Acórdão 461/87
Processo 176/87
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional (T. Const.):
I - Relatório
1 - O Primeiro-Ministro, no uso da faculdade conferida pelo artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, veio requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 5 e 8 do artigo 10.º, do n.º 3 do artigo 13.º, do n.º 2 do artigo 14.º, do n.º 3 do artigo 16.º, dos n.os 2 e 4 do artigo 18.º, do n.º 2 do artigo 19.º, do artigo 25.º, do n.º 3, do artigo 26.º, do artigo 58.º, dos n.os 1 e 2 do artigo 70.º e dos artigos 71.º, 87.º, 88.º e 89.º da Lei 49/86, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1987.
São fundamentos do pedido, em síntese, os seguintes, que vão enunciar-se de acordo com a ordem por que são invocados no requerimento do Primeiro-Ministro e as epígrafes segundo as quais são aí agrupados:
a) Relativamente aos n.os 5 e 8 do artigo 10.º, ao n.º 3 do artigo 13.º, ao n.º 2 do artigo 14.º, aos n.os 2 e 4 do artigo 18.º, ao artigo 25.º, ao n.º 3 do artigo 26.º, ao artigo 58.º, ao artigo 71.º e ao artigo 88.º (recte, ao seu n.º 1), a «violação do regime constitucional da competência dos órgãos de soberania», traduzida concretamente, consoante cada um desses preceitos da Lei 49/86, na infracção das disposições do n.º 2 do artigo 113.º e do n.º 1 do artigo 114.º, conjugadas com o «princípio constitucional da liberdade de exercício das competências política e legislativa», ou do n.º 2 do artigo 106.º e da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º, ou ainda dos artigos 185.º ou 219.º, todos da Constituição; e a violação, além disso, dos artigos 29.º, n.os 1 e 3, e 39.º desta última, pelo que toca, respectivamente, aos artigos 18.º, n.º 4, e 25.º da Lei;
b) Relativamente ao n.º 2 do artigo 19.º, a violação do disposto no n.º 6 do artigo 108.º, no n.º 2 do artigo 113.º, no n.º 1 do artigo 114.º e no artigo 185.º, todos da Constituição, bom como a infracção (que importará «inconstitucionalidade indirecta», a apreciar e declarar pelo T. Const.) das disposições dos artigos 4.º, 6.º e 18.º da Lei 40/83, de 13 de Dezembro (Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado);
c) Relativamente ao artigo 87.º, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 172.º da Constituição, o qual versa sobre o regime da recusa parlamentar de ratificação de decretos-leis;
d) Relativamente ao n.º 3 do artigo 13.º (de novo), bem como ao n.º 3 do artigo 16.º e ao artigo 89.º (este por força do seu n.º 2), a violação do princípio constitucional da anualidade do Orçamento do Estado;
e) Relativamente aos n.os 1, 2, 3 e 4 do artigo 25.º (de novo), aos n.os 1 e 2 do artigo 70.º e aos artigos 87.º, 88.º e 89.º (estes três últimos também de novo), a violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da Constituição, decorrente da inserção dos preceitos referidos, todos eles «não estritamente orçamentais», numa lei do orçamento, sem terem qualquer relação específica com as disposições estritamente orçamentais desta.
Ao seu requerimento juntou o Primeiro-Ministro um parecer jurídico da autoria do Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro, versando sobre a questão da conformidade constitucional de alguns dos preceitos da Lei 49/86 antes enunciados (concretamente: os artigos 10.º, n.º 8, 13.º, n.º 3, 18.º, n.os 2 e 4, 26.º, n.º 3, 58.º e 88.º, n.º 1) e concluindo pela sua inconstitucionalidade.
2 - Notificada a Assembleia da República (AR), na pessoa do seu Presidente, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, para se pronunciar sobre o pedido, limitou-se aquele a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os números do Diário da Assembleia da República, relativos à discussão das disposições impugnadas.
3 - Cumpre agora, pois, passar à apreciação do pedido o que se fará analisando as questões nele abrangidas seguindo basicamente, com pequena diferença, a ordem já referida, constante do requerimento inicial.
II - Fundamentos
II.I - As questões relativas ao regime constitucional da competência dos órgãos de soberania
4 - Além de respeitarem a diversos preceitos da Lei 49/86, são de vária natureza as questões que vêm suscitadas sob esta epígrafe no requerimento do Primeiro-Ministro. Importando, assim, considerá-las separadamente, começará por apreciar-se as que têm a ver com os princípios gerais de distribuição da competência normativa entre a AR e o Governo. Respeitam elas, antes de mais, às seguintes disposições do diploma em apreço:
ARTIGO 10.º
...
8 - O Governo aprovará legislação tendente a não permitir a admissão e a renovação do exercício de funções remuneradas, no âmbito dos serviços da administração central e local, de pessoal aposentado, reformado ou abonado de pensão de reserva, bem como beneficiários de pensão atribuída por instituições de segurança social, exceptuando a modalidade de contrato de prestação de serviço regulado pela lei civil.
ARTIGO 18.º
...
2 - Durante o ano de 1987 o Governo adoptará as providências necessárias à elaboração dos orçamentos dos serviços dos registos e do notariado, procederá, mediante decreto-lei, à revisão dos critérios de gestão integrada dos Cofres mencionados no número anterior e concluirá as acções destinadas a adequar o respectivo regime financeiro aos princípios da unidade e da universalidade do Orçamento do Estado.
