Acórdão 358/92
Processo 120/92
Acordam, em sessão plenária do Tribunal Constitucional:
I
1 - Em 25 de Março de 1992, o Presidente da República, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República e dos artigos 51.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração de inconstitucionalidade e ou de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, 14.º, 38.º e 50.º, alínea b), da Lei 2/92, de 9 de Março, lei que aprova o Orçamento do Estado para 1992.
O pedido do Presidente da República assenta nos seguintes fundamentos:
Quanto ao artigo 13.º, n.º 1, o requerente entende que a sua conformidade constitucional pode ser questionada em virtude de se tratar de uma norma transitória para os anos de 1992 e 1993 através da qual se procede à definição de novos critérios de cálculo da verba global do Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF), previsto na Lei 1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais). Com efeito, a este propósito refere o Presidente da República que «a fórmula de cálculo do FEF prevista no artigo 9.º, n.º 1, da Lei das Finanças Locais, que se reporta às cobranças previstas do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) no ano anterior e no ano a que se refere a lei do orçamento, é efectivamente neutralizada pela adopção de uma nova base de cálculo, correspondente, não às cobranças previstas do IVA para 1992, mas apenas a parte dessas cobranças - as correspondentes à base de aplicação daquele imposto em 1991». A que acresce que «a entender-se que a lei do orçamento deve respeitar todas as contribuições financeiras impostas ao Estado, por força de um vínculo de natureza obrigacional, pela Lei das Finanças Locais, o seu não cumprimento pela aplicação dos critérios constantes do referido artigo 13.º, n.º 1, parece equivaler ao não cumprimento da norma do artigo 108.º, n.º 2, da Constituição, na parte em que vincula o Orçamento ao respeito das «obrigações decorrentes de lei».
Ainda sobre o mesmo normativo, o Presidente da República entende que se suscitam dúvidas sobre se as alterações à Lei das Finanças Locais - pela introdução de um preceito novo e pela definição de novos critérios legais de repartição de receitas entre o Estado e as autarquias locais - respeitam os princípios da autonomia local, na sua expressão financeira, da justa repartição dos recursos públicos, constantes dos artigos 6.º, n.º 1, e 240.º, n.º 2, da Constituição.
De igual forma, o requerente questiona ainda a constitucionalidade do mesmo n.º 1 do artigo 13.º na parte em que condiciona a determinação de despesas do Estado em 1993, agora no tocante ao respeito da regra da anualidade orçamental prevista nos artigos 92.º e 108.º, n.º 2, da Constituição e no artigo 2.º, n.º 1, da Lei 6/91, de 20 de Fevereiro (Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado).
Numa outra vertente do pedido, o Presidente da República considera que do entendimento da Lei das Finanças Locais como lei geradora de obrigações de natureza financeira impostas ao Estado e vinculativas do Orçamento, e como lei concretizadora do princípio constitucional da autonomia local, designadamente na dimensão financeira, parece decorrer a possibilidade da sua qualificação como «lei ordinária reforçada de vinculação específica». A esta luz, o Presidente da República considera que o disposto nos artigos 12.º e 13.º, n.º 1, da lei do orçamento poderá «configurar ilegalidade com fundamento em violação de lei com valor reforçado [artigo 281.º, n.º 1, alínea b) da Constituição], na medida em que, assim, se modificam os critérios de distribuição do FEF pelos municípios e se procede à definição de novos critérios de cálculo da verba global do FEF, alterando e neutralizando normas da Lei das Finanças Locais».
Em consequência, o requerente entende que as dúvidas de constitucionalidade e de legalidade colocadas acerca do artigo 13.º, n.º 1, têm como consequência questionar, de igual forma, a constitucionalidade e a legalidade do disposto no n.º 2 do mesmo artigo 13.º e nos n.º 1, 2 e 3 do artigo 14.º da Lei 2/92.
Finalmente o Presidente da República entende que se levantam dúvidas sobre se as normas constantes dos artigos 38.º e 50.º, alínea b), do mesmo diploma, que concedem autorização ao Governo para, respectivamente, alterar o regime de mecenato cultural e aprovar o Código das Avaliações referentes à propriedade rústica e urbana, não estarão a violar o disposto no artigo 168.º, n.º 2, da Constituição, por falta de definição do objecto, sentido e extensão.
Termos estes em que pede «a apreciação e declaração de insconstitucionalidade e ou ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, 14.º, 38.º e 50.º, alínea b), da Lei 2/92, de 9 de Março, [quando confrontadas] com as normas dos artigos 6.º, n.º 1, 92.º, 108.º, n.º 2, 168.º, n.º 2, e 240.º da Constituição da República e face à qualificação como 'leis com valor reforçado' das Leis das Finanças Locais e de Enquadramento do Orçamento do Estado».
2 - Convidado o órgão autor da norma a pronunciar-se, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio o Presidente da Assembleia da República, em 6 de Abril de 1992, oferecer o merecimento dos autos, tendo junto os números do Diário da Assembleia da República referentes à discussão e aprovação da proposta de lei 14/VI, que esteve na origem da Lei 2/92 [1.ª série, n.os 29, de 12 de Fevereiro de 1992, 30, de 13 de Fevereiro de 1992, 31, de 14 de Fevereiro de 1992, 32, de 25 de Fevereiro de 1992, e 33, de 26 de Fevereiro de 1992, e 2.ª série, n.º 13 (3.º suplemento), de 21 de Janeiro de 1992].
Na pendência do processo neste Tribunal, a Associação Nacional de Municípios Portugueses enviou um parecer do Prof. Doutor Gomes Canotilho e do Dr. Vital Moreira, que preconiza a declaração de inconstitucionalidade das normas impugnadas pelo Presidente da República, e o Governo enviou, por seu turno, dois pareceres, um dos Drs. Mário Esteves de Oliveira e António Lobo Xavier e outro do Prof. Doutor Fausto de Quadros, ambos no sentido da constitucionalidade dos normativos impugnados. Por decisão do relator, os três aludidos pareceres foram juntos ao processo.
3 - Nada obstante a que se aprecie o pedido do Presidente da República, passaremos à identificação, em síntese, das questões por ele colocadas:
A) Conformidade do disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Lei 2/92 face ao disposto no artigo 108.º, n.º 2, da Constituição (cumprimento das obrigações legais constantes da Lei das Finanças Locais);
B) Conformidade do disposto nos artigos 12.º e 13.º, n.º 1, da Lei 2/92 face ao disposto na Lei das Finanças Locais enquanto entendida como «lei com valor reforçado», à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição;
C) Conformidade do disposto no mesmo artigo 13.º, n.º 1, face ao disposto nos artigos 6.º, n.º 1, e 240.º, n.º 2, da Constituição (respeito pelos princípios da autonomia local, na sua expressão financeira, e da justa repartição dos recursos públicos);
D) Conformidade do disposto no mesmo normativo face ao disposto nos artigos 92.º e 108.º, n.º 2, da Constituição e face ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei 6/91, de 20 de Fevereiro (observância da regra da anualidade do Orçamento);
E) Consequentemente, conformidade face aos normativos constitucionais e legais atrás invocados do disposto nos artigos 13.º, n.º 2, e 14.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei 2/92;
F) Finalmente, conformidade do disposto nos artigos 38.º e 50.º, alínea b), da Lei 2/92 face ao disposto no artigo 168.º, n.º 2, da Constituição.
II
A - As normas impugnadas
1 - As normas impugnadas pelo Presidente da República são do seguinte teor:
Artigo 12.º
Critérios de distribuição do Fundo de Equipíbrio Financeiro pelos municípios
O artigo 10.º da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 10.º
Distribuição do Fundo de Equilíbrio Financeiro
1 - O montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF) atribuído aos municípios é repartido por três unidades territoriais, correspondentes ao continente, à Região Autónoma dos Açores e à Região Autónoma da Madeira, de acordo com os seguintes critérios:
a) 50% na razão directa da população residente;
b) 30% na razão directa do número de municípios;
c) 20% na razão directa da área.
2 - A distribuição do FEF pelos municípios, dentro de cada unidade territorial indicada no número anterior, obedece aos seguintes critérios:
a) 15% igualmente por todos os municípios;
b) 40% na razão directa da população residente e da média diária de dormidas em estabelecimentos hoteleiros e parques de campismo;
c) 5% na razão directa da população residente com menos de 15 anos de idade;
d) 15% na razão directa da área, ponderada por um factor relativo à amplitude altimétrica do município;
e) 5% na razão directa do índice de compensação fiscal (ICF) determinado em função das diferenças negativas entre a capitação de cada município e a capitação média, em cada unidade territorial, das colectas de contribuição autárquica do imposto sobre veículos e da sisa, ponderados pela população do município;
f) 10% na razão directa da rede viária municipal;
g) 5% na razão directa do número de freguesias;
h) 5% na razão directa do grau de acessibilidade.
3 - As Regiões Autónomas poderão apresentar à Assembleia da República propostas de lei tendentes à fixação de critérios de distribuição próprios a nível regional.
4 - A Lei do Orçamento do Estado fixará em cada ano as percentagens do FEF para transferências correntes e de capital, não podendo a percentagem relativa às segundas ser inferior a 40%.
5 - Os elementos e os indicadores para aplicação dos critérios referidos nos n.os 1 e 2 devem ser comunicados de forma discriminada por cada município à Assembleia da República, juntamente com a proposta de lei do Orçamento do Estado.
Artigo 13.º
Regime de cálculo e de distribuição do Fundo de Equilíbrio Financeiro para 1992 e 1993
1 - O artigo 26.º da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 26.º
Regime transitório de cálculo do FEF
Por força das alterações decorrentes da harmonização fiscal comunitária e das condições de convergência para a união económica e monetária, no ano de 1992 e no de 1993, em virtude de a nova estrutura do IVA não vigorar desde o início do ano de 1992, os valores do imposto sobre o valor acrescentado previstos para efeitos de aplicação da fórmula estabelecida no artigo 9.º são determinados com base na estrutura do IVA vigente em 1991, nos termos indicados no mapa I anexo aos orçamentos para esses anos em rubrica própria sob a denominação «Imposto sobre o valor acrescentado: base 1991», no capítulo 02 das receitas correntes do Estado.
2 - No ano de 1992 a aplicação dos novos critérios deverá assegurar a todos os municípios um crescimento mínimo de 7% no valor nominal do Fundo de Equilíbrio Financeiro relativamente ao recebido no ano anterior, efectuando-se as necessárias compensações através da verba obtida por dedução proporcional nas participações dos municípios com taxas de crescimento superior à variação média do Fundo de Equilíbrio Financeiro.
3 - ...
Artigo 14.º
Fundo de Equilíbrio Financeiro
1 - O montante global do Fundo de Equilíbrio Financeiro atinge 180 milhões de contos no ano de 1992.
2 - As transferências financeiras a que se refere o número anterior são repartidas entre correntes e de capital, na proporção de 60% e 40%, respectivamente.
3 - O montante global a atribuir a cada município no ano de 1992 é o que consta do mapa X em anexo.
Artigo 38.º
Mecenato cultural
1 - Fica o Governo autorizado a alterar os regimes do mecenato cultural, previsto no artigo 39.º do Código do IRC, e dos donativos a instituições do Estado que prossigam objectivos culturais, constantes dos artigos 40.º do Código do IRC e 56.º do Código do IRS, harmonizando e precisando o conjunto das actividades abrangidas e conferindo maior amplitude e eficácia aos mecanismos de concessão de apoios às acções culturais.
2 - Fica ainda o Governo autorizado a legislar no sentido da criação de um regime de mecenato cultural aplicável à organização «Lisboa, capital europeia de cultura 1994».
Artigo 50.º
Contribuição autárquica
Fica o Governo autorizado a:
a) ...
b) Aprovar o Código das Avaliações referentes à propriedade rústica e urbana por forma a conseguir-se uma maior equidade de tributação, um reforço das garantias dos contribuintes e uma determinação mais rigorosa da matéria colectável, através da aplicação de critérios objectivos;
c) ...
2 - Os normativos impugnados pelo Presidente da República correspondem, no essencial, a normativos equivalentes constantes da proposta de lei 14/VI, publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série A, n.º 13, com excepção das normas referentes ao n.º 1 do artigo 12.º e ao n.º 1 do artigo 13.º, as quais, no texto da iniciativa legislativa governamental, tinham o seguinte teor:
Artigo 12.º
Regime de distribuição do Fundo de Equilíbrio Financeiro para 1992
1 - No ano de 1992 fica suspensa a aplicação da fórmula de cálculo do FEF prevista no n.º 1 do artigo 9.º da Lei 1/87, de 6 de Janeiro.
Artigo 13.º
Fundo de Equilíbrio Financeiro
1 - O montante global do Fundo de Equilíbrio Financeiro é fixado em 178800000 contos para o ano de 1992.
B - Questões de enquadramento
1 - A primeira questão colocada pelo pedido do Presidente da República refere-se ao estatuto jurídico-constitucional do Fundo de Equilíbrio Financeiro. Trata-se, no essencial, de matéria que já anteriormente foi abordada pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.os 82/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 76, de 2 de Abril de 1986, e 361/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 8, de 10 de Janeiro de 1992.
Neste último aresto recorda-se que o Estado Português é unitário e «respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública», como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 6.º da Constituição da República Portuguesa.
Estamos, pois, num domínio de matérias basilar do nosso ordenamento constitucional, o da autonomia das autarquias locais, entendido como princípio fundamental de todo o edifício jurídico e consagrado como limite material do poder de revisão constitucional [artigo 288.º, alínea n)].
2 - A consagração da autonomia do que a Constituição designa como poder local (título VIII da parte III) constitui, assim o tem assinalado a doutrina, um elemento de significativa rotura com a realidade político-constitucional portuguesa antecedente.
Com efeito, a este propósito refere António Sousa Franco (Finanças do Sector Público. Introdução aos Subsectores Institucionais, Lisboa, 1991, pp. 455 e seguintes) que «o processo de centralização do poder do Estado vai afirmar-se mais claramente na fase do reforço do poder absoluto (séculos XVII e XVIII) e estrutura-se definitivamente no nosso Estado liberal que, ao invés dos Estados liberais europeus e americanos, se estabelece sobre a ruína do poder municipal (desde o Decreto 23, de 16 de Maio de 1832). Apesar da reforma dos municípios, que pretendia torná-los viáveis, só raras e breves experiências descentralizadas foram tentadas (Decreto de 31 de Dezembro de 1836 - «Código Administrativo» de Passos Manuel, logo revogado pela Lei de 29 de Outubro de 1840, e pelo «Código de Costa Cabral» de 16 de Março de 1842, mais centralizador). O Código de 6 de Maio de 1878 de novo descentralizou amplamente, reduziu ao mínimo a tutela administrativa, ampliou os poderes dos órgãos municipais e fez proliferar os impostos locais - mas logo em 17 de Julho de 1886, José Luciano de Castro introduziu fortes restrições financeiras, agravadas, durante a crise do final do século, pelos decretos de Dias Ferreira - 1892 - e João Franco - 1895 e 1896.
Com a implantação da República, o Partido Republicano Português promoveu a revogação do Código de 1896, tendo mantido em vigor, com algumas restrições, o Código de 1878. Mas, como refere o citado autor, «a lei revogada manteve-se parcialmente vigente, e foi completada por legislação parcelar (Lei 88, de 7 de Agosto de 1913; Lei 621, de 23 de Junho de 1916, ambas resultantes da proposta de lei apresentada à Assembleia Constituinte pelo ministro António José de Almeida em Agosto de 1911, e tratando da organização, funcionamento, atribuições e competências dos corpos administrativos). Logo após a Revolução de 28 de Maio de 1926, o Decreto com força de lei 12073, de 9 de Agosto de 1926, definiu, resolvendo dúvidas, quais as matérias a que se aplicava o Código de 1878 e quais as regidas pelo diploma de 1896 (dado que este vigorara sempre, como lei subsidiária do Código de 1878, de Rodrigues Sampaio), aproveitando para reforçar ligeiramente o pendor centralizador.
O regime do Estado Novo instituiu um sistema assente na participação da organização corporativa na estruturação do poder local e deste naquela, consagrado na Constituição de 1933, sobretudo a partir da revisão operada pela Lei 1885. Recorrendo de novo ao citado autor, «foi elaborado um anteprojecto, em 1934, pelo Prof. Marcello Caetano, aprovado (subordinando-se a bases aprovadas pela Assembleia Nacional) pelo Decreto-Lei 27424, de 31 de Dezembro de 1936, e revisto em função da experiência da sua execução, pelo Decreto-Lei 31095, de 31 de Dezembro de 1940 (rectificado e alterado ainda pelo Decreto-Lei 31826, de 14 de Julho de 1941). O Código Administrativo de 1940 marcou o perfil das autarquias locais durante o Estado Novo, tendo vigorado até à revolução de 25 de Abril de 1974 [...].
O sistema então instituído reforçou os poderes, como presidente do corpo administrativo e como autoridade policial, do presidente da Câmara, nomeado pelo Governo, o qual presidia a uma câmara eleita por sufrágio corporativo. Reforçava também os poderes gerais do governador civil. Era reduzida a gama de poderes e atribuições conferidos à freguesia e à autarquia supramunicipal no continente (província até 1959; distrito a partir da revisão constitucional deste ano). Restringiram-se as atribuições e competências das autarquias, adoptando uma visão centralizadora, baseada em argumentos políticos e técnicos, e reduzindo significativamente o montante dos recursos financeiros atribuídos às autarquias.
Como refere J. Casalta Nabais [A Autonomia Local (Alguns Aspectos Gerais), Coimbra, 1990, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, 1986, p. 50], «reagindo contra a tradicional centralização política do Estado Português, acentuada, em grande parte, à custa de uma praxis política e administrativa que vingou durante toda a vigência do Estado Novo, a Constituição de 1976 veio consagrar uma autêntica autonomia para as nossas comunidades territoriais locais».
Neste contexto, a Constituição reconhece às comunicades locais uma verdadeira autonomia face ao Estado-administração, constituindo as autarquias locais uma autêntica «administração autónoma», concebida como parte integrante da «organização democrática do Estado» (artigo 237.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e expressão do autogoverno das populações no âmbito de cada circunscrição territorial. Escreve, a propósito, J. Casalta Nabais (op. cit., p. 51, opinião, aliás, retomada no Acórdão 361/91 já citado, p. 384), que «as autarquias locais existem não para realizarem interesses gerais da organização central do Estado, mas para prosseguirem os interesses específicos das respectivas populações através de órgãos próprios [...]. Realização de interesses próprios (específicos das respectivas colectividades) através de órgãos próprios (eleitos pelos próprios componentes das colectividades), eis o que caracteriza as autarquias locais como administração autónoma (administração não estadual, portanto)».
Assim, e na síntese do citado autor, «a autonomia local no nosso actual texto constitucional está orientada, não apenas para a eficácia e a funcionalidade do conjunto da Administração Pública, mas também para a realização da democracia e equilíbrio dos diversos pólos de poder que o pluralismo social nos consente» (op. cit., pp. 53 e 54).
3 - Como elemento essencial (se não pressuposto mesmo) dessa autonomia a doutrina confere especial relevo à autonomia financeira das autarquias locais (cf. A. Sousa Franco, op, cit., pp. 461 e seguintes; Casalta Nabais, op. cit., pp. 88 e seguintes; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., Coimbra, 1985, pp. 387 e seguintes; Loris Tosi, Finanza Locale. Profili Giuridici, Milano, 1990, pp. 11 e seguintes).
A este propósito escreve Sousa Franco que «até esta Constituição, a existência de uma autonomia de finanças própria dos municípios se baseava fundamentalmente na existência de uma tradição de autonomia municipal. Foi esta tradição de municipalismo que tentou subsistir, embora contrariada pelo pendor excessivamente centralizador que se fez notar nos dois últimos séculos em Portugal» (op. cit., p. 462).
Ao consagrar em sede constitucional a autonomia financeira das autarquias locais, o legislador constituinte retoma essa tradição municipalista e integra-se no quadro de um Estado de direito democrático, referindo-se-lhe expressamente no artigo 240.º da nossa lei fundamental, subordinado à epígrafe «Património e finanças locais», cuja redacção decorre da sua versão originária de 1976 e é a seguinte:
Artigo 240.º
[...]
1 - As autarquias locais têm património e finanças próprios.
2 - O regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau.
3 - As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços.
A este propósito escreveu-se no já citado Acórdão 361/91 (p. 384):
A exigência constitucional de que as autarquias tenham património e finanças próprios traduz precisamente a garantia da autonomia financeira desses entes territoriais, pressuposto dos próprios poder e autonomia locais (sobre este ponto, v. o Acórdão 82/86 deste Tribunal, in Diário da República, 1.ª série, n.º 76, de 2 de Abril de 1985, p. 785). Os municípios, mais importantes autarquias locais presentemente existentes, devem dispor de meios financeiros suficientes para a realização das suas atribuições constitucionais e legais, devendo tais meios ter origem na lei, não podendo, por isso, os municípios receber quaisquer formas de subsídios ou comparticipações atribuídos de forma individualizada pela administração central (cf. artigo 13.º, n.º 2, da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, em que se prevê a concessão excepcional de auxílio financeiro pelo Estado, em casos bem delimitados. Tal concessão de auxílio financeiro acha-se regulamentada pelo Decreto-Lei 363/88, de 14 de Outubro - sobre este ponto, v. J. Casalta Nabais, estudo citado, p. 89). Como se exprime o artigo 9.º, n.º 2, da Carta Europeia da Autonomia Local, «os recursos financeiros das autarquias locais devem ser proporcionais às atribuições previstas pela Constituição ou por lei», devendo ainda pelo menos uma parte dos recursos financeiros autárquicos provir «de rendimentos e de impostos locais» (n.º 3 do mesmo artigo 9.º). A gestão desses meios patrimoniais há-de ser determinada autonomamente pelos órgãos livremente eleitos do poder local, não podendo ficar totalmente dependentes de actos administrativos ou de instruções do Estado, sem prejuízo de uma actividade tutelar deste. No que toca especialmente aos municípios, além de estar constitucionalmente assegurado que nas suas receitas próprias estão incluídas obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços (artigo 240.º, n.º 3, da Constituição, preceito aplicável a todas as autarquias locais), o artigo 254.º da lei fundamental prevê que os mesmos municípios «participam, por direito próprio e nos termos definidos pela lei, nas receitas provenientes dos impostos directos [...]».
Comentando o artigo 240.º da Constituição, Gomes Canotilho e Vital Moreira (op. cit., p. 387) referem que «a garantia da autonomia local requer, entre outras coisas, que as autarquias disponham de meios financeiros suficientes (para o desempenho das atribuições de que são constitucional ou legalmente incumbidas) e autónomos (a fim de o exercício de competências e atribuições não ficar dependente dos meios financeiros do poder central, como comparticipações, subsídios, etc.) e que gozem de autonomia na gestão desses meios (autonomia financeira)». E referindo-se expressamente ao conteúdo dessa autonomia financeira («finanças próprias»), entendem que ela «compreende, designadamente, o direito de: (1) elaboração, aprovação e alteração dos orçamentos próprios e dos planos de actividade; (2) elaboração e aprovação dos balanços e contas; (3) arrecadação e disposição de receitas próprias; (4) efectivação de despesas sem necessidade de autorização de terceiros; (5) gestão patrimonial própria» (op. cit., p. 388).
