Acórdão 55/99
Processo 970/98
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
1 - O procurador-geral-adjunto neste Tribunal, como representante do Ministério Público, veio «requerer, ao abrigo dos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte em que refere os descendentes em 1.º grau do senhorio».
Para fundamentar o seu pedido o requerente invoca que «tal norma foi explicitamente julgada inconstitucional, por violação da alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa (na versão de 1989) através dos Acórdãos n.os 127/98, de 5 de Fevereiro (in Diário da República, 2.ª série, n.º 114, de 18 de Maio de 1998), 426/98, de 16 de Junho, e 427/98, da mesma data», tendo juntado cópias desses acórdãos.
2 - Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º da citada Lei 28/82, o Primeiro-Ministro limitou-se a dizer que «oferece o merecimento dos autos».
3 - Apresentado memorando, nos termos do disposto no artigo 63.º da mesma Lei 28/82, foi ele apreciado, discutido e votado, na sessão de 13 de Janeiro corrente, seguindo-se a distribuição dos autos nessa mesma sessão, depois de fixada a orientação do tribunal sobre o objecto do pedido.
Cumpre agora decidir.
4 - O artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 279/93, de 15 de Outubro), dispõe como se segue:
«1 - Sem prejuízo dos casos previstos no artigo 89.º-A, o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação nos casos seguintes:
a) Quando necessite do prédio para sua habitação, ou dos seus descendentes em 1.º grau, ou para nele construir a sua residência;»
Por seu turno, a Lei 42/90, de 10 de Agosto, dispõe, nos seus artigos 1.º e 2.º na parte relevante quanto a este último preceito:
«Artigo 1.º
É concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano.
Artigo 2.º
As alterações a introduzir ao abrigo da presente autorização legislativa devem obedecer às directrizes seguintes:
a) Codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade;
b) Simplificação dos regimes relativos à formação, às vicissitudes e à cessação do respectivo contrato, de modo a facilitar o funcionamento desse instituto;
c) Preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário;»
Aquela norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), veio, com efeito, e tal como se alega no requerimento inicial, a ser julgada inconstitucional nos acórdãos deste Tribunal Constitucional aí identificados e cujas fotocópias se juntaram com o pedido, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea h), da Constituição (versão de 1989) na parte em que refere os descendentes em 1.º grau do senhorio ou - o que é o mesmo - na parte em que permite ao senhorio denunciar o contrato quando necessite do prédio para habitação dos seus descendentes em 1.º grau.
Seguindo de perto a fundamentação desenvolvida nos Acórdãos n.os 127/98 e 426/98 - o Acórdão 427/98 limitou-se a remeter para a fundamentação daquele outro com o n.º 127/98 - e transcrevendo os trechos mais relevantes que deles constam, tudo se reduz «em saber se o legislador governamental dispunha de habilitação parlamentar para editar tal solução, alargando aos descendentes do senhorio o elenco dos necessitados do locado para aí instalarem a respectiva residência, em termos de o senhorio poder denunciar judicialmente o contrato de arrendamento para proceder à instalação dos seus descendentes no imóvel ou fracção em causa».
Lê-se no Acórdão 127/98:
«Comentando o artigo 69.º do Regime do Arrendamento Urbano, logo em 1990, António Menezes Cordeiro e Francisco Castro Fraga afirmaram que esse preceito correspondia ao artigo 1096.º do Código Civil, 'com uma inovação de grande significado: o senhorio pode não só denunciar o contrato de arrendamento quando ele próprio necessite do prédio, mas também quando os seus descendentes em 1.º grau dele necessitem'. Na opinião destes comentadores, tal inovação era 'inteiramente de aplaudir: na verdade, entre o interesse do inquilino em manter a utilização do locado e o do senhorio em conseguir habitação para os seus filhos, é de justiça que a lei dê maior protecção a este último quando o senhorio seja proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio (cf. o artigo 71.º)' (Novo Regime do Arrendamento Urbano Anotado, Coimbra, 1990, p. 115).
É, assim, indiscutível que se trata de uma inovação significativa, relativamente ao direito anterior (Código Civil de 1966, diploma que reproduzia a solução da Lei 2030, de 22 de Junho de 1948).
Importa, igualmente, pôr em relevo que a discussão sobre os titulares e beneficiários do direito de denúncia do arrendamento é clássica na história do direito privado português.
O livro IV, título XXIV, das Ordenações Filipinas admitia como causa de despejo imediato a situação em que 'o senhor da casa, por algum caso que de novo lhe sobreveio, a há mister para morar nela, ou para algum seu filho, irmão ou irmã, porque nestes casos poderão lançar o alugador fora durante o tempo de aluguer, pois lhe era tão necessário, pelo caso que de novo lhe sobreveio, de que não tinha razão de cuidar ao tempo que a alugou' (transcrito em M. Januário Costa Gomes, Arrendamentos para Habitação 2.ª ed., Coimbra, 1996, p. 304).
A partir da legislação vinculística surgida durante e após a Primeira Guerra Mundial, restringiu-se fortemente a possibilidade de despejo dos prédios arrendados para habitação.
