I Introdução
1 - Ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio o Presidente da República requerer ao T. Const. que apreciasse preventivamente a constitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, 7.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto 83/V da Assembleia da República (AR), diploma que disciplina a «transformação das empresas públicas em sociedades anónimas».Fundamenta nos seguintes termos o pedido de intervenção do T. Const: o artigo 1.º do Decreto 83/V vem permitir que as empresas públicas, ainda que nacionalizadas, se transformem, nos termos da CRP e dos artigos subsequentes do diploma, e mediante decreto-lei, em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos.
Por seu turno, o artigo 2.º, n.º 1, ao prescrever que na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima devem ser imperativamente salvaguardados certos princípios [os constantes das suas alíneas a), b) e c)], apenas proíbe, no que toca às empresas nacionalizadas, a privatização do capital nacionalizado, tornando, assim, possível a transferência para o sector privado - após a transformação da empresa em sociedade anónima - das partes sociais representativas de capital social que exceda aquele que existia à data da nacionalização.
Ora, o disposto no artigo 1.º, conjugado com o estatuído no artigo 2.º, n.º 1, pode suscitar, e suscitou, efectivamente dúvidas, que convém remover, quanto ao respeito da norma do artigo 83.º, n.º 1, da CRP, isto se se tiver em conta, e muito particularmente, que a grande maioria das nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 se referiram a empresas - envolvendo a sucessão universal nos seus direitos e obrigações -, e não, ou ao menos não directamente, a partes sociais. As dúvidas apontadas reforçam-se nos casos em que o capital superveniente houver resultado de incorporação de reservas.
Acresce que pode ainda estar em causa o respeito pelo artigo 85.º, n.º 3, da CRP, uma vez que o citado artigo 1.º não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada.
As dúvidas referidas estendem-se, pelas mesmas razões, e no que toca a empresas nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974, por um lado, ao artigo 9.º, que prevê aumentos de capital abertos a entidades não públicas e por via dos quais estas poderão vir a participar de direitos relativos àquelas empresas, e, por outro lado, aos artigos 4.º e 8.º Por último, o n.º 2 do artigo 7.º, na medida em que prevê que as receitas e despesas relativas ao processo de alienação do capital público de certas empresas sejam escrituradas em operações extra-orçamentais, eventualmente regularizáveis no ano seguinte à sua efectivação, levanta dúvidas quanto ao acatamento das regras da anualidade e da plenitude orçamental, consagradas, respectivamente, nos artigos 93.º, alínea c), e 108.º, n.os 1 e 5, da CRP.
2 - Notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, veio o Presidente da AR a oferecer o merecimento dos autos e a fazer juntar um parecer da Auditoria Jurídica da AR, no qual, em resumo, se sustenta o seguinte: na busca do exacto sentido do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, impõe-se que preliminarmente se acentuem as seguintes ideias:
a) As nacionalizações, a que se refere o artigo 83.º, n.º 1, da CRP, foram, todas elas, efectuadas por empresas, e não por sectores de actividade;
b) O princípio da irreversibilidade das nacionalizações, consignado no artigo 83.º, n.º 1, da CRP, não abrange a totalidade das empresas públicas, antes se confina às empresas cuja nacionalização foi objecto de um acto administrativo concreto, ainda que sob a forma de lei;
c) O preceito constitucional em causa tem alcance temporal limitado:
reporta-se exclusivamente às nacionalizações feitas entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976;
d) Tais nacionalizações incidiram sempre sobre o capital ou sobre a titularidade da empresa, mas nunca sobre o seu património.
Dada esta particular incidência das nacionalizações, nacionalizações que apenas em tal dimensão o artigo 83.º, n.º 1, da CRP salvaguarda, configura-se como indubitável que o artigo 1.º do Decreto 83/V, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 1, não viola, de qualquer modo, aquele preceito constitucional.
Também se não pode considerar violado o artigo 85.º, n.º 3, da CRP, por um lado, porque o mesmo não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada e, por outro lado, porque não só as nacionalizações operadas não atingiram os sectores, como acontece que a definição dos sectores vedados à iniciativa privada é da competência do legislador ordinário, como, aliás, resulta desse mesmo artigo 85.º, n.º 3.
Desta forma, pode perfeitamente o legislador ordinário ordenar a transferência de sector relativamente a uma empresa, sem que daí resulte qualquer inconstitucionalidade.
De igual modo se não verifica a inconstitucionalidade dos artigos 4.º, 8.º e 9.º do diploma em questão, simples corolários dos artigos 1.º e 2.º Por outro lado, e passando a apreciar a questão da (in)constitucionalidade do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto 83/V, convém notar, antes de mais, e quanto às regras da unidade e da universalidade, integrantes do princípio da plenitude orçamental, que só muito limitadamente terão consagração na CRP.
Acresce ainda que o grande sentido da proibição contida no n.º 5 do artigo 108.º da CRP é para a existência de dotações e fundos secretos.
Ora, não é de maneira nenhuma isto que o n.º 2 do artigo 7.º do decreto em causa se propõe fazer ao determinar a escrituração das receitas e despesas a que se reporta como operações de tesouraria.
Todavia, sempre se poderá obtemperar que esta última disposição não respeita o princípio da anualidade do orçamento.
Sem embargo, se tal preceito for analisado em profundidade, ter-se-á de reconhecer que no mesmo está ínsito ou implícito esse mesmo princípio, na medida em que a regularização das aludidas operações se fará no próprio ano ou no ano seguinte, não se registando, pois, a sua inconstitucionalidade.
3 - Cumpre agora, no domínio da fiscalização a priori, investigar se as normas referidas no requerimento do Presidente da República se confrontam ou não com a CRP, investigação que se desenvolverá ao longo de dois capítulos, sujeitos às seguintes epígrafes:
O artigo 1.º do Decreto 83/V, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 1, e os artigos 4.º, 8.º e 9.º, face ao disposto nos artigos 83.º, n.º 1, e 85.º, n.º 3, da CRP (capítulo II);
O artigo 7.º, n.º 2, do Decreto 83/V, face ao disposto nos artigos 93.º, alínea c), e 108.º, n.os 1 e 5, da CRP (capítulo III).
II - O artigo 1.º do Decreto 83/V, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 1, e os artigos 4.º, 8.º e 9.º, face ao disposto nos artigos 83.º, n.º 1, e 85.º, n.º 3, da CRP.
4 - Dispõem as normas do Decreto 83/V em causa neste capítulo o seguinte:
Artigo 1.º As empresas públicas, ainda que nacionalizadas, podem, mediante decreto-lei, ser transformadas em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos, nos termos da CRP e da presente lei.
Art. 2.º - 1 - Na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima deve ser imperativamente salvaguardado que:
a) A transformação não implique a reprivatização do capital nacionalizado, salvo nos casos previstos no artigo 83.º, n.º 2, da CRP, devendo os títulos representativos do capital assumido pelo Estado à data da respectiva nacionalização ser sempre detidos pela parte pública;
b) A maioria absoluta do capital social seja sempre detida pela parte pública;
c) A representação da parte pública nos órgãos sociais seja sempre maioritária.
2 - ....................................................................................................................
Art. 4.º Sem prejuízo do disposto no artigo 2.º, o Estado ou qualquer outra entidade pública podem alienar acções da sociedade anónima de que sejam titulares.
Art. 8.º As empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresa pública ficam sujeitas aos princípios e regras consagrados na presente lei.
Art. 9.º Os aumentos de capital das sociedades anónimas abrangidas pela presente lei, a realizar com abertura a entidades não públicas, ficam sujeitos à observância dos princípios e regras constantes desta lei.
Sobre as várias espécies de empresas públicas, escreve J. Simões Patrício, Curso de Direito Económico, 2.ª ed., p. 536, nota 1:
Entre nós também A. Caeiro tem vindo a subdistinguir, dentro da categoria de empresas públicas, as «empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, e as empresas nacionalizadas», por um lado, e, por outro, as «empresas públicas societárias» (isto é, com participação pública majoritária): v., por último, Revista de Direito e Economia, V, 1979, n.º 2, 445.
Veremos mais abaixo que a distinção é obrigatória de jure constituto (Decreto-Lei 260/76).
Todavia, e numa perspectiva constitucional, uma outra classificação das empresas públicas se impõe, a que as classifica em dois grandes grupos:
a) As decorrentes de nacionalizações posteriores a 25 de Abril de 1974;
b) As restantes (deixa-se em aberto a questão de saber se as empresas nacionalizadas depois da entrada em vigor da CRP se deverão situar no primeiro grupo ou antes no segundo).
Acerca da génese das empresas públicas do primeiro grupo, e numa perspectiva histórica, escreve José Fernando Nunes Barata, Enciclopédia Polis, vol. 4, cols. 523 e 524:
A revolução de 25 de Abril de 1974, que introduziu profundas alterações na estrutura sócio-económica portuguesa, deu larga acolhida à política das nacionalizações. O Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) anunciava, desde logo, uma estratégia antimonopolista. No Programa do I Governo Provisório incluía-se a nacionalização dos bancos emissores (Decreto-Lei 203/74, de 15 de Maio). Foi o que se passou com o Banco de Angola, o Banco Nacional Ultramarino e o Banco de Portugal, através, respectivamente, dos Decretos-Leis n.os 450/74, 451/74 e 452/74, todos de 13 de Setembro. Os acontecimentos de 11 de Março de 1975 criaram novas condições para a aceleração desta política. Dois sectores chave, pelas actividades a que se dedicavam e pelo controle que tinham noutros domínios (nacionalização indirecta), foram nacionalizados: as instituições de crédito (Decreto-Lei 132/75, de 14 de Março) [devia-se ter escrito Decreto-Lei 132-A/75, de 14 de Março] e as companhias de seguros (Decreto-Lei 135/75, de 15 de Março) [devia-se ter escrito Decreto-Lei 135-A/75, de 15 de Março]. Em 15 de Abril foi publicado o Decreto-Lei 203/75, que aprovava bases gerais dos programas de medidas económicas. Previam-se novas nacionalizações. Logo em 16 de Abril foram publicados numerosos diplomas que concretizavam tal propósito: os Decretos-Leis n.os 205-A/75 e 205-G/75 nacionalizaram as empresas petrolíferas (SACOR, PETROGAL, CIDLA e SONAP), as empresas de transportes (CP, Companhia de Transportes Marítimos, Companhia Nacional de Navegação e TAP), a Siderurgia e várias empresas energéticas. Em 9 de Maio foram nacionalizadas as indústrias dos cimentos (Decreto-Lei 221-A/75) e da celulose (Decreto-Lei 221-B/75);
em 5 de Junho chegou a vez das empresas de transportes (Decretos-Leis n.os 280-A/75 e 280-C/75). O processo não se deteve e no chamado «Verão quente» de 1975 foi a altura da petroquímica (Decretos-Leis n.os 453/75 e 456/75, de 21 e 22 de Agosto) e das cervejas (Decreto-Lei 474/75, de 30 de Agosto). Já no mês seguinte o Decreto-Lei 478/75, de 1 de Setembro, ocupou-se da SETENAVE e o Decreto-Lei 532/75, de 25 de Setembro, da CUF. Quanto aos meios de comunicação social, a sua hora ocorreu mais tarde: os Decretos-Leis n.os 674-C/75 e 674-D/75, de 2 de Dezembro, ocuparam-se dos meios de radiodifusão e da RTP; o Decreto-Lei 639/76, de 29 de Julho, nacionalizou vários jornais. A enumeração não será exaustiva.