Abordando esta temática, Casalta Nabais (op. cit., p. 88) realça que «a autonomia financeira das autarquias locais [...] não tem que coincidir com a auto-suficiência económica, entendida como o poder de que um ente dispõe para decidir de todas as suas fontes de financiamento, nem que todas as suas receitas tenham de configurar-se como receitas próprias das comunidades locais, isto e receitas cujo montante se destine in toto ao conjunto ou a cada uma das categorias de autarquias em termos de se poder afirmar que estas constituem os verdadeiros titulares dessas receitas».
E mais adiante, depois de referir que «a autonomia financeira das comunidades locais não pode deixar de implicar que uma parte significativa das suas receitas se configure como receitas próprias» (op. cit., p. 89), escreve o aludido autor: «É certo que a nossa Constituição, ao contrário do que se verifica noutros ordenamentos constitucionais [casos da RFA e da Espanha] apenas estabelece como receitas (constitucionalmente) próprias - receitas obrigatórias ou reservadas às autarquias- as receitas provenientes da gestão do património autárquico e as cobradas pela utilização dos serviços autárquicos (artigo 240.º, n.º 3), ou, em relação aos municípios, ainda uma parcela, a definir por lei, das receitas provenientes dos impostos directos do Estado (artigo 254.º). Todavia, isto não impede que o legislador possa - e deva - atribuir às autarquias locais outras receitas, mormente impostos, que conduzam, designadamente, à justa repartição das receitas públicas pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau (artigo 240.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). Deste modo, se a Constituição não exige a existencia de impostos locais, também não impede que a lei os consagre: e efectivamente a lei (a Lei das Finanças Locais) tem consagrado, entre as receitas próprias dos municípios, diversos impostos municipais, sobretudo através da progressiva conversão em impostos municipais de certos impostos tradicionais do Estado.» (Pp. 90 e 91.) No mesmo sentido se pronunciam Gomes Canotilho e Vital Moreira (op. cit., p. 389).
Caracterizando a autonomia financeira das autarquias locais, Antóno Sousa Franco (Finanças Públicas e Direito Financeiro, 3.ª ed., Coimbra, 1990, p. 239) considera que ela assenta na consagração da sua independência orçamental e patrimonial (artigo 240.º, n.º 1, e 108.º da Constituição da República Portuguesa) e num princípio de redistribuição correctiva dos recursos (artigo 240.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). A esta luz escreve que «a Constituição optou, assim, por fixar apenas algumas grandes directivas, remetendo para a lei ordinária a definição ex novo do regime da autonomia financeira», o qual regime, nos termos da lei, de traduz num «sistema [...] altamente descentralizado (porventura de forma demasiado brusca e com escassez de controlos rigorosos); todavia - e de momento era talvez essa a única forma de sair da anterior estrutura centralista - não criou uma verdadeira fiscalidade local (salvo, talvez, nos cinco «impostos próprios») e não permitiu uma política local de despesas discricionárias, mas apenas a participação nas receitas tributárias do Estado» (op. cit., p. 240).
Por seu turno, comentando o n.º 2 do artigo 240.º da lei fundamental, Gomes Canotilho e Vital Moreira escrevem (op. cit., p. 388):
No n.º 2 consagra-se como princípio constitucional o equilibrio financeiro, primeiro, entre o Estado e as autarquias locais, e depois, das autarquias locais entre si. No primeiro caso, trata-se do equilíbrio financeiro vertical porque através dele se pretende assegurar uma distribuição equilibrada («justa repartição»), das receitas entre o Estado e as pessoas colectivas territoriais autónomas. No segundo caso, trata-se do equilíbrio financeiro horizontal, pois visa-se corrigir as desigualdades entre autarquias do mesmo grau. De acordo com a lei, este equilibrio financeiro - vertical e horizontal - e realizado principalmente através de um fundo de equilibrio financeiro [...] anualmente financiado pelo Orçamento do Estado e repartido pelos municípios de acordo com determinados critérios. O montante do financiamento do fundo pelo Estado há-de ser suficiente para alcançar a justa repartição das receitas públicas, tendo em conta, por um lado, o volume das receitas próprias dos municípios e, por outro lado, a extensão das suas tarefas e a dimensão das suas necessidades quando confrontadas com as do Estado.
4 - Neste contexto, a garantia de autonomia financeira das autarquias locais que a Constituição consagra depende do concreto regime acolhido na Lei das Finanças Locais a que alude o n.º 2 do artigo 240.º da Constituição, subordinado às finalidades da justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias (princípio da solidariedade) e da necessária correcção de desiguladades entre autarquias do mesmo grau (princípio da igualdade activa).
Após a entrada em vigor da Constituição foi aprovada a primeira Lei das Finanças Locais (LFL), a Lei 1/79, de 2 de Janeiro, que substituiu praticamente na totalidade a parte III do Código Administrativo de 1940.
No essencial a Lei das Finanças Locais de 1979 atribuiu aos municípios a receita de quatro impostos (contribuição predial rústica e urbana, imposto sobre veículos, imposto de turismo, imposto para o serviço de incêndios), além das derramas, impostos extraordinários a definir pelos órgãos das autarquias (até 10% da colecta liquidada da contribuição predial, contribuição industrial e imposto de turismo cobrados na área do município, quando o beneficiário fosse o concelho, ou até 10% da colecta da contribuição predial liquidada na área da freguesia, quando em benefício desta).
Para efeitos do disposto no artigo 255.º da Constituição (na redacção originária, actual artigo 254.º), que garantia aos municípios uma participação, por direito próprio e nos termos definidos pela lei, nas receitas provenientes dos impostos directos, a Lei 1/79 concedeu aos concelhos uma participação mínima de 18% na receita de diversos impostos estaduais sobre o rendimento, cuja distribuição era feita em função de indicadores representativos da população, da área e da capitação dos impostos directos cobrados na área de cada município.
Como refere António Sousa Franco (Finanças do Sector Público ..., cit., p. 478), «estas últimas receitas - que são transferências fiscais e não impostos - pretendem realizar o objectivo da perequação - realizar a justiça relativa, compensando desiguladades sem esquecer os encargos resultantes da diferente complexidade da administração municipal -, através de um Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF) cujos critérios de repartição acabaram, como era natural, por concentrar o essencial das discussões políticas sobre finanças locais (será que o orçamento aprovado dá cumprimento à lei? E qual o nível de transferências mais justo e adequado, em termos globais ou por tipos de benefícios - mais ou menos populosos; urbanos ou rurais; grandes ou pequenos; litorais ou interiores ...?)».
O modelo da primeira Lei das Finanças Locais assentou, assim, na atribuição de um relevante papel às transferências genéricas no domínio das finanças locais, fazendo assentar na fixação, na lei do orçamento, do montante da transferência global do Orçamento do Estado para as autarquias em função da despesa estadual nele estabelecida, a principal garantia de as autarquias obterem receitas seguras e necessárias para o desenvolvimento das suas actividades, evitando desta forma que recaísse sobre os impostos locais o papel central do financiamento do funcionamento e das acções a desenvolver pelos órgãos do poder local.
Este modelo pressupunha que a dimensão e a progressão dos recursos das autarquias locais andariam, desta forma, associadas à evolução tendencialmente expansionista do gasto público global, associação essa estabelecida por um conjunto de despesas base do cálculo correspondente (constante, nomeadamente, do artigo 8.º da Lei 1/79), cuja determinação foi, também ela, objecto de longa e acesa discussão.
Como refere a este propósito Sousa Franco, op. cit., p. 479, «cedo prevaleceu na prática uma interpretação que - mesmo seguramente contrária ao espírito e à letra da lei - reduzia o seu montante».
Com efeito, tendo em vista evitar a dependência das câmaras face ao Governo e deste modo limitar a possibilidade de este estabelecer, no plano daquelas trasferências, discriminações entre as diferentes autarquias em função da «amizade político-partidária» (cf. Sousa Franco, op. cit., p. 479), era a lei que fixava os critérios das transferências, que seriam assim um direito dos municípios, e não uma benesse do poder», uma vez que, excepção feita aos casos de calamidade pública ou de verificação de circunstâncias anormais (artigo 16.º, n.º 2, da Lei das Finanças Locais de 1979), eram proibidas todas as formas de comparticipação ou subsídios discricionários por parte do Estado, considerados como instrumentos de dependência das autarquias locais face à administração central (cf. Casalta Nabais, op. cit., p. 89).
5 - A primitiva Lei das Finanças Locais viria a ser alterada pelo Decreto-Lei 98/84, de 29 de Março, emitido ao abrigo da autorização legislativa contida na Lei 19/83, de 6 de Setembro. Este novo diploma não introduziu relevantes alterações estruturais, tendo conferido aos municípios a receita de outros dois impostos, o imposto de mais-valias (que começou a ser receita local em 1985) e a taxa municipal de transportes, que nunca existiu por falta de regulamentação, e posteriormente, com a adopção do imposto sobre o valor acrescentado, a partir de 1986, foi extinto o imposto de turismo, a que correspondeu uma compensação financeira igual a 37,5% do produto da cobrança do «IVA turístico» (cf. Sousa Franco, op. cit., p. 481).
A segunda Lei das Finanças Locais veio alterar também os critérios de determinação do Fundo de Equilíbrio Financeiro: o seu artigo 6.º fazia depender do Orçamento do Estado, em cada ano, a fixação do montante a transferir, definindo os respectivos critérios. A lei do orçamento fixaria, assim, em cada ano a percentagem global das despesas do Estado com base nas quais seria calculado o Fundo de Equilíbrio Financeiro, consignando-se no n.º 2 do aludido artigo 6.º quais as despesas correntes e de capital do Estado que relevariam para efeitos do referido cálculo.
Como se escreveu no Acórdão 361/91 (loc. cit., p. 384), citando o ensino de Sousa Franco, «em especial no que tocava às receitas próprias das autarquias locais [...], nas duas leis das finanças locais de 1979 e de 1984, estabelecia[-se] uma dependência global das finanças autárquicas do Orçamento do Estado, na medida em que a repartição das participações em impostos e a própria participação na receita global do Estado resultava de critérios estabelecidos anualmente no Orçamento do Estado (artigos 5.º e 8.º da Lei 1/79, de 2 de Janeiro; artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei 98/84, de 29 de Março). Sendo a repartição dos recursos feita anualmente pela lei do orçamento do Estado «em termos largamento discutidos e, no passado, contestados (ob. cit., 3.ª ed., p. 193), era manifesta essa dependência global».
6 - O regime jurídico das finanças locais viria a conhecer nova versão com a entrada em vigor da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, que Sousa Franco (op. cit., p. 482) considera «constitui[r] uma nova versão do mesmo texto básico».
A Lei 1/87 trouxe um aumento dos impostos locais, uma vez que transferiu para a esfera do poder local um imposto estadual cujo rendimento financeiro se equipara ao da contribuição predial (a sisa) e simultaneamente inovou no regime jurídico do Fundo de Equilíbrio Financeiro, uma vez que a transferência legal obrigatória a inscrever anualmente no Orçamento do Estado deixou de ser calculada em percentagem da despesa global do Estado e passou a ser calculada com base na receita do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), de acordo com a seguinte fórmula:
FEF(índice n) = FEF(índice n - 1) x (IVA(índice n)/IVA(índice n - 1))
em que:
n é o ano a que se refere o Orçamento do Estado;
n - 1 é o ano anterior;
IVA(índice n) é o valor do imposto sobre o valor acrescentado previsto no Orçamento do Estado para esse ano;
IVA(índice n - 1) é o valor do imposto sobre o valor acrescentado previsto no Orçamento do Estado para o ano anterior.
Comentando a actual Lei das Finanças Locais, escreveu-se no Acórdão 361/91 (loc. cit., p. 384):
A actual Lei das Finanças Locais, de 1987, diminuiu, em alguma medida, essa dependência [das finanças autárquicas face ao Orçamento do Estado], pois que procurou quantificar os critérios de repartição e consagrá-los em normas gerais e abstractas [cf. artigos 4.º, n.º 1, alíneas a), b) e f), e 8.º a 10.º; em matérias de FEF, a lei do Orçamento do Estado limita-se a fixar, em cada ano, as percentagens desse fundo para transferências correntes e de capital, não podendo, porém, a percentagem relativa às transferências de capital ser inferior a 40% (cf. artigo 10.º, n.º 2, da Lei 1/87) - sobre a história deste preceito, v. o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 3 de Dezembro de 1987, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 116, de 19 de Maio de 1988, pp. 4558 e 4559].
Analisando o regime vigente das finanças locais (decorrente da Lei 1/87 com as alterações do Decreto-Lei 470-B/88, de 19 de Dezembro), Sousa Franco (op. cit., pp. 487 e seguintes) sublinha como seus traços marcantes para o que ora nos interesse considerar:
a) A afirmação do princípio da titularidade e gestão pelas freguesias e municípios (e pelas futuras regiões administrativas) de património e finanças próprios, sujeita a tutela apenas nos casos previstos na lei (independência orçamental);
b) A concentração quase total da autonomia financeira local nos concelhos;
c) A procura de uma rigorosa racionalização das receitas municipais, no quadro de uma ampla descentralização, através:
c.1) Da simplificação das receitas fiscais (pela supressão dos anteriores adicionais, progressivamente incorporados nos impostos directos do Estado, pela supressão de muitos dos anteriores impostos e taxas locais ou pela atribuição aos municípios destas espécies de receitas de carácter fiscal);
c.2) Da consagração de receitas de origem fiscal de entre as quais as principais são:
Impostos locais autónomos, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei 1/87 (Lei das Finanças Locais) [contribuição predial rústica e urbana - substituída, após Lei 108/88, de 17 de Setembro (lei que criou o IRS e o IRC), pela contribuição autárquica, regulada pelo Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro -, imposto sobre os veículos, imposto para o serviço de incêndios - abolido pelo artigo 42.º da Lei 2/88, de 26 de Janeiro, passando a estar integrado no imposto para o Serviço Nacional de Bombeiros (cf. artigo 5.º do Decreto-Lei 388/78, de 9 de Dezembro, ratificado com alterações pela Lei 10/79, de 20 de Março, e alterado pelo Decreto-Lei 97/91, de 2 de Março), imposto de mais-valias, taxa municipal de transportes e sisa];
Participações, a fixar na lei do Orçamento do Estado para cada ano, no montante global das receitas do Estado [Fundo de Equilíbrio Financeiro - artigos 8.º a 10.º da Lei das Finanças Locais - e certas taxas referentes à primeira venda do pescado e a licenças concedidas pelo município - artigo 4.º, n.º 1, alíneas f) e g), da Lei das Finanças Locais];
Taxas locais (artigo 11.º da Lei das Finanças Locais) e tarifas e preços de serviços (artigo 12.º da Lei das Finanças Locais);
Derramas, incidindo sobre a colecta do IRC (cf. artigo 5.º da Lei das Finanças Locais, com a redacção data pelo Decreto-Lei 470-B/88, de 19 de Dezembro);
c.3) Da abolição de subsídios e comparticipações (artigo 13.º, n.º 1, da Lei das Finanças Locais), com crescentes excepções (n.º 2 do mesmo preceito) e de formas de cooperação técnica e financeira entre o Estado e as autarquias (artigo 14.º da Lei das Finanças Locais);
d) A formulação do objectivo da correcção das assimetrias regionais, fixando concretamente coeficientes gerais de ponderação da participação de cada município nas receitas dos impostos gerais do Estado e das participações nas receitas orçamentais (artigo 10.º da Lei das Finanças Locais);
e) A tendencial integração nas regras financeiras globais que regem a gestão e a contabilidade financeira do sector público (artigos 2.º e 23.º;
f) A dependência orçamental, uma vez que a repartição das participações em impostos e da participação na receita global do Estado resulta dos critérios estabelecidos anualmente no Orçamento do Estado (artigos 5.º, 9.º e 10.º da Lei das Finanças Locais), podendo dizer-se «que é a Lei do Orçamento do Estado que reparte, em cada ano, os recursos entre o Estado e o poder local, em termos largamente discutíveis e, no passado, contestados» (autor citado, op. cit., p. 496);
g) A definição de um regime lato e algo liberal de endividamento das autarquias locais (artigo 15.º da Lei das Finanças Locais).
7 - Neste contexto, Sousa Franco (op. cit., p. 529) sublinha que «a forma principal de participação nas receitas do Estado por transferência obrigatória é constituída hoje, tal como na Lei 1/79, pelo Fundo de Equilíbrio Financeiro [...]». E acrescenta:
O nome engana: não se trata de um verdadeiro fundo autónomo, mas de uma dotação global do Orçamento do Estado (o nome deriva de ter sido proposta no Parlamento a criação de um verdadeiro fundo autónomo, para gerir estas verbas com isenção e independência relativamente ao Governo, mas essa proposta não teve seguimento). O Fundo de Equilíbrio Financeiro é, pois, o montante a transferir obrigatoriamente para as autarquias pelo Orçamento do Estado. O seu regime - que dera lugar a grandes dúvidas e polémicas, nomeadamente entre as autarquias e o Governo - foi redefinido de modo a evitar essas polémicas e, do mesmo passo, a reduzir o montante mínimo (de 18% de certas verbas do orçamento estadual) fixado na Lei 1/79, mas nunca cumprido.
Caracterizando a natureza do Fundo de Equilíbrio Financeiro, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no parecer já citado, refere:
As transferências financeiras, efectuadas através da instituição do Fundo de Equilíbrio Financeiro, constituem atribuições automáticas do Estado em proveito das comunidades locais, realizadas através da fixação de montantes globais e de modalidades de repartição prévias e directamente fixadas pela lei.
A importância relativa, em índice quantitativo, da fonte de receitas dos municípios constituída pela participação segundo os mencionados critérios objectivos de repartição no Fundo de Equilíbrio Financeiro, por referência a outras fontes de receita municipal, nomeadamente as de origem fiscal imediata, transforma este mecanismo de transferência financeira num instrumento adequado a realizar o imperativo constitucional de justa repartição e da necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau.
Esta finalidade foi expressamente inscrita no preâmbulo da proposta de lei (proposta de lei 23/IV, publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 63, de 14 de Maio de 1986, pp. 2589 e seguintes) que, em conjunto com os diversos projectos de lei (projectos de lei n.os 11/IV, do PCP, 176/IV, do PRD, 223/IV, do CDS, e 225/IV, do PS, publicados, respectivamente, no Diário da Assembleia da República, n.os 2, de 13 de Maio de 1985, 51, de 11 de Abril de 1986, 70, de 30 de Maio de 1986, e 21, de 4 de Junho de 1986), na sequência do processo legislativo próprio, veio a constituir a actual (Lei 1/87) Lei das Finanças Locais. Com o elenco de critérios de distribuição do Fundo de Equilíbrio Financeiro procurou-se «prever apenas aqueles critérios que possam ser claramente quantificados [...] e que, ao mesmo tempo, possam corrigir distorções que resultam de uma distribuição assimétrica dos impostos cujo produto reverte na totalidade para as autarquias locais».
Por seu turno, o Tribunal Constitucional teve ocasião de recentemente se debruçar sobre a natureza do Fundo de Equilíbrio Financeiro, no já citado Acórdão 361/91 (loc. cit., p. 385), onde se escreveu:
Deve levar-se em conta que a Constituição não contém nenhuma imposição no que toca ao montante do FEF ou ao seu modo de cálculo. O artigo 240.º, n.º 2, da lei fundamental estabelece que «[o] regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau». O FEF é, assim, uma imposição constitucional ao legislador ordinário, visto que a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias é alcançada pela atribuição de transferências de fundos do Orçamento do Estado para as autarquias. Embora a Constituição não diga como é calculado o FEF, há-de entender-se que ele não pode ser reduzido a um montante tal que impeça «a justa repartição dos recursos públicos», no plano vertical, isto é, que comprometa o núcleo essencial da autonomia financeira local. Mas não pode falar-se de um montante certo de FEF garantido constitucionalmente, em cada ano económico.
8 - Levado a cabo este enquadramento atinente ao regime constitucional e legal da autonomia financeira das autarquias locais, é, naturalmente, à sua luz que passaremos doravante a apreciar as questões de constitucionalidade colocadas pelo pedido do Presidente da República.
C - A questão da conformidade do artigo 13.º, n.º 1, da Lei 2/92 face ao artigo 108.º, n.º 2, da Constituição
1 - Conforme resulta da redacção do preceito, o artigo 13.º da Lei 2/92 visa dar nova redacção ao artigo 26.º da Lei 1/87 (Lei das Finanças Locais), cuja redacção era a seguinte:
Artigo 26.º
Regime transitório de distribuição do FEF
1 - A partir de 1987 e até 1990, será distribuído do seguinte modo:
a) No 1.º ano de aplicação da presente lei, 80% do FEF serão repartidos pelos municípios de forma proporcional à respectiva participação na distribuição estabelecida para o ano de 1986, decrescendo esta percentagem de 20 pontos em cada um dos anos seguintes;
b) A parte remanescente em cada ano é distribuída de acordo com os critérios definidos no n.º 1 do artigo 10.º da presente lei.
2 - A aplicação dos novos critérios não pode em caso algum implicar redução do valor nominal do FEF que o município recebeu no ano anterior, devendo a eventual diferença ser coberta através de verba obtida por dedução proporcional nas participações dos municípios com taxas de crescimento superiores à média de variação do FEF nesse ano.
A norma em causa visava estabelecer um regime progressivo de aplicação dos novos critérios de distribuição do montante global do Fundo de Equilíbrio Financeiro pelos municípios no período compreendido entre 1987 e 1990, conferindo simultaneamente certas garantias aos municípios decorrentes da possibilidade de resultar do novo quadro legal introduzido pela Lei 1/87 uma redução do valor nominal do Fundo de Equilíbrio Financeiro que eles haviam recebido no ano anterior.
Do teor da norma resulta desde logo evidente que o preceito em causa caducou no termo do ano de 1990 e que se reportava não ao regime de determinação do montante global do Fundo de Equilíbrio Financeiro, a que alude o artigo 8.º da mesma Lei 1/87, mas sim ao regime de distribuição desse montante global pelos municípios à luz dos critérios do artigo 10.º do mesmo diploma.
Neste contexto, o artigo 13.º da Lei 2/92 não substitui a redacção do artigo 26.º da Lei 1/87 (que já caducara e que se referia a matéria diversa), mas antes adita à Lei 1/87 um novo artigo 26.º, subordinado à epígrafe «Regime transitório de cálculo do FEF». O único ponto em comum entre os dois preceitos (o originário e o que ora decorre da Lei 2/92) é que ambos contêm uma vocação meramente transitória, o primeiro para o período compreendido entre 1987 e 1990 e o segundo para os anos de 1992 e 1993.