Durante a preparação da Lei 2030, o projecto de lei do deputado Sá Carneiro previa como fundamento de despejo a necessidade de o senhorio necessitar da casa para sua habitação ou para a dos seus ascendentes ou descendentes, solução que chegou a ser aceite no parecer da Câmara Corporativa sobre a referida proposta. A medida inovatória, porém, veio a ser abandonada dadas as críticas surgidas, nomeadamente do advogado e parlamentar Tito Arantes (v. a notícia referida por M. Januário Costa Gomes, ob. cit., p. 305). A solução que passou a constar da alínea b) do artigo 69.º da Lei 2030 transitou para o Código Civil de 1966, tendo, pois, vigorado durante mais de 50 anos qua tale e, na prática, mais de 70 anos (cf. Jorge H. C. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra, 1996, pp. 173 e segs.; M. Januário Costa Gomes, ob. cit., pp. 304-306).»
E mais à frente:
«Desde a revisão constitucional de 1982 entra na competência reservada da Assembleia da República (reserva relativa) o 'regime geral do arrendamento rural e urbano' [artigo 168.º, n.º 1, alínea h), da Constituição; actualmente e após a 4.ª revisão constitucional de 1997, regula a matéria o artigo 165.º, n.º 1, alínea h)].
Interpretando esta norma, indicam Gomes Canotilho e Vital Moreira que esta reserva não abrange 'eventuais regimes especiais [que] sejam definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas assembleias das Regiões Autónomas), nos pontos indicados pela própria lei, com respeito pelos princípios fundamentais do regime geral [...] De entre estes princípios conta-se seguramente o regime de celebração do contrato e da sua cessação, bem como os direitos e deveres das partes (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 77/88), e ainda a fixação do montante da renda e respectivos critérios (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 245/89). Em qualquer caso, trata-se, entre outras coisas, de dar execução às directivas constitucionais do artigo 65.º, n.º 3 (arrendamento urbano) e do artigo 99.º, n.º 1 (arrendamento rural)' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 673-674).
No referido Acórdão 77/88 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 361 e segs.), teve ocasião o Tribunal Constitucional de precisar o que entrava na competência reservada do órgão parlamentar em matéria de regime geral do arrendamento rural e urbano, nos seguintes termos:
"Refere-se ele [o dispositivo da alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição] ao 'regime geral do arrendamento rural e urbano' - numa fórmula que encontra paralelo na das alíneas d) e e) do mesmo artigo (ambas tratando igualmente de regime geral), e é diferente da das alíneas f), g) ou n), por exemplo, as quais incluem na reserva apenas as 'bases' dos correspondentes regimes. Ora, logo este ponto de partida textual mostra que a reserva em causa não se limita à definição dos 'princípios', 'directivas' ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das 'bases' respectivas), mas desce ao nível das próprias 'normas' integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção 'arrendamento rural e urbano', nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência, e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é 'regime jurídico' dessa figura negocial. Por outras palavras e em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa." (Vol. cit., p. 367.)»
A lei que autorizou o Governo a legislar na matéria em causa - a citada Lei 42/90 - veio fixar directrizes sobre o sentido das alterações a introduzir no regime do arrendamento urbano e foi sujeita a fiscalização de constitucionalidade, no plano abstracto, pelo Tribunal Constitucional.
O Acórdão 127/98 dá notícia desse processo nestes termos:
«Nessa ocasião, o Tribunal Constitucional não considerou que as alíneas do artigo 2.º da lei questionadas pelos deputados requerentes do pedido de fiscalização violassem o n.º 2 do artigo 168.º da Constituição.
Relativamente à alínea c) desse artigo 2.º - [...] -, afirmou o Tribunal Constitucional, embora por maioria, que dele resultava um sentido suficiente para a autorização conferida ao legislador governamental:
"Pois bem: dizer que o Governo, no decreto-lei que vier a editar para codificar a legislação existente, há-de preservar as 'regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário' é definir, com suficiente clareza, o sentido da autorização legislativa e a respectiva extensão.
De facto, a autorização comporta o entendimento de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando, embora, a defesa do arrendatário, no entanto, se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente, porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material." (Acórdão 311/93, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º vol., p. 222.)
Neste acórdão o Tribunal Constitucional ocupou-se da validade ou invalidade constitucional dessa norma da lei autorizadora, procurando saber se dela ressaltava um sentido e extensão da autorização conformes às exigências do n.º 2 do artigo 168.º da Constituição. Embora nessa perspectiva, o Tribunal Constitucional referiu, a título de exemplo, algumas das soluções do Regime do Arrendamento Urbano, entretanto publicado, que teve como desenvolvimentos da directriz conferida pelo Parlamento ao Governo: manutenção do arrendamento urbano como contrato obrigatoriamente renovável (artigo 98.º do Regime do Arrendamento Urbano), conservação da regra imperativa da fixação da renda em escudos, manutenção da regra de que as rendas só são actualizáveis nos termos previstos na lei e da regra da transmissão do arrendamento para o cônjuge do arrendatário em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens. Do mesmo passo, o legislador governamental, habilitado por essa directriz, criara validamente um regime de transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário e de um regime de atribuição do direito à celebração do novo arrendamento relativamente a pessoas conviventes com o arrendatário ou o subarrendatário, que não tivessem laços familiares estreitos, mantendo o direito de preferência do arrendatário em caso de alienação do imóvel locado, bem como a regra da tipicidade das causas de extinção do contrato e da necessidade de recurso obrigatório a acção judicial para fazer cessar, em certos casos, a relação locatícia; e, ainda, a conservação dos fortes condicionamentos ou impedimentos à possibilidade de denúncia do contrato pelo senhorio.