Em termos de síntese, poder-se-á, no entanto, referir que: o processo das nacionalizações portuguesas pós-25 de Abril se concentrou no período de 1974 (com início, como se referiu, nos bancos emissores) a 1976 (meios de comunicação social, a encerrar o ciclo); as nacionalizações efectuaram-se por decretos-leis, variando pouco os esquemas jurídicos adoptados; manifestou-se especial respeito pelas empresas estrangeiras ou com participação estrangeira; não se consagrou uma radicalização quanto a reservas de actividade, pois em sectores base como a banca, os seguros e a indústria petrolífera não foram nacionalizadas as empresas ou participações estrangeiras; determinados sectores (exemplos: comunicação social, indústria de bebidas) ficaram só em parte nacionalizados, mantendo-se noutra parte livres para a iniciativa privada; as empresas nacionalizadas foram transformadas em empresas públicas.
5 - Ora, é unicamente em relação às empresas públicas resultantes de nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 (mencionadas no artigo 1.º do Decreto 83/V) e também, por extensão, às empresas nacionalizadas após aquela data e sem estatuto de empresa pública (referidas no artigo 8.º) que o Presidente da República coloca o problema de saber se terá sido violado ou não o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, consagrado no artigo 83.º, n.º 1, da CRP, que reza assim:
Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras.
«A nacionalização», escreveu-se no Acórdão 11/84 do T. Const. (Diário da República, 2.ª série, n.º 106, de 8 de Maio de 1984), «importa a apropriação por parte do poder público de empresas, bens ou actividades económicas privadas, com a subsequente alteração do seu modo social de gestão.» «Trata-se, no fundamental», precisa Manuel Afonso Vaz, Direito Económico, p.
189, «de subtrair à propriedade privada determinados bens, por se entender que o interesse da colectividade exige que tais bens se encontrem na titularidade do Estado e sejam geridos de acordo com o interesse geral. Com efeito, o substrato ideológico das nacionalizações, ao mesmo tempo que faz transparecer a qualificação económica dos bens objecto de nacionalização, implica não só a transferência do bem, até aí propriedade privada, para o âmbito da propriedade pública, mas também implica que a actividade ligada a esses bens seja exercida no interesse da colectividade.» A nacionalização de empresas consequência, pois, a sua passagem do sector privado dos meios de produção para o sector público e um outro tipo de gestão.
Neste mesmo sentido escreve Carlos Ferreira de Almeida, Direito Económico, I parte, p. 66:
A nacionalização implica, do ponto de vista jurídico, duas consequências fundamentais:
A transferência da propriedade do sector privado para o sector público;
A subsequente gestão pública dos patrimónios transferidos.
«Desnacionalização», escreveu-se no Acórdão 11/84 do T. Const., «é um acto de sinal contrario: directa ou indirectamente dirigido à reintegração, quase sempre por inteiro, da empresa nacionalizada no sector privado.» É precisamente este acto de desnacionalização que, de certo modo, o artigo 83.º, n.º 1, da CRP vem proibir com a afirmação do princípio da irreversibilidade das nacionalizações. E que assim é resulta claramente da interpretação sistemática do preceito.
De facto, no n.º 2 do artigo 83.º afirma-se que a integração no sector privado, em circunstâncias muito especiais, de pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas constituirá uma excepção ao princípio da irreversibilidade. Ora, se isto é uma excepção a tal princípio, então é porque este, que é regra, e se encontra consignado no n.º 1 do artigo 83.º da CRP, veda a passagem das empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974 do sector público, onde se vêm situando, para o sector privado (desnacionalização).
Todavia, o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, atento o particular contexto histórico a que deveu a sua aparição o artigo 83.º, n.º 1, da CRP, comporta ainda outra dimensão venatória: a de proibir que, quer o capital existente à data em que as empresas foram nacionalizadas, quer o capital resultante da incorporação das reservas existentes àquela data, sejam alienados em favor de entidades privadas.
Há, pois, que apurar se as normas em análise possibilitarão, de algum modo, ou a transferência de empresas nacionalizadas após 25 de Abril de 1974 (tenham ou não o estatuto de empresas públicas) do sector público para o sector privado dos meios de produção, ou a alienação em favor de entidades privadas do capital coevo das nacionalizações ou do capital adveniente da incorporação das reservas a essa altura existentes. Na realidade, só tal ocorrendo se poderá concluir que o Decreto 83/V, no segmento em exame, não respeitou cabalmente o princípio da irreversibilidade das nacionalizações e violou, assim, o disposto no artigo 83.º, n.º 1, da CRP.
6 - Todavia, antes de dar resposta a esta questão, convém registar, ainda que esquematicamente, quais as mudanças que, àqueles níveis, e através do diploma em análise, a AR pretendeu introduzir na ordem jurídica.
Segundo o artigo 1.º do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril - diploma que definiu os princípios gerais a que hão-de obedecer os estatutos das empresas públicas -, são empresas desta espécie «as empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, para a exploração de actividades de natureza económica ou social, de acordo com o planeamento económico nacional, tendo em vista a construção e desenvolvimento de uma sociedade democrática e de uma economia socialista» (n.º 1), e «são também empresas públicas e estão, portanto, sujeitas aos princípios consagrados no presente diploma as empresas nacionalizadas» (n.º 2).
Por força do artigo 49.º deste mesmo Decreto-Lei 260/76, as instituições bancárias, parabancárias e seguradoras, embora empresas públicas, estão excluídas do âmbito de aplicação desta lei de bases e sujeitas a regulamentação especial (cf. Decretos-Leis n.os 644/75, de 15 de Novembro, 729-F/75, de 22 de Dezembro, e 72/76, de 27 de Janeiro).
No que se refere, no entanto, ao regime geral das empresas públicas, verifica-se que estas podem agrupar-se, extinguir-se por cisão ou fusão com outras (para reorganização de actividades) ou extinguir-se pura e simplesmente (para cessação de actividade) - artigos 36.º a 40.º do Decreto-Lei 260/76.
O artigo 1.º do Decreto 83/V veio instituir uma nova espécie de alteração dos estatutos das empresas públicas, especificando, a propósito, que, mediante decreto-lei, podem ser transformadas em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos. Deste modo, os capitais da nova empresa não têm já de ser totalmente públicos: podem ser também, embora em posição minoritária, capitais privados.
Nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto 83/V estabelecem-se, todavia, diversas salvaguardas:
A transformação, salvo nos casos previstos no artigo 83.º, n.º 2, da CRP (casos de nacionalizações indirectas de pequenas e médias empresas em relação às quais for inaplicável o princípio da irreversibilidade das nacionalizações), não há-de implicar nunca a reprivatização do capital nacionalizado, que será sempre detido pela parte pública;
A maioria absoluta do capital social há-de pertencer sempre à parte pública;
A representação da parte pública nos órgãos sociais há-de ser sempre maioritária.
No que respeita à gestão das empresas públicas, verifica-se que, segundo o regime geral, quer os membros do conselho de gerência, quer os membros da comissão de fiscalização, são nomeados pelo Governo (artigos 9.º, n.º 4, e 10.º, n.º 5, do Decreto-Lei 260/76). Agora, segundo o regime proposto pelo Decreto 83/V, a parte pública passará a dispor apenas de representação maioritária nos órgãos sociais da sociedade anónima em que se tiver transformado a empresa pública (conselho de administração e conselho fiscal ou direcção e conselho geral, conforme a estrutura de administração e fiscalização por que se tiver optado, nos termos do artigo 278.º do Código das Sociedades Comerciais, aquando da transformação da empresa pública).
Uma vez constituída a sociedade anónima por metamorfose da empresa pública, e sempre com respeito pelos limites prefixados no artigo 2.º, podem o Estado ou qualquer outra entidade pública, de acordo com o disposto no artigo 4.º do Decreto 83/V, alienar acções de que sejam titulares. Neste preceito permite-se, pois, que a parte pública, sem perda da sua posição maioritária no capital social, e sempre com reserva do capital nacionalizado, que não poderá ser cedido, transaccione as acções de que disponha em excesso.
Por força do artigo 8.º do Decreto 83/V, às empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresas públicas é-lhes aplicável o regime previsto no diploma para a transformação das empresas públicas em sociedades anónimas, designadamente o constante dos artigos 1.º, 2.º e 4.º (já analisados) e do artigo 9.º (por analisar).
Não é de imediato muito claro quais sejam essas empresas nacionalizadas privadas do estatuto de empresas públicas. Com efeito, e por via do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 260/76, todas as empresas nacionalizadas, pelo menos à partida, teriam sido substancialmente equiparadas a empresas públicas. No entanto, e tida em conta unicamente a sua forma, nem todas as empresas nacionalizadas poderão ser consideradas, em rigor, empresas públicas.
Como escreve J. Simões Patrício, ob. cit., p. 536:
Como é sabido, a nacionalização tanto pode operar-se pela apropriação («apropriação colectiva») das participações sociais (acções) como pela apropriação da sociedade (empresa) em si mesma. Num como no outro caso, é certo que estamos perante uma empresa nacionalizada, mas, na primeira hipótese, é mais nítido que essa empresa manteve a respectiva superstrutura jurídica - continuou sendo, v. g., uma sociedade anónima -, somente tendo passado para a titularidade do Estado o seu capital (as acções que o representam).
E mais adiante, a pp. 579 e 580:
Com tal declaração [a do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 260/76] a lei terá querido converter em pessoas jurídicas os patrimónios autónomos que existiam até aí dentro do património nacional, provenientes das nacionalizações.
Mas há uma importante observação restritiva a fazer.
É que há empresas nacionalizadas segundo uma técnica - a de o Estado se apropriar das acções - que não levou à subtracção de toda a empresa aos respectivos titulares privados. Referimo-nos, de novo, a hipóteses em que, v.
g., foi isento da nacionalização o capital estrangeiro integrante da empresa.
Assim, exemplificativamente, com as empresas Covina e Carris de Lisboa [cujas acções portuguesas foram nacionalizadas, respectivamente, pelos Decretos-Leis n.os 432/75, de 13 de Agosto, e 346/75, de 3 de Julho].
O artigo 8.º do Decreto 83/V ter-se-á, pois, referido, desde logo, a empresas nacionalizadas deste tipo, e que, de algum modo, mantiveram a superstrutura jurídica preexistente, e que, por isso mesmo, não chegaram a adquirir o estatuto de empresas públicas. E abrangerá também as empresas nacionalizadas que, tendo adquirido o estatuto de empresas públicas, o hajam, entretanto, perdido.
Por fim, o artigo 9.º deste mesmo diploma dispõe que os aumentos de capital das sociedades anónimas resultantes da transformação de empresas públicas a realizar com a abertura a entidades não públicas ficarão sujeitos à observância dos princípios e regras dele constantes. Designadamente, será assegurado sempre, após qualquer aumento de capital, que a parte pública continue a deter a maioria absoluta do capital social.
Feita esta detalhada excursão analítica pelas normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, 8.º e 9.º do Decreto 83/V, é de colocar de novo as interrogações:
1) As empresas nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974, tenham ou não o estatuto de empresas públicas, se transmudadas em sociedades anónimas, nos quadros do regime definido por aquelas normas, seriam desnacionalizadas, isto é, passariam do sector público para o sector privado dos meios de produção? 2) As alienações de acções previstas no diploma em análise e subsequentes à conversão dessas empresas nacionalizadas em sociedades anónimas poderiam tocar, segundo tal regime, ou o capital existente à data das nacionalizações, ou o capital resultante da incorporação das reservas a essa data existentes? Sucessivamente, na análise subsequente se irá dar resposta a estas duas interrogações.
7 - Os três sectores de propriedade dos meios de produção (sector público, sector privado e sector cooperativo) são definidos, nos termos do artigo 89.º, n.º 1, da CRP, em função da sua titularidade e do modo social de gestão.