Como já referimos (cf. supra II, B, n.º 6), a fórmula de cálculo do montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro consta do artigo 9.º da Lei 1/87 e assenta nos valores do IVA previstos no Orçamento do Estado para o ano a que se reporta o cálculo (IVA(índice n)) e no ano imediatamente anterior (IVA(índice n - 1)). Logo, a sua aplicação sem alterações ao ano económico de 1992 significaria que o montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro deveria resultar do produto do montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro de 1991 pela taxa de acréscimo do IVA previsto para 1992 em relação ao valor do IVA previsto para 1991.
Conforme resulta do capítulo 02, grupo 02, artigo 02 do mapa I anexo à lei do orçamento (referente às receitas correntes do Estado), o montante global do IVA previsto para 1992 é de 900 milhões de contos, sendo a previsão da receita em IVA de acordo com a estrutura que este imposto tinha em 1991 (IVA: base 1991) de 690 milhões de contos, o que significa que a receita acrescida daquele imposto se cifra num montante previsto de 210 milhões de contos, atribuído no mesmo mapa a «harmonização comunitária».
Como refere François Coly («CEE et finances des collectivités locales», in AJDA - Droit Administratif, n.º 12, Dezembro de 1991, p. 866), «a harmonização das fiscalidades visa reduzir as disparidades entre os Estados a fim de suprimir os entraves que a fiscalidade pode opor à livre circulação de pessoas, de capitais e de mercadorias e às relações de concorrência fiscal entre os Estados. Ela visa, além disso, racionalizar as regras e os efeitos dos impostos entre os Estados». E, noutro passo, abordando o caso francês (contrastante do português por aí a «harmonização» determinar uma redução do IVA e não um aumento), refere que «é sobretudo a harmonização dos impostos nacionais que, no momento presente, é susceptível de afectar a fiscalidade local, em particular a harmonização do IVA. A generalização e a racionalização do IVA comportam um grande número de consequências de ordem geral. De forma mais precisa, as propostas actualmente formuladas pela Comissão das Comunidades não deixarão de ter efeito sobre os recursos locais. Trata-se, sobretudo, da proposta adoptada em Junho de 1991 de reduzir o número de taxas do IVA a duas e a limitação dos diferenciais entre os Estados membros a 6 pontos para a taxa normal e a 5 para a taxa reduzida, que comporta o risco de afectar os recursos das colectividades territoriais francesas».
Revertendo à análise do nosso sistema, conforme resulta do mapa X anexo ao Orçamento do Estado para 1991 [Diário da República, 1.ª série, n.º 298, de 26 de Dezembro de 1990, p. 5256-(62) a p. 5256-(64)], o montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro para 1991 foi de 157,5 milhões de contos, sendo, por sua vez, de 608 milhões de contos o montante de IVA previsto para o mesmo ano de 1991.
Neste quadro, revertendo a fórmula originária do artigo 9.º da Lei 1/87 (FEF(índice n) = FEF(índice n - 1) x IVA(índice n)/IVA(índice n-1)),
teríamos:
FEF 1992 = FEF 1991 x IVA 1992/IVA 1991
ou seja:
FEF 1992 = 157,5 x 900/608 (milhões de contos)
logo:
FEF 1992 = 233,1 milhões de contos
Por contraponto, em função da alteração produzida pelo artigo 13.º da Lei 2/92, teremos:
FEF 1992 = FEF 1991 x (IVA base 1991/IVA 1991)
ou seja:
FEF 1992 = 157,5 x 690/608 (milhões de contos)
logo:
FEF 1992 = 178,7 milhões de contos
Na realidade, contudo, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, da Lei 2/92, o montante global do Fundo de Equilíbrio Financeiro transferido foi de 180 milhões de contos, distribuído de acordo com o mapa X anexo àquela lei [cf. Diário da República, 1.ª série, n.º 57, de 9 de Março de 1992, p. 1214-(94) a p. 1214-(97)].
Do exposto resulta que a Lei 2/92 procedeu a uma alteração, com vocação transitória (para os anos económicos de 1992 e 1993), da fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro substituindo o valor «IVA 1992» pelo valor «IVA base 1991», sendo este último determinado em termos previsionais com base na estrutura vigente do IVA em 1991, isto é, sem entrar em linha de conta com as alterações deste imposto no ano de 1992 decorrentes da harmonização (fiscal) comunitária no quadro da preparação da união económica e monetária. Assim, o valor do «IVA base 1991» é o que resulta da previsão de cobrança em IVA no ano de 1992 se a estrutura (designadamente base de incidência e taxas aplicáveis) do imposto se tivesse mantido inalterada. Excluída desse valor fica a previsão de receita em IVA para o ano de 1992 que decorre do alargamento da sua base de incidência e da alteração das taxas operadas pela Lei 2/92, no valor de 210 milhões de contos.
Donde resulta que, se nos termos do modelo definido na Lei das Finanças Locais a variação anual do Fundo de Equilíbrio Financeiro é função da variação do valor do montante do IVA previsto em relação ao do ano anterior, no modelo da Lei 2/92 o Fundo de Equilíbrio Financeiro não aumenta na mesma proporção do aumento do IVA previsto para o ano de 1992, mas sim apenas na proporção em que idealmente teria aumentado o IVA se este imposto tivesse mantido a sua estrutura de 1991, o que equivale a dizer em termos práticos que o Fundo de Equilíbrio Financeiro regista um aumento efectivo inferior em cerca de 50 milhões de contos ao que resultaria da mera aplicação da fórmula contida na Lei 1/87.
E se é verdade que a Lei 2/92 garante, na prática, que haverá um aumento das receitas municipais decorrentes do Fundo de Equilíbrio Financeiro em termos nominais (o montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro passa de 157,5 milhões de contos para 180 milhões de contos, o que representa um aumento de 14,2% em termos constantes) e assegura a todos os municípios um crescimento mínimo de 7% no valor nominal do Fundo de Equilíbrio Financeiro (nos termos do n.º 2 do seu artigo 13.º), não é menos verdade que os municípios vão receber, nesta sede, em termos globais, uma verba inferior em 50 milhões de contos à que receberiam se, para efeitos do cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro, relevassem integralmente as receitas do IVA previstas para 1992.
Isto equivale a dizer que o aumento da receita em IVA em 1992 decorrente da denominada «harmonização comunitária» reverte exclusivamente em favor do Estado, sem que tal significativo aumento tenha qualquer repercussão no montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro transferido pelo Estado para as autarquias locais.
Assim sendo, a questão que está colocada ao Tribunal é a de saber se esta decisão do poder político se configura como desconforme à Constituição, ou seja, se a nossa lei fundamental consente à Assembleia da República uma tal margem de decisão consubstanciada na alteração da Lei das Finanças Locais na própria Lei do Orçamento do Estado, decisão essa que comporta repercussões inelutáveis no montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro constante desta mesma lei orçamental.
2 - Para resolver a questão assim colocada importa chamar à colação, conforme consta do pedido do Presidente da República, dois parâmetros jurídico-constitucionais, em relação aos quais há que aferir o estatuto jurídico da Lei das Finanças Locais: por um lado, o preceito do n.º 2 do artigo 108.º da Constituição, quando dispõe que «o Orçamento é elaborado de harmonia com as grandes opções do plano anual e tendo em conta as obrigações decorrentes da lei ou de contrato», e por outro o alegado «valor reforçado» da Lei das Finanças Locais, resultante do disposto nos artigos 115.º, n.º 2, 280.º e 281.º da Constituição.
Consideremos desde já aquele primeiro parâmetro, para cuja densificação se afigura imprescindível encontrar um conceito constitucionalmente adequado de «orçamento». No essencial, e seguindo os critérios fornecidos quer pela doutrina jurídico-constitucional quer jusfinancista, este conceito girará em torno da natureza da lei do orçamento, do âmbito do seu conteúdo normativo e das limitações atinentes à sua elaboração e aprovação.
2.1 - Quanto à primeira vertente, Sousa Franco (Finanças Públicas ..., cit., p. 308), define Orçamento, «em Finanças Públicas, como uma previsão, em regra anual, das despesas a realizar pelo Estado e dos processos de as cobrir, incorporando a autorização concedida à Administração Financeira para cobrar receitas e realizar despesas e limitando os poderes financeiros da Administração em cada ano».
Esta noção, tomada isoladamente, inculca a ideia de que o Orçamento se reconduz apenas a um quadro contabilístico, a uma contabilização previsional de receitas e encargos do Estado, dentre estes, desde logo, os decorrentes de compromissos anteriormente assumidos pelo Estado, seja por via legal seja por via contratual.
Nesta óptica, a questão da natureza da lei do orçamento foi tradicionalmente equacionada em torno do denominado «duplo conceito de lei», formulado já em 1867 por Von Stockmar (em Z. f. deutches Staatsrecht, p. 203) e um pouco mais tarde sistematizado por Laband (Budgerecht, 1871) enquanto fundamento jurídico e político da extensão da competência do Executivo na elaboração do orçamento no Império Alemão, tendo por fundamento o contraponto entre lei em sentido formal (mera exterioridade de lei) e lei em sentido material (com verdadeiro e próprio conteúdo normativo), considerando-se então a lei (de aprovação) do orçamento como uma lei meramente formal (confinada ao aludido quadro contabilístico), de que resultariam, desde logo, significativas restrições quanto ao direito de iniciativa dos deputados e quanto à amplitude dos poderes decisionais do Parlamento face à própria proposta do Executivo. Restrições essas que levavam ao esvaziamento dos poderes de apreciação do Parlamento e à afirmação de um protagonismo dominante do Executivo na área orçamental.
Esta concepção perdurou até aos nossos dias, com maior ou menor acolhimento, quer no plano doutrinário quer no próprio âmbito normativo, conforme recorda Paolo Biscaretti di Ruffia (Derecho Constitucional, Madrid, 1973, p. 408) quando escreve que «a actual lei do orçamento dos Estados modernos já não se consubstancia na determinação particularizada dos impostos em concreto (que são estabelecidos normalmente em leis com carácter permanente), mas, antes, na simples autorização ao governo para cobrar receitas e proceder às despesas em conformidade com os orçamentos de previsão contidos nessa própria lei. Esta, portanto, não se destina a regular as relações entre o Estado e os cidadãos nem a modificar o direito existente, estabelecendo normas jurídicas inovatórias; apresenta-se, por conseguinte, como uma lei já não material, mas simplesmente formal (e esse carácter resulta garantido de modo preciso pelo artigo 81.º da Constituição [italiana de 1946] que proíbe que em tal lei se 'estabeleçam novos impostos e novas despesas')».
Nesta visão das coisas, chegou-se mesmo a afirmar que «a lei do orçamento é um acto materialmente imputável ao poder executivo» (cf. A. Martínez Lafuente, «Ley de presupuestos e inconstitucionalidad», Civitas - Revista Española de Derecho Financiero, n.º 25, Janeiro-Março de 1980, p. 58), daí decorrendo inelutáveis consequências restritivas quanto aos poderes de decisão do Parlamento quer face à proposta governamental quer face ao ordenamento jurídico preexistente, em relação ao qual o Orçamento se encontrava numa situação de estrita sujeição ou subordinação.
Mas tal concepção desde muito cedo foi submetida a diversas críticas, de que dá conta Gomes Canotilho («A lei do orçamento na teoria da lei», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1979, p. 552) quando sublinha que a doutrina do «duplo conceito de lei» era historicamente datada («um produto do positivismo estadual e do método jurídico-formal»), e acrescenta que «como Heller logo demonstrou, a teoria do duplo conceito de lei era teoricamtne insustentável», uma vez que «o conceito de lei cobre fundamentalmente as normas jurídicas superiores emanadas da legislatura popular», pelo que «não se poderia falar de leis meramente formais, porque toda a deliberação emanada sob a forma legislativa do Parlamento constitui uma norma superior de direito. Numa palavra: os actos legislativos das assembleias representativas têm força e valor de lei. Daí que hoje a doutrina tenda a considerar superado o duplo conceito de lei, ancorado em dados sobretudo formais, como intuíra logo Haenel, que, ao opor-se ao conceito labandiano de lei, considerava já que todo o acto revestido da forma de lei leva em si mesmo um conteúdo jurídico».
A matriz formalista da teoria do «duplo conceito de lei», e consequentemente da Lei do Orçamento como mera lei formal, contudo, projectou-se em diversas interpretações acerca da natureza jurídica da lei do orçamento.
Seguindo de perto a recensão de Gomes Canotilho (op. cit., pp. 553 e seguintes), foi o caso, desde logo, dos que viam na lei do orçamento uma lei vinculada (legal e constitucionalmente), um tipo de «legislação não-livre», atenta a impossibilidade de a lei do orçamento revogar leis materiais preexistentes (cf. Jellinek, Gesetz und verordnung, Tubingen, 1887, p. 203, e Orlando, Principii di Diritto Costituzionale, Firenze, 1913, p. 165).
Por outro lado, conhecem-se as posições dos que filiavam a natureza da lei do orçamento nas denomninadas «leis de autorização» ou «leis de aprovação» (Genehmigungsgesetz), entre os quais Santi Romano (Principii di Diritto Costituzionale Generale, Milano, 1947, p. 297) e Zanobini (Corso di Diritto Amministrativo, vol. IV, Milano, 1958, pp. 442 e seguintes), visão esta que assentava na destrinça entre o orçamento como acto administrativo sob o ponto de vista formal, que não perderia esta natureza pelo facto de ter sido aprovado por lei, e a lei de aprovação, considerada como lei meramente formal e que se destinaria tão-somente a autorizar o governo a efectuar as despesas e a arrecadar as receitas num dado ano económico (cf. Gomes Canotilho, op. cit., p. 561).
A concepção da lei do orçamento como lei de organização filiava-se, por seu turno, na mesma matriz formalista e, de igual modo, apontava para o reforço da reserva da esfera de acção governamental em matéria orçamental face ao Parlamento, uma vez que indentificava a lei do orçamento com as leis que estabelecem e regulam o funcionamento dos serviços da Administração, lei do orçamento essa que se referia, pela sua vocação global, ao conjunto da máquina administrativa do Estado. À lei orçamental, neste modo de ver, competiria «uma função de integração do direito objectivo vigente. A lei orçamental conferiria executoriedade às leis financeiras preexistentes que assim assumiriam a natureza de leges imperfectae» (Gomes Canotilho, op. cit., p. 565, que reporta esta concepção a Ingrosso, Diritto Finanziario, Napoli, 1956, p. 56, e a Gotz, Recht der Wirtschaftssubventionen, Berlim, 1966, p. 299).
Por outro lado ainda, e, no dizer de Gomes Canotilho (op. cit., p. 567), «intuída dispersamente pela doutrina», surge a concepção da lei do orçamento como lei formal de controlo político do Executivo, isto é, lei emanada no exercício de funções políticas (cf. Raciopi, «Commento allo statuto del Regno», citado por Gonzalez Garcia, Introducción al derecho presupuestario, Madrid, 1973, p. 155) que acarretava como consequência a exclusão no controlante dos poderes de modificação, revogação ou anulação do próprio acto controlado, porque tais poderes são «intrínsecos a um poder activo e principal» (op. cit., p. 568).
Assente na destrinça entre «poder orçamental» e «poder normativo» (cf. Jean-Luc Guièze, Le partage des compétences entre la loi et le règlement en matière financière, Paris, 1974, p. 20), certa doutrina qualificou as leis orçamentais como «leis complexas», porque paralelamente aos preceitos meramente autorizativos da cobrança de receitas e da efectivação de despesas (lei formal orçamental), outros nela figuram que modificam determinados impostos ou fixam regras para a sua liquidação e cobrança (lei material tributária). «[A] teoria francesa do acto jurídico complexo procurou responder às dificuldades que em certos pontos suscitava a teoria da lei formal do orçamento. Tendo em conta o fenómeno dos cavaliers budgétaires e ainda o facto de em certos países vigorar o princípio da anualidade do imposto, Duguit fora obrigado a considerar que, nestes casos, o orçamento continha regras legislativas em sentido material.» (Gomes Canotilho, op. cit., p. 569.)
Traçada que foi esta panorâmica das principais correntes doutrinárias sobre a natureza da lei do orçamento, e sem entrar aqui e agora em pormenores da apreciação crítica de cada uma delas, apreciação crítica essa que pode ser desenvolvidamente analisada na obra de Gomes Canoltilho que temos vindo a seguir de perto, cumpre tentar encontrar uma primeira linha de conclusões acerca da natureza daquela lei à luz do nosso ordenamento constitucional.
Mas antes disso, parece relevante trazer à colação ainda breves referências acerca do enquadramento da lei do orçamento em alguns ordenamentos constitucionais, as quais podem ajudar a uma compreensão mais cabal da função do orçamento no ordenamento jurídico global.
2.2 - Com efeito, em diversos ordenamentos constitucionais encontramos disposições reguladoras do estatuto jurídico da lei do orçamento que indiciam, em certa medida e em grau variável, a subsistência de concepções alicerçadas nessas doutrinas de inspiração formalista (para um elenco mais exaustivo deste casos cf. U. Rogari, II bilancio dello Stato, CEDAM, Padova, 1977, e G. Iannitto, «Limiti costituzionali alla Legge di Bilancio», in Archivio Finanziario, IX, 1960, p. 158).
Desde logo, o caso da Itália, já referido, cuja Constituição, no seu artigo 81.º, dispõe que «na lei de aprovação do orçamento não se podem estabelecer novos impostos e novas despesas», o que leva Domenico da Empoli, Paolo de Ioanna e Giuseppe Vegas (Il Bilancio dello Stato. La Finanza Pubblica trà Governo e Parlamento, Milano, 1988, p. 162) a escreverem que «o orçamento não é nada mais, e não pode ser outra coisa, senão uma fotografia das receitas e das despesas públicas: em virtude desta sua característica pode ser o instrumento adequado a valorar com precisão o custo de uma determinada lei ou de uma estrutura administrativa, mas não pode modificar o conteúdo substancial de um acto legislativo preexistente, ou seja, o título jurídico na base do qual uma receita ou uma despesa são inscritas nas suas disposições» (no mesmo sentido, cf. S. Scoca, «L'art. 81 della Costituzione», in Civitas - Revista Española de Derecho Financiero, 1950).
De igual forma, a Lei Fundamental de Bonn, no n.º 4 do seu artigo 110.º, dispõe que «a lei orçamental só pode conter disposições relacionadas com as receitas e despesas da Federação e com o período para o qual ela é votada» (Bepackungsverbot), não sendo admissível «a inclusão de preceitos ou normas no Orçamento - a juntar ao seu conteúdo típico, composto pelos mapas das receitas e das despesas» (cf. A. Lobo Xavier, O Orçamento como Lei. Contributo para a Compreensão de Algumas Especificidades do Direito Orçamental Português, Coimbra, 1990, p. 140; sobre o regime jurídico do orçamento na Alemanha, cf. ainda K. Stern, Staatsrecht, II, pp. 1252 e seguintes, R. Mussgnug, Der Haushaltsplan als Gesetz, Gottingen, 1967, p. 307, e E. A. Piduch, Bundeshaushaltsrecht - Kommentare, Berlin, 1990, cap. II, p. 15).
Por seu turno, a Constituição Espanhola, no n.º 7 do seu artigo 134.º, estipula que «a Lei do Orçamento não pode criar tributos. Pode modificá-los quando uma lei tributária substantiva assim o preveja». Alguns autores vêem nesta disposição a sobrevivência da teoria da natureza meramente formal da lei do orçamento (cf. A. Martínez Lafuente, «Ley de presupuestos e inconstitucionalidad» in Civitas - Revista Española de Derecho Financiero, n.º 25, Janeiro-Março 1980, p. 58, A. Amatucci, «La finanza pubblica nella Costituzione spagnola del 1978», in Rivista di Diritto Finanziario e di Scienza Finanziaria, Dezembro, 1980, p. 546), mas outros entendem, pelo contrário, que se trata de uma «lei ordinária com eficácia plena e algumas especialidades quanto ao seu processo de aprovação» (cf. C. Albiñana García-Quintana, «La Constitución Española y el presupuesto del Estado» in Revista Internacional de Ciencias Administrativas, n.º 1, 1980, p. 27, A. Cayón Galliardo, «Legalidad y control del gasto publico» in Presupuesto y gasto publico, n.º 1, 1979, p. 88, A. Rodríguez Bereijo, «La Ley de Presupuestos en la Constitución Española de 1978», in Hacienda y Constitución, IEP, Madrid, 1979, pp. 231 e seguintes, e Ramón Falcón y Tella, «La habilitación a las Leyes de presupuestos para modificar tributos», in Civitas - Revista Española de Derecho Financiero, n.º 33, Janeiro-Março, 1982, p. 31).
E em França, a Ordornance n.º 59-2, de 2 de Janeiro, que, como refere A. Lobo Xavier («O Orçamento como lei», cit., p. 140), «faz parte do que, naquele país, é considerado com um 'bloc de constitucionnalité', define de forma taxativa o conteúdo das 'lois de finances de l'année', limitando-se a admitir a inclusão nestas de preceitos estreitamente relacionados com a sua natureza e função (cf. artigos 1.º e 31.º)» - cf. Loic Philip, «Le droit constitutionnel des finances publiques», in Revue Française de Finances Publiques, 1984, p. 51, A. Amselek, Le budget de l'État sous la Vème République, CGDJ, Paris, 1967, p. 181, e Jean-Luc Guièze, Le partage des compétences en matière financière, cit., p. 20).
Esta panorâmica, necessariamente breve e incompleta, do estatuto constitucional do orçamento em alguns ordenamentos contemporâneos sublinha, de forma ainda mais evidente, que importa construir um conceito de orçamento reportável não só ao conjunto do sistema constitucional em que se insere, mas também às concretas funções que nesse sistema o orçamento desempenha. Conceito esse menos tributário de uma (problemática) natureza genérica do orçamento inerente ao Estado de direito democrático, mas antes construído com base nos dados concretos de cada país, aferido, por um lado, à natureza da própria lei do orçamento e, por outro, à amplitude do seu conteúdo, decorrente dos poderes de apreciação e deliberação reconhecidos às correspondentes instituições parlamentares.
Como sintetiza António Lobo Xavier («O Orçamento como lei», I parte, in Boletim de Ciências Económicas da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. XXXIII, 1990, p. 258), depois de historiar a evolução do princípio da legalidade fiscal e da teoria do gasto público, e da sua relação mútua, «as competências financeiras dos parlamentos já não são focadas sobretudo pelo ângulo da sua feição garantística - e já não são modelos de afirmação política -, sobressaindo mais a sua vertente organizatória: os actos normativos que versam sobre os elementos essenciais dos impostos ou que exprimem a decisão orçamental são da competência das câmaras, não porque assim se limita o poder executivo a benefício da liberdade e propriedade dos cidadãos, mas porque os domínios mais relevantes para a vida do Estado democrático carecem do pronunciamento da instituição parlamentar». Pelo que o citado autor distingue dois diferentes momentos históricos quanto ao significado jurídico-político do orçamento: «Então encontraremos um 'orçamento-registo-limite', no período das finanças clássicas, e um 'orçamento-programa-intervenção', como instrumento característico da actividade financeira moderna. Do mesmo modo, havemos de destrinçar a época em que o princípio da legalidade significava autotributação daquela em que sobressai antes como mero aspecto da organização funcional das finanças democráticas.»