Na mesma decisão, a par das soluções de conservação, indicou o Tribunal certas soluções eliminatórias que teve por baseadas nessa directriz: legitimidade da inovação da nulidade do contrato, por falta de forma, restrita ao arrendatário; eliminação da possibilidade de diferimento judicial da desocupação do locado em caso da inércia do réu.
Mas o Acórdão 311/93 recordou igualmente que, não obstante a reserva parlamentar constante da alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição não ser "esgotante e absoluta", o Acórdão 77/88 havia enunciado a regra de que a mesma reserva devia ser entendida:
"[...] como respeitante unicamente aos aspectos significativos ou seja, verdadeiramente substantivos do regime legal do contrato, mas permitindo a intervenção do Governo na regulamentação do que seja puramente adjectivo ou processual.
Como quer que seja, à Assembleia da República estará sempre reservada a definição das regras materiais aplicáveis à generalidade dos contratos de arrendamento rural e urbano, e tenham estes últimos como finalidade a habitação ou quaisquer outros fins [...]".»
Acrescenta-se nele ainda:
«Nos exemplos de inovação através de eliminação da regra anterior que o Acórdão 311/93 trouxe à colação figuram aspectos apenas de ordem adjectiva ou processual (legitimidade para arguição da nulidade do contrato por falta de forma; supressão do diferimento judicial da desocupação do locado, em caso de inércia do réu).
Poder-se-á então, sustentar que a nova possibilidade de denúncia do contrato para o termo da sua vigência decorrente da ampliação do elenco das pessoas que necessitam do andar locado para habitação - aspecto indiscutivelmente substantivo da regulamentação, tanto mais que não é modificada a legitimidade processual do senhorio para requerer a denúncia judicial do contrato - se poderá reconduzir à directriz da "preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário"?
Januário Costa Gomes põe em causa tal possibilidade interpretativa, nos seguintes termos:
"Aparentemente, a previsão de denúncia com fundamento em necessidade do prédio para habitação dos descendentes em 1.º grau, não terá estado, desde o início, na ideia do legislador. Na verdade, essa previsão não constava do texto do projecto (que terá 'circulado' pelos ministérios mas não, e estranhamente, pela 'comunidade jurídica'), mas o mais sintomático é o facto - gerador de fortes suspeitas de inconstitucionalidade orgânica da medida inovadora - de a minuciosa Lei 42/90, de 10 de Agosto (que deu ao Governo autorização legislativa para aquele que viria a ser o Regime do Arrendamento Urbano), não elencar nas 13 alíneas do seu artigo 2.º a inovação ora em causa, não parecendo também que a mesma tenha a cobertura das directrizes 'genéricas' do mesmo preceito, como sejam as constantes das alíneas a), b), c) e g).
As suspeitas de inconstitucionalidade orgânica não ficam ultrapassadas com o Acórdão do Tribunal Constitucional de 28 de Abril de 1993 (Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1993 e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 426, p. 93), que decidiu não declarar a inconstitucionalidade das alíneas a), b), c), e), g), h), i) e m) do artigo 2.º da Lei 42/90, de 10 de Agosto" (ob. cit., p. 306; a referência à alínea g) do artigo 2.º da Lei 42/90 compreende-se na medida em que aí se consagra a directriz de "estabelecimento da tramitação processual adequada à realização dos objectivos fixados na lei substantiva.)".
No mesmo sentido da inconstitucionalidade se pronunciou igualmente António Sequeira Ribeiro, Sobre a Denúncia no Contrato de Arrendamento Urbano para Habitação, Lisboa, 1996, pp. 82-84.»
Registe-se, a propósito da posição daqueles autores, que no Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1997, de Pires de Lima e Antunes Varela, expressa-se também o entendimento de que o Regime do Arrendamento Urbano «ampliou o campo de aplicação» do fundamento de denúncia em causa, «estendendo-o aos casos em que a necessidade de habitação respeite, não ao próprio senhorio, mas a qualquer dos descendentes dele em 1.º grau (quer se trate de filho nascido dentro ou fora do casamento, quer de filho adoptivo, sendo plena a adopção: artigo 1986.º do Código Civil)», acrescentando-se ainda: «A dificuldade especial criada pela extensão da denúncia está na sua aplicação prática e reside na prova da real necessidade do prédio para a habitação do descendente, visto nem sempre ser fácil distinguir entre as meras expectativas de pessoas de vontade volúvel e os projectos firmes de mudança de estado desse descendente.»