Em nota a este artigo 89.º, salientam, a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., p. 423:
O critério de delimitação dos sectores (n.º 1) é misto. Faz apelo simultaneamente à propriedade formal («titularidade») e à posse e gestão («modo social de gestão») dos meios de produção. (A referência a «solos» e «recursos naturais» é evidentemente redundante.) Mas o critério dominante parece ser o último, pois, no caso de discrepância entre a titularidade da posse e gestão, prevaleça, em geral, esta última. Importa, contudo, analisar cada um dos sectores. Na verdade, há que distinguir três figuras jurídicas:
a) Propriedade formal sobre os meios de produção (terras, fábricas, etc.);
b) Direito sobre a empresa ou estabelecimento;
c) Direito de exploração ou gestão da empresa.
Pode haver coincidência - e normalmente existe - destas três figuras jurídicas na mesma pessoa jurídica. Mas também pode não haver, surgindo então o problema de saber em que sector enquadrar essas figuras jurídico-económicas complexas.
Liminarmente, é de afastar a possibilidade de as empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974, uma vez convertidas em sociedades anónimas, nos termos do Decreto 83/V, virem integrar o sector cooperativo, dada a sua total desconexão com este sector (cf. artigo 89.º, n.º 4, da CRP). Resta, pois, uma única via de solução, via esta de tipo necessariamente alternativo:
ou aquelas empresas continuam no sector público ou são atiradas para o sector privado. É que, constitucionalmente, não existe qualquer outro sector de propriedade dos meios de produção.
8 - A CRP define os sectores público e privado dos meios de produção nos seguintes termos:
Artigo 89.º
Sectores de propriedade dos meios de produção
1 - ....................................................................................................................
2 - O sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades, sob os seguintes modos sociais de gestão:
a) Bens e unidades de produção geridos pelo Estado e por outras pessoas colectivas públicas;
b) Bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores;
c) Bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais.
3 - O sector privado é constituído pelos bens e unidades de produção cuja propriedade ou gestão pertençam a pessoas singulares ou colectivas privadas, sem prejuízo do número seguinte.
4 - ....................................................................................................................
Por outro lado, e como se viu, segundo o regime instituído pelo Decreto 83/V, o capital das sociedades anónimas resultantes da transformação de empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974 será, todo ele, ou na sua maior parte, pertença da parte pública [cf. artigos 1.º, 2.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4 do Decreto 83/V], e tais sociedades hão-de ser geridas em função da vontade da mesma parte pública, à qual é sempre assegurada representação maioritária nos órgãos sociais [cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea c)].
Comparando as definições constitucionais dos sectores público e privado com o estatuto das sociedades anónimas que o Decreto 83/V pretende instituir - e cujas linhas dominantes foram postas em evidência -, verifica-se, a uma primeira análise, e não considerado o caso especial das sociedades anónimas, referidas no artigo 1.º, de capitais exclusivamente públicos, que aquelas sociedades não se situariam nem num nem noutro dos mencionados sectores, demarcáveis, nos termos do artigo 89.º, n.º 1, da CRP, em função de dois vectores: a titularidade e o modo social de gestão.
De facto, o regime daquelas sociedades anónimas não é rigorosamente subsumível, ao nível desses dois vectores, nem na regra que, no plano constitucional, define o sector público (artigo 89.º, n.º 2), nem na regra que, no mesmo plano, define o sector privado (artigo 89.º, n.º 3).
9 - A situação prevista para aquelas sociedades no Decreto 83/V é, pois, híbrida, combina diversamente vectores próprios da definição constitucional de um e de outro daqueles sectores de propriedade. E, porque as sociedades anónimas de capitais mistos, resultantes, nos termos do diploma em análise, da conversão de empresas nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974, se não poderão, logicamente, colocar numa espécie de terra de ninguém, numa zona indefinida, como que num limbo dos meios produtivos, há que optar, como atrás se referiu, entre situá-las no sector público ou no sector privado.
Isto importará, antes de mais, uma interpretação translata do artigo 89.º da CRP, interpretação que arrancará de duas ideias base, ideias que exprimirão, afinal, o seu verdadeiro espírito:
a) Situações não imediatamente subsumíveis em qualquer uma das definições constitucionais dos sectores de propriedade dos meios de produção deverão localizar-se no sector com o qual for mais evidente o seu parentesco;
b) Em tal juízo, deverá ser dada particular relevância ao vector do modo social de gestão.
Nesta perspectiva, verifica-se que o regime previsto para aquelas sociedades anónimas no Decreto 83/V, ora particularmente consideradas, tende a acercar-se mais da definição constitucional do sector público que da definição constitucional do sector privado.
E, na verdade, assim é, porque, por um lado, tal regime preenche integralmente um dos vectores da definição do sector público (gestão por entidade pública) e quase que preenche - atenta a reserva maioritária do capital em favor da parte pública - o outro vector dessa definição (a propriedade pública) e, por outro lado, não preenche, de forma constitucionalmente relevante, qualquer dos vectores que, em alternativa, definem o sector privado (a propriedade privada ou a gestão por entidade privada).
A isto acresce que, no referente ao vector do modo social de gestão, vector, neste campo, de decisiva relevância, se verifica o vector característico, a esse nível, da definição do sector público: a gestão por entidade pública.
10 - Nestas circunstâncias e numa leitura translata do artigo 89.º da CRP, é de concluir que as sociedades anónimas com maioria de capitais públicos e decorrentes - em função do regime instituído pelo Decreto 83/V - de empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974 (tivessem elas ou não o estatuto de empresas públicas) se hão-de situar no sector público {note-se, algo proximamente, que, no âmbito do direito comunitário, e quanto às sociedades comerciais de economia mista, são tais empresas «consideradas como empresas públicas, pelo menos aquelas em que o Estado detenha [...] a maioria do capital e, para alguns autores, mesmo aquelas em que o Estado detenha o controle 'de facto' da empresa, sem mesmo ser titular da maioria do capital» (Manuel Afonso Vaz, ob. cit., p. 199, nota 1)}. Sendo assim, não se verificará, por via de tal regime (particularmente expresso nos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 8.º e 9.º do Decreto 83/V), a desnacionalização daquelas empresas e, consequentemente, não se registará, a este título, violação do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, declaradamente afirmado no artigo 83.º, n.º 1, da CRP.
Esta conclusão vale necessariamente para a transformação de empresas nacionalizadas após 25 de Abril de 1974 em sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, expressamente referidas no artigo 1.º do Decreto 83/V. Na verdade, tais sociedades preenchem directamente o duplo critério a que obedece a definição constitucional do sector público. Por isso, e quanto a essas empresas nacionalizadas que se venham a converter em sociedades anónimas desse tipo, é ainda mais evidente que não poderá haver mudanças de sector de propriedade dos meios de produção, ou seja, que não poderá haver desnacionalização.
11 - Vai-se agora averiguar se em função do regime decorrente das normas em causa do Decreto 83/V não se registará, por outra via embora, infracção ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações, tal como o princípio é afirmado no artigo 83.º, n.º 1, da CRP.
O artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do diploma em apreciação, em conexão com o artigo 8.º, determina que a transformação das empresas nacionalizadas em sociedades anónimas não implicará nunca a reprivatização do capital nacionalizado. Face a esta salvaguarda, é evidente que, neste plano, o princípio da irreversibilidade também não é posto em causa.
No entanto, e uma vez que, declaradamente ao menos, se não faz ressalva paralela em favor do capital resultante da incorporação das reservas existentes à data das nacionalizações, poder-se-ia ser tentado a concluir, a uma primeira leitura do Decreto 83/V, que, a esse nível, já se registaria confronto com o princípio do artigo 83.º, n.º 1, da CRP, que, como se viu, proíbe a alienação em favor de entidades privadas desse capital (o resultante da incorporação de tais reservas).
No entanto, a uma segunda leitura, e tendo em conta muito particularmente o princípio da interpretação conforme a CRP, é de extrair-se de tal análise conclusão diametralmente oposta. Sobre tal princípio escreve Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., pp. 164 e 165, o seguinte:
Este princípio é fundamentalmente um princípio de controle (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco de entre os vários significados da norma.
Daí a formulação básica para este princípio: no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a CRP. Esta formulação comporta várias dimensões:
1) O princípio da prevalência da CRP impõe que, de entre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se a interpretação que não seja contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais;
2) O princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a Constituição;
3) O princípio da exclusão da interpretação conforme a CRP, mas «contra legem», impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a CRP, mesmo que através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais.
Este princípio deve ser compreendido articulando todas as dimensões referidas, de modo que se torne claro:
a) A interpretação conforme a CRP só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) em que são admissíveis várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a CRP, e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela;
b) No caso de se chegar a um resultado interpretativo de uma norma jurídica inequivocamente em contradição com a lei constitucional, impõe-se a rejeição, por inconstitucionalidade, dessa norma (= competência de rejeição ou não aplicação de normas inconstitucionais pelos juízes) e proíbe-se a correcção pelos tribunais dessa norma inequivocamente inconstitucional (= proibição de correcção de norma jurídica em contradição inequívoca com a CRP).
Como se acaba de ver, através da citação transcrita, a interpretação conforme a CRP pressupõe que a norma em questão seja portadora, à partida, de várias significações e que uma dessas significações, ao contrário das outras, seja compatível com a CRP.
Ora, é isto que realmente se verifica em relação à norma do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto 83/V, norma que determina que na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima (regime extensível, por via do artigo 8.º, às empresas nacionalizadas sem estatuto de empresas públicas) deve ser imperativamente salvaguardado (salvo um caso particular, que aqui não interessa considerar) que a transformação não implique a reprivatização do capital nacionalizado, devendo os títulos representativos do capital assumido pelo Estado à data da respectiva nacionalização ser sempre detidos pela parte pública. De facto, esta ressalva de manutenção do capital nas mãos de uma entidade pública tanto se poderá referir ao chamado capital social ou capital jurídico da empresa nacionalizada (mencionado no contrato de sociedade) como ao seu capital económico, que compreenderia, além do capital social, as próprias reservas existentes na época da nacionalização.
Assim, sendo estas duas leituras igualmente possíveis (note-se que o termo capital não é de qualquer modo adjectivado), e verificando-se que uma das leituras consequentes, e ao contrário da outra, também possível, se não confronta com o princípio contido no artigo 83.º, n.º 1, da CRP, há que optar, de acordo com o princípio da interpretação conforme a CRP, por esta última leitura (leitura segundo a qual há uma ressalva absoluta do capital económico existente à data da nacionalização de cada empresa).
Deste modo, e a este título, também se não observa qualquer infracção ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações.
12 - Resta agora averiguar, dentro ainda deste capítulo, se as normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, 8.º e 9.º do Decreto 83/V se confrontam ou não com o disposto no artigo 85.º, n.º 3, da CRP.
Refere o Presidente da República, a propósito, que pode estar eventualmente em causa o respeito pelo artigo 85.º, n.º 3, da CRP, uma vez que o artigo 1.º do Decreto 83/V não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada.
Não é muito claro se se pretendeu aqui pôr em xeque unicamente a norma do artigo 1.º, ou também, e paralelamente, a norma do artigo 8.º e, reflexamente ainda, as normas dos artigos 2.º, n.º 1, 4.º e 9.º do Decreto 83/V.
De qualquer modo, qualquer que seja aqui a amplitude do pedido, sempre será de se chegar à mesma conclusão: a de que não houve violação do disposto no artigo 85.º, n.º 3, da CRP, preceito que determina que à lei cabe definir os sectores básicos nos quais é vedada a actividade às empresas privadas. Essa lei é, presentemente, a Lei 46/77, de 8 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 406/83, de 19 de Novembro, e nela efectivamente se vedam certos sectores básicos da economia à actividade privada.