2.3 - O critério da natureza e da função da lei do orçamento no estádio actual de evolução do Estado social de direito tem sido, assim, significativamente cotejado com o princípio da reserva do Parlamento para a sua aprovação (Parlamentsvorbehalt), não apenas, como se referiu, na perspectiva clássica garantística dos direitos e liberdades dos cidadãos mas também (e talvez sobretudo) como expressão da função de direcção política estadual, ou, dito de outro modo, como elemento relevante da função parlamentar de comparticipação no indirizzo político do Estado.
Como eloquentemente refere Gomes Canotilho (op. cit., p. 574) «se a lei é, muitas vezes, o instrumento formal da expressão da actividade do Parlamento e se, além disso, revestem a forma de lei certos actos de direcção política, a reserva do Parlamento pode existir mesmo que o acto parlamentar não se exteriorize sob a forma de lei. Nesta perspectiva se deveria situar a intervenção do Parlamento na fixação do plano orçamental». Como Heckel observou, o orçamento é «um programa global para a condução da política económica estadual». A fixação do plano financeiro é um acto de direcção do Estado (Akt der Staatsleitung) que exige a participação do órgão político democraticamente legitimado e representativo - o Parlamento. «Para seguidamente concluir, versando especificamente o caso português, que o artigo 164.º da Constituição, ao referir-se à competência política e legislativa da Assembleia da República, inclui nesta competência a aprovação das leis do plano e do orçamento - alínea g) [actual alínea h)]. O facto de se tratar de uma competência política significa que, nos termos constitucionais, o acto orçamental exige uma participação necessária do Parlamento - reserva do Parlamento. O exercício desta competência política é indelegável. Por outro lado, o orçamento é aprovado através da lei - artigo 164.º, alínea g) [actual alínea n)] -, facto de que se deduz a indispensabilidade de reserva absoluta de lei formal. Coincidem, pois, no nosso sistema constitucional, a reserva do Parlamento e a reserva de lei na aprovação do plano financeiro.» (Op. cit., p. 576.)
Em sentido convergente pronuncia-se também Cardoso da Costa («Sobre as autorizações legislativas da lei do orçamento» in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, III, Coimbra, 1983, p. 415), quando afirma que «a intervenção parlamentar no processo de elaboração do orçamento não esgota o seu significado - a sua 'função constitucional' - no preenchimento de um simples pressuposto 'formal' da actividade financeira do Executivo, traduzido unicamente num juízo externo ou extrínseco, e a ele limitado, que visa possibilitar a tomada das decisões substanciais nessa matéria por outro órgão de soberania. Decerto que o Parlamento se pronuncia sobre uma proposta que não parte dos seus próprios membros, mas lhe é submetida pelo Governo - e nisto vai, também se sabe, uma manifestação típica da matriz organizatória básica dos Estados democráticos que é o princípio da divisão dos poderes e o sistema de checks and balances que o mesmo princípio implica. Confrontado com essa proposta, todavia, o Parlamento é chamado a formular um juízo intrínseco sobre o respectivo mérito, e a co-assumir ou rejeitar as opções políticas nela contidas - de tal modo que estas se firmam com a sua decisão e passam a exprimir aquele 'concerto' entre os poderes do Estado de que já falava Montesquieu como uma necessária exigência justamente da separação destes últimos. Quer isto dizer, pois, que o Parlamento, ao votar as propostas financeiras do Executivo, toma uma decisão política de indiscutível carácter ou conteúdo material».
Face a este quadro de análise, o citado autor conclui, pois, que «a lei do orçamento não assume o carácter de mera 'lei de autorização', de 'aprovação', ou de 'controlo', mas incorpora ou traduz-se numa decisão político-normativa verdadeiramente substancial; ao aprová-la, a Assembleia da República não se limita a permitir que o Governo elabore o documento orçamental, mas comparticipa na definição e, em último termo, fixa ela própria as linhas fundamentais da política que através da aplicação e execução desse documento vai ser prosseguida. Em suma: muito mais do que uma simples autorização, o que a lei do orçamento incorpora é a definição (parlamentar) de um quadro global, e que se pretende coerente, da política financeira, e mesmo económico-financeira, a adoptar em determinado ano» (op. cit., pp. 422 e 423).
Sublinhando a mesma vertente da questão, Sousa Franco (Finanças Públicas ..., cit., p. 311) escreve que «o Orçamento é uma autorização política que visa conseguir duas ordens de efeitos:
Garantia dos direitos fundamentais: assegura-se através da disciplina orçamental que a propriedade privada só é tributada na medida em que tal seja consentido pelos representantes dos proprietários (os deputados); numa óptica menos liberal, garante-se que os rendimentos só são tributados para cobrir os gastos públicos mediante decisão dos representantes dos titulares desses rendimentos - trabalhadores, proprietários, capitalistas (que, como cidadãos, são representados pelos deputados no Parlamento);
Garantia do equilíbrio dos poderes, já que através do mecanismo da autorização política, a cargo das Assembleias Parlamentares, a estas atribui um importante papel de controlo do Executivo».
E noutro passo (op. cit., p. 361) refere o mesmo autor que «na Constituição de 1976, consideramos a lei do orçamento uma lei-plano, ao invés da antiga lei de meios da Constituição de 1933 [...]. A lei do orçamento formula as opções de receita e despesas do Estado e da segurança social: ela é hoje a única lei-plano anual das finanças públicas, devendo [...] harmonizar-se com a lei anual das grandes opções do plano e condicionando o plano».
Analisando a mesma temática, Marcelo Rebelo de Sousa («10 questões sobre a Constituição, o Orçamento e o Plano», in Nos Dez Anos da Constituição, Lisboa, 1986, pp. 121 e 122) escreve que «na regulamentação constitucional do Orçamento e na sua aplicação no plano da legislação ordinária encontramos em plenitude a dimensão de uma Constituição dirigente, pela integração constitucional da função política do Estado e pela projecção do chamado programa constitucional do Governo. [...] O Orçamento corresponde a um miniprograma financeiro parlamentar de governo anual [...], é um dos instrumentos mais importantes da política económica em geral [...], nele é patente a confluência entre a função legislativa e a dimensão do político [...] e é esse acentuado coeficiente político que é invocado pela doutrina para justificar o regime excepcional do Orçamento, relativamente a realidades de natureza que ultrapassam a mera matéria orçamental, como por exemplo as autorizações legislativas nele contidas».
Perante este conjunto de posições doutrinárias, e numa tentativa de síntese, poderemos, pois, dizer que, no nosso sistema constitucional, pelo menos após 1982, a lei do orçamento constitui uma lei material especial, não confinada no seu conteúdo ao mero quadro contabilístico de receitas e despesas, aprovada ao abrigo da competência política e legislativa do Parlamento, definida, assim, como elemento integrante da reserva de Parlamento e sujeita a reserva absoluta de lei formal, emitida no quadro da participação do Parlamento no exercício da função de direcção política estadual, que plasma no seu conteúdo um programa económico-financeiro anual, disfrutando o Parlamento de uma assinalável amplitude de poderes de apreciação, expressa, desde logo, na liberdade de iniciativa dos deputados para apresentação de propostas de alteração não sujeitas a qualquer limite específico (designadamente o constante do n.º 2 do artigo 170.º da Constituição).
2.4 - Convergindo, pois, as principais posições doutrinárias, nos termos supra-indicados, na caracterização da natureza e da função da lei do orçamento, de igual forma a jurisprudência do Tribunal Constitucional, sempre que confrontada com estas questões, a elas tem respondido em termos uniformes e que, no essencial, como veremos de seguida, não se afastam das grandes linhas acabadas de sintetizar.
Recorde-se, a propósito, o Acórdão 461/87 (publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 12, de 15 de Janeiro de 1988), onde se analisou a questão da conformidade constitucional de um conjunto de disposições da Lei do Orçamento para 1987 (a Lei 49/86, de 31 de Dezembro) que versavam sobre a emissão pelo Governo de diversa legislação e sobre a apresentação por aquele de uma proposta de lei (loc. cit., p. 135). Aí se escreveu:
Todas elas [normas impugnadas] [...] apresentam uma suficiente atinência com o diploma em que se acham inseridas, sobretudo não se perdendo de vista que tal diploma (a lei orçamental) deixou há muito de assumir um mero carácter financeiro-contabilístico (cingido simplesmente à previsão e à programação das receitas e despesas do Estado) para passar a constituir um instrumento fundamental e determinante da definição integrada de toda a política económico-financeira para certo ano económico).
Neste aresto o Tribunal confrontou-se com a tese então defendida pelo Primeiro-Ministro, requerente do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas impugnadas, segundo a qual «o Orçamento não é o instrumento constitucionalmente idóneo para o exercício pela Assembleia da República de outras competências que não a prevista na parte final da alínea g) [actual alínea h)] do artigo 164.º».
A este argumento respondeu o Tribunal nos termos seguintes (loc. cit., p. 147):
Tão-pouco pode sufragar-se, porém, esta última tese do requerimento em apreço, a qual se reporta, como se vê, ao problema de legitimidade dos chamados cavaliers budgétaires ou riders.
Trata-se de um problema bem conhecido da prática constitucional e da doutrina, quer no nosso, quer noutros ordenamentos. E um problema que nalguns destes encontra resposta constitucional expressa, que se traduz na delimitação precisa das normas susceptíveis de serem inseridas na lei orçamental (assim, o artigo 110.º, n.º 4, da Grundgesetz da República Federal da Alemanha) ou na proibição de nesta se inscreverem disposições de certo tipo com certo alcance (assim, o artigo 81.º, n.º 3, da Constituição Italiana).
Entre nós, porém, não se depara com qualquer preceito expresso da Constituição similar aos referidos. E daí que a doutrina viesse entendendo não ser constitucionalmente questionável a inserção na lei do orçamento de normas sem imediata incidência financeira ou normas «não orçamentais», um procedimento que se compreenderia tanto melhor quanto deve considerar-se superada uma concepção puramente «formal» daquela lei (assim, J. M. Cardoso da Costa, est. cit., pp. 19 e seguintes, e A. Lobo Xavier, «Enquadramento orçamental em Portugal: alguns problemas», na Revista de Direito e Economia, ano IX, 1983, pp. 242 e seguintes). Isto, fosse qual fosse o juízo que a correspondente prática devesse merecer sob o ponto de vista doutrinal ou da clareza do exercício das competências constitucionais e até da clareza do ordenamento jurídico (um juízo, aliás, não negativo, para ambos os autores citados, no tocante a normas que tenham ainda a ver com o delineamento do programa financeiro da lei orçamental, como serão, v. g., as que exprimam a sua vertente fiscal).
Contra este entendimento - mas sem o pôr definitivamente em causa -, ponderou-se, todavia, que ele poderia conduzir, afinal, a uma limitação da competência legislativa da Assembleia da República. É que, como a iniciativa da lei do orçamento pertence ao Governo, e só a este poderá pertencer, consequentemente, a iniciativa da alteração desta lei, o alargamento dela para além das matérias que preencham a função orçamental virá a traduzir-se numa restrição da liberdade de iniciativa parlamentar (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., p. 472). Só não seria assim - ressalvam os autores citados - se «pudesse entender-se, o que não é fácil, que nessas matérias a lei poderia ser alterada nos termos gerais».
O argumento, porém, não é probante, como, por último, mostrou o Prof. Teixeira Ribeiro («Os poderes orçamentais», cit., p. 6).
É que a dificuldade em consentir que se mantenha a iniciativa parlamentar para a alteração da lei do orçamento em matérias «não orçamentais» é só «a de destrinçar tais matérias das restantes» é, portanto, «simples dificuldade de ordem prática». Daí que - concluindo com o mesmo autor - não deva considerar-se atentatório da Constituição, com base na razão assinalada, «o inserimento no articulado do orçamento de disposições estranhas à administração orçamental».
Ora, não sendo por essa razão, por outra realmente não se vê que a Constituição obste ao procedimento referido. E tanto menos quanto se trata de um procedimento com uma longa tradição entre nós (vindo já do período do constitucionalismo monárquivo e passando por todos os que se lhe seguiram), que só justificaria ver precludido pela Constituição em vigor se nesta existisse disposição clara nesse sentido. Ora, como começou por salientar-se, tal não sucede.
Poderá a prática em causa ser discutível, e até censurável, seja do ponto de vista doutrinário, seja do da técnica da legislação. De todo o modo, não o é de um estrito ponto de vista jurídico-constitucional.
Esta decisão do Tribunal Constitucional registou dois votos de vencido, dos conselheiros José Martins da Fonseca e Vital Moreira, em ambos os casos por entenderem que a lei do orçamento não pode conter mais do que o Orçamento, nas componentes que decorrem do artigo 108.º da Constituição.
A este propósito escreveu o então conselheiro Vital Moreira (op. cit., p. 157):
A lei do orçamento é, pois, uma lei específica. O seu regime constitucional não se compadece com a inserção de matérias alheias ao objecto constitucional da lei do orçamento, ou seja, matérias que devam ser objecto de lei comum.
[...] Tenho por seguro que isso [a integração na lei do orçamento de matérias «não orçamentais»] se traduz num claro abuso da função constitucional da lei do orçamento e que não é admissível que esta possa legitimamente servir para «contrabandear» soluções legislativas estranhas à matéria orçamental, à revelia das regras comuns da legiferação, que passam pela iniciativa legislativa originária, pela sua publicação e conhecimento público, pela discussão e votação na generalidade, pela apreciação na comissão especializada competente, pela discussão e votação na especialidade, pela votação final global, tudo num processo que dê garantias de publicidade, ponderação e votação autónoma.
E noutro passo (op. cit., p. 158), acrescentou o mesmo conselheiro que «com o aproveitamento dessa faculdade, a lei do orçamento passaria a ser não apenas a lei do orçamento, mas também a lei de revisão geral anual da ordem jurídica, com possibilidade de intromissões em todas as áreas desta (em última instância não estaria excluída a utilização da lei do orçamento para aprovar, por exemplo, um novo Código Penal ou um novo Código da Estrada [...]». Para rematar expressivamente que «nem se diga que a Constituição é omissa a este respeito, pois considero que não é preciso grande esforço de interpretação do artigo 108.º da Constituição da República Portuguesa para concluir que a lei do orçamento é a que aprova o Orçamento do Estado e que o Orçamento está constitucionalmente definido no mesmo preceito» (cf., no mesmo sentido, a declaração de voto do mesmo conselheiro ao Acórdão 267/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 21 de Dezembro de 1988, p. 5042).
Dos extractos citados resulta claro, pois, que a questão de constitucionalidade ora suscitada pelo pedido do Presidente da República no tocante à interpretação do artigo 108.º da Constituição já anteriormente havia sido equacionada e resolvida pelo Tribunal Constitucional no sentido assinalado.
Vejamos se tal entendimento é de coonestar de novo nesta sede.
3 - A tese subjacente ao pedido do Presidente da República, e que transparece nas duas declarações de voto atrás citadas, filia-se nas teorias atrás expostas quanto à natureza meramente formal da lei do orçamento, ou, no limite, quanto à natureza «vinculada» ou «não livre» da lei do orçamento face ao ordenamento jurídico preexistente, tese essa que, como vimos, não tem encontrado acolhimento na nossa doutrina nem na nossa jurisprudência constitucional.
Recordem-se a este propósito as observações que faz Guilherme d'Oliveira Martins (Constituição Financeira, 2.º vol., Lisboa, 1984-1985, pp. 301-303), que tem a particularidade de focarem um caso concreto atinente ao regime das finanças locais:
Apesar da fórmula bastante genérica adoptada pela lei de enquadramento [...] as leis do orçamento têm muitas vezes incluído normas extravagantes que pouco têm a ver com o instrumento financeiro em análise. Não nos referimos às autorizações legislativas em matéria de impostos ou de benefícios fiscais, que, manifestamente, têm a ver com o objecto fundamental do Orçamento do Estado, mas aludimos a outro tipo de normas que só tenuemente se ligam a ele. Por exemplo, o Orçamento para 1984 chegou a incluir uma disposição revogatória de legislação ordinária (no caso da Lei 1/79 - Finanças Locais).
E noutro passo acrescenta:
Outras disposições que não digam respeito directamente a receitas ou a despesas devem ser entendidas como não participando da natureza específica da lei do orçamento. [...] Tem havido em várias leis do orçamento a inclusão de normas gerais, abstractas e de duração indeterminada (v. g. a citada revogação de alguns artigos da Lei 1/79). Nesse caso, também não estaremos perante normas de natureza orçamental. Elas terão uma vigência que se prolongará para além do termo do ano orçamental. Daí que seja extremamente desaconselhável, até por causa da segurança jurídica dos cidadãos, a inclusão no Orçamento do Estado de disposições que sejam estranhas à sua natureza planeadora e ao seu carácter financeiro.
Abordando a natureza da lei do orçamento, Sousa Franco (Finanças Públicas ..., cit., p. 359) escreve que «[é] uma lei vinculada, devendo respeitar - desde que expressamente as não revogue - as anteriores leis geradoras de despesa e de receita, incluindo as que, em sistemas de gerência, aprovam planos de despesa plurianual» (sublinhado nosso).
De igual forma, Teixeira Ribeiro («Os poderes orçamentais da Assembleia da República», in Boletim de Ciências Económicas, vol. XXX, 1987, p. 173), a questão de saber se a Assembleia da República poderá, por sua iniciativa ou sob proposta do Governo, inserir no articulado quaisquer disposições que não digam respeito àquele Orçamento ou, até, se regularem matérias estranhas às receitas e despesas do Estado, nem sequer digam respeito a orçamento nenhum, responde que «o facto é que o artigo 11.º [da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado] diz o que o articulado deve conter, não diz o que ele apenas deve conter. Por outro lado, embora a inserção no Orçamento de normas não orçamentais seja radicalmente condenável sob o ponto de vista da técnica legislativa, a verdade é que não é princípio legal que a técnica legislativa deve ser correcta. Entendemos, pois, que o artigo 11.º da Lei de Enquadramento não proíbe que o articulado contenha normas não orçamentais».
Em face do que fica exposto, resulta claro que existe um assinalável entendimento doutrinal segundo o qual a Constituição não acolhe uma visão do orçamento subsumível à clássica visão da teoria do duplo conceito de lei ou aos estritos limites da lei do orçamento como mera lei formal, ou como lei de mero controlo político ou como lei exclusivamente organizatória, estritamente vinculada ao ordenamento preexistente.
Pelo contrário, sendo a nossa lei fundamental um diploma decididamente intervencionista, configurado num Estado social e democrático de direito, assente no especial relevo dos fins e objectivos de natureza sócio-económica que a Constituição postula (cf. artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa), parece claro que a actividade financeira do Estado e dos entes públicos não pode permanecer imune a essa vertente intervencionista e transformadora da sociedade e há-de pautar-se por regras de acção definidas, numa perspectiva actualista, em face das novas exigências da vida comunitária e não em função de um paradigma ultrapassado pelos tempos e pelas circunstâncias.
Como escreve Carmelo Lozano Serrano (Consecuencias de la jurisprudencia constitucional sobre el derecho financiero y tributario, Madrid, 1990, p. 150) «não estamos já em presença de um Estado que gasta o mínimo indispensável para a sua própria manutenção e para o desempenho das funções essenciais e limitadas que se lhe atribuíam, com a consequência - agudamente exposta por G. Jeze - de que 'il y a des dépenses, il faut les couvrir', mas sim perante poderes públicos cuja beligerância é inevitável na dinâmica social e económica».
Esta marca intervencionista do Estado de direito democrático traduz-se, no plano que ora consideramos, na atribuição à lei do orçamento do particular valor de lei especial de programação económico-financeira da actividade do Estado, cuja elaboração e aprovação constitui parte integrante do exercício da função de direcção política do Estado em que directamente participa a instituição parlamentar, na base da qual estão valorações de ordem política, económica e social de relevo que explicam a «força expansiva» do diploma orçamental e a inelutável superação da sua tradicional vocação de mero quadro contabilístico de receitas e despesas totalmente vinculado à execução do ordenamento jurídico preexistente.
A esta relevante intervenção do Parlamento, reforçada pelas alterações introduzidas na 1.ª revisão constitucional de 1982, assinala A. Lobo Xavier («O Orçamento como lei...», cit., p. 32) algumas limitações de monta no plano da prática constitucional, a ponto de falar em processo de «desparlamentarização» (v. g. a rigidez das massas orçamentais decorrente do peso das despesas públicas de que resulta a redução da manejabilidade do Orçamento, a progressiva desorçamentação da despesa pública, os limites dos poderes de iniciativa dos deputados em alguns ordenamentos, as condicionantes decorrentes da participação em organizações internacionais que cerceiam a liberdade de definição da política orçamental dos Estados membros), questão que merece de Paulo Otero («Desparlamentarização, conteúdo do orçamento e problemas de controlo constitucional», in Fisco, n.º 41, 1992, p. 38) a afirmação segundo a qual «as explicações do fenómeno não se reconduzem apenas a factores de natureza jurídico-económica, antes se devem procurar também em aspectos jurídico-políticos», pois o declínio das competências parlamentares em matéria financeira não surgiria apenas como simples decorrência da ultrapassagem do modelo das finanças neutrais mas também da própria crise do papel do Parlamento nas democracias ocidentais.
Sem embargo, a aludida caracterização da natureza da lei do orçamento, se concita o referido apoio muito generalizado na doutrina constitucional e jusfinancista, tem levado, todavia, a distintos entendimentos quanto à latitude concedida à lei do orçamento no desenvolvimento daquela assinalada «força expansiva».
Com efeito, para alguns autores essa capacidade reguladora da lei do orçamento fora dos tradicionais domínios orçamentais revestir-se-ia de grande latitude, como resulta da tese de Marcelo Rebelo de Sousa atrás citada, que fala mesmo de um «miniprograma financeiro parlamentar de governo anual» (cf. «10 questões...», cit., p. 121) ou das posições mais recentes de António Lobo Xavier, que identifica na lei do orçamento um diploma dotado de poderes revogatórios especialmente latos, quando afirma que «o Orçamento pode, pois, revogar expressamente disposições legais anteriores; ele dispõe de um poder derrogatório implícito na medida em que é a execução da ordem jurídica que dele depende e não o contrário» («O Orçamento como Lei...», cit., p. 106).