E mais: tal ampliação ou extensão da denúncia não constava do anteprojecto legislativo oriundo do Gabinete do então Secretário de Estado da Construção e Habitação, subordinado à epígrafe «Estrutura jurídica da reforma do regime do arrendamento urbano» (cf. artigos 65.º a 67.º), nem de um posterior projecto do mesmo Gabinete (artigos 64.º a 66.º), o que corresponde à ideia expressa por Januário Costa Gomes.
Na linha do entendimento perfilhado naquele aresto, escreveu-se no Acórdão 426/98 (publicado já no Diário da República, 2.ª série, n.º 283, de 9 de Dezembro de 1998):
«Resulta claramente do texto da lei de autorização legislativa que, dentro dos limites fixados pelas diversas alíneas do artigo 2.º (e pelo artigo 4.º, cuja estatuição não tem relação com o objecto deste recurso), a alteração do regime geral do arrendamento urbano pode envolver modificações expressas ou tácitas do Código Civil ou das fontes que complementam esse Código.
Inversamente, não são admitidas inovações legislativas que não se contenham dentro desses limites.
A inovação constante da norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), segunda parte, do Regime do Arrendamento Urbano não se encontra abrangida pela alínea a) do artigo 2.º, que autoriza a 'codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano'.
A inclusão nessa alínea da expressão 'por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação' tem em vista a elaboração, a partir das regras dispersas anteriormente existentes, de um sistema coerente, tanto quanto possível sem lacunas e sem contradições internas. Tal formulação não legitima a regulação de matérias não contempladas na legislação até então em vigor - quanto à matéria em análise, não legitima a admissibilidade de novos fundamentos de denúncia do contrato por iniciativa do senhorio.
Por outro lado, este novo fundamento de denúncia do contrato de arrendamento urbano por iniciativa do senhorio não pode considerar-se coberto pela directriz expressa na alínea c) do artigo 2.º da Lei 42/90, que impõe a 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'.
Um dos vectores fundamentais em que se traduz a tutela da posição do arrendatário na legislação portuguesa em vigor há mais de 70 anos reside precisamente no estabelecimento de limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento. As regras de que resulta a limitação da autonomia privada do senhorio no domínio da cessação do contrato são seguramente as mais importantes regras de tutela da posição do arrendatário. A lei de autorização legislativa não contém qualquer elemento que permita a diminuição da tutela da posição do arrendatário ou que indicie a intenção de lhe sobrepor um outro interesse - o interesse do senhorio ou dos seus descendentes. Pelo contrário, a lei refere-se expressamente à 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'. A desconsideração do interesse do arrendatário na regulamentação da cessação do contrato só poderia legitimamente acontecer perante uma determinação nesse sentido do órgão com competência legislativa reservada na matéria.
A regra constante da norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), segunda parte, do Regime do Arrendamento Urbano introduz portanto uma significativa inovação, que transcende um quadro lógico da 'preservação/eliminação' de regras socialmente úteis da posição do arrendatário. Um entendimento diferente retiraria da reserva de competência da Assembleia da República a definição dos pressupostos, condições e limites do exercício da autonomia privada no domínio do contrato de arrendamento, designadamente no que diz respeito ao regime da sua cessação.»
5 - Estando, pois, preenchidos os requisitos constitucionais e legais que permitem requerer a este Tribunal Constitucional, à luz dos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade de uma norma, com força obrigatória geral, verifica-se que, nas três decisões apontadas, a norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, veio a ser julgada inconstitucional na parte questionada.
Ora, nada há que acrescentar ao que se escreveu nos acórdãos citados, pelo que continua a entender-se que a norma em apreciação, e na parte assinalada, é inconstitucional (aqueles acórdãos estão referenciados no Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 4.ª ed., de Aragão Seia, embora o autor seja uma voz discordante).
6 - Termos em que, decidindo, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea h), da Constituição (versão de 1989), da norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte em que refere os descendentes em 1.º grau do senhorio.
Lisboa, 26 de Janeiro de 1999. - Guilherme da Fonseca - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Maria Fernanda Palma - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Maria Helena Brito - Artur Maurício - Vítor Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta ao Acórdão 127/98) - Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos das declarações de voto apostas nos Acórdãos n.os 426/98 e 427/98) - Bravo Serra (vencido, nos termos e pelos fundamentos utilizados nas declarações de voto apostas aos Acórdãos n.os 426/98 e 427/98 pelo Exmo. Conselheiro Paulo da Mota Pinto) - Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, pelo essencial das razões constantes das declarações de voto supra-referidas).
Declaração de voto
Votei vencido pelas razões que seguem.
1 - O Regime do Arrendamento Urbano (RAU) foi aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro.
O legislador, conhecedor da falta de casas para habitação e aderindo à ideia de que a propriedade privada tem que cumprir uma função social, subtraiu o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e submeteu-o à da renovação automática e obrigatória. E, assim, sacrificou o direito do senhorio a denunciar livremente o contrato em favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação.