Nos termos do artigo 85.º, n.º 3, da CRP, têm, assim, de ficar vedados à iniciativa privada apenas alguns sectores básicos, exactamente aqueles que a lei definir.
13 - O pedido do Presidente da República, neste ponto, partiu do pressuposto de que as empresas públicas (nacionalizadas ou não) referidas no artigo 1.º do Decreto 83/V passariam para o sector privado por via da sua transformação em sociedades anónimas e de que o mesmo sucederia com as empresas nacionalizadas sem estatuto de empresas públicas mencionadas no artigo 8.º E certamente suscitou a questão, por este modo, da eventual violação do artigo 85.º, n.º 3, da CRP, não por entender que a CRP garante - o que de modo algum se verifica - a permanência de todas as empresas públicas ou simplesmente nacionalizadas no sector público, mas antes por considerar que, por aquela via, e na ausência de qualquer particular ressalva, se poderia, afinal, e em flagrante violação à referida determinação constitucional, acabar com a reserva de alguns sectores básicos da economia em favor da iniciativa pública.
Já se viu, no entanto, que o pressuposto de que o Presidente da República partira para formular o pedido ora em exame não merecia acolhimento. Na realidade, as sociedades anónimas para cuja constituição aponta o Decreto 83/V serão ainda sociedades do sector público.
Consequentemente, não será nunca possível, pela via transversal apontada, pôr termo à vedação de alguns sectores da economia à iniciativa privada.
Deste modo, o artigo 85.º, n.º 3, da CRP não foi infringido, fosse como fosse, pelas normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, 8.º e 9.º do Decreto 83/V.
III - O artigo 7.º, n.º 2, do Decreto 83/V, face ao disposto nos artigos 93.º, alínea c), e 108.º, n.os 1 e 5, da CRP 14 - Dispõe o artigo 7.º do Decreto 83/V - relativamente ao qual o Presidente da República põe unicamente em questão a constitucionalidade da norma do n.º 2 - o seguinte:
Art. 7.º - 1 - As receitas do Estado provenientes das alienações referidas na presente lei são efectuadas:
a) À correcção dos desequilíbrios financeiros do sector empresarial do Estado, mediante o reforço de capitais estatutários ou sociais ou mediante a liquidação ou assunção de dívidas de empresas públicas e de sociedades anónimas de maioria de capitais públicos;
b) À amortização antecipada de dívida pública;
c) À cobertura do serviço da dívida emergente das nacionalizações e expropriações anteriores à entrada em vigor da CRP de 1976.
2 - As receitas e despesas resultantes do número anterior são escrituradas como operações de tesouraria, a regularizar no próprio ano em que são realizadas ou no seguinte.
Decorre do n.º 1 deste artigo que às receitas do Estado provenientes da alienação de acções das sociedades anónimas em que se tiverem transformado empresas públicas ou empresas nacionalizadas sem estatuto de empresas públicas (artigos 1.º e 8.º do Decreto 83/V) serão dados diversos destinos [observe-se que o n.º 1 do artigo 7.º, por evidente lapso, se prescreve que «as receitas são efectuadas», quando se quis antes prescrever que «as receitas são afectadas» (cf. o Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 27, de 5 de Dezembro de 1987, a pp. 541 e 542, que publicou a proposta de lei 18/V, proposta que veio a dar origem ao Decreto 83/V)].
Especificam-se, pois, nesse n.º 1 do artigo 7.º, embora só categorialmente, e por referência às diversas destinações das receitas, as despesas que com base nelas poderão ser levadas a cabo.
Relativamente a tais receitas e despesas, acrescenta o n.º 2 deste artigo 7.º que as mesmas serão escrituradas como operações de tesouraria e regularizadas no próprio ano em que tiverem sido realizadas ou no ano seguinte.
É sobre este ponto, precisamente, que o Presidente da República suscita uma última questão de inconstitucionalidade, pronunciando-se, a esse respeito, nos seguintes termos:
O n.º 2 do artigo 7.º, na medida em que prevê que as receitas e despesas relativas ao processo de alienação de capital público de empresas sejam escrituradas em operações extra-orçamentais, eventualmente regularizáveis no ano seguinte à sua efectivação, permite a dúvida de saber se não se estarão a pôr em causa as regras da anualidade e da plenitude orçamental, consagradas, respectivamente, nos artigos 93.º, alínea c), e 108.º, n.os 1 e 5, da CRP.
15 - Uma só vez, precisamente no artigo 108.º, n.º 4, se refere a CRP ao Tesouro. E fá-lo nos seguintes termos:
A proposta de orçamento é acompanhada de relatório justificativo das variações das previsões das receitas e despesas relativamente ao orçamento anterior e ainda de relatórios sobre a dívida pública e as contas do Tesouro, bem como da situação dos fundos e serviços autónomos.
Esta referência, ainda que muito periférica, implica desde logo o reconhecimento constitucional do Tesouro em toda a sua dimensão histórica, ou seja, como «órgão, organismo ou departamento administrativo que administra todo o património monetário em separado das restantes operações de gestão patrimonial», que, em suma, gere «a zona patrimonial formada pelos meios monetários do Estado ou património da tesouraria - o qual é constituído, do lado activo (que agora mais interessa), pelo conjunto dos meios de liquidez a curto prazo de que o Estado é titular», sendo «os respectivos problemas de afectação de recursos a responsabilidades - por serem monetários e por serem a curto prazo - [...] autónomos em relação às restantes operações de gestão patrimonial» (Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, p.
285).
No exercício desta competência, que lhe é típica, de gestão do património de tesouraria - património que se opõe ao restante património do Estado - realiza o Tesouro operações orçamentais e operações de tesouraria.
Nesta mesma ordem de ideias se escreveu, aliás, no parecer do Tribunal de Contas (TC) sobre a Conta Geral do Estado do ano económico de 1981 (Diário da República, 2.ª série, n.º 164, suplemento, de 20 de Julho de 1987):
A gestão dos meios de liquidez do Estado obriga o tesouro público a desempenhar funções que se integram nos circuitos monetários, pela via da emissão dos empréstimos públicos, das aplicações rentáveis, dos adiantamentos de transferência, de concessão de subsídios, etc.
O tesouro público, hoje centralizado na Direcção-Geral do Tesouro, é a instituição à qual, nos planos administrativo, orgânico e funcional, compete gerir os dinheiros públicos, traduzindo-se essa gestão no movimento de fundos avultados, nos quais interfere o Banco de Portugal, como caixa geral do Tesouro.
Assim, subjacente a todo o movimento de fundos públicos, o Tesouro realiza operações de cobrança de receitas e de pagamento de despesas que, nuns casos, decorrem da execução orçamental, que lhe compete assegurar, e, noutros, são efectuados à margem do orçamento.
16 - Referindo-se a esta dupla competência do Tesouro, escreve Sousa Franco, ob. cit., pp. 399, 400 e 401:
Na sua actuação normal, o Tesouro gere fundos próprios (os do Estado) e fundos de organismos autónomos (objecto de contas especiais, como os CTT). Nesta actividade, porém, importa ainda abrir uma distinção.
Nuns casos, o Tesouro realiza operações (cobrança de receitas, pagamento de despesas) que decorrem necessariamente da execução orçamental que lhe cabe assegurar; noutros, realiza operações à margem do orçamento.
As operações orçamentais estão previstas no orçamento; sujeitam-se aos processos próprios de execução dos orçamentos de receitas e despesas;
estão sujeitas a controle da Direcção-Geral da Contabilidade Pública; dão origem à inscrição definitiva na Conta Geral do Estado e provocam uma saída irreversível de fundos dos cofres públicos. São operações de arrecadação de receitas e pagamento de despesas inscritas no orçamento.
As operações de tesouraria são realizadas à margem do Orçamento Geral do Estado, movimentam fundos que revertem na afectação normal da execução do orçamento, a qual cabe à entidade a quem pertencem; não estão sujeitas a processo rígido nem à regra da anualidade; são imprescritíveis, e essas saídas de fundos darão origem a uma nova entrada nos cofres até à concordância do crédito. Tanto podem ser operações de receitas como de despesas e assumem diversíssimas naturezas, como operações de movimentação de dinheiros públicos não inscritos no orçamento (artigo 4.º, § 1.º, da Lei de 20 de Março de 1907). O seu regime foi clarificado pelo Decreto-Lei 113/85, de 18 de Abril, que as define assim (artigo 1.º):
São operações de tesouraria todos os movimentos de fundos nos cofres do Tesouro que não se encontram sujeitos à disciplina do Orçamento do Estado, bem como todas as restantes operações escriturais com eles relacionadas no âmbito das contas do Tesouro.
O artigo 2.º, n.º 2, subdivide-as em operações passivas ou activas:
As operações passivas correspondem à entrada de fundos ou a operações escriturais de natureza idêntica nos cofres do Tesouro e as operações activas correspondem à saída de fundos daqueles cofres ou a operações escriturais de natureza idêntica.
Uma das maneiras de suprir dificuldades na execução do orçamento consistiria em recorrer para tal a operações de tesouraria (cf. o artigo 2.º do Decreto-Lei 74/70, de 2 de Março); nesse caso, podia-se chegar a não respeitar de todo a previsão orçamental. Por isso, é proibido efectuar despesas por operações de tesouraria, salvo em casos especiais (artigo 36.º, § 3.º, da Lei de 20 de Março de 1907 e Decreto 22257, de 25 de Fevereiro de 1933, artigo 35.º, n.os 1, 2 e 3). A lei dispõe sobre a sua formalização e controle pelo TC.
Quanto às receitas, os seus casos mais conhecidos relacionam-se com as emissões de moeda e a gestão da dívida flutuante, destinadas a antecipar recursos de que o Estado disporá necessariamente no termo do período orçamental, e cujas condições de utilização (aliás hoje flexíveis) estavam rigidamente condicionadas (menos, todavia, do que ao abrigo do artigo 67.º, § único, da Constituição de 1933).
Quatro funções principais são então asseguradas por estas operações, tanto na forma das entradas de tesouraria (receitas de tesouraria) como através das saídas da tesouraria (despesas de tesouraria):
a) A antecipação de receitas que o Estado espera cobrar durante o ano, mas não pode movimentar quando delas careça para realizar despesas;
b) A colocação junto de certas instituições do sistema bancário de disponibilidades em excesso por prazos curtos, obtendo, assim, um rendimento (juro) de dinheiro que, de outra maneira, estaria inactivo (cf.
c) A gestão de fundos afectos a finalidades permanentes (como no Decreto-Lei 74/70, de 2 de Março);
d) A utilização como instrumentos de política monetária, regulando os mercados de dinheiro e a oferta de moeda (possível em casos como o dos bilhetes do Tesouro).
As operações de tesouraria previstas no artigo 7.º, n.º 2, do Decreto 83/V e classificadas no requerimento do Presidente da República - em concordância, aliás, com a definição do artigo 1.º do Decreto-Lei 113/85 - como operações extra-orçamentais serão, na verdade, incompatíveis com a CRP? Serão inconciliáveis, designadamente, com as regras da anualidade e da plenitude orçamental? 17 - Decorre do que até aqui se escreveu que, à luz da CRP, serão admissíveis operações de tesouraria, isto é, operações extra-orçamentais, desde que elas tenham de algum modo a ver, mais ou menos directamente, com a gestão do património de tesouraria. Na realidade, o acolhimento constitucional do Tesouro como organismo a se e de longa tradição no nosso ordenamento jurídico não pode deixar de ter essa implicação.
Não será sempre fácil traçar a fronteira entre a gestão do património de tesouraria e a gestão do restante património do Estado, ou património stricto sensu. No caso presente (caso do artigo 7.º do Decreto 83/V), a situação, todavia, não deixa margem para dúvidas.