Sem curar agora de saber se a particular natureza da lei do orçamento como lei especial de programação económico-financeira poderá chegar ao ponto de legitimar a inclusão, no seu articulado, de preceitos sem qualquer projecção financeira (questão que se deixa em aberto por desnecessária à resolução do caso em apreço), o que resulta inegável é que, mesmo para um entendimento mais estrito do que o dos citados autores quanto ao âmbito de matérias susceptíveis de serem incluídas naquela lei, assente na necessária conexão entre a clássica vocação contabilística do Orçamento e a natureza financeira dessas normas «extravagantes», sempre será de concluir que o regime das finanças locais há-de comportar uma tal conexão que legitime a possibilidade de inclusão na lei do orçamento de preceitos a ela atinentes, uma vez que a redefinição dos critérios de determinação do montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro se relaciona estreitamente com a repartição de receitas e com a efectivação de despesas num determinado ano económico, conforme resulta demonstrado pela própria prática constitucional a que já atrás aludimos (prática essa que leva Paulo Otero - «Desparlamentarização, conteúdo do Orçamento e problemas de controlo constitucional», cit., p. 42 - a escrever que «uma única hipótese parece possibilitar juridicamente a validade constitucional de disposições sem incidência financeira na lei do orçamento: a sua qualificação como verdadeiro costume constitucional»).
4 - Inexistindo no nosso ordenamento constitucional norma expressa que proíba a inclusão na lei do orçamento de normas não orçamentais (o Bepackungsverbot alemão, a que já nos referimos), pode-se mesmo dizer que a possibilidade de tal inclusão se verificar resultou acrescida da revisão constitucional de 1989, em virtude do aditamento de um novo n.º 5 ao artigo 168.º, que passou a dispor que «as autorizações concedidas ao Governo na lei do orçamento observam o disposto no presente artigo e, quando incidam sobre matéria fiscal, só caducam no termo do ano económico a que respeitam».
Este preceito, em boa parte decorrente da jurisprudência constitucional antecedente, significa, desde logo, que é constitucionalmente legítima a inclusão na lei do orçamento de normas que contenham autorizações legislativas em matéria fiscal, ou seja, normas vocacionadas a introduzirem modificações no ordenamento jurídico preexistente e com projecção directa no próprio Orçamento. Autorizações essas que devem respeitar os limites constitucionais das autorizações legislativas, mas que disfrutam de um especial regime de caducidade (fruto da especial unidade, que seguramente há-de existir, entre os preceitos não orçamentais da lei do orçamento e o Orçamento propriamente dito).
O normativo em apreço teve como origem próxima os projectos de revisão constitucional n.os 1/V, de deputados do CDS (que propunha um preceito que dispusesse que «as autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República, salvo as autorizações contidas no Orçamento, que caducam no fim do ano económico respectivo»), e 3/V, de deputados do PS (que preconizava o aditamento de um novo n.º 5 que dispusesse que «na lei de aprovação do Orçamento podem ser concedidas autorizações ao Governo nos termos do presente artigo, as quais, quando sobre matéria fiscal, só caducam no termo do ano económico a que respeitam»).
O debate sobre estes dois preceitos no decurso da 2.ª revisão constitucional incidiu ainda sobre uma proposta apresentada pelos deputados do PRD (projecto de revisão n.º 9/V), que visava o aditamento ao mesmo artigo de um novo n.º 5 que dispusesse que «da lei que aprova o Orçamento apenas podem constar autorizações legislativas que directamente respeitem à obtenção de receitas e à realização de despesas públicas».
Expondo a sua proposta, referiu o deputado Miguel Galvão Teles, do PRD (in Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 43-RC, de 14 de Outubro de 1988, p. 1376):
Há ainda a proposta quanto ao n.º 5, isto é, a proibição daquilo que, ao que parece, se chamam as autorizações legislativas «à boleia» na lei do Orçamento do Estado. Obviamente a urgência da aprovação do Orçamento, a pressão sob a qual o Orçamento é votado, impedem frequentemente que haja uma ponderação mínima relativamente às autorizações que estão a ser concedidas.
E demarcando a proposta de que era proponente daquela outra formulada pelo PS (loc. cit., p. 1376), acrescentou:
A nossa proposta não diz respeito à caducidade, a vossa é mais restritiva. O PS não proíbe que as autorizações excedam a matéria fiscal. Diz é que as autorizações em matéria fiscal, e só essas, duram até ao fim do ano.
Comentando a proposta do PRD, o deputado José Magalhães, do PCP, referiu (loc. cit., p. 1377) que aquela proposta visava proibir os cavaliers budgétaires, enquanto a questão colocada pelo PS era «mais profunda do que isso. Pode complexificar-se se tivermos em atenção as chamadas autorizações legislativas sobre matéria com nexo directo com o Orçamento e as autorizações sem nexo directo com o Orçamento que o Tribunal Constitucional considerou que também podiam ser incluídas no Orçamento, o que foi polémico».
Na sequência deste debate, a proposta do PRD, que, como vimos, visava estabelecer uma restrição constitucional ao conteúdo da lei do orçamento, admitindo que nela apenas figurassem as autorizações legislativas que directamente respeitassem à obtenção de receitas e à realização de despesas públicas foi rejeitada com os votos contra do PSD e do PS e a abstenção do PCP (cf. Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 98-RC, de 8 de Maio de 1989, p. 2829).
No debate a que acabamos de aludir e da redacção do próprio preceito resulta que ele não abrange apenas as autorizações legislativas em matéria fiscal, pois admite expressamente que a lei do orçamento contenha autorizações legislativas sobre outras matérias (não fiscais). Em ambos os casos, o respeito pelos limites constantes do artigo 168.º deverá ser integral, com a excepção das autorizações em matéria fiscal e apenas quanto à duração, as quais só caducam no termo do ano económico a que respeitam. Donde resulta também que as autorizações em matéria não fiscal, que deverão ser conexas à matéria orçamental, estão integralmente submetidas ao regime geral das autorizações contido no citado preceito constitucional.
Mas se daqui decorre que, de forma expressa, a nossa lei fundamental contempla a possibilidade de inserção na lei do orçamento de preceitos «não orçamentais» (e não apenas de natureza fiscal), como compatibilizá-lo com o artigo 108.º, n.º 2, que determina que «o Orçamento é elaborado [...] tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato»?
O significado deste preceito, enquanto configurando limitações ao conteúdo do Orçamento, tem sido analisado pela doutrina em diferentes ocasiões.
A este propósito escreveu Teixeira Ribeiro («Os poderes orçamentais...», cit., pp. 176-177) que «um segundo limite que os poderes da Assembleia sofrem é a tomada em conta das obrigações do Estado decorrentes de lei ou de contrato [...]. Por conseguinte, devem ser inscritas no orçamento das despesas as verbas suficientes para o Estado poder cumprir tais obrigações no período futuro. E se não se inscreverem? Por exemplo, se as despesas previstas com o pessoal não chegarem para o Estado pagar os vencimentos aos funcionários dos quadros dos serviços e aos agentes contratados?; se as despesas previstas com os juros e amortização da dívida pública não chegarem para o Estado pagar aos seus credores?
Ainda aqui não se trata de violação directa da Constituição. Pois, quando esta manda que o Orçamento seja elaborado tendo em conta as obrigações legais e contratuais do Estado, o que com isso quer dizer é que ele deve ser elaborado submetidamente às leis de cumprimento das obrigações. Por conseguinte são estas leis, e não a Constituição, que padecem de violação directa. Sendo assim, parece que nesta hipótese também não há inconstitucionalidade, e apenas ilegalidade, do Orçamento».
Em sentido diverso quanto aos efeitos de tal desconformidade pronuncia-se Sousa Franco (Finanças Públicas..., cit., pp. 365-366) quando refere que «o Orçamento deve ter em conta 'as obrigações (entenda-se: do Estado) decorrentes de lei ou contrato'. O decisor orçamental (formalmente legislador, substancialmente planeador - pois o Orçamento é o plano financeiro do Estado) deve respeitar estas obrigações, mas não está obrigado a dar execução financeira a todas as leis: muitas leis prevêem fontes de despesas que podem ser discricionariamente implementadas, no todo ou em parte, pelo legislador orçamental. Todavia, o legislador pode estar vinculado - e está-o o legislador orçamental - a respeitar as obrigações (em sentido estrito e técnico: situações passivas de crédito) emergentes de lei ou de contrato. Se o não fizer, entendemos que há inconstitucionalidade do Orçamento, ao não dar execução a uma obrigação financeira do Estado - pois se ele violar as obrigações contratuais ou ex lege, está violando o artigo 108.º, n.º 2, da Constituição [...]».
No sentido de, no caso de violação pelo Orçamento de anteriores obrigações legais do Estado, haver inconstitucionalidade («indirecta e material», se pronuncia também Marcelo Rebelo de Sousa «10 questões...», cit., p. 128).
Por seu turno, António Lobo Xavier («O Orçamento como lei...», cit., pp. 98 e seguintes) refere que o artigo 108.º, n.º 2, da Constituição, nesta vertente, coloca uma questão que não é inédita para o direito orçamental português:
Com efeito, [...] o artigo 11.º da Lei de 9 de Setembro de 1908 dispunha que «a lei da receita e despesa, que aprova o Orçamento Geral do Estado, autoriza a arrecadação de receitas e descreve as despesas do Estado, constantes de leis preexistentes», o que sugeria um documento orçamental destinado a expor o quadro contabilístico e previsional das leis com implicações financeiras. isto mesmo transparecia, também, da leitura do artigo 12.º da Lei de 20 de Março de 1907, colocado em vigor pelo § único do artigo 8.º da Lei de 15 de Março de 1913. Depois, o artigo 91.º, n.º 4, da Constituição de 1933 atribuía efeitos a uma implícita distinção entre despesas obrigatórias e não obrigatórias.
Considerando que uma total vinculação do conteúdo do Orçamento a leis anteriormente aprovadas é um resquício de uma concepção meramente formal da lei do orçamento e que «nem sequer é forçoso que os actos legislativos em geral, submetam o Orçamento às respectivas implicações financeiras, já que, a nosso ver, este se comporta, em certas condições, como qualquer lex posterior» (op. cit., p. 104), o aludido autor acaba por colocar a questão de saber se a Constituição (artigo 108.º, n.º 2) pretenderá suprimir assim, pelo menos, em parte, o poder derrogatório que a lei orçamental sempre deteria se fosse encarada como uma lei vulgar, questão a que responde nos seguintes termos (op. cit., p. 106):
Pelo que nos toca, temos sérias hesitações em responder afirmativamente a estas perguntas, não acompanhando, também aqui, a maioria da doutrina nacional acima referida. A opinião desta obrigar-nos-ia a estabelecer uma distinção entre poder normativo e poder orçamental que, muito embora seja facilmente configurável em ordenamentos jurídicos estrangeiros, os dados do nosso sistema constitucional não reclamam nem autorizam. O Orçamento pode, pois, revogar expressamente disposições legais anteriores; ele dispõe de um poder derrogatório implícito, na medida em que é a execução da ordem jurídica que dele depende e não o contrário.
Abordando a mesma temática, Gomes Canotilho («A lei do orçamento na teoria da lei», cit., pp. 553 e seguintes) submete a cuidada apreciação crítica a tese segundo a qual a lei do orçamento teria o carácter de legislação vinculada, legal e constitucionalmente. Entendemos que são perfeitamente pertinentes as considerações feitas por este autor, que de novo seguiremos de perto.
A concepção da natureza de «lei vinculada» (a que já atrás nos referimos) radica na ideia de que o Orçamento pressupõe todas as leis preexistentes e deve respeitá-las, não sendo por isso mais do que uma conta patrimonial, de que resultaria uma restrição da liberdade de intervenção do Parlamento na sua apreciação. Escreve, a este propósito, o citado autor (op. cit., p. 556):
A associação do carácter de legislação vinculada da lei de aprovação do Orçamento ao problema da legitimidade da recusa parlamentar não tem nada de necessário. Mesmo que não se conteste a existência de vínculos jurídicos preexistentes (vínculos derivados da Constituição, das leis gerais de contabilidade, das leis materiais de despesas e receitas), estes vínculos não podem traduzir-se num confisco da liberdade de apreciação do Parlamento [...] O Parlamento tem o dever de apreciar o Orçamento, mas não a obrigação de o aprovar.
E noutro passo observa que «problema diferente é o de saber se, além da possibilidade de recusa, será admissível a introdução de alterações, por parte do Parlamento, ao projecto do Orçamento apresentado pelo Governo», para sublinhar que em ordenamentos «mais consentâneos com a ideia de lei do orçamento como lei material e com a ideia de participação do Parlamento na fixação do plano orçamental não se impede que os deputados proponham e aprovem alterações ao projecto de lei do orçamento».
E finalmente, depois de realçar as limitações da competência do Parlamento decorrentes da concepção do Orçamento como acto de controlo político, esclarece que a tal modo de ver as coisas se pode contrapor a ideia de «conceber a participação da assembleia representativa como uma intervenção normal da feitura das leis que, não obstante certas especificidades, tem os efeitos jurídicos típicos de qualquer acto legislativo. Isto justificaria não apenas a possibilidade de introdução de alterações ao projecto do Governo, mas ainda a possibilidade de, através da própria lei do orçamento, se modificarem ou até revogarem as leis materiais existentes» (op. cit., p. 558), conclusão a que chega sem prejuízo da especificidade dos casos em que existam certas leis ordinárias que «impõem ou pressupõem a sua não derrogação por leis ordinárias posteriores» (op. cit., p. 558), as denominadas «leis reforçadas», temática a que adiante aludiremos.
5 - Em face do exposto, tendo em atenção o conjunto das disposições contitucionais atinentes a matéria orçamental e o entendimento delas atrás formulado, impõe-se, pois, a conclusão de que a regra do n.º 2 do artigo 108.º da Constituição se refere ao Orçamento propriamente dito e apenas a este, produzindo uma vinculação do seu conteúdo face ao ordenamento preexistente, mas em tal vinculação já não se podendo ter por compreendida a própria lei do orçamento. Dito de outro modo, o acto normativo que, revestindo a natureza de lei em sentido material sui generis, participando da função de direcção política do Estado, encerrando o programa económico-financeiro estadual anual e livremente apreciado (e alterado) pelos deputados, é o acto que pode conter, conforme resulta expressamente do n.º 5 do artigo 168.º da Constituição, regras jurídicas que produzam directamente alterações no ordenamento preexistente, alterações essas que naturalmente se repercutirão no próprio Orçamento.
Mas chegados a esta conclusão, sempre se poderia colocar a questão do sentido útil do preceito do n.º 2 do artigo 108.º da Constituição à luz da interpretação adoptada.
Da argumentação produzida resulta, pois, que o citado preceito constitucional sempre terá o sentido útil de garantir a inscrição orçamental das verbas necessárias ao cumprimento das obrigações decorrentes de lei ou de contrato que não tenham sido objecto de alteração expressa na própria lei do orçamento, isto é, em relação às quais o livre poder de apreciação do Parlamento quanto às suas implicações orçamentais, quando cotejadas com as prioridades definidas no plano económico-financeiro anual, não tenha levado à conclusão da sua insubsistência ou suspensão em termos directamente assumidos.
E nem se diga que este é um alcance muito limitado, sujeito à discricionariedade política do Parlamento no momento da aprovação do Orçamento. E que, para quem não entenda as coisas desta forma, a alternativa a este raciocínio decerto só poderia passar pela defesa da necessidade de, em sede de um processo legislativo autónomo, o Parlamento alterar previamente e de forma expressa o quadro do ordenamento preexistente, e só depois aprovar o Orçamento em termos estritamente vinculados a esse quadro normativo decorrente daquelas alterações.
Mas este entendimento é prisioneiro de um extremo formalismo desprovido de suporte no nosso texto constitucional. Com efeito, para satisfazer tal requisito de ordem formal, e vendo as coisas na perspectiva do momento da entrada em vigor dos actos legislativos, bastaria que o Parlamento, no próprio diploma de aprovação do Orçamento, condicionasse expressamente os prazos de entrada em vigor das normas não orçamentais e do Orçamento propriamente dito em termos tais que levassem a que a produção de efeitos daquelas antecedesse a entrada em vigor deste, para de tal modo se respeitar o estrito entendimento do artigo 108.º, n.º 2, a que vimos a aludir.
Ora, mesmo que se entenda que o que releva, no caso, não é o critério da produção dos efeitos, mas sim o dos condicionalismos de aprovação do Orçamento, também nesta visão das coisas não parece que do artigo 108.º, n.º 2, se possa retirar a conclusão contrária à que chegamos. É que, se o grande obstáculo ao entendimento perfilhado é o que decorre da adopção de soluções legislativas estranhas à matéria orçamental à revelia das regras comuns da legiferação (iniciativa legislativa originária, publicação e conhecimento público, discussão e votação na generalidade, apreciação na comissão especializada competente, discussão e votação na especialidade, votação final global), então o caso em apreço parece ser um bom exemplo de como tais inconvenientes - que em tese geral se não negam - não obstam às garantias de publicidade, ponderação e votação autónoma, como resulta da projecção de que esta temática da alteração da Lei das Finanças Locais se revestiu nos debates parlamentares da Lei do Orçamento para 1992, do protagonismo de iniciativa que os deputados assumiram e que inclusivamente levou à alteração do texto inicial da proposta de lei governamental, como já atrás se assinalou, da intensidade do debate registado no Diário da Assembleia da República, e da votação que no Plenário especificamente incidiu sobre os preceitos em causa.
De igual forma resulta claro que a admissibilidade, na lei do orçamento, de matérias «não orçamentais» não se pode entender como traduzindo uma limitação, para futuro, da liberdade de iniciativa parlamentar. Com efeito, tratando-se, no caso vertente, de uma alteração a Lei das Finanças Locais (com vocação transitória), o regime adoptado na lei do orçamento não preclude a iniciativa legislativa dos deputados nos termos gerais, nem no momento da aprovação do Orçamento enquanto poder de apresentação de emendas à proposta de lei do Governo, nem subsequentemente, em sede de alteração da Lei das Finanças Locais, neste caso com a limitação decorrente do n.º 2 do artigo 170.º da Constituição, que, aliás, sempre operaria quer as regras sobre o Fundo de Equilíbrio Financeiro constassem do Orçamento quer não (sobre os poderes dos deputados em matéria orçamental podem ver-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 317/86 e 206/87, publicados, respectivamente, no Diário da República, 1.ª série, n.os 11, de 14 de Janeiro de 1987, e 156, de 10 de Julho de 1987).
Chegados, pois, a estas conclusões, ou seja, tendo-se por constitucionalmente legítimo que a lei do orçamento altere a Lei das Finanças Locais (fonte legal das obrigações a que alude o n.º 2 do artigo 108.º da Constituição), desnecessário se torna apurar se as regras atinentes à fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro revestiriam efectivamente, no plano substantivo, a natureza de verdadeiras e próprias obrigações de origem legal (i. e., situações passivas de crédito), para efeitos de aplicação do referido artigo da Constituição, ou seja, se as autarquias locais são titulares activos de uma obrigação de pagamento do Estado decorrente da fórmula legal do Fundo de Equilíbrio Financeiro (e se a contribuição financeira imposta ao Estado pela Lei das Finanças Locais integra o conceito constitucional de «obrigação decorrente de lei»), ou se, pelo contrário, as autarquias têm apenas direito a uma transferência financeira anual, sem que em tal direito se compreenda, ao mesmo título, a observância da concreta fórmula de cálculo contida na Lei 1/87 e ora alterada pela Lei 2/92.
Eis porque o Tribunal entende não dever declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 13.º, n.º 1, da Lei 2/92, quando cotejada com o artigo 108.º, n.º 2, da Constituição (na parte respeitante à elaboração do Orçamento tendo em conta as obrigações decorrentes de lei).
D - A questão do «valor reforçado» da Lei das Finanças Locais
1 - A conclusão a que acabamos de chegar, contudo, não ilude o outro fundamento invocado pelo Presidente da República referente ao estatuto jurídico-constitucional da Lei das Finanças Locais, a saber, a sua alegada natureza de lei com valor reforçado.
Já atrás se fez referência (cf. II, C, n.º 4) a que a concepção da lei do orçamento como lei vinculada está intimamente ligada à temática das leis com valor reforçado, isto é, das leis ordinárias que impõe, ou pressupõem a sua não derrogabilidade pelas leis ordinárias posteriores.
Referindo-se ao tema, Gomes Canotilho («A lei do orçamento na teoria da lei», cit., p. 559) escrevia que, «se considerarmos a possibilidade de a lei do orçamento poder conter inovações materiais, parece que o problema não será já o de uma simples aplicação do princípio da legalidade, mas o da relação entre dois actos legislativos equiordenados sob o ponto de vista formal, e em que um é alçado para um plano de superioridade funcional e orgânica. A contrariedade ou desconformidade da lei do orçamento em relação às leis reforçadas, como é a lei de enquadramento do direito financeiro, colocar-nos-ia perante um fenómeno de leis ilegais ou, numa diversa perspectiva, de inconstitucionalidade indirecta».
Por diversas vezes a doutrina referiu-se ao tema antes da 2.ª revisão constitucional, especialmente a propósito da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado (cf. Sousa Franco, Finanças Públicas ..., cit., p. 358), da Lei das Grandes Opções do Plano e da própria lei do Orçamento do Estado (cf. Marcelo Rebelo de Sousa, «10 questões sobre a Constituição...», cit., pp. 133 e 135) e o próprio Tribunal Constitucional aludiu ao problema em função da própria Lei das Finanças Locais, ainda que de forma incidental, no seu Acórdão 82/86 (publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 76, de 2 de Abril de 1986, a p. 787), onde se escreveu que, «ainda quando se entendesse que aquele Decreto-Lei 98/84 [Lei das Finanças Locais] era, relativamente à lei do orçamento, uma lei reforçada, ainda então se poderia concluir que ele não tinha força ou valor hierárquico superior ao da lei do orçamento (cf. Gomes Canotilho, 'A lei do orçamento na teoria da lei', in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, pp. 58 e seguintes)».
Recentemente o Tribunal teve ocasião de aludir, de novo de forma meramente lateral, ao mesmo tema, no já citado Acórdão 361/91 (loc. cit., p. 385), onde se escreveu:
Preliminarmente, notar-se-á que as duas leis do orçamento não alteram a Lei das Finanças Locais, no que respeita à fórmula do FEF. Se as duas normas constantes das leis orçamentais tivessem procedido a essa alteração legislativa, seria pertinente colocar a questão de saber se teria sido constitucionalmente legítima tal alteração. Para responder a essa questão, ter-se-iam de analisar as relações entre a Lei das Finanças Locais e a lei do orçamento, nomeadamente para averiguar se aquela poderia ou não qualificar-se como lei de valor reforçado relativamente a esta última [cf. artigos 115.º, n.º 2, 171.º, n.os 5 e 6, e 281.º, n.º 1, alínea b), da Constituição]; a questão de saber se a Lei das Finanças Locais poderia ser qualificada como lei de valor reforçado em relação à lei do orçamento foi incidentalmente abordada por este Tribunal no Acórdão 82/86 [...], antes da 2.ª revisão constitucional. Nessa altura sustentou-se, citando Gomes Canotilho, «A lei do orçamento na teoria da lei» [...] que, ainda que se pudesse sustentar o valor reforçado da Lei das Finanças Locais, daí não poderia concluir-se que tivesse valor hierárquico superior ao da lei do Orçamento do Estado. Simplesmente, estas conclusões teriam de ser reexaminadas à face dos dados decorrentes da 2.ª revisão constitucional, em especial o disposto nos artigos 115.º, n.º 2, e 281.º, n.º 1, alínea b), da actual redacção da Constituição.