O senhorio é, desse modo, chamado a ser solidário com o seu semelhante, ficando impedido de denunciar livremente o contrato.
Sobre a propriedade privada incide o que tem sido designado por hipoteca social.
Existem, no entanto, situações em que o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento.
Uma dessas situações acha-se prevista na norma que aqui está, em parte, sub iudicio - a norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano - que dispõe como segue:
«Artigo 69.º
Casos de denúncia pelo senhorio
1 - Sem prejuízo dos casos previstos no artigo 89.º-A, o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da data da sua renovação nos seguintes casos:
a) Quando necessite do prédio para sua habitação, ou dos seus descendentes em 1.º grau, ou para nele construir a sua residência;»
Este fundamento de denúncia do contrato (necessidade da casa para habitação) vem já das Ordenações (livro IV, título XXIV). Aí se preceituava: «O quarto é quando o senhor da casa, por algum caso que de novo lhe sobreveio, e há mister para morar nela, ou para algum seu filho, irmão ou irmã, porque nestes casos poderão lançar o alugador fora durante o tempo do aluguer, pois lhe é tão necessária pelo caso que de novo lhe sobreveio, do que não tinha razão de cuidar ao tempo que a alugou.»
Este fundamento (carência da casa para habitação), também na Lei 2030, de 22 de Junho de 1948, abria a possibilidade de despejo do inquilino [cf. artigo 69.º, alínea b)]. E essa possibilidade de despejo, pelo dito fundamento, manteve-se no Código Civil (cf. artigos 1096.º a 1098.º) e foi reintroduzida no ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei 293/77, de 20 de Julho, depois de ter sido suspensa pelo Decreto-Lei 155/75, de 25 de Março.
Este Decreto-Lei 155/75, de 25 de Março, na verdade, suspendeu as acções e execuções de despejo tendo por base denúncias do contrato de arrendamento, requeridas ao abrigo dos artigos 1096.º a 1098.º do Código Civil.
Por isso, no pequeno interregno que vai do Decreto-Lei 155/75, de 25 de Março, até ao Decreto-Lei 293/77, de 20 de Julho, a necessidade de habitação do senhorio foi sacrificada à necessidade de habitação do locatário. Com uma excepção, apesar de tudo: a denúncia do contrato passou a ser possível com a publicação do Decreto-Lei 583/76, de 22 de Junho, no caso de o senhorio ser retornado das ex-colónias, emigrante ou aposentado.
(Sobre o tema, v. Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 118.º, p. 90, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 1997, p. 621).
Compreende-se, de resto, que a lei dê primazia ao direito de habitação do senhorio sobre o direito de habitação do inquilino.
De facto, como este Tribunal sublinhou no Acórdão 151/92 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Julho de 1992), «é inteiramente razoável que o legislador - colocado perante um conflito de direitos: de um lado, o direito à habitação do senhorio, fundado num direito real próprio (um direito de propriedade, de compropriedade ou de usufruto) e, de outro, o direito à habitação do inquilino (ou um seu direito similar), fundado num contrato de arrendamento, cujo objecto é, justamente, o imóvel que pertence ao senhorio -, não podendo dar satisfação a ambos os direitos, inteiramente razoável é - dizia-se - que sacrifique o direito do inquilino ao direito à habitação do senhorio».
É que - acrescentou-se nesse aresto -, «porque o senhorio até pretende exercer o seu direito à habitação num imóvel de que ele próprio é proprietário, comproprietário ou usufrutuário», «tem 'melhor direito' do que o inquilino, que pretende continuar a satisfazer as suas necessidades de habitação nesse mesmo imóvel do senhorio».
O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela transcrita alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º, não pode, porém, ser exercido - prescreve a alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do dito Regime do Arrendamento Urbano - quando, no momento em que deva produzir efeitos, ocorra a seguinte circunstância: «manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade».
Os recorrentes suscitaram perante a Relação, de cujo acórdão agora recorrem, a questão da inconstitucionalidade dos artigos 69.º, n.º 1, alínea a), e 107.º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, como pode ver-se na conclusão 2.ª da respectiva alegação. E, no requerimento de interposição do recurso, indicaram-nas como objecto do mesmo.
Simplesmente, da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º o Tribunal não pode conhecer.
É que tal norma não foi aplicada pelo acórdão recorrido. E não o foi, porque, apesar de os recorrentes terem invocado a sua inconstitucionalidade nas alegações da apelação, daí não extraíram, nem podiam extrair, qualquer efeito dessa invocação, pois não alegaram o facto capaz de obstar ao decretamento do despejo que se achava previsto na Lei 55/79, de 15 de Setembro (20 anos de permanência no arrendado).
No caso, a invocação da inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do Regime do Arrendamento Urbano foi, pois, um obiter dictum, de todo irrelevante para o respectivo julgamento. [Sobre a questão da constitucionalidade da alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º cf., no entanto, o Acórdão 259/98 (Diário da República, 2.ª série, de 7 de Novembro de 1998).]