É que em causa está a venda de elementos do património empresarial do Estado, rectius de acções das sociedades anónimas que, nos quadros do Decreto 83/V, resultarão da transformação de empresas nacionalizadas.
Uma alienação deste tipo, como é evidente, não pode nunca ser equiparada a mero acto de gestão do património de tesouraria.
Pelas receitas que gera e pelas despesas que permite impossível é de deixar considerá-la no Orçamento do Estado.
Deste modo, têm aqui aplicação, e plenamente, as regras da anualidade e da plenitude.
A regra da anualidade implica:
a) A votação parlamentar, ano a ano, do orçamento;
b) A vigência do orçamento pelo período de um ano.
Esta regra era claramente afirmada no texto primitivo da CRP (artigo 108.º, n.º 1). No entanto, e apesar de no actual artigo 108.º da CRP se ter deixado de fazer qualquer referência directa a esse parâmetro temporal, é de entender que tal regra ainda hoje tem pleno acolhimento constitucional.
Com efeito, tudo indica que, aquando da revisão de 1982, o poder constituinte derivado se limitou a introduzir na CRP o conceito de Orçamento do Estado na sua acepção tradicional, muito particularmente no que respeita à sua vertente periódica (na história constitucional portuguesa os orçamentos sempre foram anuais). E a isto acresce o facto de a CRP, no artigo 93.º, alínea c), explicitamente afirmar que o plano anual há-de ter a sua expressão financeira no Orçamento do Estado, o que necessariamente, e ao nível temporal, os associa (neste sentido, Sousa Franco, ob. cit., p. 319, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., I vol., p. 470, e Guilherme de Oliveira Martins, Constituição Financeira, 2.º vol., pp. 278 e 279).
Quanto à sub-regra da universalidade - uma das sub-regras em que se desdobra a regra da plenitude -, observa-se que, apesar de a CRP não se mostrar igualmente muito determinante, parece legítimo, mesmo assim, deduzi-la do artigo 108.º, n.º 1. É que este preceito, obrigando à discriminação no orçamento, e sem ressalvas, das receitas e despesas do Estado, por certo se referirá a todas as receitas e a todas as despesas (em concordância com esta interpretação, Sousa Franco, ob. cit., p. 322, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 469, e Guilherme de Oliveira Martins, ob. cit., pp. 282 e 283).
No que respeita à outra sub-regra em função da qual se exprime a regra da plenitude, ou seja, no respeitante à sub-regra da unidade - segundo a qual as receitas e despesas do Estado devem constar de um único documento -, afirma-a expressamente o artigo 108.º, n.º 5, da CRP.
18 - À luz destes princípios constitucionais verifica-se que, não podendo as receitas e as despesas previstas no n.º 2 do artigo 7.º do Decreto 83/V - dentro do discurso argumentativo que se vem desenvolvendo - ser realizadas através de operações de tesouraria (em causa não está de maneira alguma, directa ou indirectamente, um acto de gestão do património de tesouraria), tinham elas de ser inscritas, embora a um nível meramente previsivo, no Orçamento do Estado do ano a que respeitassem. Isto o que resulta imediatamente das regras da anualidade e da plenitude, as quais, como se viu, têm efectivamente assento constitucional.
Prescrevendo de outro modo, a norma do n.º 2 do artigo 7.º violou o disposto no artigo 108.º, n.os 1 e 5, em conjugação com o artigo 93.º, alínea c), ambos da CRP, e tem por isso de ser considerada inconstitucional.
19 - Pelos motivos expostos, o T. Const. decide:
a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, 8.º e 9.º do Decreto 83/V da AR;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 7.º, n.º 2, do mesmo diploma, por violação dos princípios constitucionais da anualidade e da plenitude do orçamento.
Lisboa, 31 de Maio de 1988. - Raul Mateus (vencido parcialmente, nos termos da declaração de voto junta) - José Magalhães Godinho - Luís Nunes de Almeida - Antero Alves Monteiro Dinis - José Martins da Fonseca - Vital Moreira (vencido em parte, conforme declaração de voto junta) - Messias Bento (vencido em parte, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Cardoso da Costa) - Mário de Brito (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido em parte, conforme declaração de voto) - Armando Manuel Marques Guedes (vencido parcialmente, nos termos da declaração de voto).
Declaração de voto
1 - Entendi que o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, consignado no n.º 1 do artigo 83.º da CRP, interpretado este dispositivo em relação sistemática com o n.º 2 do mesmo artigo, proibia apenas a desnacionalização de empresas no exacto sentido que no acórdão se deu a tal acto jurídico.Consequentemente, entendi ainda que esse princípio já não impunha que o capital existente à data das nacionalizações, e muito menos o capital resultante da incorporação das reservas nessa altura existentes, tivesse obrigatoriamente de permanecer nas mãos de entidades públicas. Deste modo, e quanto a esta interpretação alargada do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, fiquei vencido.
Por isso, e face à interpretação estrita de tal princípio, a que tive por correcta, votei naturalmente que, no plano do artigo 83.º, n.º 1, da CRP, se não verificava qualquer inconstitucionalidade por parte das normas em questão do Decreto 83/V.
De facto, e face a este posicionamento interpretativo, tive ainda como de todo em todo irrelevante que no regime do Decreto 83/V se impedisse ou não a venda a entidades privadas do capital superveniente de empresas nacionalizadas, ainda que aquele mesmo capital tivesse resultado da incorporação de reservas.
É que nesses casos de aumento de capital, aos quais se refere directamente o artigo 9.º do Decreto 83/V, se assegura que a maioria absoluta do capital (e, consequentemente, a gestão das empresas) continua sempre a ser detida pela parte pública [artigo 2.º, n.º 1, alínea b)], a isto acrescendo que o juízo sobre a desnacionalização ou não das empresas nacionalizadas depois de 25 de Abril de 1974, e ao menos em princípio, sempre haveria de ser de ordem global. Ou seja, e atenta a regulamentação constante do artigo 89.º da CRP, sempre teria de incidir sobre tais empresas, consideradas como unidades produtivas, e não sobre partes delas: aquele artigo 89.º distribui pelos diversos sectores de propriedade os meios de produção, e não fracções deles.
Por estas razões, e só por estas razões, votei a não inconstitucionalização das normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, 8.º e 9.º do Decreto 83/V, face ao disposto no artigo 83.º, n.º 1, da CRP.
2 - Uma última nota se impõe registar. Tendo sido derrotado no que respeita à interpretação do artigo 83.º, n.º 1, da CRP (o T. Const. interpretou-o como proibindo ainda a alienação em favor de entidades privadas do capital económico existente à data das nacionalizações nas empresas nacionalizadas), considerei que, apesar do meu posicionamento sobre este ponto, não estava impedido de me pronunciar sobre uma questão nova, qual era a de saber se seria possível fazer uma interpretação conforme a CRP da norma do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto 83/V.
E, pronunciando-me a propósito - e sempre com ressalva da leitura por mim feita do artigo 83.º, n.º 1, da CRP -, secundei a argumentação do acórdão e respondi, pois, positivamente. - Raul Mateus.
Declaração de voto
1 Introdução
Votei pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 4.º e 9.º na parte em que elas se referem a empresas nacionalizadas, por ofensa da garantia constitucional das nacionalizacões (artigo 83.º da CRP). Continuo convicto da justeza da posição que defendi noutro lugar, há já bastante tempo, de que tal garantia é infringida pela abertura das empresas nacionalizadas ao capital privado (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., C.ª, 1984, p. 411), opinião que não vejo razões para modificar (pelo contrário!).Considero incontrovertível que a garantia das nacionalizações implica garantia de tudo o que foi nacionalizado. Ora, o que historicamente foi nacionalizado foram as empresas enquanto tais, na sua totalidade, de modo a torná-las exclusivamente públicas, eliminando de todo em todo o capital privado. Disto só há que ressalvar as participações de capital estrangeiro, que foram preservadas, mas, abstraindo disso, o propósito expresso das nacionalizações foi o de nacionalizar as empresas a 100%, furtando-as integralmente à lógica do capital privado.
O objecto da nacionalização não foi um determinado montante de capital social, ou um certo volume patrimonial; foi a empresa enquanto tal, independentemente do seu capital e do seu património concreto em certo momento.
O sentido das nacionalizações não foi apenas conferir ao Estado posição dominante no capital das empresas nacionalizadas e na sua gestão. Para isso bastar-lhe-ia nacionalizar uma parte maioritária do capital e, em alguns casos, nem sequer precisaria de ter nacionalizado nada, pois a participação pública em várias empresas nacionalizadas já era dominante antes da nacionalização.
A razão de ser das nacionalizações foi a de subordinar as empresas nacionalizadas a uma lógica exclusivamente pública, sem ter de fazer concessões ao capital privado e aos valores do lucro que este predominantemente implica.
Ora, são estas as nacionalizações concretas que estão constitucionalmente garantidas.
São essas nacionalizações, tal como foram efectuadas, que estão constitucionalmente protegidas.
O artigo 83.º da CRP mais não é do que a consolidação jurídica do status quo em matéria de nacionalizações, uma garantia do adquirido, uma proibição de modificação da situação estabelecida.
2 - Sentido e alcance das nacionalizações
O artigo 83.º não garante as nacionalizações em abstracto. Considera irreversíveis, concretamente, as nacionalizações efectuadas no período revolucionário, naturalmente com o sentido e alcance que tiveram.
A garantia constitucional das nacionalizações abrange, por isso, as nacionalizações tal como foram feitas. O sentido da garantia constitucional é o de que o que foi nacionalizado, nacionalizado está. O que a CRP impede é que deixe de estar nacionalizado, no todo ou em parte, aquilo que foi nacionalizado.
Ora, o que é que foi nacionalizado? Qual foi o objecto das nacionalizações? É fácil responder.
Uma rápida vista de olhos sobre os diplomas que procederam às nacionalizações mostra superabundantemente que, salvo nos casos de empresas com participação de capital estrangeiro - em que a nacionalização teve por objecto apenas o capital nacional -, nos demais casos (que são a esmagadora maioria) a nacionalização incidiu sobre a empresa em si mesma (sem cuidar sequer de distinguir o capital que já era público à data da nacionalização).
Vale a pena mencionar alguns exemplos ilustrativos:
Decreto-Lei 132-A/75, de 14 de Março (nacionalização da banca):
Artigo 1.º - 1 - São nacionalizadas todas as instituições de crédito [...] Decreto-Lei 135-A/75, de 15 de Março (nacionalização dos seguros):
Artigo 1.º - 1 - São nacionalizadas todas as companhias de seguros [...] Decreto-Lei 221-A/75, de 9 de Maio (nacionalização dos cimentos):
Artigo 1.º - 1 - São declaradas nacionalizadas [...] as sociedades a seguir indicadas [...] 2 - São nacionalizadas as acções da SECIL [...] salvo as pertencentes a indivíduos de nacionalidade estrangeira [...] Decreto-Lei 205-A/75, de 16 de Abril (nacionalização do sector petrolífero):
Artigo 1.º - 1 - São declaradas nacionalizadas [...] as sociedades petrolíferas a seguir indicadas [...] 2 - São nacionalizadas as quotas da [...] SOPONATA pertencentes a sociedades [...] que reúnam os requisitos de nacionalidade portuguesa [...] Decreto-Lei 205-B/75, de 16 de Abril (nacionalização da CP):
Artigo 1.º - 1 - A Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses é declarada nacionalizada [...] Decreto-Lei 205-G/75, de 16 de Abril (nacionalização das companhias de electricidade):
Artigo 1.º - 1 - São declaradas nacionalizadas [...] as sociedades exploradoras do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica a seguir indicadas [...] Decreto-Lei 434/75, de 14 de Agosto (nacionalização de empresas mineiras):
Artigo 1.º - 1 - É declarada nacionalizada [...] a Sociedade Mineira Santiago, S.