Com efeito, as alterações introduzidas na 2.ª revisão constitucional mostram-se como particularmente relevantes para a definição das condições de admissibilidade da existência de leis com valor reforçado, o que se passará a analisar doravante.
2 - A 2.ª revisão constitucional acolheu expressamente o qualificativo do valor reforçado reportado às leis orgânicas no n.º 2 do artigo 115.º («Valor reforçado das leis orgânicas») e passou a referir-se a «Leis com valor reforçado» como actos parâmetro de um juízo de ilegalidade no âmbito da competência de fiscalização do Tribunal Constitucional [cf. artigos 280.º, n.º 2, alínea a), e 281.º, n.º 1, alínea b)].
Numa primeira análise, dir-se-ia que o legislador da revisão estabeleceu uma conexão directa entre a figura das leis orgânicas e das leis com valor reforçado, com o alcance de só àquelas a Constituição atribuir expressamente este valor, uma vez que não foi aprovada uma definição de leis com valor reforçado de natureza genérica que conferisse um critério geral tipificador das leis que poderiam disfrutar desse especial valor normativo. É que, na realidade, não mereceu acolhimento a proposta constante do projecto de revisão constitucional n.º 2/V, de deputados do PCP, que propunha (no seu artigo 115.º-A, n.º 1) que se estatuísse que «possuem valor jurídico reforçado as leis que, por força da Constituição, sejam um pressuposto normativo necessário de outras leis ou por outras leis devam ser respitadas».
Contudo, os debates parlamentares da revisão apontam em sentido diverso, isto é, no sentido de que as «leis com valor reforçado» a que aludem os artigos 280.º e 281.º da Constituição não se confinam à nóvel categoria das leis orgânicas.
Desta interpretação dá-nos conta o debate travado na Comissão Eventual de Revisão Constitucional publicado no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 103-RC, de 15 de Maio de 1989, p. 2936, onde o deputado José Magalhães, do PCP, a propósito da proposta dos deputados do PSD e do PS acerca do artigo 115.º (atinente ao valor reforçado das leis orgânicas), formula a seguinte pergunta:
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, creio que será útil [...] que o Sr. Deputado António Vitorino nos pudesse especificar se é vossa intenção resolver todas as questões de desconformidade entre diplomas de valor reforçado, diplomas com valor paramétrico, interpostos entre a Constituição e a lei ordinária, cometendo ao Tribunal Constitucional o poder de julgar e declarar essa desconformidade; ou se a vossa ideia é circunscrever essa intervenção do Tribunal Constitucional ao caso das leis orgânicas.
Ao que o deputado interpelado respondeu nos seguintes termos (loc. cit., p. 2936):
O Sr. António Vitorino (PS): - Creio que nem se trata, como vai ver pela formulação que vamos apresentar em momento oportuno, de resolver todas as situações, porque a sua resolução, em termos de letra de lei, geraria algumas dificuldades como aquelas que foram assinaladas quando se discutiu a proposta do PCP sobre esta matéria; nem se trata só de contemplar a questão das leis orgânicas.
Noutro passo dos debates parlamentares foi suscitada expressamente a questão da discrepância do universo de aplicação do artigo 115.º e dos artigos 280.º e 281.º (cf. intervenções dos deputados Maria da Assunção Esteves e Pedro Roseta, ambos do PSD, no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 112-RC, de 29 de Maio de 1989, pp. 3120 e 3121), de que se transcreve o trecho mais significativo:
A Sr.ª Maria da Assunção Esteves (PSD): - Penso tem que ficar uma classificação uniforme na Constituição, até devido ao artigo 115.º, que é uma disposição sobre actos normativos, as suas fontes e os seus efeitos. Discordo totalmente que fiquem classificações diferentes dispersas pela Constituição, até porque ao falar-se em leis com valor reforçado, destacadamente, criam-se implicações a todos os níveis.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Também sobre o artigo 280.º [...] pus a questão das consequências graves de se preverem leis de valor reforçado que não coincidem com as leis orgânicas [...] Critiquei que se definisse o tipo legal apenas pelos seus efeitos [...] Vai provocar-se com esta indefinição a maior das confusões, com reflexos na doutrina e na jurisprudência. Há leis orgânicas, paralelamente há leis de valor reforçado, paralelamente há leis quadro [...] Mas a verdade é que, se consagramos esta indefinição, vamos abrir aqui a caixa de Pandora.
O Sr. António Vitorino (PS): - [...] Há uma solução alternativa, tecnicamente rigorosa, que afasta as preocupações que estão a ser suscitadas, se a quiserem adoptar [...] Estou-me a referir à proposta que formulámos de considerar que esse juízo de adequação é um juízo não exclusivo das leis orgânicas, mas é um juízo susceptível de ser adoptado em relação a todas as leis que tenham valor de acto parâmetro; ou, por exemplo, uma formulação como aquela que aqui chegou a ser discutida, contemplando todas as demais leis que sobre elas devam ter primazia ou a que devam subordinar-se.
Dos debates acabados de transcrever resulta claro que o legislador da revisão constitucional teve consciência das dificuldades de compatibilização dos preceitos em causa e confiou na doutrina e na jurisprudência para operar tal conciliação.
Em comentário a esta alteração constitucional, António Vitorino, «Prefácio à Constituição da República Portuguesa», Lisboa, 1989, p. LXXII), escreve:
Embora a Constituição só reconheça expressamente às leis orgâncias um tal valor reforçado (no artigo 115.º), a redacção dos preceitos dos artigos 280.º e 281.º aponta para que um tal valor reforçado possa ser reconhecido a outros actos legislativos para além das leis orgânicas e que consequentemente, nesses casos, o Tribunal Constitucional possa declarar, por identidade de razão, a ilegalidade em sentido amplo de actos legislativos que violem essas outras leis a que progressivamente a jurisprudência veio a reconhecer um certo valor reforçado e que a Constituição, em outros preceitos, parece identificar como tal (veja-se o caso da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, cujo valor reforçado vem, desde esta 2.ª revisão, reconhecido mais expressamente no n.º 1 do artigo 109.º e também o caso da lei de instituição em concreto de regiões administrativas, prevista no artigo 256.º, a qual, nos termos da redacção introduzida pela Lei Constitucional 1/89, «depende da lei prevista no artigo anterior», ou seja, da lei de criação em abstracto das regiões administrativas prevista no artigo 255.º, à qual se reconhece assim expressamente um valor reforçado).
Analisando as relações de vinculação entre leis de carácter especial, à luz da 2.ª revisão constitucional, Jorge Miranda (Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, pp. 294 e 295) escreve:
Não são as leis de autorização legislativa e as leis de bases as únicas cuja observância se impõe a outras leis, com elas em relação especial. A Constituição prevê várias outras. São no texto actual:
A lei quadro relativa à reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 (artigos 85.º, n.º 1, e 296.º);
A lei das grandes opções do plano de desenvolvimento económico e social anual (artigo 108.º, n.º 2);
As leis de enquadramento dos orçamentos do Estado e das regiões autónomas [artigos 109.º, n.os 1 e 2, e 168.º, n.º 1, alínea p)];
A lei quadro de adaptação do sistema tributário nacional às especificidades regionais [artigo 229.º, n.º 1, alínea i), in fine];
A lei relativa à criação simultânea, aos poderes, aos órgãos e ao regime das regiões administrativas (artigo 255.º);
E também a lei do regime do estado de sítio e do estado de emergência [artigos 19.º, n.os 5 e 7, e 167.º, alínea e)].
O mesmo autor, no seu Manual de Direito Constitucional, t. II, 3.ª ed., Coimbra, 1991, pp. 327-328, depois de retomar o quadro atrás transcrito de «leis ordinárias reforçadas de vinculação específica», refere ainda como «leis de valor reforçado vinculativas de quaisquer outras leis» a lei das grandes opções do plano de desenvolvimento económico e social a médio prazo [artigos 92.º, 93.º, n.º 2, e 164.º, alínea h), primeira parte], o Orçamento do Estado [artigos 108.º, 110.º e 164.º, alínea h), segunda parte (e, por identidade de razão, os orçamentos das Regiões Autónomas)], as leis orgânicas [artigos 115.º, n.º 2, 167.º, alíneas a) a e), e 169.º, n.º 2] e os Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas [artigos 164.º, alínea b), 228.º, 229.º, n.º 1, 280.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 281.º, n.º 1, alíneas c) e d)].
Por seu turno, Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 1991, p. 1007) reconhece que o elenco de leis reforçadas ultrapassa o caso das leis orgânicas e, a este propósito, escreve (op. cit., p. 874):
Uma leitura dos enunciados linguísticos de alguns preceitos constitucionais indicia a existência de leis com valor reforçado nos seguintes casos:
Leis orgânicas (artigos 115.º, n.º 2, 280.º, n.º 2, e 281.º, n.º 2);
Leis de autorização (artigos 115.º, n.º 2, e 168.º, n.os 2, 3 e 4);
Leis de bases (artigos 115.º, n.º 2, e 202.º);
Leis das grandes opções dos planos de desenvolvimento económico e social (artigo 108.º, n.º 2);
Leis de enquadramento do Orçamento do Estado e das Regiões Autónomas (artigos 109.º, n.os 1 e 2, e 168.º, n.os 1 e 2);
Lei da criação de regiões (artigo 255.º);
Lei quadro das reprivatizações (artigos 85.º, n.º 1, e 296.º);
Lei quadro da adaptação do sistema tributário nacional às especificidades regionais;
Estatutos das Regiões Autónomas (artigo 228.º).
Caracterizando as leis ordinárias reforçadas, Jorge Miranda (Funções, Órgãos e Actos ..., cit., pp. 287 e seguintes) refere que às mesmas se liga uma posição de proeminência de natureza funcional, que não de natureza hierárquica, que se traduz numa «específica força formal negativa», essas leis não podem ser afectadas por leis posteriores que não tenham precisamente a mesma função, não procedendo, pois, em tais casos o princípio lex posterior legi anteriori derogat.
Tais relações de subordinação ou de vinculação entre leis formais podem assentar numa situação de heterovinculação, quando as leis provêm de órgãos diferentes, ou de autovinculação, quando provêm do mesmo órgão.
Por seu turno, Gomes Canotilho (Direito Constitucional, cit., pp. 874 e seguintes) encontra quatro critérios delimitadores do conceito das leis reforçadas:
O critério da parametricidade, garantido por um processo judicial de fiscalização, o qual, como reconhece, só demonstra que as leis reforçadas podem gerar relações de desvalor entre actos legislativos, judicialmente controláveis; não nos permite determinar a individualização dessas leis nem adianta elementos materiais para a sua caracterização;
O critério do fundamento material de validade normativa, reportável ao conteúdo da própria lei reforçada, que se revestirá de natureza paramétrica e portanto relevará como pressuposto material da disciplina normativa dos actos legislativos a ela subordinados ou que a tenham como pressuposto;
O critério da capacidade derrogatória, sendo, pois, reforçada a lei que puder derrogar outra sem por ela ser susceptível de ser derrogada;
Finalmente, o critério da forma e especificidades procedimentais, beneficiando as leis reforçadas de forma e procedimentos especiais constitucionalmente estabelecidos.
À luz destes critérios, o citado autor (op. cit., p. 1003) identifica dois tipos de leis reforçadas: as leis reguladoras da produção de outras leis (v. g. leis de enquadramento do Orçamento - artigo 108.º da Constituição) e as leis constitutivas de limites de outras leis (v. g. a lei anual do Orçamento do Estado - artigo 170.º, n.º 3, da Constituição).
Em sentido contrário manifesta-se Teixeira Ribeiro («As últimas alterações à Constituição no domínio das finanças públicas», in Boletim de Ciências Económicas, vol. XXXIII, 1990, p. 201, n. 8) que, a propósito da Lei de Enquadramento do Orçamento, identifica as «leis reforçadas» com as leis orgânicas, ao afirmar que «é o n.º 2 do artigo 115.º da Constituição, ao falar do valor reforçado das leis orgânicas, que atribui a estas esse valor; ora, nos termos do n.º 2 do artigo 169.º, leis orgânicas são apenas as leis sobre matérias das alíneas a) a e) do artigo 167.º, entre as quais não figura o Orçamento. A lei de enquadramento, não sendo, pois, uma lei orgânica, também não é uma lei reforçada».
A temática das leis com valor reforçado também não é desconhecida da nossa jurisprudência constitucional. Com efeito, como já atrás se referiu, os Acórdãos n.os 82/86 e 361/91 abordaram-na a propósito da própria Lei das Finanças Locais, mas sempre no quadro normativo resultante da 1.ª revisão constitucional (de 1982) e apontando para conclusões que este último aresto admite terem de ser reequacionadas à luz da 2.ª revisão constitucional.
Com efeito, tendo em conta as alterações decorrentes da Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho, o Tribunal Constitucional ponderou o sentido e o alcance do valor reforçado da lei quadro das reprivatizações no seu Acórdão 71/90 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 164, de 18 de Julho de 1990), onde se escreveu (loc. cit., p. 7990):
À face do disposto na Constituição, esta lei quadro das reprivatizações é concebida como uma norma sobre a produção normativa (à semelhança do que sucede com as leis de autorização legislativa, com as denominadas «leis de enquadramento» - caso da referente ao Orçamento do Estado - e mesmo com algumas leis de bases), destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que constitui pressuposto da prática pelo Governo dos actos normativos de reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [os decretos-leis de transformação das empresas em causa em sociedades anónimas (artigo 4.º do decreto) e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização (artigo 14.º do decreto)] e dotada de uma primariedade material e hierárquica (porque conformadora daqueles decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e outros naturalmente prevalecente, não só em função da sua específica função hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos de soberania - já que versando matéria sobre a qual primariamente só o Parlamento detém competência legislativa).
Assinalando, pois, a referida lei quadro aquela tripla função, o aresto citado procedeu à análise do seu grau de densificação normativa enquanto lei de princípios e enquanto lei ordenadora ou de enquadramento de um processo normativo em função do disposto no artigo 296.º da Constituição.
3 - Neste quadro, poderá a Lei das Finanças Locais, para o efeito aqui em vista - o confronto com a lei do orçamento -, ser tida como uma «lei com valor reforçado» a que alude a Constituição nos seus artigos 280.º e 281.º? Estamos em crer que não.
Com efeito, na ausência de uma definição expressa, o assinalado valor reforçado há-de decorrer da conjugação de dois critérios essenciais, o da sua proeminência funcional enquanto fundamento material da validade normativa de outros actos e o da sua força formal negativa, enquanto portadora de uma especial protecção face aos efeitos derrogatórios produzidos por lei posterior. Um e outro critério deverão operar sempre em função dos enunciados linguísticos da própria Constituição.
Ora, conforme já atrás se referiu (cf. II, B, n.º 3), o artigo 240.º da Constituição (cuja redacção decorre da sua versão orginária) não constitui elemento suficiente para poder concluir que, no sistema constitucional, a Lei das Finanças Locais beneficia de um tal valor reforçado para o efeito aqui tido em vista.
Na realidade, a previsão de que o regime das finanças locais será estabelecido por lei em nada difere de inúmeras remissões para a lei que a Constituição contém em diversíssimos preceitos. Daí que do enunciado linguístico da Constituição não decorra que a Lei das Finanças Locais seja fundamento material de validade de qualquer outra lei ou que beneficie de uma especial capacidade derrogatória ou de protecção face à sua derrogação por lei posterior, circunstância que não será alheia ao facto de nos exaustivos (ainda que nem sempre forçosamente taxativos) elencos de leis reforçadas feitos pela doutrina (a que atrás aludimos) em nenhum deles se incluir a Lei das Finanças Locais como exemplo de lei com valor reforçado.
Contudo, mesmo sem qualquer indicação específica na letra da Constituição, poder-se-ia entender que a Lei das Finanças Locais é uma lei «constitucionalmente necessária», no sentido em que a ela cabe definir um quadro legal (com «vocação permanente») da autonomia financeira do poder local, em virtude da especial função que lhe é atribuída pela Constituição (assegurar a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias locais e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau).
Ora, esta interpretação teleológica do artigo 240.º da nossa lei fundamental, por si só não parece poder fundar o alegado valor reforçado da Lei das Finanças Locais.
É que a Constituição não postula nenhum sistema de autovinculação da Assembleia da República ao regime das finanças locais. Se nesta sede cabe falar de autovinculação do Parlamento (e da adopção de um regime de finanças locais que aspira a ter uma característica permanente), ela resulta em exclusivo da lei ordinária, num primeiro momento do modelo de garantia de um limite mínimo de participação no produto global de certos impostos (o da Lei 1/79) e mais recentemente do modelo da fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro baseado na cobrança do IVA nos termos atrás referidos, de acordo com a Lei 1/87. Mas já no modelo do Decreto-Lei 98/84 inexistia qualquer regra de autovinculação, porquanto o Fundo de Equilíbrio Financeiro era calculado com base numa percentagem global das despesas do Estado a fixar, em cada ano, pela lei do orçamento (cf. II, B, n.os 4, 5 e 6).
Com efeito, desde 1984 até à Lei 1/87, o montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro estava totalmente dependente da lei do orçamento anual (e dos critérios dela constantes) e a Lei das Finanças Locais deste ano veio, em certa medida, diminuir essa dependência (cf. Acórdão 361/91, loc. cit., p. 384), sem, contudo, alterar a sua matriz conceptual genérica (cf. Sousa Franco, Finanças do Sector Público ..., cit., p. 482, que considera que a Lei das Finanças Locais de 1987 «constitui uma nova versão do mesmo texto básico» das suas antecedentes), mas a tal opção do legislador ordinário não se pode atribuir um efeito constitutivo da natureza reforçada da Lei das Finanças Locais. Dito de outro modo: se se pode considerar como mais adequado, tendo em vista os fins constitucionalmente fixados ao regime das finanças locais e os valores da previsibilidade e da segurança da gestão financeira das autarquias locais em função da garantia da sua própria autonomia, um sistema que assente em regras dotadas de especial valor normativo e de condições de estabilidade e proeminência (como, em certa medida, terá entendido o legislador de 1987 ao substituir o anterior modelo de 1979 e de 1984), tal não significa, todavia, que esse e só esse seja o modelo contitucionalmente admissível ou sequer que seja o modelo exigido pela Constituição.
De todo o modo, no caso vertente, é a própria lei do orçamento que altera a Lei das Finanças Locais, sendo daí que decorre o montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro constante do mapa orçamental correspondente.
Nestes termos, o Tribunal decide não declarar a ilegalidade dos artigos 12.º e 13.º, n.º 1, da Lei 2/92 face ao disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea b), da Constituição (leis com valor reforçado).
E - A questão da conformidade do disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Lei 2/92 face ao disposto nos artigos 6.º, n.º 1, e 240.º, n.º 2, da Constituição.
1 - Para apreciar esta vertente do pedido do Presidente da República cumpre reenviar, desde logo, para as considerações já atrás feitas quanto ao significado da autonomia das autarquias locais e ao alcance dos princípios da justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias locais e da correcção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau (cf. II, B, n.º 3).
Aí sublinhamos que a autonomia financeira era parte integrante da autonomia local e que as garantias constitucionais da sua existência assentavam nos preceitos dos artigos 6.º, 240.º e 254.º da Constituição.
Neste momento cumpre, pois, apreciar a alegada desconformidade do disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Lei 2/92 face ao disposto nos artigos 6.º e 240.º, n.º 2, da lei fundamental. Ou seja, cumpre apurar se a alteração da fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro afecta a autonomia das autarquias locais, especialmente na sua vertente de autonomia financeira, ou se viola o princípio da justa repartição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias locais.
2 - Quanto ao primeiro aspecto, importa realçar que, como também já atrás se referiu, o princípio da autonomia financeira traduz-se, designadamente (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., p. 388) no direito de as autarquias elaborarem, aprovarem e alterarem os seus orçamentos e planos de actividade próprios, de elaborarem e aprovarem os correspondentes balanços e contas, de arrecadarem e disporem de receitas próprias, de efectuarem despesas sem necessidade de autorização de terceiros e de procederem à gestão do seu património próprio.
À luz do princípio da autonomia financeira das autarquias poder-se-á dizer que o quadro legal que lhe dará conteúdo deverá ser tal que garanta e viabilize o cabal exercício daquelas específicas competências de índole patrimonial. Neste contexto, e numa primeira análise, a questão colocada referente à fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro em nada afectaria o princípio da autonomia financeira das autarquias locais, porque colocada a montante do exercício desses poderes autónomos.
Mas, numa análise mais detalhada, forçoso será reconhecer que o Fundo de Equilíbrio Financeiro, precisamente por isso, constitui um pressuposto essencial dessa autonomia financeira, quer pelo concreto peso de que se revestem, no quadro global das receitas das autarquias, as verbas através dele transferidas pelo Estado, quer porque essa autonomia financeira está intimamente ligada à esfera de atribuições e competências das autarquias e dos seus órgãos, cuja delimitação é feita pela lei, e a que devem corresponder os meios financeiros necessários para a sua prossecução, pois, tal como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (op. cit., p. 388), «o montante do financiamento do Fundo pelo Estado há-de ser suficiente para alcançar a justa repartição das receitas públicas, tendo em conta, por um lado, o volume das receitas próprias dos municípios e, por outro lado, a extensão das suas tarefas e a dimensão das suas necessidades quando confrontadas com as do Estado».
Assim sendo, poderemos dizer que o Fundo de Equilíbrio Financeiro é um elemento constitutivo da autonomia financeira das autarquias locais e que, por isso, a fórmula de cálculo que preside à sua determinação nunca poderá ser alterada em termos que reduzam o Fundo de Equilíbrio Financeiro a um montante tal que comprometa o núcleo essencial da autonomia local (cf. neste sentido o Acórdão 361/91, loc. cit., p. 385).
Ora, conforme já se demonstrou, o que está em causa, neste caso, não é uma redução do montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro (o qual inclusivamente regista um aumento do seu montante global - de 157,5 milhões de contos em 1991 para 180 milhões de contos em 1992 -, complementado por uma garantia de aumento mínimo, para cada município, de 7% - cf. supra II, C, n.º 1), mas sim um aumento quiçá reputado insuficiente pelo requerente, em virtude da alteração da fórmula de cálculo, face ao aumento que resultaria caso tal fórmula não tivesse sido objecto de alteração.
Mas esta alegada insuficiência não decorre, por exemplo, de um acréscimo de atribuições que, pelos encargos financeiros que co-envolvesse, pudesse ser tido como inviabilizando as condições de gestão das autarquias e consequentemente por violador do núcleo essencial da autonomia financeira das autarquias. O problema aqui colocado, pelo contrário, prende-se essencialmente com a quebra da regra (decorrente da Lei 1/87) do acréscimo automático do Fundo de Equilíbrio Financeiro na mesma proporção do acréscimo da receita do Estado em IVA, e portanto com o princípio constitucional da «justa repartição dos recursos públicos» entre o Estado e as autarquias locais.
