com vista a ajuizar da sua capacidade de pagamento, pelo que a sua omissão traduz nulidade por omissão de pronúncia nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP. - António Pires Henriques da Graça.