O objecto do recurso é, assim, tão-só a norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, pois só quanto a ela se verificam os respectivos pressupostos: os recorrentes suscitaram a sua inconstitucionalidade, durante o processo e de forma processualmente adequada, e o acórdão recorrido utilizou-a como sua ratio decidendi.
2 - Este Tribunal já se pronunciou sobre a constitucionalidade da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º do Regime do Arrendamento Urbano, tendo concluído, embora com vozes discordantes, que ela viola a alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989) - correspondente à alínea h) do n.º 1 do artigo 165.º da versão de 1997 -, que dispunha ser da exclusiva competência da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo) legislar sobre o «regime geral do arrendamento [...] urbano». Fê-lo, primeiro, no Acórdão 127/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 18 de Maio de 1998) e repetiu-o nos Acórdãos n.os 426/98 e 427/98 (ambos por publicar).
Para assim concluir, considerou o Tribunal, em síntese, que a possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento urbano, com fundamento na necessidade da casa para habitação dos descendentes em 1.º grau do senhorio, constitui uma inovação significativa que «excede o quadro lógico da 'preservação/eliminação' das regras socialmente úteis da posição vinculística do arrendatário» - uma inovação que, assim, não está coberta pela autorização legislativa concedida pela Lei 42/90, de 10 de Agosto.
Na doutrina pronunciaram-se no sentido da inconstitucionalidade M. Januário Gomes (Arrendamento para Habitação, 2.ª ed., Coimbra, 1996, p. 304) e António Sequeira Ribeiro (Sobre a Denúncia no Contrato de Arrendamento Urbano para Habitação, Lisboa, 1996, pp. 82-84).
Na declaração de voto que apôs ao Acórdão 127/98, o conselheiro Vítor Nunes de Almeida - depois de referir que, pelo artigo 2.º, alínea a), da Lei 42/90, de 10 de Agosto, a Assembleia da República autorizou o Governo a proceder à «codificação dos diplomas existentes no domínio do arredamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade» - lembrou que, no Acórdão 311/93 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1993) se disse que «as lacunas, as contradições e as dúvidas são [...] as que a aplicação dos textos legais haviam posto a descoberto», acrescentando-se que essas «lacunas, contradições e dúvidas deviam ser corrigidas em consonância com os ditames da ciência do direito [...] e aproveitando os ensinamento da doutrina e da jurisprudência, naturalmente».
Ora, ponderou nessa declaração de voto:
«Uma das dúvidas existentes nesta matéria dizia respeito ao facto de o senhorio poder denunciar o arrendamento quando necessitasse do prédio para habitação dos seus descendentes em linha recta.»
Por isso, precisou a seguir:
«A actual redacção do preceito veio acabar com tais dúvidas, eliminando contradições, clarificando e completando os textos legais.»
E concluiu:
«Que o Governo estava autorizado para o fazer parece-me claro. Resulta desde logo da alínea a) do artigo 2.º da Lei 42/90.»
Na mesma declaração de voto - a que, no essencial aderiu o Presidente do Tribunal, conselheiro Cardoso da Costa -, ponderou ainda o conselheiro Vítor Nunes de Almeida que pode também encontrar-se credencial para a norma aqui sub iudicio na alínea c) do artigo 2.º da mesma Lei 42/90.
É que a Assembleia da República, nessa alínea c) do artigo 2.º, indicou ao Governo um critério que devia observar «na codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano». E esse critério era o de que, nessa codificação ele devia preservar «as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário».
Ora - nas palavras do citado Acórdão 311/93 -, tal significa que «o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material».
Por isso, concluiu-se em tal declaração:
«Assim, tendo embora o legislador do Regime do Arrendamento Urbano mantido a regra de condicionar fortemente ou mesmo de impedir a denúncia do contrato pelo senhorio, resolveu, certamente para atenuar a desigualdade dos contraentes - uma vez que a balança pendia fortemente para o arrendatário -, flexibilizar tal norma, abrindo outra possibilidade de denúncia em favor dos descendentes em linha recta do senhorio.»
Nos Acórdãos n.os 426/98 e 427/98, já citados, o conselheiro Paulo Mota Pinto juntou o seu voto àqueles que entendem que o Governo dispunha de autorização legislativa bastante para alterar o Regime do Arrendamento Urbano, prevendo a possibilidade de o senhorio denunciar o contrato, com fundamento em necessidade da casa, não já para sua habitação, mas para habitação dos seus descendentes em 1.º grau. E precisou que essa autorização resultava, «se não da alínea b) do artigo 2.º da Lei 42/90, de 10 de Agosto, pelo menos da alínea a) deste artigo».
Na sua declaração de voto, o conselheiro Mota Pinto, depois de acentuar que «a preocupação com as necessidades de habitação resultantes da família do senhorio não é nova no nosso ordenamento jurídico» (como o mostra o Acórdão da Relação do Porto de 14 de Fevereiro de 1980, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano V, 1980, t. I, p. 44) e de recordar a interpretação que da alínea a) do artigo 2.º da Lei 42/90 foi feita no citado Acórdão 311/93, escreveu:
«Pelo que, logo pela alínea a) do artigo 2.º da citada Lei 42/90, o Governo ficou, a meu ver, autorizado a esclarecer que, nestes termos (ou seja, quando existisse residência sob o mesmo tecto ou economia comum anteriormente à denúncia), o senhorio pode denunciar o contrato por necessitar do prédio para sua habitação ou dos seus descendentes [devendo, se necessário, efectuar-se a correspondente interpretação restritiva da disposição do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano].»