ARTIGO 26.º
...
3 - Serão objecto de debate na Assembleia da República as bases do sistema de informação sobre a situação económica e social, a cuja revisão o Governo procederá até ao termo do prazo previsto no número anterior.
ARTIGO 58.º
O Governo proporá à Assembleia da República com carácter de urgência um conjunto articulado de incentivos fiscais ao turismo, designadamente de exportação.
ARTIGO 88.º
1 - O regime de alienação de participações do Estado ou de qualquer fundo autónomo, instituto público, instituições de segurança social, empresa pública ou sociedade de capitais públicos no capital de sociedades será estabelecido mediante decreto-lei, o qual assegurará que a mesma se processe exclusivamente mediante concurso público e sob proposta do conselho de gestão competente.
2 - São revogadas as disposições legais que contrariam o disposto no presente artigo.
Como pode verificar-se, nos preceitos transcritos provê-se, seja sobre a emissão pelo Governo de diversa legislação (artigos 10.º, n.º 8, 18.º, n.º 2, em parte, 88.º, n.º 1, e ainda, ao que parece, 26.º, n.º 3, também em parte), seja sobre a apresentação por aquele de uma proposta de lei (artigo 58.º). Ora, justamente nessa medida sustenta o Primeiro-Ministro que tais preceitos são inconstitucionais.
O argumento que conduz a tal conclusão arranca da consideração de «dois princípios básicos da organização do poder político» consignados no artigo 113.º, n.º 2 e no artigo 114.º, n.º 1, da Constituição - a saber: o de que «o conteúdo da competência dos órgãos de soberania resulta exclusivamente da Constituição» e o de que «no exercício dessa competência devem os órgãos de soberania observar o princípio da separação e independência» - e desenvolve-se nos seguintes termos: dos princípios mencionados decorre que o regime constitucional das competências dos órgãos de soberania não pode ser alterado por lei ordinária; por outro lado, esse regime constitucional é o que deriva não só de normas expressas da Constituição, mas também da ausência destas, «ausência que não cria uma lacuna integrável pela legislação ordinária, antes contém, em si mesma, um sentido prescritivo, normativo»; assim, a «ausência de norma constitucional que imponha o exercício vinculado das competências política e legislativa traduz que o seu exercício é livre e discricionário; significa isto, designadamente, que, na falta de norma expressa da Constituição em contrário, o Governo dispõe de autonomia e liberdade legislativa e política no exercício das suas faculdades de emitir decretos-leis, requerer autorizações legislativas ou apresentar propostas de lei; e que, consequentemente, se verifica «a impossibilidade de a Assembleia da República impor, em determinadas matérias, ao Governo, apropriando-se dos seus próprios juízos de oportunidade e conveniência, a apresentação de propostas de leis, de pedidos de autorização legislativa ou, sequer, a obrigação de este legislar no âmbito da competência não reservada àquela, sob pena de a essência própria do poder executivo se passar a ver como não autónoma da do poder legislativo»; a admitir-se o contrário, teríamos uma «usurpação de campos de responsabilidade política», cuja ilegitimidade constitucional «resulta bem patente se atentarmos no facto de a Constituição nunca atribuir à Assembleia da República a competência de dar 'ordem de legislar' ao Governo». Ora, nas disposições indicadas está-se precisamente em face de ordens ou imposições desse tipo, feitas pela AR: daí, a inconstitucionalidade.
De modo semelhante, é também partindo do postulado do carácter autónomo ou livre da competência do Governo para legislar e para apresentar propostas de lei, e por entender que nos mencionados n.º 8 do artigo 10.º, n.º 2 do artigo 18.º, n.º 3 do artigo 26.º e artigo 58.º se impõe ao Governo a «obrigação» de fazer uma ou outra dessas coisas, ou (quanto ao artigo 18.º, n.º 2) é também por isso, que no seu parecer o Prof. Doutor Teixeira Ribeiro conclui pela inconstitucionalidade, nessa medida dos preceitos referidos.
Pois bem: que dizer desta argumentação?
5 - Antes de mais, que há nela um ponto inquestionável e que deve ficar liminarmente claro: o de que a competência legislativa e de iniciativa legislativa do Governo é essencialmente autónoma ou livre (descontada alguma hipótese particular, constitucionalmente contemplada, como são as dos artigos 94.º, n.º 2, e 108.º, n.º 3), não podendo o seu exercício ser juridicamente vinculado pela manifestação de vontade de qualquer outro órgão de soberania, mormente da AR.
É certo que não pode tomar-se absolutamente à letra a afirmação, que começa por fazer-se no requerimento do Primeiro-Ministro, de que o «conteúdo» da competência dos órgãos de soberania resulta «exclusivamente» da Constituição: de facto, e para além das dificuldades que um tal modo de dizer pode em si mesmo suscitar, se no artigo 113.º, n.º 2, da Constituição se consigna o princípio da exclusividade constitucional quanto à competência de tais órgãos (v. G. Canotilho e V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., I vol., p. 48, nota VI), não deixa aquela de admitir excepções a esse princípio, prevendo que, no tocante a certos desses órgãos - entre os quais estão, designada e justamente, a AR [artigo 164.º, alínea m)] e o Governo [artigo 200.º, n.º 1, alínea h)] -, a lei possa vir alargar ou completar o respectivo quadro constitucional de funções. Simplesmente, desde logo, pelo que respeita ao Governo, tal previsão não se reporta às competências aqui em causa; e depois, seja qual for a amplitude que possa e deva reconhecer-se a essas excepções, certamente nunca será lícito ao legislador ir, por essa via, ao ponto de descaracterizar e desvirtuar as competências nucleares dos órgãos de soberania - aquelas que, por definição, cabe à Constituição estabelecer e conferem a cada um desses órgãos um lugar próprio no quadro institucional desenhado pela lei fundamental.