3 - Neste enfoque, cumpre desde logo realçar que um tal princípio constitucional não é self-executing, isto é, depende em grande parte da sua densificação a cargo do legislador, a quem cabe definir os critérios de tal repartição. Sendo assim, a função do Tribunal Constitucional será, acima de tudo, uma função de «controlo dos limites» da acção do legislador. Dito de outro modo: não cabe ao Tribunal apurar se um dado regime das finanças locais é o mais adequado para garantir tal repartição de recursos públicos, ou se é o que «mais justamente» assegura essa «justiça redistributiva» entre os entes públicos, pois que tais juízos relevam exclusivamente do foro das opções políticas e assistem livremente ao legislador legitimado pelo sufrágio popular, mas tão-somente apurar se um concreto regime adoptado pelo legislador conduz ou não a resultados que possam ser tidos por injustos na perspectiva da Constituição.
Ora, neste contexto, cumpre reafirmar o que o Tribunal já deixou bem claro no seu Acórdão 361/91 (loc. cit., p. 385):
A Constituição não contém nenhuma imposição no que toca ao montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro ou ao seu modo de cálculo. O artigo 240.º, n.º 2, da lei fundamental estabelece que «[o] regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau». O Fundo de Equilíbrio Financeiro é, assim, uma imposição constitucional ao legislador ordinário, visto que a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias é alcançada pela atribuição de fundos do Orçamento do Estado para as autarquias. Embora a Constituição não diga como é calculado o FEF, há-de entender-se que ele não pode ser reduzido a um montante tal que impeça «a justa repartição dos recursos públicos» vertical, isto é, que comprometa o núcleo essencial da autonomia financeira local. Mas não pode falar-se de um montante certo do FEF garantido constitucionalmente em cada ano económico.
Do exposto resulta que a Constituição deixou à legislação ordinária uma ampla margem de manobra na densificação normativa do conteúdo do Fundo de Equilíbrio Financeiro, dos critérios que presidirão à sua determinação e do tipo de variação do montante deles decorrente, com o limite impostergável de não conduzir a resultados injustos nem afectar o núcleo essencial da autonomia financeira local.
Pode-se compreender que haja quem entenda que um sistema legal assente no princípio da participação côngrua das autarquias no aumento dos recursos públicos, dotado de «critérios limite» quanto à margem de variação das transferências do Fundo de Equilíbrio Financeiro face às receitas do Estado (se não mesmo informado por uma expressa proibição de retrocesso do nível de transferências garantido anualmente) e delimitado por preocupações de reforço da certeza e da previsibilidade das receitas a transferir, corresponda a uma optimização dos princípios constitucionais da autonomia financeira local e da justa repartição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias. Só que, face às limitações do regime constitucional, e perante a expressa vontade da lei fundamental de que seja o legislador ordinário a preencher o conteúdo normativo daqueles seus enunciados genéricos, forçoso é concluir que um tal sistema (que encontra paralelo noutros ordenamentos constitucionais, como nos Estados federais - v. g. Alemanha -, ou nos Estados regionalizados - v. g. Espanha), sendo constitucionalmente consentido, não é constitucionalmente imposto.
Inexistindo qualquer imposição constitucional quanto ao concreto montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro, não podendo falar-se de um montante certo do Fundo de Equilíbrio Financeiro garantido constitucionalmente em cada ano económico, não se vislumbra que a fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro sub judice viole, em si mesma, os aludidos princípios constitucionais.
4 - Sem embargo, sempre se poderia dizer que a violação do princípio da «justa repartição» não resulta da fórmula do Fundo de Equilíbrio Financeiro introduzida pela Lei 2/92, mas sim da própria alteração da fórmula anteriormente existente, uma vez que as autarquias não participam do aumento da receita do IVA decorrente da denominada «harmonização comunitária».
Também neste modo de ver as coisas não se vislumbra razão bastante para formular um juízo de inconstitucionalidade.
Com efeito, o critério de fazer depender o Fundo de Equilíbrio Financeiro dos índices do IVA é, como vimos, uma opção legal, não decorre de qualquer imposição constitucional.
Conforme resulta dos debates parlamentares da Lei 1/87 (cf. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 76, de 3 de Junho de 1986), a opção do legislador para fazer depender o montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro das provisões de receitas do IVA (e abandonar o critério - das leis de 1979 e de 1984 - de o fazer depender de uma percentagem da despesa pública global do Estado) foi o de este imposto indirecto sobre o consumo «acompanha[r] de perto a evolução da actividade económica e [...] cresce[r] ao ritmo desta, corrigido pela inflação, [o que] permite de um modo mais adequado prever a sua evolução, de forma que as receitas dos municípios cresçam a um ritmo semelhante ao do conjunto da economia» [deputada Helena Torres Marques (PS)], ou, nas palavras do Secretário de Estado da Administração Local, «o IVA constitui[r] [...] um imposto que pela sua ligação ao consumo e à despesa acaba por ter uma certa estabilidade de crescimento, o que, como é natural, contribui significativamente para a previsibilidade das receitas municipais».
Neste quadro, o legislador entendeu que o critério da «justa repartição» dos recursos públicos seria cabalmente assegurado fazendo variar o Fundo de Equilíbrio Financeiro em função do normal crescimento da actividade económica expresso na receita do IVA. Critério esse que, bem vistas as coisas, subsiste mesmo após a alteração da fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro, porquanto, na parte em que o IVA aumenta em função do natural crescimento da actividade económica (o IVA: base 1991, calculado em função do universo e das condições de tributação em IVA no ano transacto), o Fundo de Equilíbrio Financeiro aumenta também na estrita proporção pressuposta pela fórmula decorrente da lei de 1987.
Sem embargo, da nova fórmula resulta, em termos globais, que a parcela do IVA efectivamente cobrado em 1992 que releva para efeitos do cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro é, por definição legal, inferior à que decorreria da estrita aplicação da fórmula anterior, desde modo resultando da Lei 2/92 uma solução mais gravosa para as autarquias que poderá ser tida como «mais injusta» do que a antecedente. Só que, é bom recordá-lo, o Tribunal apenas pode controlar os limites da solução e não lhe cabe emitir juízos acerca da sua bondade intrínseca. E, assim sendo, como já atrás se sublinhou, não resulta do texto constitucional que a qualquer aumento da receita do Estado deva corresponder um aumento equivalente das receitas das autarquias locais.
Com efeito, desde logo será possível conceber situações em que o aumento das receitas pretende corresponder a um aumento de prestações a cargo do Estado, nada justificando, em tal caso, um aumento das transferências do Fundo de Equilíbrio Financeiro. Tal como, em cenário contrário, a um aumento significativo das atribuições e competências das autarquias locais poderá (e deverá, dir-se-á), corresponder, em tese geral, um acréscimo das transferências do Fundo de Equilíbrio Financeiro destinado a compensar tais encargos adicionais que inclusive poderá ser superior ao que resultar do mero aumento geral da actividade económica do País expresso na receita do IVA.
Dito de outro modo: quando ocorrem circunstâncias excepcionais, como a que resulta do aumento das taxas e do alargamento da base de tributação do IVA, em virtude de compromissos assumidos no quadro da participação de Portugal nas Comunidades Europeias, o legislador poderá equacionar o critério da «justa repartição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias» à luz das específicas razões de tais circunstâncias e adoptar as soluções no plano político que, respondendo a tais razões, se não mostrem arbitrárias, desproporcionadas ou inadequadas ou conduzindo a resultados manifestamente injustos.
No caso, poderá haver quem entenda que, no plano moral ou político, a decisão do legislador de favorecer exclusivamente o Estado em detrimento das autarquias em função do aumento da receita pública é censurável, mas já assim o não será no plano jurídico-constitucional, onde a Constituição reconhece ao legislador uma larga margem de manobra na densificação normativa dos princípios aplicáveis, sendo de reconhecer como fundamento bastante para a conformidade constitucional da solução adoptada nesta sede que, havendo uma razão justificativa de natureza excepcional que está na base do aumento da receita pública (em si mesma, de todo em todo, alheia às específicas funções das autarquias locais) e inexistindo para estas qualquer acréscimo de atribuições daí decorrente, a solução adoptada não se pode ter por arbitrária ou irrazoável nem conduzindo a resultados injustos.
Acresce que a alteração do regime do IVA em causa, exactamente porque de natureza excepcional, não poderia ter-se por certa ou previsível antes da aprovação do Orçamento do Estado, pelo que, também em virtude de tal facto, será de concluir que a solução adoptada não violará de forma intolerável o princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, porquanto as autarquias, na elaboração das suas previsões orçamentais, só poderiam razoavelmente contar com as receitas do Fundo de Equilíbrio Financeiro calculadas na base da tributação em IVA, tal como ela existia em 1991.
Nestes termos, o Tribunal decide não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 13.º, n.º 1, da Lei 2/92, quando confrontada com o disposto nos artigos 6.º, n.º 1, e 240.º, n.º 2, da Constituição.
F - A questão da conformidade do disposto no artigo 13.º, n.º 1, com o disposto nos artigos 92.º e 108.º, n.º 2, da Constituição e no artigo 2.º, n.º 1, da Lei 6/91, de 20 de Fevereiro (Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado).
1 - A propósito do mesmo artigo 13.º, n.º 1, da Lei 2/92, coloca ainda o Presidente da República a questão de saber se desse normativo não resultará violado o princípio da anualidade, constante dos artigos 92.º e 108.º, n.º 2 (primeira parte), da Constituição e do artigo 2.º, n.º 1, da Lei 6/91, de 20 de Fevereiro (Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado).
Dispõem os citados normativos constitucionais:
Artigo 92.º
[...]
Os planos de desenvolvimento económico e social terão por objectivo promover o crescimento económico, o desenvolvimento harmonioso de sectores e regiões, a justa repartição individual e regional do produto nacional, a coordenação da política económica com as políticas social, educacional e cultural, a preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente e a qualidade de vida do povo português.
Artigo 108.º
[...]
...
2 - O Orçamento é elaborado de harmonia com as grandes opções do plano anual e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato.
Por seu turno, o artigo 2.º, n.º 1, da Lei 6/91 dispõe que «o Orçamento do Estado é anual, sem prejuízo da possibilidade de nele serem integrados programas e projectos que impliquem encargos plurianuais».
Nesta sede o Presidente da República questiona a constitucionalidade e a legalidade do n.º 1 do aludido artigo 13.º, que adita à Lei 1/87 um novo artigo 26.º, na parte em que este preceito determina que o regime transitório de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro dele constante se aplique ao ano de 1993 e não apenas ao corrente ano.
2 - A questão assim colocada não é nova para a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Com efeito, com ela se defrontou o Acórdão 461/87 (publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 12, de 15 de Janeiro de 1988), abordando então um pedido do Primeiro-Ministro que visava obter a declaração de inconstitucionalidade de diversas normas da Lei do Orçamento do Estado para 1987 (Lei 48/86, de 31 de Dezembro).
Seguindo de perto o que então se escreveu, cumpre desde logo reafirmar que, depois da revisão constitucional de 1982, o artigo 108.º, n.º 1, da Constituição, deixou de conter uma referência expressa à regra da anualidade do Orçamento (dispunha o preceito em causa na redacção originária que «a lei do orçamento, a votar anualmente pela Assembleia da República, conterá [...]» - sublinhado nosso). Mas daí não decorre que tal regra tenha desaparecido do nosso ordenamento, já que ela resulta implicitamente do artigo 92.º e do artigo 108.º, n.º 2, da Constituição, como refere o Presidente da República, em entendimento uniformemente sufragado pela doutrina (cf., a este propósito, entre outros, Teixeira Ribeiro, «Os poderes orçamentais ...», cit., pp. 172 e seguintes, Sousa Franco, Finanças Públicas ..., cit., pp. 318, 327 e 360, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição... Anotada, cit., 1.º vol., p. 470, e Guilherme d'Oliveira Martins, Constituição Financeira, cit., pp. 278 e 279, e ainda o Acórdão 267/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 293, de 21 de Dezembro de 1988, p. 5013).
Só que o âmbito de aplicação de tal princípio constitucional, e da sua consequente tradução legislativa no artigo 2.º da Lei 6/91, se reporta ao Orçamento propriamente dito, donde decorre, nas palavras do aludido Acórdão 461/87, que «o princípio da anualidade do Orçamento [...] só será violado quando a uma certa previsão de receita ou de despesa do Orçamento - à previsão de uma receita do respectivo mapa; ou à dotação de certas verbas de um mapa de despesa - se atribuir uma duração plurianual» (cf., no mesmo sentido, o Acórdão 108/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 145, de 25 de Junho de 1988, p. 2606).
Ora, a vocação plurianual (para os anos de 1992 e 1993) da fórmula de cálculo do Fundo de Equilíbrio Financeiro, introduzida pela Lei 2/92, constitui expressão da sua natureza meramente transitória, e, por tudo o que já atrás se deixou dito, a norma que a contém (e que representa um aditamento à Lei 1/87) não se pode ter por compreendida no âmbito do Orçamento em sentido próprio, mas antes como elemento integrante da lei do orçamento, a par, por exemplo, das normas que alteram elementos do regime tributário, as quais, por natureza, têm uma vocação de permanência indeterminada, logo superior ao período de vigência do Orçamento que tal lei contém.
Consequentemente, tal norma não viola o aludido princípio constitucional da anualidade nem tão-pouco pode estar ferida de ilegalidade por violação da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado.
Termos em que o Tribunal entende não declarar nem a sua inconstitucionalidade nem a sua ilegalidade.
G - A questão de inconstitucionalidade e de ilegalidade das normas dos artigos 13.º, n.º 2, e 14.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei 2/92.
1 - Como resulta dos termos do pedido do Presidente da República, o juízo de desvalor imputado às normas do artigo 13.º, n.º 2, e do artigo 14.º, n.os 1, 2 e 3, resulta, consequencialmente, das dúvidas de constitucionalidade e de ilegalidade suscitadas a propósito do aludido n.º 1 do artigo 13.º
Tendo-se considerado improcedentes tais dúvidas quanto a este preceito, daí decorre naturalmente que pelas aludidas razões não estão estes preceitos feridos de inconstitucionalidade ou de ilegalidade.
2 - Pelo que o Tribunal decide não declarar nem a inconstitucionalidade nem a ilegalidade das normas do n.º 2 do artigo 13.º e dos n.os 1, 2 e 3 do artigo 14.º da Lei 2/92.
H - A questão da conformidade das normas dos artigos 38.º e 50.º, alínea b), da Lei 2/92, face ao artigo 168.º, n.º 2, da Constituição.
1 - As questões colocadas pelo Presidente da República a propósito dos artigos 38.º e 50.º, alínea b), da Lei 2/92 dizem respeito a uma alegada «falta de definição suficiente do objecto, sentido e extensão» das autorizações legislativas deles constantes.
A temática das autorizações legislativas contidas na lei do orçamento já atrás foi incidentalmente referida (II, C, n.º 2.3), pois a propósito dela se desenvolveu parte relevante do debate doutrinário acerca da própria natureza da lei do orçamento.
Nesse debate é especialmente referida a posição de J. M. Cardoso da Costa («Sobre as autorizações legislativas na lei do orçamento», cit.), o qual, no essencial, e para o que ora nos interessa, considerava - antes mesmo das revisões constitucionais de 1982 e de 1989 - que as autorizações legislativas contidas na lei do orçamento beneficiavam de um regime especial, particularmente quanto ao prazo de utilização, decorrente do facto de integrarem uma decisão político-normativa atinente ao programa financeiro anual, decisão essa consubstanciada na própria lei do orçamento. Neste contexto, as autorizações em causa revestiam um carácter instrumental ou subordinado decorrente da sua inserção nas leis orçamentais e não careciam de uma indicação expressa quanto ao prazo de utilização (cf. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos ..., cit., pp. 480 e 481, que considera que antes de 1989 a admissibilidade de tais autorizações se fundava num costume constitucional praeter legem).
Sobre o assunto, e subscrevendo, no essencial, a aludida orientação perfilhada por Cardoso da Costa, surgiu abundante jurisprudência constitucional, de que cumpre destacar, entre outros, o parecer 5/80, da Comissão Constitucional (publicado no vol. XI de Pareceres, p. 134) e os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 48/84 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 158, de 10 de Julho de 1984), 173/85 (idem, 2.ª série, n.º 6, de 8 de Janeiro de 1986), 41/86 (idem, 2.ª série, n.º 111, de 15 de Maio de 1986), 280/86 (idem, 2.ª série, n.º 5, de 7 de Janeiro de 1987), 281/86 (idem, ibidem), 187/87 (idem, 1.ª série, n.º 137, de 17 de Junho de 1987), 180/88 (idem, 2.ª série, n.º 284, de 10 de Dezembro de 1988) e 267/88 (idem, 1.ª série, n.º 293, de 21 de Dezembro de 1988).
A 2.ª revisão constitucional, de 1989, tratou a questão de jure constituto, ao aditar um novo n.º 5 ao artigo 168.º, a cujo sentido e alcance já atrás aludimos (cf. supra II, C, n.º 5).
Desse preceito decorre, para o que ora releva, que a Constituição permite que constem da lei do orçamento normas que contenham autorizações legislativas, versem ou não sobre matéria fiscal. Umas e outras estão sujeitas às regras do artigo 168.º, designadamente sobre a definição do respectivo objecto, extensão, sentido e duração, exceptuado, quanto a este último aspecto, o caso das autorizações sobre matéria fiscal, cuja duração corresponde ao ano económico a que respeita o Orçamento em causa. Pelo que, quanto aos demais elementos, o regime geral das autorizações contidas nas comuns leis de autorização (autorizações autónomas) aplica-se sem reservas às autorizações contidas na lei do orçamento (autorizações não autónomas).
A esta luz, cumpre, pois, apreciar os aludidos preceitos da Lei 2/92 quanto ao seu objecto, sentido e extensão.
2 - A enunciação, no artigo 168.º da Constituição, dos elementos que integram o «conteúdo mínimo exigível» de uma autorização legislativa não constitui, por si só, requisito suficiente de interpretação das condições necessárias à validade do processo de delegação legislativa em causa. A determinação de tal conteúdo terá, pois, de ser feita tendo em vista a finalidade da sua exigência, ou seja, a obrigação constitucional de o legislador delegante, na sua qualidade de «legislador originário», incluir, na autorização, as indicações necessárias quanto à delimitação da matéria e quanto aos critérios de valoração do regime a adoptar ao abrigo da delegação, em termos susceptíveis de permitirem quer a utilização desses poderes pelo legislador delegado, quer o controlo da forma de exercício desses mesmos poderes.
O entendimento que a própria Constituição faz daquele «conteúdo mínimo exigível» tem evoluído significativamente. Com efeito, o texto originário da Constituição apenas se referia aos elementos objecto, extensão e duração como integrando tal conceito, embora alguns autores (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, p. 336) já então propendessem para uma interpretação ampla da determinação do objecto e da extensão da autorização em termos conjugados, que permitissem, no quadro de um correcto relacionamento institucional entre o Governo e o Parlamento, incluir nessa exigência constitucional a definição do próprio sentido das modificações a introduzir ao abrigo dos poderes delegados, ainda que em termos apenas implícitos.
A 1.ª revisão constitucional - de 1982 - aditou ao quadro originário a exigência do sentido, acolhendo, assim, o entendimento de que este constitui um elemento autónomo dos outros dois (mesmo quando conjugados entre si) e, por isso, deve integrar o conteúdo mínimo da autorização em termos especificamente identificados na própria norma de autorização.
A revisão de 1989, ao clarificar o regime das autorizações legislativas contidas na lei do orçamento, completou, assim, o processo de evolução legislativa no sentido de enquadrar no regime geral as autorizações não autónomas contidas naquela lei.
Esta evolução tem, como sentido geral, o de tornar progressivamente mais claro e exigente o regime da delegação legislativa, nas suas diversas valências, em função da mutação do exercício dos poderes legislativos no Estado de direito democrático e no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania e pelo valor constitucionalmente reconhecido à reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
3 - Os dois primeiros requisitos constitucionais questionados pelo Presidente da República, quanto aos aludidos preceitos da Lei 2/92, referem-se a limites externos da autorização, ou seja, a elementos destinados a delimitar as fronteiras dos poderes que vão ser alvo da delegação.
Quanto ao objecto da autorização, ele consiste na enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa que, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita por mera remissão e abranger inclusive mais do que um tema ou assunto. Como já se escreveu, «a determinação do objecto definido pode ser feita de forma indirecta ou até implícita, quer por referência a actos legislativos preexistentes (que a delegação pretenda coordenar, refundir ou pôr em execução), quer por natural decorrência dos princípios e critérios directivos aplicados a uma matéria genericamente enunciada ou a matérias conexas» (cf. António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. pol., Lisboa, 1985, p. 231).
Por seu turno, a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados.
A esta luz, vejamos qual o objecto e a extensão das autorizações em causa.
4 - Quanto ao artigo 38.º, n.º 1, pode-se, desde logo, concluir que o objecto e a extensão da autorização nele contida estão definidos, se não expressamente, pelo menos por força da remissão normativa aí consagrada. Com efeito, objecto da autorização serão os regimes do «mecenato cultural» e dos «donativos a instituições do Estado que prossigam objectivos culturais», o primeiro delimitado pelo artigo 39.º do Código do IRC (aprovado pelo Decreto-Lei 442-B/88, de 30 de Novembro) e o segundo pelos artigos 40.º do mesmo Código e 56.º do Código do IRS (aprovado pelo Decreto-Lei 442-A/88, também de 30 de Novembro). Da formulação do preceito resulta igualmente que a autorização abrange, quanto à sua extensão, irrestritamente todos os elementos dos aludidos regimes que constam das normas para que se faz remissão.
Dispõem os referidos preceitos, para os quais remete o artigo 38.º da Lei 2/92:
Artigo 39.º
Donativos para fins culturais - Mecenato
1 - São também considerados custos ou perdas do exercício os donativos concedidos pelos contribuintes até ao limite de 2% do volume de vendas e ou dos serviços prestados no exercício se as entidades beneficiárias:
a) Forem museus, bibliotecas, escolas, institutos e associações de ensino ou de educação, de investigação ou de cultura científica, literária ou artística;
b) Desenvolverem acções no âmbito de actividades de produção cinematográfica, áudio-visual, literária, teatro, bailado, música, de organização de festivais e de outras manifestações artísticas, desde que assumam manifesto interesse cultural, reconhecido por despacho conjunto do Ministro das Finanças e do ministro que tenha a seu cargo o sector da cultura.
2 - Quando o valor dos donativos às entidades referidas no número anterior exceda o limite aí fixado, é ainda considerada custo ou perca do exercício a importância que resultar da soma desse limite com 50% do excesso.