Acrescentou que «o correcto entendimento das alíneas b) e c) do referido artigo 2.º haveria de conduzir a idêntica solução - ou que, pelo menos, não constitui obstáculo decisivo a ela».
Na verdade - ponderou -, pode, desde logo, sustentar-se que a alínea b) concede «autorização para, simplificando as regras substantivas aplicáveis», o legislador «facilitar o funcionamento da cessação do contrato de arrendamento urbano».
Admitiu, contudo, que um tal entendimento é duvidoso. Mas logo acrescentou que, de todo o modo, parece claro que «a norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), respeita a directriz constante da alínea c) desse artigo, de 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário', com o sentido que para ela foi precisado pelo Tribunal Constitucional no citado Acórdão 311/93» - sentido que já atrás se indicou.
Explicando esta asserção, escreveu:
«Designadamente, não creio que se possa divisar nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis ao arrendatário - este entendimento, restritivo e diverso do adoptado anteriormente pelo Tribunal (e antes defendido apenas em declarações de voto de vencido) não considera, a meu ver, a limitação constante desta alínea c) às regras 'socialmente úteis' e conduz a uma contradição inevitável do legislador, entre as alíneas b) e c) do artigo 2.º da Lei 42/90 (uma vez que a facilitação do funcionamento da cessação do contrato, ainda que através da mera simplificação das suas regras substantivas, teria de se considerar violadora do referido imperativo legal de manutenção das concretas regras favoráveis ao arrendatário).»
E concluiu assim a sua declaração de voto:
«Não penso, pois, que pudesse resultar da alínea c) do artigo 2.º da Lei 42/90 qualquer obstáculo ao artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano. Entendo que esta norma estava coberta pela autorização legislativa nos termos da alínea a) do artigo 2.º da Lei 42/90.»
3 - Das duas posições que sobre a questão têm sido sustentadas, opto pela dos vencidos.
Começo por recordar que, tal como se sublinhou no citado Acórdão 311/93 - que, nesse ponto, seguiu de perto o Acórdão 77/88 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Abril de 1988) -, a reserva parlamentar atinente ao regime geral do arrendamento urbano não é «esgotante e absoluta». Respeita «unicamente aos aspectos significativos, ou seja, verdadeiramente substantivos do regime legal do contrato».
É, por isso, admissível que o Governo, desmunido de autorização parlamentar, intervenha para a «regulamentação do que seja puramente adjectivo ou processual».
À Assembleia da República está, porém, reservada a definição das «regras materiais aplicáveis à generalidade dos contratos de arrendamento rural e urbano», tanto quando estes últimos têm por finalidade a habitação, como quando se destinam a quaisquer outros fins. Designadamente - e para o que sobremodo agora importa, cabe-lhe reservadamente «definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa». E, por isso, cabe-lhe definir «as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência, e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é 'regime jurídico' dessa figura negocial». [Sobre o tema, cf. também o Acórdão 358/92 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 26 de Janeiro de 1993)].
Como se viu, a norma sub iudicio prevê uma causa de denúncia pelo senhorio do contrato de arrendamento urbano: a necessidade da casa arrendada para habitação de descendentes seus em 1.º grau. Versa, então, sobre as causas de extinção do contrato.
Como esta matéria se inscreve na reserva parlamentar, o Governo só podia, sem inconstitucionalidade, editar a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º da Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, 15 de Outubro, no segmento em causa, se a Assembleia da República a tanto o tiver autorizado, na Lei 42/90, de 10 de Agosto.
Pois bem: contrariamente ao que se concluiu nos citados Acórdãos n.os 127/98, 426/98 e 427/98, entendo que a Lei 42/90, de 10 de Agosto, concedeu ao Governo autorização para alterar o Regime do Arrendamento Urbano, em termos de ele poder prever a possibilidade de o senhorio denunciar o contrato com fundamento na necessidade da casa para habitação dos seus descendentes em 1.º grau, e não apenas invocando a necessidade da casa para a sua própria habitação.
Essa autorização resultava, seguramente, quer da alínea a), quer da alínea c) do artigo 2.º da referida Lei 42/90, de 10 de Agosto.
As razões deste entendimento são as expostas nos votos de vencido atrás citados e parcialmente transcritos.
Aqui apenas se acrescentarão duas brevíssimas notas.
A primeira nota: o Governo ficou autorizado a «solucionar dúvidas de entendimento», que a aplicação da legislação anterior tinha posto a descoberto [alínea a) do artigo 2.º], «aproveitando os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência» (cf. o citado Acórdão 311/93).
Ora, uma das dúvidas existentes na matéria era, justamente, a de saber se o senhorio podia denunciar o contrato de arrendamento com fundamento em necessidade da casa para habitação dos seus descendentes em linha recta.