A. R. L.
2 - São igualmente declaradas nacionalizadas [...] as acções das Pirites Alentejanas, S. A. R. L., salvo as pertencentes a indivíduos de nacionalidade estrangeira [...] Os exemplos poderiam multiplicar-se. O que neles se mostra inequivocamente é que, salvo no caso de empresas com capital estrangeiro, o que foi nacionalizado foi a empresa em si mesma, a empresa na sua globalidade.
Para não restarem nenhumas dúvidas a esse respeito, os diplomas de nacionalização contêm um preceito que reza assim:
A universalidade dos bens, direitos e obrigações que integram o activo e o passivo das sociedades nacionalizadas ou que se encontrem afectos à sua exploração são transferidos para o Estado, integrados no património autónomo das respectivas empresas ou a eles igualmente afectos. [V., por exemplo, o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 221-A/75, o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 221-B/75 e o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 205-A/75, etc.] À face disto, como é que é possível sustentar que a nacionalização teve por objecto apenas o «capital historicamente existente» à data da nacionalização? Pois não é evidente que, salvo o caso das empresas com capital estrangeiro, se nacionalizaram as empresas enquanto tais, enquanto organizações de produção, afastando de todo em todo o capital e a gestão privados? O que as nacionalizações fizeram transferir para a titularidade do Estado foi não apenas o capital da empresa (no todo ou em parte), mas sim a empresa em si mesma.
Escreve um especialista (aliás citado no acórdão):
Como é sabido, a nacionalização tanto pode operar-se pela apropriação [...] das participações sociais (acções) como pela apropriação da sociedade (empresa) em si mesma. Num como noutro caso, é certo que estamos perante uma empresa nacionalizada, mas, na primeira hipótese [...] somente [passou] para a titularidade do Estado o seu capital (as acções que o representam). [J. Simões Patrício, Curso de Direito Económico, 2.ª ed., p.
536.] Não é difícil ver, pelos exemplos acima transcritos, que, na generalidade dos casos, a nacionalização importou a «apropriação da sociedade (empresa) em si mesma» e que só nos casos de empresas com participação estrangeira é que a nacionalização se limitou «à apropriação das participações sociais» nacionais. Na primeira figura, a nacionalização traduziu-se na transferência para o sector público da «universalidade dos bens, direitos e obrigações que integram o activo e o passivo das sociedades nacionalizadas», como refere o preceito dos diplomas de nacionalização acima transcrito.
Ora, se o que foi nacionalizado foi a própria empresa, em si mesma, de modo a torná-la integralmente pública, então constitui desnacionalização todo o acto que privatize, mesmo que apenas em parte, essa empresa. Como já se disse no Acórdão 11/84 deste Tribunal, «desnacionalização é um acto de sinal contrário [à nacionalização]: directa ou indirectamente dirigido à reintegração, quase sempre por inteiro, da empresa nacionalizada no sector privado».
«Quase sempre por inteiro», diz-se na expressão agora sublinhada, mas pode ser também apenas «por partes», que isso não é menos desnacionalização.
É indiferente que a privatização tenha por objecto apenas a parte de capital em excesso em relação ao capital da empresa à data da nacionalização, pois (não é de mais insistir) o que foi nacionalizado não foi um certo capital, mas sim a empresa em si mesma, como entidade dinâmica, como organização empresarial. Uma empresa não é como um prédio em propriedade horizontal, nem os aumentos de capital entretanto ocorridos são uma espécie de andar a mais, construído sobre os existentes à data da nacionalização, ao qual fosse lícito alienar sem prejuízo dos andares originários. É óbvio que a entrada de capital privado e a consequente intervenção privada na gestão afectam toda a empresa, que deixa de ser integralmente nacionalizada, de ser gerida exclusivamente por entidades públicas e em atenção exclusivamente ao interesse público.
Em conclusão: a privatização, ainda que parcial e minoritária, das empresas nacionalizadas - pelo menos das que foram nacionalizadas integralmente - configura uma clara violação da garantia constitucional das nacionalizações. A privatização parcial é necessariamente desnacionalização parcial. É posição que defendo desde há muito (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., loc. cit.) e que o presente caso não fez mais do que arreigar.
Compartilho, assim, das posições que na doutrina consideram constitucionalmente ilícitas soluções como as do presente diploma e tenho por manifestamente inconvincentes as tentativas (laboriosas ou sumárias) de as defender. Com Guilherme de Oliveira Martins, penso que «com este 'expediente' poder-se-ia, afinal, retirar conteúdo à disposição constitucional, que, assim, seria contornada e violada» (Constituição Económica, 1.º vol., 1983, pp. 78 e seg.).
3 - Desnacionalização e privatização
Não é por acaso que o diploma em causa ficou vulgarmente conhecido como lei das privatizações. Ora, só se privatiza aquilo que é público e, quando se trata de empresas públicas por via de nacionalização, então a privatização é desnacionalização.
É desnacionalização na medida em que toda e qualquer privatização - por injecção de capital privado ex novo ou por alienação do actual capital público - de uma empresa totalmente nacionalizada implica, ipso facto, um atentado à nacionalização.
A garantia das nacionalizações implica o respeito pelo sentido e propósito das nacionalizações, tal como elas ocorreram. Ora, é fácil ver que as normas em apreço conduziriam, em certos casos, a retirar todo e qualquer sentido à nacionalização. Basta recordar o exemplo já referido das nacionalizações de empresas em que o Estado já detinha maioria do capital. Nestes casos, as normas aqui em consideração permitiriam a privatização de um montante igual ao capital nacionalizado. A nacionalização será integralmente inutilizada.
Volta-se ao status quo anterior a nacionalização. Como é que se pode dizer então que não foi afectada a nacionalização? A proibição de desnacionalização não pode ser compatível com actos que desfazem o efeito da nacionalização.
Acresce que o objectivo do presente diploma é contraditório, em si mesmo, com a garantia das nacionalizações.
Na própria «exposição de motivos» da proposta de lei 18/V, que deu origem ao presente diploma, afirma-se expressamente que ela «vem iniciar um processo de abertura ao sector privado do capital de empresas [públicas]» (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, de 5 de Dezembro de 1987, p.
54). Um periódico especializado entendeu que «neste diploma vem o Governo franquear as portas das empresas públicas à intervenção da dinâmica privada» (Jornal do Comércio, de 26 de Janeiro de 1988, p. 5).
Neste contexto não sei se se pode sustentar - como se faz no acórdão - que as empresas assim «abertas ao sector privado» ou «franqueadas à intervenção da dinâmica privada» permanecem, mesmo assim, no sector público e não passam, pelo menos parcialmente, para o sector privado. Como quer que seja, o que não vejo é como se pode contestar que, pelo menos, é o sector privado que entra nas empresas públicas. O que resta saber é se existe alguma diferença entre as duas coisas, em termos constitucionais. Por minha parte, não vejo nenhuma.
4 - Nacionalização e sector público
O princípio das nacionalizações - repete-se - foi o da nacionalizarão integral das empresas abrangidas (com a já referida ressalva das participações estrangeiras). Se a nacionalização opera a 100%, parece evidente que a empresa deixa de ser tão nacionalizada como era quando ela passa a estar nacionalizada apenas a 51%.Uma tal empresa talvez ainda deva considerar-se integrada no sector público - como se defende no acórdão - para efeitos do artigo 89.º da CRP (ou porventura, até, para efeitos do artigo 85.º, n.º 3). Todavia, isso ainda tem a ver com a garantia constitucional das nacionalizações, expressa no artigo 83.º, pois a verdade é que este, nem na sua letra, nem no seu espírito, não se limita a garantir que as empresas nacionalizadas permaneçam no sector público.
Não é de aceitar o pressuposto de que o acórdão parte - e que não dedica grande espaço a demonstrar -, segundo o qual a garantia das nacionalizações equivale simplesmente a proibir a transferência das empresas nacionalizadas para o sector privado, o que seria compatível com participações privadas, desde que minoritárias, nas empresas nacionalizadas.
Como já mostrei antes, as nacionalizações não consistiram apenas em transferir empresas para o sector público, visto que, por um lado, algumas já lá estavam antes da nacionalização (pois já eram empresas mistas com maioria de capital público) e, por outro lado, para alcançar aquele objectivo bastaria ter nacionalizado o capital suficiente para perfazer a maioria de capital público.
Ora, como se viu, não foi apenas isso que sucedeu. Por isso, garantir as nacionalizações é assegurar a persistência das empresas nacionalizadas como empresas totalmente nacionalizadas.
O argumento tirado do n.º 2 do artigo 83.º a favor da tese do acórdão é manifestamente bem frágil. O que desse preceito se pode e deve razoavelmente retirar é que as pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas não gozam da garantia das nacionalizações, podendo, inclusivamente, ser integradas plenamente no sector privado, mediante a sua total desnacionalização ou privatização. Isto não quer dizer que só a privatização integral ou maioritária é que seria violadora da garantia das nacionalizações.
Por conseguinte, o n.º 2 não pode ser convincentemente utilizado, num suposto argumento a contrario sensu, para concluir que a privatização parcial minoritária não constitui ofensa à garantia das nacionalizações. O facto de se admitir uma excepção à garantia das nacionalizações é de se ir ao ponto de, em certos casos, se permitir privatização total, com integração total da empresa no sector privado, não quer dizer que a privatização parcial não seja também uma ofensa à garantia das nacionalizações. A privatização total, a integração plena no sector privado, é a hipótese extrema da desnacionalização; mas a privatização parcial é também uma forma (menos extrema, mas não menos inconstitucional) de desnacionalização.
Também no artigo 32.º da CRP, depois de se garantir o direito à liberdade, se menciona, como excepção, apenas a prisão, quer a repressiva (n.º 2), quer a preventiva (n.º 3). E, todavia, ninguém pretenderia fazer decorrer daqui, a contrario sensu, que só a prisão é que atenta contra a liberdade. A prisão é a última ratio de perda da liberdade, havendo outras medidas atentatórias da garantia da liberdade (medidas de privação parcial da liberdade) que não são menos inconstitucionais (v. o Acórdão 7/87).
Serve isto para concluir que o n.º 2 do artigo 83.º não pode ser utilizado para interpretar o n.º 1, no sentido em que o acórdão o faz, não apenas porque aquele preceito pode ter - e, a meu ver, tem - um sentido bastante diverso do que lhe foi dado, mas também porque a conclusão a que tal conduziria seria manifestamente incongruente com o alcance e sentido histórico e sistemático do n.º 1, que, indubitavelmente, teve o propósito de salvaguardar o acquis em matéria de nacionalizações, impedindo retrocessos nessa área.
5 - Privatização e capital nacionalizado
A redução da irreversibilidade das nacionalizações à garantia de que as empresas nacionalizadas permaneçam maioritariamente no sector público - tal é o ponto de partida do acórdão - conduziria, logicamente - para levar o raciocínio até ao fim -, à conclusão que isso é condição necessária e também é suficiente. Para garantir as nacionalizações é preciso - e seria apenas preciso - que a empresa nacionalizada se mantivesse no sector público através do predomínio público no capital e na gestão. Nada mais seria exigido.
Ou seja: nem sequer seria necessário garantir a não privatização do capital efectivamente nacionalizado em 1974-1976, desde que a sua reprivatização não afectasse a regra da maioria do capital público. A conclusão lógica salta à vista: o Estado poderia desfazer-se mesmo de capital efectivamente nacionalizado desde que não afectasse a maioria de capital público!...