Ora, não há dúvida de que é nota característica da função legislativa a liberdade ou autonomia dos correspondentes órgãos - seja a AR ou o Governo - de determinarem o se e o quando da legislação (deixada agora de remissa hipótese, irrelevante no caso, de eventuais «imposições constitucionais» de legislar e a problemática que suscitam): trata-se de um momento essencial da chamada «liberdade constitutiva» do legislador. E o que se diz do exercício directo da função legislativa dir-se-á, como é claro, do acto preparatório dela, que é a apresentação de uma proposta de lei. Por conseguinte, não há também dúvida de que não é dado à lei condicionar essa liberdade de exercício, ou seja, e cingindo-nos ao ponto que aqui importa: não é realmente dado à AR condicionar juridicamente o Governo, através de quaisquer injunções, no exercício dessas competências.
Assim sendo, logo daqui se conclui que o preceitos agora em apreço da Lei 49/86 não podem ter, de qualquer modo, a virtualidade constitucional de vincularem juridicamente o Governo à emissão dos diplomas (decretos-leis ou propostas de lei) neles previstos. Não obstante a AR havê-los aprovado e inserido na lei orçamental, nem por isso o Governo ficou «obrigado» juridicamente ao que quer que fosse, e antes conservou na íntegra a liberdade e autonomia de que constitucionalmente dispunha no âmbito das suas competências legislativa e de iniciativa legislativa.
Isto, porém, não significa que tais preceitos hajam de ser tidos por inconstitucionais e que a impossibilidade, logo ab initio verificada, de deles fazer derivar qualquer vínculo juridicamente relevante para o Governo seja precisamente (e só possa ser) a consequência (ou o resultado) desse seu vício.
É que uma tal conclusão apenas se imporia se devessem considerar-se os preceitos em causa como insusceptíveis de receber qualquer outro entendimento que não fosse o de pretenderem criar para o Governo uma «obrigação» (jurídica) de legislar ou de apresentar uma proposta de lei: nesse caso, na verdade, porque se estaria perante uma «pretensão normativa» excluída pela Constituição, certamente nada mais restaria do que tirar a correspondente ilação da inconstitucionalidade. Mas justamente acontece que tal entendimento não é forçoso e que é efectivamente possível conferir um outro sentido ou fazer uma outra leitura das disposições em questão.
Esse outro sentido ou essa outra leitura dos preceitos - à luz da qual já não tem (ou não tem necessariamente) de concluir-se pela sua inconstitucionalidade - será o que lhes reconheça antes alcance político, a saber, o alcance de uma «injunção» parlamentar ao Governo, desprovida de carácter juridicamente vinculativo. Isto é: nessas disposições não teve a AR em vista «concretizar» e modificar a natureza das competências atribuídas ao Governo pelos artigos 200.º, n.º 1, alínea d), e 201.º, n.º 1, convertendo-as, na espécie, em competências de exercício obrigatório; teve simplesmente o propósito de formular um juízo sobre a necessidade ou conveniência do tratamento legislativo de determinada matéria e de simultaneamente devolver (ou devolver em primeira linha) ao Governo esse encargo (v. g., por razões de indisponibilidade temporal ou até por julgá-lo melhor habilitado para o efeito), «convidando-o» a assumi-lo e a emitir os pertinentes diplomas. De tal sorte que o modo como o Governo a isso corresponda só será susceptível de apreciação no quadro do relacionamento político entre os dois órgãos de soberania, quer dizer, no quadro da responsabilidade política do Executivo perante o Parlamento - seja pela via do disposto no artigo 165.º, alínea a), segunda parte, e dos correspondentes instrumentos constitucionais e regimentais, seja, no limite, pela via do disposto no artigo 166.º, alínea e), ambos da Constituição.
Ora, não vê este Tribunal razão para não se entenderem os preceitos questionados nos termos acabados de expor.
Desde logo, não só o possibilita como intensamente o sugere uma característica ou dimensão estrutural desses preceitos: trata-se de que a sua «eficácia» - a sua eficácia «positiva», dirigida a produzir uma actuação do Governo - é limitada ao domínio das relações entre este último e a AR (isto é, ao domínio «interno» do «sistema político») e, mesmo aí, não se encontra assegurada por qualquer «sanção» jurídica (nem sequer, como poderia conjecturar-se, do tipo da prevista no artigo 283.º da Constituição). Não podendo, pois, logo por aqui, extrair-se de pura e simples «omissão» governamental qualquer efeito jurídico-normativo (designadamente em via contenciosa) fora daquele âmbito e não podendo dentro dele, por sua vez, as consequências dessa omissão ser outras senão as de carácter «político», antes apontadas, bem se compreende que não se reconheça às correspondentes «normas» ou disposições uma natureza diversa.