Artigo 40.º
Donativos ao Estado e a outras entidades
1 - São considerados custos ou perdas do exercício, na sua totalidade, os donativos concedidos ao Estado, Regiões Autónomas e autarquias locais, ou a qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados.
2 - São também considerados custos ou perdas do exercício, na sua totalidade, os donativos concedidos a fundações em que o Estado ou as Regiões Autónomas participem em, pelo menos, 50% da sua dotação inicial ou, sendo a participação inferior, desde que tal seja autorizado por despacho conjunto do Ministro das Finanças e do ministro da respectiva tutela.
3 - São ainda considerados custos ou perdas do exercício os donativos concedidos pelo contribuinte até ao limite de 2% do volume das vendas e ou dos serviços prestados no exercício se as entidades beneficiárias forem pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, instituições particulares de solidariedade social, instituições de beneficência e centros de cultura e desporto ou centros populares de trabalhadores organizados nos termos dos estatutos do Instituto Nacional para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores.
4 - São igualmente consideradas custos ou perdas do exercício as importâncias concedidas pelos associados até ao limite de 1/1000 ao volume de vendas e ou dos serviços prestados no exercício da actividade comercial, industrial ou agrícola aos respectivos organismos associativos a que pertençam, em vista à satisfação dos seus fins estatutários.
5 - Quando os donativos referidos no presente artigo se destinarem a custear a instalação e ou manutenção de creches e jardins-de-infância, lares de idosos ou centros de dia para idosos, instituições de prevenção, tratamento e reinserção de doentes vítimas de tóxico-dependência ou em tratamento da sida, são considerados como custos em valor correspondente a 140% do total desses donativos. [Este n.º 5 foi aditado pelo artigo 30.º, n.º 3, da Lei 2/92.]
Artigo 56.º
Abatimentos por donativos de interesse público
1 - Ao rendimento determinado nos termos do artigo anterior abater-se-ão os donativos em dinheiro ou espécie concedidos à administração central, regional e local ou a qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados.
2 - Ao rendimento líquido, e até 15% do valor deste, abater-se-á ainda o valor dos donativos em dinheiro ou espécie concedidos às entidades beneficiárias que:
a) Sejam igrejas, instituições religiosas ou ainda pessoas colectivas de fins não lucrativos, pertencentes ou instituídas por confissões religiosas;
b) Sejam museus, bibliotecas, escolas, institutos e associações de ensino ou de educação, de investigação ou de cultura científica, literária, artística, pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, instituições particulares de solidariedade social ou instituições de beneficência;
c) Desenvolvam acções no âmbito da actividade de produção literária, teatro, bailado e música de manifesto interesse cultural e como tal reconhecido por despacho conjunto do Ministro das Finanças e do ministro que tenha a seu cargo o sector da cultura;
d) Os que se destinem a custear a instalação e ou manutenção de creches ou jardins-de-infância.
3 - Os abatimentos previstos nos números anteriores só serão efectuados quando os donativos não tenham sido contabilizados como custos do exercício, por aplicação do disposto nos artigos 39.º e 40.º do Código do IRC.
Em face do teor destes preceitos resulta que o Governo se encontra habilitado a regular, para os efeitos previstos no Código do IRC e no Código do IRS, o regime do denominado «mecenato cultural» e dos «donativos a instituições do Estado que prossigam fins culturais» com a amplitude decorrente das citadas normas para que remete o n.º 1 do artigo 38.º da Lei 2/92. Desta forma não se pode considerar que a determinação do objecto e da extensão da autorização em causa sejam insuficientes, pelo que, nesta vertente, o preceito impugnado não contrasta com as exigências constantes do n.º 2 do artigo 168.º da Constituição.
Quanto ao n.º 2, embora na sua estrita literalidade o preceito se limite a estatuir que o Governo fica autorizado a legislar no sentido da criação de um regime de mecenato cultural à organização «Lisboa, capital europeia de cultura 1994», o certo é que é possível entrever no preceito em causa, por força da sua inserção sistemática, uma articulação com o n.º 1 do mesmo artigo, pelo que à norma em causa poderá ser dado o alcance de fazer abranger a referida organização no regime de benefícios fiscais constantes do número antecedente, donde a norma em crise dever ser interpretada em subordinação a esse regime a que alude o referido n.º 1 do mesmo artigo.
Assim sendo, a autorização consubstancia-se no alargamento à referida organização do regime definido no n.º 1, com o objecto e a extensão deste decorrente, pelo que, também quanto ao n.º 2, haverá que ter por preenchidos os requisitos constitucionais constantes do n.º 2 do artigo 168.º da Constituição.
5 - Quanto ao artigo 50.º, sob a epígrafe «Contribuição autárquica», dispõe a alínea b) que o Governo fica autorizado a aprovar o «Código das Avaliações referente à propriedade rústica e urbana».
A determinação do objecto e da extensão desta autorização terá de ser feita, de igual forma, através de uma análise sistemática do preceito em que se insere e recorrendo ao mesmo sistema da remissão, só que, desta feita através de uma remissão implícita.
Com efeito, a contribuição autárquica é regulada pelo respectivo Código, aprovado pelo Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro (emitido ao abrigo da Lei de autorização 106/88, de 17 de Setembro), o qual decreto-lei, no seu artigo 8.º, dispõe:
Artigo 8.º
[...]
1 - Enquanto não entrar em vigor o Código das Avaliações, os prédios continuarão a ser avaliados segundo as correspondentes regras do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, aprovado pelo Decreto-Lei 45104, de 1 de Julho de 1963, determinando-se o seu valor tributável de acordo com o disposto nos n.os 1 dos artigos 6.º e 7.º do presente decreto-lei.
2 - No caso de terrenos para construção, o seu valor tributável será determinado por aplicação das regras contidas no Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações.
Os aludidos n.os 1 dos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei 442-C/88 dispõem nos seguintes termos:
Artigo 6.º
[...]
1 - O valor tributável dos prédios urbanos, enquanto não for determinado de acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 15.
Artigo 7.º
[...]
1 - O valor tributável dos prédios rústicos, enquanto não for determinado de acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 20.
Por seu turno a Lei 106/88, de 17 de Setembro, no seu artigo 37.º, n.º 4, dispõe que «o Governo deverá proceder à revisão das normas de avaliação da propriedade rústica e urbana por forma a conseguir-se, com encargos administrativos mais baixos, uma determinação mais rigorosa da matéria colectável e um reforço das garantias dos contribuintes».
Do aludido conjunto de normas resulta, pois, que a autorização legislativa em causa tem por objecto a definição de um corpo normativo que permita a determinação do valor da propriedade rústica e urbana, valor esse que servirá de base à aplicação futura da contribuição autárquica. Quanto à sua extensão, a autorização abrange, pois, todos os aspectos do aludido regime de avaliação que se compreendam na revogação e substituição das regras actualmente aplicáveis à determinação do valor da propriedade rústica e urbana, constantes do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (aprovado pelo Decreto-Lei 45104, de 1 de Julho de 1963) e, quanto à determinação do valor dos terrenos para construção, das regras aplicáveis do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações.
Nestes termos, embora de forma indirecta, pode-se concluir que o objecto e a extensão da autorização em causa se encontram definidos de forma tal que preenchem os requisitos de determinabilidade postulados pelo n.º 2 do artigo 168.º da Constituição, pelo que, nesta vertente, não é passível de censura constitucional.
6 - Resta, pois, analisar o último elemento das autorizações em causa questionado pelo Presidente da República, o do seu sentido.
Enquanto o objecto e a extensão constituem limites externos da autorização, já o sentido constitui um seu limite interno, porque essencial para a determinação das linhas de força, no plano substantivo, que nortearão o exercício dos poderes delegados.
Após 1982, o modelo constitucional português aproxima-se do vigente na Lei Fundamental de Bonn, onde, no seu artigo 80.º, se exige que a lei de autorização «contenha, em termos determinados, o conteúdo, o objecto e o alcance da autorização outorgada». A definição destes limites deve constar imediatamente da lei de autorização, não podendo ser determinados apenas a partir dos próprios diplomas autorizados, na medida em que é o próprio legislador delegante que tem a obrigação constitucional de estatuir as normas habilitantes, e deve fazê-lo em termos que, simultaneamente, orientem o legislador delegado e tornem reconhecível e até previsível pelo cidadão qual o sentido da legislação que vai ser emanada ao abrigo dos poderes delegados.
Como referem Maunz, Durig e Herzog (Grundgesetz - Kommentar, Munchen, 1978, comentário ao artigo 80.º, nota 30) «o legislador tem de tomar decisões, segundo uma orientação que repute conveniente, relativa a domínios vitais do ordenamento, tem de ter querido alguma coisa e pensado no que queria, sem poder transferir o essencial dessa decisão para a entidade que emite o decreto».
Analisando esta questão, António Vitorino («As autorizações legislativas ...», cit., p. 233) refere que «na doutrina alemã a conjugação dos três elementos referenciados, constantes da lei de autorização, prefiguram o 'programa normativo' da delegação, susceptível de uma interpretação uniforme que possibilita que, a partir de uma das suas vertentes, o intérprete (ou o julgador) determine os elementos essenciais dos outros dois pressupostos ou limites da delegação. Essa faculdade, que relativiza a exigência de, logo na lei, se conter em detalhe todos os limites que presidem à delegação, constitui uma resultante do próprio posicionamento do Tribunal Constitucional Federal, cuja jurisprudência tem vindo progressivamente a afrouxar o grau de exigência desses elementos, em termos tais que tem tido por verificada a existência de cada elemento ou limite da autorização à luz e no contexto do restante conteúdo dessa autorização. Em contrapartida, a mesma doutrina alemã tem detectado que, no domínio do direito penal e do direito fiscal, a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal tem vindo a impor exigências mais rígidas quanto às leis de autorização, atento o melindre de que se revestem tais leis nesses domínios, face à defesa dos direitos e interesses dos cidadãos».
Diversa é a situação nos ordenamentos jurídicos italiano e espanhol, onde, nos artigos 76.º e 82.º, respectivamente, da Constituição da República italiana e da Constituição Espanhola, o grau de exigência de especificação dos limites materiais da lei de delegação é bastante maior do que no caso alemão, dela devendo constar expressamente os «princípios e critérios directivos» orientadores do exercício dos poderes delegados, sendo, aliás, assinalável a polémica doutrinária acerca da profundidade com que a lei de autorização pode condicionar o exercício dos poderes autorizados.
O texto constitucional português, como já se deixou dito, aproxima-se mais do seu congénere alemão, podendo entender-se que o sentido de uma autorização legislativa, sendo um dos elementos do «conteúdo mínimo exigível» da lei de autorização, só é efectivamente observado quando as indicações a esse título constantes da lei de autorização permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do acto delegado em relação ao da lei delegante, pelo que, se o «sentido» não tem que exprimir-se em abundantes princípios ou critérios directivos, deverá, pelo menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa preencher a função paramétrica que a Constituição lhe confere.
Nesta ordem de ideias escreveu António Vitorino (op. cit., pp. 238 e 239):
O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica daquelas matérias que integram o objecto da autorização que vão ser modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios orientadores [...], mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do Governo numa tripla vertente:
Por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspectiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente (é o sentido da óptica do delegante);
Por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (e o sentido na óptica do delegado); e
Finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização (é o sentido da óptica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República).
Assente este quadro de análise, passemos a apreciar o sentido das autorizações constantes do artigo 38.º e da alínea b) do artigo 50.º da Lei 2/92.
7 - Nos termos do citado artigo 38.º, «fica o Governo autorizado a alterar os regimes do mecenato cultural [...] e dos donativos a instituições do Estado que prossigam objectivos culturais [...], harmonizando e precisando o conjunto das actividades abrangidas e conferindo maior amplitude e eficácia aos mecanismos de concessão de apoio às acções culturais».
Embora redigido de forma muito genérica, tal que nos seus termos poderão, em teoria, caber soluções muito distintas entre si (e eventualmente tributárias de filosofias inclusive divergentes - cf., a este propósito, o debate no Plenário da Assembleia da República, Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 32, de 25 de Fevereiro de 1992, pp. 892 e 893), do preceito em causa resulta que a autorização se destina a compilar legislação dispersa (cf. a intervenção da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento, loc. cit., p. 892), conferindo-lhe coerência interna através da «harmonização e precisão» das actividades abrangidas pelo regime do mecenato cultural e dos donativos ao Estado e a outras entidades de interesse público, no expresso sentido de ampliar as condições de que beneficiam os contribuintes que procedam à entrega de donativos e subvenções para tais fins e tendo em vista a simplificação e a melhoria da eficácia dos mecanismos burocrático-administrativos sobre que assenta o apoio às acções culturais.
Neste contexto, pode-se concluir que, no uso dos poderes assim delegados, se o Governo beneficia de facto de uma ampla margem de manobra, os fins a que está adstrito são suficientemente explícitos para operarem como elementos do «conteúdo mínimo exigível» da lei de autorização, pois que deles decorre o essencial dos critérios que preenchem o valor paramétrico da lei de delegação, que permitirão aferir da conformidade da lei delegada face à lei de autorização e que indiciam junto dos contribuintes qual o «sentido geral» (ou «programa normativo») do regime a emitir ao abrigo desta autorização, mostrando-se, pois, o preceito como minimamente adequado à tripla vertente atrás assinalada ao limite interno do sentido da autorização.
Pelo que a mesma não é censurável na óptica constitucional.
Quanto ao n.º 2 deste artigo 38.º, tendo em linha de conta a interpretação atrás perfilhada quanto à sua extensão, de igual forma se há-de entender que o sentido da autorização contida neste preceito coincide com o que resulta do n.º 1 do mesmo artigo, pelo que também padece de qualquer vício de inconstitucionalidade.
8 - Quanto à alínea b) do artigo 50.º, com a autorização conferida ao Governo para aprovar um código das avaliações, visa «conseguir-se uma maior equidade de tributação, um reforço das garantias dos contribuintes e uma determinação mais rigorosa da matéria colectável, através da aplicação de critérios objectivos».
Questionado por diversos deputados sobre o sentido da autorização em causa, afirmou o Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento, na reunião de Fevereiro de 1992 da Comissão Parlamentar de Economia, Finanças e Plano [cuja acta vem publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série C, n.º 15, 4.º suplemento, p. 244-(232)]:
Quanto ao Código das Avaliações, permito-me dizer, em primeiro lugar, que a autorização legislativa que agora é pedida pelo Governo não difere muito da que foi pedida em 1988, quando da entrada em vigor da nova reforma fiscal e que VV. Exas. e as entidades que têm competência nessa matéria acharam perfeitamente clara e constitucional. Essa autorização legislativa vem dizer exactamente o que se passa, e, em relação a essa matéria, permito-me esclarecer o seguinte: com a reforma fiscal de 1989, o Código da Contribuição Autárquica tributa o valor dos imóveis; só que, como é sabido, transitoriamente mantêm-se as regras do Código da Contribuição Predial na avaliação dos prédios, o qual estava estruturado e pensado em termos diferentes do da contribuição autárquica, ou seja, as regras baseiam-se no chamado valor locativo dos prédios - o valor de um hipotético arrendamento - e, muitas vezes, dão uma grande margem, que é subjectiva, às comissões de avaliação. Isso leva a que essa avaliação se faça de uma forma bastante diferenciada, quer de concelho para concelho quer mesmo dentro do mesmo concelho. Há, de facto, uma grande margem de subjectividade.
O novo Código das Avaliações pretende, justamente, que haja um cálculo muito mais objectivo do valor dos imóveis, daí falar-se, exactamente, numa tributação que tenha por base a utilização de critérios objectivos, que podem passar - como tive ocasião de dizer na Comissão especializada - pela área dos imóveis, pela sua localização, pelo seu grau de conforto, etc.
Portanto, a ideia do Governo não é, obviamente, agravar a tributação, mas, sim, por um lado, introduzir factores de equidade e tratamento igual dos contribuintes e, por outro, tratar os próprios contribuintes com a maior objectividade, permitindo-lhes um recurso consciencioso com base em critérios objectivos.
Deste trecho acabado de transcrever resulta, com efeito, que a autorização em causa consubstancia uma reforma profunda do sistema de avaliação da propriedade, com relevantes projecções no domínio tributário, designadamente no plano da contribuição autárquica. Essa reforma que o Governo pretende levar a cabo visa, no essencial, substituir o anterior sistema de avaliação da propriedade urbana e rústica, afastando os actuais critérios e métodos usados, substituindo-os por outros, de natureza objectiva, que assegurem equidade de tratamento dos contribuintes e uma mais rigorosa determinação da matéria colectável.
Desde logo poderia colocar-se a questão de saber se, no caso, haveria necessidade de autorização parlamentar para emissão do diploma em causa (o Código das Avaliações). A resposta a tal questão há-de ser, pelo menos em parte, afirmativa.
Com efeito, de acordo com o sistema do Código da Contribuição Autárquica (que dispõe no n.º 1 do seu artigo 7.º que «valor tributável dos prédios é o seu valor patrimonial determinado nos termos do Código das Avaliações»), a sua aplicação carece, pois, do preenchimento de pressupostos atinentes ao valor dos bens sobre os quais aquela tributação vai incidir, a operar por via do Código das Avaliações.
No contexto deste sistema de reenvio normativo, e sem entrar aqui e agora - porque desnecessária - na dilucidação das complexas questões que a doutrina suscita a propósito do âmbito e alcance da determinação da matéria colectável [cf., entre outros, Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, cit., n.º 7.5, b), II, Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, cit., n.º 33, d), e Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, Lisboa, 1972, n.º 58], tem-se por seguro que, no caso concreto, a habilitação legislativa em apreço referente ao Código das Avaliações incidirá sobre critérios materiais da definição da incidência real da própria contribuição autárquica, nessa medida comportando elementos que reentram na esfera de reserva parlamentar decorrente da alínea l) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, o que postula a exigência de autorização parlamentar.
Trata-se, pois, de inovar numa área onde está em causa o valor da propriedade imobiliária, área essa que se reveste de especial melindre, pois trata-se de definir as regras que vão presidir ao tratamento, pelo Estado, dos bens imobiliários dos particulares. É um domínio de matérias que tem dado origem a acaloradas polémicas doutrinárias e à contraposição de distintas filosofias políticas quanto ao significado da tributação da propriedade (cf. a intervenção do deputado António Lobo Xavier, do CDS, na sessão plenária de 24 de Fevereiro de 1992, Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 32, de 25 de Fevereiro de 1992, p. 896).
Ora, a esta luz, estando, sem dúvida, em causa elementos relevantíssimos do estatuto patrimonial dos particulares (o valor dos seus bens imobiliários), desenhando-se, pois, uma actualização das avaliações desses bens com base em critérios totalmente novos e não explicitados, os quais pressupõem, aliás, uma rotura com o modelo do passado, inexistindo, de igual forma, qualquer previsão que indique a progressividade ou a imediata vigência do novo sistema, e não se vislumbrando sequer uma indicação, por genérica que fosse, sobre o sentido desagravador ou de agravamento dessas avaliações e da tributação a lançar com base nelas, tem-se por insuficientemente preenchido o «programa normativo» da autorização em causa, por manifesta insuficiência de sentido, pelo que a norma em causa é ofensiva do disposto no n.º 2 do artigo 168.º da Constituição.
E isto porque, na realidade, os elementos constantes do preceito em causa, se bem que estabeleçam alguns limites ao uso dos poderes delegados (o princípio da equidade de tributação, o reforço das garantias dos contribuintes e a aplicação de critérios objectivos na determinação da matéria colectável), não encerram, em si mesmos, nenhum critério orientador do uso dos poderes delegados que se possa ter por autónomo em relação aos princípios gerais do nosso sistema fiscal. Ora, porque nos movemos num domínio onde mais directamente podem ser afectados direitos e interesses dos particulares, tal como já atrás foi assinalado a propósito da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, justifica-se plenamente que se seja mais rigoroso e exigente na determinação do sentido da autorização em causa, por forma que o preceito autorizador cumpra a tripla função a que anteriormente aludimos (conteúdo material bastante da lei de autorização, linha de orientação do legislador delegado, elemento de informação genérica das inovações a introduzir no ordenamento para os particulares).
De outra forma estaríamos perante uma «autorização em branco», esvaziadora da função habilitante que ao Parlamento cabe assumir num processo legislativo especial como é o das autorizações legislativas. A que acresce que, convém recordá-lo, historicamente a função política do Parlamento encontra-se estreitamente associada à definição dos tributos, do estatuto da propriedade face ao Estado e dos limites impostos ao poder executivo em termos de sacrifício da propriedade dos cidadãos. Se uma tal temática esteve tão directamente ligada à superação do absolutismo, não se vê que num Estado de direito democrático as coisas tenham de ser de modo diverso, pelo que sem um suficiente compromisso dos representantes eleitos do povo com um sentido orientador do futuro sistema de avaliação e tributação da propriedade imobiliária a delegação legislativa em causa deverá ter-se por claudicante.
E nem se diga que um tal rigor deveria ser «suavizado» in casu, por a norma em apreço se inserir na lei do orçamento e poder (e dever mesmo) ser interpretada no contexto deste diploma e em função da sua especial natureza, dada a «atracção» provocada pela aludida inserção sistemática. É que, em boa verdade, se a alteração introduzida pela revisão constitucional de 1989 no artigo 168.º, n.º 5, da Constituição, a que já nos referimos detalhadamente (cf. supra II, C, n.º 4), legitima plenamente, do ponto de vista constitucional, as autorizações legislativas em matéria fiscal e até as «autorizações extravagantes» (em matéria não fiscal), esse mesmo preceito constitucional torna claro e incontornável que, mesmo no caso das autorizações em matéria fiscal - e exceptuado apenas o regime quanto ao prazo de caducidade -, as autorizações que integrem a lei do orçamento estão sujeitas às regras e aos limites do artigo 168.º da nossa lei fundamental, não podendo hoje, pois, proceder uma visão menos rigorosa e exigente que assentasse no argumento de ordem sistemática da inserção dessas autorizações na própria lei do orçamento. Além do que, os pontos obscuros da autorização em apreço, que atrás assinalamos, não parece que resultem clarificados por qualquer outro dispositivo da aludida lei. Ora, evidente se torna que, tomada enquanto autorização autónoma, a norma da alínea b) do artigo 50.º da Lei 2/92 não pode ter-se como contendo uma autorização legislativa idónea à luz do disposto no n.º 2 do artigo 168.º da Constituição.
III
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não declarar a inconstitucionalidade nem a ilegalidade dos artigos 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, e 14.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei 2/92, de 9 de Março;
b) Não declarar a inconstitucionalidade do artigo 38.º da Lei 2/92, de 9 de Março;
c) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do artigo 50.º da Lei 2/92, de 9 de Março, por violação do artigo 168.º, n.º 2, da Constituição.
Lisboa, 11 de Novembro de 1992. - António Vitorino - Bravo Serra - Luís Nunes de Almeida - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Maria da Assunção Esteves - Armindo Ribeiro Mendes - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - Fernando Alves Correia - Vítor Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.