O acórdão guarda-se de avançar para essa conclusão. Mas este «pequeno» passo suplementar em frente na linha daquele raciocínio não deixou de ser dado por alguns (é caso para dizer abyssus abyssum invocat...). É um facto evidente que essa tese choca fragorosamente com a norma constitucional, pois, se a lei fundamental assevera que «todas as nacionalizações [...] são conquistas irreversíveis», não se vê nenhum meio de afirmar que a irreversibilidade das nacionalizações é compatível com a desnacionalização do que foi nacionalizado. É ir contra lei expressa. É indefensável. Está para além de todos os limites suportáveis de esvaziamento das normas constitucionais.
Mas há uma coisa que se não pode dizer dessa tese. É que ela não seja coerente e consequente do pressuposto de que parte o acórdão. Este constrói um silogismo assim:
1) Nacionalizar é passar empresas para o sector público e desnacionalizar é passá-las para o sector privado;
2) As empresas mistas de capital e gestão maioritariamente públicos pertencem ao sector público;
3) Logo, a transformação das empresas nacionalizadas em empresas mistas de maioria pública não desnacionaliza essas empresas.
Já se viu acima como este silogismo está viciado logo na primeira premissa.
Mas, quando ele é aceite como bom, então é lógico que se conclua que é indiferente o destino do capital efectivamente nacionalizado. Se se nacionalizou 100, mas se bastam 51 para que a empresa se mantenha no sector público, então, logicamente, o Estado pode alienar, privatizar, 49 sem atentar contra as nacionalizações, porque a empresa continua no sector público!...
Mostrou-se como esta conclusão é insustentável à luz da Constituição; a verdade é que, quer a lei, quer o acórdão, atrás dela, consideram irreprivatizável o capital historicamente nacionalizado [embora não garanta a sua permanência nas mãos do Estado, visto que a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º se limita a garantir a sua detenção pela parte pública, o que é coisa diferente, como se vê pelo n.º 2 desse mesmo preceito]. Mas aquela conclusão lógica tem uma importante virtualidade: é a de mostrar que o raciocínio em que assenta o acórdão não pode estar correcto. Se um raciocínio, levado às suas naturais consequências, conduz a soluções insustentáveis, por absurdas, então é porque ele tem algo de errado.
A interpretação em que, afinal, se firma o acórdão, segundo a qual a garantia das nacionalizações só impediria a alienação do montante do capital historicamente nacionalizado em 1974-1976, conduz, também ela, a conclusões perfeitamente absurdas.
Basta atentar numa delas.
Por um lado, é fácil de verificar que as empresas em que antes da nacionalização o Estado já detinha forte participação eram, em geral, as empresas mais relevantes sob o ponto de vista do controle público da economia. Nesses casos, a nacionalização limitou-se a transferir para o Estado a parte restante do capital da empresa, o que, em alguns casos, era mesmo uma parte menor. Ao contrário, noutros sectores, estrategicamente menos relevantes, a participação pública era menor, pelo que a nacionalização abrangeu uma parte relativamente maior do capital das empresas abrangidas pela nacionalização. Neste contexto, é fácil vislumbrar o resultado absurdo a que chega a tese segundo a qual a garantia das nacionalizações apenas implica a proibição de alienação do montante de capital efectivamente nacionalizado em 1974-1976. É que, em primeiro lugar, a garantia das nacionalizações - que teve em todos os casos o mesmo propósito de tornar as empresas 100% públicas - passa a ter um alcance diverso, conforme a empresa já fosse mais ou menos participada pelo sector público. Por outro lado, e mais importante, a garantia das nacionalizações passou a ser, em regra, tanto mais débil quanto mais importante for o sector em que elas ocorreram (partindo do princípio, que julgo corresponder à realidade, de que a participação pública era maior nos sectores mais importantes). Assim, a garantia das nacionalizações seria mais frustre no caso da TAP ou da CP do que no caso das empresas rodoviárias ...
Acresce que, nesses casos, em que o capital que ainda não era público era menor do que aquele que já o era, a lei em apreço permite que seja privatizado um montante de capital maior do que o que foi nacionalizado.
Nestes termos, a proibição de alienação do montante historicamente nacionalizado é uma pura falácia. A verdade é que, se se nacionalizou só uma parte do capital, é porque nada mais havia para nacionalizar, porque já era «nacional».
6 - Privatização parcial e sectores vedados à iniciativa privada
O diploma em apreço não é explícito quanto a saber se o regime nele previsto se aplica também às empresas públicas dos sectores vedados à iniciativa privada (nos termos da Lei 46/77, de 8 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei 406/83, de 19 de Novembro).
No seu pedido o Presidente da República suscita expressamente a questão da compatibilidade das normas em causa com o artigo 85.º, n.º 3, da CRP, que prevê justamente a existência de sectores vedados à iniciativa privada.
O acórdão parte do pressuposto de que o presente diploma se aplica também às empresas públicas dos sectores vedados para concluir que não existe nenhuma violação do artigo 85.º, n.º 3, pela mesma razão que não existe violação do artigo 83.º, n.º 1, a saber, que as empresas, mesmo transformadas em empresas mistas, se mantêm dentro do sector público, uma vez que nelas está garantido o predomínio público, quer no capital, quer na gestão. Donde continuaria a valer a vedação dessas actividades a empresas privadas.
Este discurso suscita algumas observações.
Em primeiro lugar, não é líquido se este diploma pretende derrogar a Lei 46/77, a qual, salvo algumas excepções, proíbe de todo em todo a intervenção privada nos sectores vedados, reservando-os para empresas exclusivamente públicas.
Por um lado, é certo que na proposta de lei originária se ressalvavam expressamente os sectores vedados (v. Diário da Assembleia da República, 2.ª série, de 5 de Dezembro de 1987, p. 541) e que tal inciso veio a desaparecer do texto finalmente aprovado, o que apontaria para a ideia de que se pretendeu afastar tal ressalva; por outro lado, porém, é estranho que uma alteração de tal alcance, a ter sido desejada, não conste expressamente do presente diploma e não tenha sequer sido mencionada (e muito menos sublinhada) nos debates e não tenha suscitado ao menos um reparo por parte das forças políticas parlamentares que se opuseram à lei na AR.
Como quer que seja, admitindo, sem discutir, a hipótese de que este diploma derroga a Lei 46/77, permitindo a transformação de empresas públicas dos sectores vedados à iniciativa privada em sociedades de capital misto, abertas ao capital privado, é tudo menos seguro que tal solução seja constitucionalmente lícita, ao contrário do que o acórdão dá por adquirido, sem grandes esforços de demonstração. É que, por um lado, é fácil ver que a Lei 46/77 supõe claramente que a lógica dos sectores vedados à iniciativa privada exclui, em princípio, a abertura das empresas desses sectores ao capital privado (v. artigos 8.º e 5.º, n.º 2, da referida lei); por outro lado, pode defender-se, com bons argumentos, que é essa a solução mais consentânea com a intenção normativa do referido preceito constitucional, o qual, ao fazer vedar certos sectores básicos às empresas privadas, procura interditar-lhes toda e qualquer intervenção nesses sectores, mesmo em posição minoritária em empresas mistas, já que isso sempre introduziria uma lógica económica incongruente com a razão de ser do princípio constitucional da vedação de certos sectores básicos ao capital privado. É, pois, fundadamente defensável a tese de que, quando a CRP veda certos sectores económicos - por serem sectores básicos - a «empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza», quis interditar o acesso a esses sectores de todas as empresas com uma componente privada (cf., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pp. 417 e seg. e nota VI ao artigo 85.º).
Mas, mesmo que a solução haja de ser outra, isto é, concedendo que as empresas mistas com predomínio público já não sejam empresas privadas nem «entidades da mesma natureza» para efeitos do artigo 85.º, n.º 3, da CRP, a verdade é que essa conclusão não pode servir de sufrágio à tese de que, pela mesma razão, não haveria violação do artigo 83.º, n.º 1. É que - não é de mais sublinhá-lo - a CRP não se limita a proibir que as empresas nacionalizadas sejam transformadas em empresas privadas; o que a lei fundamental proíbe é a sua desnacionalização, tout court. Ora, como acima se demonstrou, uma empresa nacionalizada fica parcialmente desnacionalizada quando uma parte do seu capital passa a ser privado.
A empresa parcialmente privatizada pode não ser ainda uma empresa privada em sentido próprio, mas já não é seguramente uma empresa integralmente nacionalizada.
7 - A garantia institucional das empresas públicas
Nos termos do artigo 1.º, as empresas públicas podem ser transformadas em sociedades anónimas (de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos).
A norma não estabelece nenhuma excepção ou limite. Todas as empresas públicas podem ser transformadas em sociedades anónimas.
Isto quer dizer que, no limite, poderá deixar de haver empresas públicas, com a consequente caducidade do seu actual estatuto genérico (o Decreto-Lei 260/76).
O problema constitucional que aqui se suscita e o seguinte: pode deixar de haver empresas públicas stricto sensu? A figura de empresa pública pode ser legalmente abolida? A questão pode parecer, à primeira vista, ociosa. Mas não é. A questão é constitucionalmente relevante na medida em que a figura da empresa pública encontra-se explicitamente prevista na CRP [artigos 102.º, n.º 1, alínea b), 109.º, n.º 2, 168.º, n.º 1, alínea v), e 229.º, alínea j)].
É certo que não existe nenhuma norma a determinar expressamente a existência de empresas públicas, podendo, portanto, defender-se que à CRP é indiferente a subsistência de empresas públicas stricto sensu.
Não me parece ser essa a melhor interpretação. Julgo que o entendimento correcto é o de que estamos perante uma verdadeira e própria garantia institucional, isto é, de uma figura jurídica que, independentemente dos seus contornos específicos e do seu âmbito concreto de aplicação, é de existência constitucionalmente obrigatória, não podendo ser suprimida.
Existe uma inegável ligação entre a previsão constitucional da figura da empresa pública e a obrigatoriedade constitucional de um sector público [artigo 89.º, n.º 2, alínea a)], composto pelas «unidades de produção de propriedade colectiva, geridas pelo Estado». Naturalmente que não existe uma obrigação constitucional de as empresas do sector público revestirem necessariamente, todas elas, a forma de empresa pública. Mas é de concluir que para a CRP a forma de empresa pública é a forma normal das empresas do sector público.
A este propósito, cabe ainda assinalar que o artigo 1.º do diploma não excepciona nenhuma empresa pública, nem sequer o Banco de Portugal, que também parece poder ser transformado em sociedade anónima mista, participada de capital privado até 49,9%.
É certo que a transformação das empresas públicas se deve dar «nos termos da CRP». Mas, aparentemente, essa norma tem a ver apenas com o processo de transformação das empresas.
Como quer que seja, a verdade é que, a admitir-se que a lei não quis excluir o Banco de Portugal, então ela deve ser tida por inconstitucional. O Banco de Portugal está previsto na própria CRP «como banco central», com o «exclusivo da criação de moeda», colaborando, «de acordo com o Plano e as directivas do Governo [...], na execução das políticas monetária e financeira» (CRP, artigo 105.º, n.º 2). A expressa previsão constitucional do Banco de Portugal, bem como o papel que constitucionalmente lhe está confiado, fazem daquele, necessariamente, uma instituição pública, posta exclusivamente ao serviço do interesse público, o que manifestamente não se compadece com a sua transformação em sociedade mista, com a participação de capital privado e com a intervenção de uma lógica empresarial essencialmente alheia à lógica pública.
8 - Interpretação da lei fundamental e «constituição económica»
Julgo ter demonstrado que o preceito do artigo 83.º não consente a privatização (total ou parcial) das empresas nacionalizadas.