Mas outra circunstância concorre ainda para que se atribua a tais «normas» ou disposições não mais do que o assinalado alcance político. É a de que, mormente no contexto de um sistema de governo parlamentar ou semiparlamentar (como é o nosso), não pode decerto ter-se por inadmissível, anómalo ou desvirtuador do sistema que a assembleia representativa exprima ao Governo a necessidade ou conveniência de ser preparada ou emitida certa normação (inclusive legislativa, quando aquele for co-titular da correspondente função, e nomeadamente complementar de decisões legislativas parlamentares de princípio), cometendo-lhe a correspondente iniciativa, e assim como que promovendo uma «associação» dos dois órgãos de soberania nessa tarefa de produção normativa. E, se isto é assim em geral, melhor ainda, porventura, poderá compreender-se e aceitar-se o procedimento quando (como no caso) ele se inscreva no quadro do delineamento de um programa de opções políticas - como é o programa global de política económico-financeira, expresso na lei orçamental - que cabe ao Parlamento, em último termo, fixar (e para o que este dispõe, de resto, ao menos entre nós, de amplos poderes de conformação).
Ora, se não há, como se verifica, obstáculo político-constitucional de princípio a que a AR manifeste ao Governo a necessidade ou a conveniência de legislar, também não parece que deva excluir-se a possibilidade de ela o fazer no contexto do exercício da sua própria função legislativa. O que quer dizer que o entendimento «alternativo» que vem de acolher-se para os preceitos agora em análise não só não encontra qualquer impedimento dirimente à sua aceitação, vistas as coisas pelo lado das grandes linhas de força constitucional a que deve obedecer o «processo político», como é aquele que estará em consonância com os dados «reais» deste último e o exprime.
Assentando, pois, em que às disposições acima transcritas da Lei 49/86 não há-de reconhecer-se, no aspecto aqui considerado, mais do que a eficácia «política» que ficou assinalada, eis como pode e deve concluir-se, a um tempo, que de tais preceitos não decorre qualquer vinculação jurídica para o Governo no tocante à emissão dos diplomas, ou à apresentação da proposta de lei, aí previstos, mas que nem por isso (ou para isso) os mesmos preceitos têm de ser julgados inconstitucionais.
6 - O que fica dito não bastará, contudo, para afastar em definitivo a inconstitucionalidade das disposições em causa, se e quando se entenda que, nesse seu procedimento de «apontar» ao Governo uma tarefa legislativa ou de associá-lo a ela, sempre a AR deverá observar a «moderação» que é raiz e essência do princípio da «separação e interdependência» dos órgãos de soberania e da «autonomia» destes (cf. o artigo 114.º, n.º 1, da Constituição e, na literatura nacional, por último e em particular, A. Barbosa de Melo, Democracia e Utopia, Porto, 1980, p. 45), sob pena, justamente, de violação de tal princípio (com um desmesurado alargamento da responsabilidade parlamentar do Executivo e descaracterização da própria ideia matriz do sistema parlamentar ou semiparlamentar de governo). Uma expressão de tal exigência, quando o referido procedimento siga a via legislativa, estaria, v. g., na necessidade de os correspondentes preceitos terem uma qualquer ligação com a economia global do diploma em que se inscrevem (no caso, por consequência, com a matéria, a índole e os objectivos da lei do orçamento). De outro modo, dir-se-ia que se estava perante um abuso de utilização da forma legislativa pela AR.
Simplesmente, ainda quando se perfilhe esta concepção das coisas, não haverá de concluir-se pela inconstitucionalidade das disposições da Lei 49/86 que vêm sendo consideradas. É que não pode negar-se que todas elas - umas porventura mais, ou mais directamente, que outras - apresentam uma suficiente atinência com o diploma em que se acham inseridas, sobretudo não se perdendo de vista que tal diploma (a lei orçamental) deixou há muito de assumir um mero carácter financeiro-contabilístico (cingido simplesmente à previsão e à programação das receitas e despesas do Estado) para passar a constituir um instrumento fundamental e determinante da definição integrada de toda a política económico-financeira para certo ano económico (sobre o ponto e as suas consequências em termos de conteúdo e alcance da lei orçamental, v., por ex., J. M. Cardoso da Costa, Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento, separata dos Estudos em Homenagem do Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1982, n.os 3, 4 e 7).
Julga-se dispensável um longo desenvolvimento para fundamentar a afirmação acabada de fazer: bastará, a esse respeito, chamar a atenção para o facto de nos preceitos questionados se prever uma intervenção legislativa ou uma iniciativa legislativa do Governo em áreas como a do estatuto do pessoal aposentado e da gestão de recursos humanos da Administração (artigo 10.º, n.º 8), da definição dos critérios de gestão das verbas de certos cofres públicos dotados de autonomia financeira (artigo 18.º, n.º 2), da informação sobre a situação económica e social (artigo 26.º, n.º 3), da definição do quadro de incentivos fiscais para certo ramo de actividade económica (artigo 58.º) e do regime de alienação de participações do sector público (artigo 88.º, n.º 1). Na verdade, está-se, em todos os casos, em face de matérias de índole financeira ou económica (ou com incidência nesses domínios), de tal modo que não pode considerar-se «abusiva» a comissão ao Governo do seu tratamento normativo, feita na lei em que anualmente se definem parâmetros básicos e fundamentais da política a prosseguir pelo Estado nessas áreas.