A essa questão refere-se Jorge Alberto Aragão Seia (Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 4.ª ed., Coimbra, 1998, p. 406), quando escreve:
«Já no domínio do Código Civil se entendia que a necessidade do prédio para habitação do senhorio ou para nele construir a sua residência englobava a dos que viviam com ele em economia comum (os seus parentes ou afins na linha recta ou até ao 3.º grau da linha colateral) e, bem assim, as pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeitasse directamente à habitação houvesse obrigação de convivência ou de alimentos - artigo 1109.º, n.º 1, alínea a), e 2, chegando o n.º 2 do artigo 1098.º a referir-se às necessidades de habitação própria do senhorio e da família.»
E este autor acrescenta:
«Era líquido no Código Civil que o senhorio podia denunciar o contrato de arrendamento urbano para resolver o problema habitacional de membros do seu agregado familiar que vivessem consigo em economia comum, podendo o senhorio ficar a viver numa habitação e aqueles noutra, se isso fosse indispensável para satisfazer as necessidades habitacionais.
Porém, houve decisões de tribunais, pelo menos de 1.ª instância, e não foram poucas, que permitiam que esse elo de economia comum não subsistisse, passando os familiares a viver com autonomia.»
A este mesmo propósito, recordo também que no acórdão da Relação do Porto de 14 de Fevereiro de 1980, atrás citado - em que se pretendia denunciar um contrato de arrendamento para habitação do senhorio, invocando-se o facto de o filho, consigo convivente, ir casar e não poder arranjar casa independente -, se frisou que, para o efeito de denúncia do arrendamento para habitação do senhorio, «o conceito de família [...] é dado pelo n.º 3 do artigo 1040.º do mesmo Código: consideram-se familiares os parentes, afins ou serviçais que vivam habitualmente em comunhão de mesa e habitação com o locatário».
E acrescentou-se, nesse acórdão:
«Note-se que o citado n.º 2 do artigo 1098.º não põe como condição para o exercício do direito de denúncia a existência de uma economia comum entre o locador e seus parentes, bastando que convivam sob o mesmo tecto. Tão-pouco exige que se trate de parentes em relação aos quais o senhorio denunciante esteja adstrito à prestação de alimentos.»
A alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º, no segmento aqui sub iudicio, veio, pois, pôr termo à dúvida sobre se o senhorio podia denunciar o contrato de arrendamento urbano, quando necessitasse da casa para habitação de um seu descendente em 1.º grau.
A essa dúvida deu o legislador resposta afirmativa. E podia fazê-lo, utilizando a autorização legislativa constante da alínea a) do artigo 2.º da Lei 42/90, de 10 de Agosto.
A segunda nota: a edição da norma sub iudicio era também autorizada pela alínea c) do mesmo artigo 2.º,
De facto, como na codificação a empreender o legislador devia preservar «as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário» [citada alínea c)], «o Governo ficou credenciado - como se escreveu no citado Acórdão 311/93 - para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material».
O Governo, ao aprovar o Regime do Arrendamento Urbano (Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro), podia, pois, flexibilizar um pouco o regime do contrato de arrendamento, que, recorda-se, é dominado pela regra da renovação automática e obrigatória. Mantendo o princípio de que a denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio está sujeita a fortes condicionamentos, o legislador podia abrir a possibilidade de essa denúncia ter lugar em favor dos descendentes daquele em 1.º grau. E foi o que fez: sem abandonar aquele princípio, que visa tutelar a posição do arrendatário e é «socialmente útil», atenuou um pouco o peso dos encargos que, em nome da função social da propriedade, recaem sobre o senhorio. E, desse modo, aliviou um pouco o desequilíbrio da balança que, no contrato de arrendamento urbano, pende quase só sobre o senhorio. Aliviou-o, para ir ao encontro de uma incumbência constitucional: a incumbência de proteger a família, «como elemento fundamental da sociedade», na expressão do artigo 67.º, n.º 1, da Constituição.
É que a família, para os efeitos do citado artigo 67.º, n.º 1, abarca os filhos, mesmo os que não convivam com seus pais ou que se aprestem a viver em economia separada deles [cf. o Acórdão 690/98 (por publicar)].
Ora, a necessidade da casa arrendada para aí se constituir habitação é, em regra, muito mais premente quanto aos filhos do senhorio, que se encontrem nas condições apontadas, do que quanto a ele próprio: de facto, ele tem, em geral, o problema da habitação resolvido. Essa necessidade da casa para habitar, por parte dos filhos, para além de ser mais premente, tem a mesma dignidade constitucional que a de seus pais (cf. citado artigo 67.º, n.º 1, conjugado com o artigo 65.º, n.º 1, também da Constituição). E, por isso, há-de ela prevalecer sobre as necessidades de habitação do inquilino, a um título que é idêntico àquele que dá prevalência a semelhante necessidade de seus pais.
4 - Conclusão:
A norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro), no segmento aqui sub iudicio, foi editada com autorização parlamentar. E, por isso, não viola a norma da alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989). - Messias Bento.