Penso que isso, além de decorrer exuberantemente da letra e intenção normativa do preceito - expressa na sua formula enfática («conquistas irreversíveis») -, não é senão sublinhado quando se faz apelo a uma interpretação integrada dos preceitos da «constituição económica» global.
Não deixa de ser estranho que o acórdão se tenha bastado com um seco silogismo baseado num postulado perfeitamente indemonstrado - a saber: as nacionalizações não consistiram senão em trasnsferir empresas do sector privado para o sector público -, sem cuidar minimamente de indagar sobre o propósito e sentido da garantia das nacionalizações no contexto global da «parte económica» da CRP.
Por mim, não vejo como é que é possível desligar a garantia das nacionalizações (artigo 83.º) dos princípios fundamentais da organização económica constitucional (artigo 80.º), bem como das incumbências prioritárias do Estado nesse domínio (artigo 81.º). Seguramente que as nacionalizações constituem realização e garantia de alguns dos mais eminentes princípios da constituição económica, designadamente os da «subordinação do poder económico ao poder político democrático» [artigo 80.º, alínea a)], da «apropriação colectiva dos principais meios de produção» [artigo 80.º, alínea c)], e do «desenvolvimento da propriedade social» [artigo 80.º, alínea e), e artigo 90.º]. Não é por acaso que o artigo 90.º, n.º 2, menciona as «nacionalizações» como primeira das «condições de desenvolvimento da propriedade social», sendo que esta é inquestionavelmente uma das formas de realização da «democracia económica e social» em que se configura o Estado de direito democrático de vocação socialista, cuja construção a CRP visa (artigos 1.º e 2.º) Nada disto é compaginável - antes é frontalmente contrariado - pela reprivatização, ainda que parcial, das empresas nacionalizadas, pela introdução do capital privado e da filosofia da gestão privada nas empresas públicas. Isto não favorece, antes impede, a realização daqueles princípios constitucionais.
Qualquer que seja o juízo que se faça sobre a constituição económica da CRP em sede político-constitucional, não se afigura aceitável, porém, em sede de jurisdição constitucional, que se silencie e ignore o sentido que os princípios constitucionais emprestam a cada norma singular, sobretudo àquelas normas que mais típica e emblematicamente caracterizam a constituição económica (como sucede justamente com a do artigo 83.º).
As normas da parte económica da CRP não são diferentes das demais normas constitucionais. Não são mais «fracas», nem estão mais à disposição do legislador e do intérprete do que as demais. Não existe nenhuma razão jurídico-dogmática para se adoptar um código específico de interpretação e de aplicação das normas da constituição económica, substancialmente menos exigente e mais complacente do que aquele que se considera adequado para as normas sobre os direitos fundamentais e sobre a organização política.
Tal como já escrevi na declaração de voto de vencido ao Acórdão 25/85, continuo a não poder alinhar no preconceito de que as normas da constituição económica pertencem a uma espécie de constituição menor, de segunda ordem, menos cogente e menos limitativa para o legislador, mais lábil e imprecisa, insusceptível de fundar juízos de inconstitucionalidade (salvo em casos limite de irremissível e escandaloso conflito entre norma legal e norma constitucional). Não é difícil identificar os pressupostos ideológicos que suportam essa desvalorização da constituição económica. O que penso é que ter consciência deles apenas sublinha a necessidade de afirmar enfaticamente que a constituição económica não é menos constituição e que deve ser tratada como parte a título inteiro da lei fundamental da República. - Vital Moreira.
Declaração de voto
Nos termos do n.º 1 do artigo 83.º da CRP «todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras».Definindo o âmbito deste preceito, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., 1984, nota III a esse artigo:
Quanto ao âmbito material, importa notar que a norma não fala em «empresas nacionalizadas», mas sim, simplesmente, em «nacionalizações». Abrange, portanto, tudo aquilo que foi objecto de um acto de nacionalização: não apenas as empresas globalmente, mas também as participações no capital de certas empresas; [...] Sobre a proibição de desnacionalização dizem os mesmos autores, ob. cit., loc. cit., nota v:
Não existe desnacionalização apenas quando haja reprivatização de uma empresa inteira, enquanto tal. Da letra e da ratio da norma resulta igualmente claro que a CRP não só proíbe a desnacionalização integral, mas também a desnacionalização parcial de qualquer empresa ou exploração nacionalizada - a CRP não fala em empresas nacionalizadas, mas sim em nacionalizações, tout court. Por isso, deve ter-se por inconstitucional a alienação da propriedade ou do direito de exploração de qualquer estabelecimento ou parte distinta do património de uma empresa nacionalizada susceptível de exploração empresarial autónoma, directa e imediata; de outro modo, o Estado estaria sempre em condições de frustrar a proibição constitucional [...] Também parece infringir a garantia das nacionalizações a abertura das empresas nacionalizadas à participação do capital privado [...] Na mesma orientação escreve Guilherme de Oliveira Martins, Lições sobre a Constituição Económica Portuguesa, vol. I, 1984, n.º 25:
Quanto à desnacionalização parcial, entendemos que ela não e possível à face do artigo 83.º, n.º 1, uma vez que com esse «expediente» poder-se-ia, afinal, retirar conteúdo à disposição constitucional, que, assim, seria contornada e violada. Pensamos que o direito de propriedade do Estado se reporta à totalidade dos títulos de participação no capital nacionalizado das empresas, nesse sentido, aliás, apontando a Lei 77/79, de 4 de Dezembro, designadamente no seu artigo 3.º Com base nesta doutrina votei a inconstitucionalidade - por violação do citado preceito constitucional - das normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º e 9.º do diploma em apreciação, na parte em que elas se referem às empresas públicas nacionalizadas, bem como da norma do artigo 8.º do mesmo diploma, referente às empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresa pública. - Mário de Brito.
Declaração de voto
1 - Tal como já havia entendido na declaração de voto que juntei ao Acórdão 273/86 (Diário da República, 1.ª série, de 11 de Setembro de 1986), proferido sobre um decreto do Governo visando transformar a SOCARMAR, E. P., em sociedade anónima de capitais mistos - e, por conseguinte, já pelas razões aí expendidas -, acompanhei o precedente acórdão no seu conteúdo decisório fundamental, a saber, que a abertura do capital de empresas nacionalizadas à participação de entidades privadas, nas condições previstas no decreto da AR em apreço, não briga com o princípio constitucional da irreversibilidade das nacionalizações. Existe, de resto, e prescindindo do maior ou menor ênfase posto em certos considerandos, uma básica sintonia entre o teor da referida declaração e a fundamentação do presente aresto, no que toca a esse seu ponto central e nuclear.Estou, porém, em divergência com tal fundamentação no que respeita ao entendimento, nela consignado, de que o dito princípio da irreversibilidade postula a permanência na titularidade pública (ou da «parte pública», como se diz no decreto em análise) do capital «económico» que era o das empresas nacionalizadas à data da respectiva nacionalização - ou seja, a permanência nessa titularidade não apenas do «capital» stricto sensu, «capital jurídico» ou «capital social» ao tempo de tais empresas, mas ainda das reservas então existentes entretanto incorporadas nesse mesmo «capital», provocando o seu aumento.
Continuo a entender, com efeito, que o que o princípio em causa exige, no máximo, é que continue a pertencer à «parte pública» o referido capital stricto sensu, ou «capital» em sentido técnico-jurídico, das empresas à data da nacionalização, e apenas esse. E isto - para me ater ao essencial - porque não mais é reclamado pela «lógica» das nacionalizações (e pela consequente «lógica» da sua irreversibilidade), que é uma lógica político-económica e político-jurídica, e de modo algum exclusivamente económica: a «lógica» da transferência para a titularidade «jurídica» do Estado, e para a sua gestão, de determinadas unidades produtivas, em nome de determinada concepção e programa «político», e não a da apropriação pelo Estado dessas mesmas unidades em razão do «valor» económico de respectivo património. Ora, sendo assim, claro é que a ideia básica que presidiu a nacionalização (e que determina a correspondente irreversibilidade) fica respeitada desde que o «capital social» inicial das empresas permaneça nas mãos do Estado ou de outras entidades do sector público - por isso que, determinando-se a titularidade de uma empresa e da correspondente gestão pela titularidade do correspondente «capital social», o que a nacionalização significou (e através do que se consumou) foi justamente a apropriação pelo Estado do mesmo capital das empresas que daquela foram objecto.
Exigir que, além disso, permaneça na titularidade pública o capital correspondente às reservas existentes à data da nacionalização traduzir-se-á, pois, em meu modo de ver, numa mudança de plano - susceptível de conduzir, alias, a consequências incongruentes. Na verdade - pode perguntar-se -, se a empresa, à data da nacionalização, tivesse, em lugar de reservas, prejuízos acumulados e apresentasse uma «situação líquida» passiva, a mesma razão que leva a deverem considerar-se intransferíveis aquelas para o sector privado não deveria conduzir, nesta outra hipótese, a ter como admissível a «privatização» mesmo do capital inicial da empresa em questão, salvaguarda a maioria da participação do sector público? Eis por que no ponto em apreço não posso acompanhar o acórdão. O que significa que continuaria a perfilhar a sua conclusão fundamental, ainda quando se entendesse que no artigo 2.º, alínea a), do diploma sub judicio se tinha unicamente em vista o «capital» em sentido jurídico das empresas nacionalizadas à data da respectiva nacionalização.
2 - Também acompanhei o acórdão no que se refere à pronúncia da inconstitucionalidade do artigo 7.º, n.º 2, do decreto da AR em análise. Mas aqui só parcialmente.
Procurando, de igual modo, cingir-me ao essencial da questão, direi simplesmente que, pelo menos no tocante à escrituração como «operações de tesouraria» das receitas a que se reporta o n.º 1 do mesmo artigo, ela ainda será compatível com o princípio da universalidade, conjugado com o princípio da anualidade, do orçamento desde que a correspondente «regularização» - naturalmente através de um orçamento suplementar - se faça no próprio ano em que as receitas são arrecadadas e que, no tocante às despesas, não haverá, em qualquer caso, violação daqueles princípios, na medida em que tais receitas (mesmo escrituradas como «operações de tesouraria») venham a ser utilizadas na cobertura de despesas orçamentalmente previstas. É que - e quanto a este último ponto -, não se prevendo propriamente no artigo 7.º um regime de «consignação de receitas», mas tão-só a «afectação» destas a determinadas despesas públicas, o facto de aquelas virem a ser arrecadadas (isto é, o facto de virem efectivamente a realizar-se em determinado ano alienações de acções que as produzam) não tem que implicar uma automática «majoração» das últimas (para lá da correspondente dotação orçamental):
bem poderá perfeitamente o Governo, em lugar disso, e por exemplo, utilizar em menor extensão o recurso aos empréstimos como meio de financiamento.
Na medida indicada, pois, não votei a inconstitucionalidade do preceito ora em causa.
Tem-se consciência, aliás, quer da complexidade da problemática que ele suscita, desde logo, ao nível financeiro, e depois, ao nível constitucional, quer do melindre e complexidade das situações que lhe estão subjacentes. Mas, se aquela parece realmente defrontar-se, no limite, com a exigência dos princípios, da CRP, em matéria de organização orçamental, atrás referidos, crê-se, não obstante, por outro lado, que as preocupações e os objectivos que estarão na base da disposição sempre poderão vir a encontrar uma diversa resposta - uma resposta que, dando-lhes do mesmo modo satisfação, seja a um tempo mais conforme com os aludidos princípios, - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Vencido parcialmente, nos termos do n.º 1 da declaração de voto do Exmo. Sr.Conselheiro Raul Mateus. - Armando Manuel Marques Guedes.