Em qualquer caso, pois, não poderá dizer-se - com base no fundamento que tem vindo a ser apreciado (o de que aí se estabelecem «imposições» legislativas ou de iniciativa legislativa ao Governo) - que os preceitos referidos sejam inconstitucionais.
7 - Não é, todavia, esse o único fundamento invocado pelo Primeiro-Ministro para arguir a inconstitucionalidade de alguns dos mesmos preceitos: com efeito, quanto ao n.º 2 do artigo 18.º e ao n.º 1 do artigo 88.º, faz valer ainda, nesse sentido, a circunstância de neles se impor ao Governo a utilização da forma de «decreto-lei» na normação aí prevista. E com base em tal circunstância sustenta também a inconstitucionalidade de duas outras disposições da Lei 49/86, para além das já analisadas, a saber, o n.º 3 do artigo 13.º e o n.º 2 do artigo 14.º, os quais rezam como segue:
ARTIGO 13.º
...
3 - O Governo regulamentará, por decreto-lei, o regime de atribuição aos municípios referidos no n.º 1 de indemnizações compensatórias decorrentes do tarifário social estabelecido relativas a anos subsequentes ao presente exercício orçamental.
ARTIGO 14.º
...
2 - A utilização no decurso do exercício de 1987 da verba referida no número anterior, no que diz respeito ao regime de diuturnidades especiais dos docentes do ensino superior e do pessoal da carreira de investigação científica, será objecto de regulamentação a aprovar pelo Governo, mediante decreto-lei, dentro do prazo de 90 dias a contar da entrada em vigor da presente lei.
O argumento é agora o de que se está perante «matérias de estrutura claramente regulamentar» e que, «fora dos casos do n.º 2 do artigo 115.º e das alíneas b) e c) do artigo 201.º, ambos da CRP, a opção pela utilização da forma de 'decreto-lei' naquelas matérias constitui livre opção do Governo, não atribuindo a Constituição competência à Assembleia da República para impor ao Governo qualquer formalismo». São sensivelmente estes, também, os termos em que, no seu citado parecer, se exprime o Prof. Teixeira Ribeiro, com referência ao n.º 3 do artigo 13.º, n.º 2 do artigo 18.º e n.º 1 do artigo 88.º, para igualmente concluir pela inconstitucionalidade de tais preceitos.
Mas tão-pouco esta argumentação e este novo fundamento de inconstitucionalidade podem ser acolhidos pelo Tribunal.
Decerto, é altamente questionável que a AR possa (ou possa sem limites) impor ao Governo o uso da forma legislativa (decreto-lei) na prática de actos que, de um ponto de vista material, integram a função executiva, sejam eles actos administrativos em sentido estrito ou regulamentos [tendo directamente em vista os primeiros, pronunciou-se em sentido claramente negativo a Comissão Constitucional (C. Const.), no parecer 16/79, apenas com o voto de vencido do vogal Nunes de Almeida (v. Pareceres da Comissão Constitucional, 8.º vol., pp. 205 e segs.)]. Por outro lado, decerto também que se isso não for possível (ou na medida em que o não seja), tais imposições haverão de considerar-se inconstitucionais, já que não poderia aqui afastar-se essa consequência com base na ideia de que as mesmas teriam mero carácter «político» (de facto, vai nelas contida uma indesmentível «pretensão jurídico-normativa», e uma pretensão normativa susceptível de, e destinada a, produzir efeitos fora do simples plano do relacionamento político entre a Assembleia e o Governo).
Simplesmente - e sem que haja, por isso, necessidade de esclarecer em definitivo e de tomar posição, desde já, sobre a questão geral que fica referida -, sucede que nas situações em presença, e no modo de ver deste Tribunal, tal questão não chega sequer a pôr-se. E isso por se lhe afigurar que em todas elas o tratamento normativo das correspondentes matérias não pode deixar de ser de natureza legislativa e de assumir a correspondente forma (a forma, pois, de decreto-lei).
Assim, e quanto ao artigo 13.º, n.º 3, cumprirá logo notar que, prevendo-se nele a atribuição a certos municípios de indemnizações compensatórias do tarifário social estabelecido para a exploração de transportes colectivos urbanos a seu cargo, indemnizações essas a pagar pelo Estado e a serem previstas no respectivo orçamento anual com esse preciso destino, se está, desse modo, a introduzir uma derrogação ao princípio básico do regime das finanças locais, segundo o qual não são permitidas quaisquer formas de subsídios ou comparticipação financeira às autarquias locais por parte do Estado [cf., ao tempo o artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei 98/84, de 29 de Março, e agora o artigo 13.º, n.º 1, da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, devendo assinalar-se que tal derrogação vai efectivamente muito para além da situação excepcional contemplada na alínea d) do n.º 2 de qualquer destes preceitos]. Ora, o regime das finanças locais é matéria da reserva relativa de competência legislativa da AR [artigo 168.º, n.º 1, alínea r), da Constituição]; consequentemente, ao prever uma derrogação a esse regime geral, mas sem verdadeiramente a concretizar ou estabelecer em geral e em permanência, e ao devolver para o Governo a respectiva «regulamentação», a Assembleia, no fundo, mais não faz do que (embora por forma implícita e menos curial) autorizar aquele a legislar nesse domínio. Sem embargo, pois, do modo de dizer do preceito em apreço, a normação nele prevista sempre haveria de revestir a forma de decreto-lei, conformemente ao disposto no artigo 201.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Quanto ao artigo 14.º, n.º 2, por sua vez, está-se perante uma disposição decorrente do facto de, no número anterior, a AR haver fixado em 4000 milhares de contos a dotação específica destinada a assegurar, no exercício orçamental de 1987, o financiamento do «novo regime legal de dedicação exclusiva dos docentes do ensino superior e do pessoal de investigação científica», que ela pouco antes estabelecera (Lei 6/87, de 27 de Janeiro, mas votada em 20 de Novembro de 1986). Consciente da insuficiência de tal verba para uma integral aplicação desse novo regime, ou pelo menos admitindo essa insuficiência, a Assembleia previu então que a utilização dela fosse objecto, no exercício em causa, de uma regulamentação específica no tocante às diuturnidades especiais daquele pessoal, que justamente foram inovatoriamente introduzidas pela Lei 6/87. Ou seja, a Assembleia previu que no ano de 1987 este último diploma sofresse uma derrogação, no âmbito referido, de modo que a sua execução, nesse ano, se contivesse no limite orçamental previamente estabelecido. Ora, tendo a «regulamentação» prevista no artigo 14.º, n.º 2, este significado e este alcance «derrogatório», claro que não podia deixar de revestir natureza legislativa e de assumir a correspondente forma, isto é, a forma de decreto-lei.
No artigo 18.º, n.º 2, o que está em causa é o inciso onde se prevê que «durante o ano de 1987 o Governo [...] procederá, mediante decreto-lei, à revisão dos critérios de gestão integrada dos Cofres mencionados no número anterior». Trata-se do Cofre Geral dos Tribunais e do Cofre dos Conservadores, Notários e Funcionários de Justiça, os quais, nos termos do n.º 1, passaram a ficar sujeitos, no tocante à gestão das suas receitas e despesas, ao «regime geral aplicável aos fundos e serviços autónomos», constante do Decreto-Lei 459/82, de 26 de Novembro, com a consequente revogação do artigo 21.º deste diploma (que justamente excepcionava os mesmos Cofres do seu âmbito de aplicação). Ora, o facto, de se prever a revisão legislativa de tais critérios de gestão deve relacionar-se justamente com a abolição da situação especial em que se encontravam os Cofres em causa no respeitante à sua gestão financeira: na verdade, passando esta a ter de reger-se pela disciplina comum dos fundos autónomos, os critérios legais-formais dessa gestão até então vigentes tornaram-se desactualizados e obsoletos e careciam, portanto, de ser reformulados. Sendo, pois, a revisão destes critérios legais-formais da gestão financeira integrada dos Cofres que se contempla no passo em apreço do artigo 18.º, n.º 2, não se vê como pudesse ela deixar de fazer-se por via legislativa, ou seja, por decreto-lei.
No artigo 88.º, n.º 1, finalmente, veio dispor-se que o regime de alienação das participações do Estado e outras entidades do sector público no capital de sociedades «será estabelecido por decreto-lei». Como não se faz qualquer limitação ou qualificação, trata-se do regime dessas alienações na sua globalidade, isto é, de todo esse regime: vai aí também necessariamente incluída, pois, a correspondente disciplina inicial ou primária; por outro lado, esta última não se esgota, decerto, em puras normas de «acção» administrativa, mas abrange igualmente normas de «relação» (normas ordenadoras de relações materiais entre a Administração, ou o Estado, e outros sujeitos jurídicos), isto é, não se configura como uma pura regulamentação processual e organizatória, mas antes assume igualmente uma dimensão substantivo-material; por último, não pode negar-se a importância da matéria a que o regime em questão, no seu todo, respeita (basta dizer que podem aí estar em causa decisões político-administrativas, na área da actuação económica do Estado, do maior relevo e devendo revestir-se de total transparência). Ora, sem olvidar as dificuldades que suscita a vexata quaestio da distinção entre matérias «legislativas» e matériaçs «regulamentares», ou entre as correspondentes funções, e sem que haja necessidade de tomar posição acerca do ponto de vista a considerar como decisivo para esse efeito, sempre será certo que as circunstâncias acabadas de apontar estão entre os indícios apresentados comummente como mais significativos para denotar o carácter legislativo de uma certa normação. Nestas condições, não parece que deva julgar-se como de natureza puramente regulamentar o regime previsto no artigo 88.º, n.º 1, e que deva concluir-se que neste preceito se veio impor ao Governo o uso da forma legislativa na emissão de um regulamento. Pelo menos - e tal circunstância já haveria de ser decisiva para se excluir a ocorrência de uma imposição constitucional ilegítima -, está isso longe de ser líquido.
Reitera-se, pois, que os preceitos da Lei 49/86 acabados de analisar tão-pouco são inconstitucionais por estabelecerem que a normação governamental neles prevista obedeça à forma de decreto-lei.
8 - Não ficam por aqui, contudo, os vícios de inconstitucionalidade, relacionados com a infracção dos princípios de distribuição da competência normativa entre a AR e o Governo, imputados no requerimento do Primeiro-Ministro a determinados preceitos da Lei 49/86.
Aos já apreciados acrescem os que nesse requerimento são reconduzidos a uma mesma ideia de pretensão de «alterar o regime constitucional das competências dos órgãos de soberania» (no caso, as suas competências normativas), «retirando competências a determinado órgão» (o Governo) mediante a atribuição de uma reserva de competência a outro, directamente ou através da atribuição, em certa matéria, de uma autorização legislativa a um órgão que, tendo em vista essa matéria, dela não carece». Em ambas as hipóteses se estará perante uma violação dos dispositivos dos artigos 113.º e 114.º, n.º 1, da Constituição.
No primeiro caso (directa atribuição por lei de uma reserva de competência normativa a certo órgão de soberania em matéria que não lhe está constitucionalmente reservada) encontrar-se-á o artigo 71.º, que reza assim:
ARTIGO 71.º
1 - O regime legal dos impostos, contribuições, diferenciais e outros tributos cobrados pelos serviços autónomos, pelos fundos autónomos e pela Segurança Social e pelos organismos de coordenação económica e institutos públicos só pode ser modificado pela Assembleia da República.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a taxas pagas pelos utilizadores directos dos bens e serviços fornecidos por fundos e serviços autónomos, pela Segurança Social e pelos organismos de coordenação económica e institutos públicos, contanto que o respectivo montante corresponda ao custo dos referidos bens e serviços.
No segundo caso (atribuição ao Governo de uma autorização legislativa de que ele, em razão da matéria, não carece) encontrar-se-ão o artigo 10.º, n.º 5, e, de novo, o artigo 88.º, n.º 1. O teor deste último é já conhecido e já foi transcrito (supra, n.º 4); o primeiro dispõe como segue:
ARTIGO 10.º
...
5 - Fica o Governo autorizado a legislar no sentido de definir o regime de aposentação antecipada e bonificada para os trabalhadores da administração central, regional e local, tomando por base o regime contido na Lei 9/86, de 30 de Abril.
Entende o Tribunal, porém, que os dois tipos de situações que agora lhe cumpre considerar não são assimiláveis e que as correspondentes disposições não podem, por isso, ser objecto de idêntico juízo, sob o ponto de vista da sua compatibilidade com a Constituição.
9 - Começando por apreciar a segunda das situações enunciadas (autorização legislativa desnecessária), não poderá logo deixar de notar-se que o artigo 88.º, n.º 1, não se apresenta aberta ou formalmente como uma autorização legislativa e que a sua consideração nesses termos não parece muito compatível com a tese de que nele se impõe ao Governo o tratamento de matéria regulamentar sob forma legislativa (supra, n.º 7). Seja como for, ir-se-á tomá-lo agora nessa outra perspectiva, não só porque o tribunal admite (cf. justamente, neste mesmo acórdão, supra, n.º 7, quanto ao artigo 13.º, n.º 3, e também o acórdão 48/84, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., pp. 7 e segs.) que uma autorização legislativa possa ser dada de modo como que implícito {através de fórmulas do tipo da deste preceito ou equivalentes, como «o Governo regulamentará (aprovará, estabelecerá) [...]» ou «deverá o Governo [...]»}, mas ainda porque, no caso, esse possível entendimento é sugerido pela parte final da disposição (ao adiantarem-se aí duas indicações normativas que deverão ser acolhidas pelo decreto-lei a editar pelo Governo).
Feita esta observação inicial, pareceria que se impunha averiguar seguidamente se as matérias a que respeitam os dois preceitos em causa - «o regime de aposentação antecipada e bonificada para os trabalhadores da administração central, regional e local», de que trata o artigo 10.º, n.º 5, e o regime de alienação de participações do sector público no capital de sociedades, a que se refere o artigo 88.º, n.º 1 - entram realmente no círculo daquelas em que vigora uma competência legislativa concorrencial da AR e do Governo ou pertencem antes ao domínio relativamente reservado à primeira. Com efeito, claro é que, se a resposta devesse ser no segundo sentido, logo por aí se revelaria infundada a arguição de inconstitucionalidade agora em apreço.
Não se irá enveredar, todavia, por esse caminho. E isso porque, mesmo admitindo que se esteja em ambos os casos numa zona de competência legislativa concorrente dos dois órgãos de soberania, de todo o modo não pode atribuir-se às correspondentes disposições «autorizadoras» o efeito - ou a «pretensão normativa» que lhes vem imputada no requerimento do Primeiro-Ministro - de alterarem indirectamente o âmbito desse regime de competência normativa concorrencial. O que sucederá é que tais disposições serão, enquanto normas de autorização, irrelevantes - e, por consequência, também nessa hipótese não haverão de ser julgadas inconstitucionais.
A este respeito, crê-se que terão cabimento aqui considerações de algum modo paralelas às produzidas anteriormente acerca dos preceitos contendo uma «injunção» legislativa ao Governo da parte da AR (supra, n.º 5). No fundo, também se está perante «normas» que se situam no domínio do relacionamento político entre os dois órgãos de soberania e o exprimem e que aí esgotam as suas consequências.
Neste contexto, assinalar-se-á, em particular, que - consoante este Tribunal já decidiu no seu citado Acórdão 48/84 - não deve ter-se por constitucionalmente ilegítima a possibilidade de a AR tomar, ela própria, a iniciativa de conceder ao Governo autorizações legislativas; e que, por outro lado, não poderá certamente recusar-se à Assembleia a faculdade de ela mesma proceder, em primeira linha, à interpretação das normas constitucionais que delimitam o âmbito da sua reserva legislativa, justamente para o efeito de ajuizar sobre a necessidade (e a conveniência), ou não, da concessão de uma autorização legislativa ao Governo. O entendimento da Assembleia, porém, não é, enquanto tal, vinculante, nem dos tribunais, nem do Governo, o qual, obviamente, dispõe de uma idêntica faculdade interpretativa da Constituição e, em especial, das normas desta atinentes à sua competência legislativa. Por isso, tal como o Governo não está adstrito a seguir solicitações ou «injunções» parlamentares de legislação, tão-pouco está obrigado a utilizar uma autorização legislativa que reputa desnecessária e a observar [num decreto-lei emitido ao abrigo do artigo 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição] os limites por aquela estabelecidos.
Eis por que também na questão ora em apreço não parece, ao menos em princípio, adequado - adequado ao esquema de relações de «separação e interdependência» ocorrentes entre o Parlamento e o Executivo, tal como delineado pela nossa Constituição - tirar um efeito de «inconstitucionalidade» de uma autorização legislativa concedida desnecessariamente pela AR. O que teremos então é, como se disse, uma autorização juridicamente irrelevante, susceptível apenas de produzir alguma consequência no referido plano do relacionamento «político» entre os dois órgãos de soberania.
10 - Se, pois, não deve concluir-se pela inconstitucionalidade, a este outro título, dos artigos 10.º, n.º 5, e 88.º, n.º 1, da Lei 49/86, já o mesmo não acontecerá, no entanto, no que toca ao artigo 71.º deste diploma.
De facto, está-se aí já perante uma indiscutível «pretensão normativa» da AR: a pretensão - como se argúi no requerimento do Primeiro-Ministro - de «com uma lei ordinária alterar em benefício [daquela] uma repartição de competências feita pela própria Constituição e no sentido de ampliar o princípio da legalidade [recte, o princípio da reserva parlamentar], contido no n.º 2 do artigo 106.º e na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º da mesma, a elementos não essenciais de impostos e ainda a outras formas tributárias que não impostos». A conclusão a tirar, por consequência, só pode ser a de que esse preceito é inconstitucional, por violação do artigo 201.º, n.º 1, alínea a), conjugado com os antes citados, da Constituição.
A questão não é nova neste Tribunal, que dela já se ocupou no Acórdão 205/87 (Diário da República, 1.ª série, de 3 de Julho de 1987), com referência aos n.os 3 e 4 do artigo 19.º do Decreto 80/IV da AR (relativo a uma nova versão da Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado), preceitos de teor absolutamente idêntico aos dos n.os 1 e 2, respectivamente, do artigo 71.º agora em causa. Passam a transcrever-se, pois, as considerações a respeito dela produzidas naquele aresto, as quais valem aqui sem necessidade de qualquer outra adaptação que não seja a da substituição das referências às disposições então sub judicio pelas correspondentes aos preceitos ora questionados. São elas as seguintes:
14 - O referido artigo 168.º, n.º 1, alínea i), reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre «criação de impostos e sistema fiscal».
Este preceito deve ser lido conjugadamente com o artigo 106.º, subordinado à epígrafe «Sistema fiscal», em cujo n.º 2 se fixa que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».
Constitui, assim, matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República não só a criação de cada imposto, mas também a determinação dos respectivos elementos essenciais, enunciados no n.º 2 do artigo 106.º
Pelo contrário, já não cabe na reserva relativa de competência da Assembleia da República, pelo que se enquadra no domínio da competência legislativa concorrencial daquele órgão de soberania e do Governo, tudo o que, em matéria fiscal, excede a determinação daqueles elementos essenciais (v. g., as regras relativas à liquidação e cobrança).
Nesta conformidade, quando o n.º 3 do artigo 19.º do decreto em apreço estipula que só a Assembleia da República pode modificar o regime legal dos impostos, contribuições, diferenciais e outros tributos cobrados pelas entidades nele referidas, está a alargar a reserva legislativa parlamentar para além do que se dispõe na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º Com efeito, o regime legal abrange, indiscutivelmente, toda a matéria referente aos impostos, e não apenas a definição dos seus elementos essenciais.
Nessa parte, portanto, a norma constante do n.º 3 do artigo 19.º viola o preceituado nas disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição (este último, na medida em que atribui ao Governo, no exercício de funções legislativas, competência para fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República).
15 - É pacificamente aceite que a reserva de lei parlamentar em matéria fiscal, consignada na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º, se reporta aos impostos, mas já não às taxas (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 1.º vol., p. 464, e 2.º vol., p. 201).
No que respeita a outras figuras - sem discutir agora se devem gozar de autonomia doutrinária -, teve este Tribunal já ocasião de considerar, por um lado, que a certas contribuições especiais se devia aplicar o regime constitucionalmente fixado para os impostos, incluindo a reserva de lei parlamentar, e, por outro lado, que certos diferenciais de preços que revertem para o Fundo de Abastecimento não constituem impostos, não lhes sendo, portanto, aplicável o regime a que estes se encontram sujeitos (cf., respectivamente, os Acórdãos n.os 277/86, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Dezembro de 1986, e 7/84, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Maio de 1984).
Importa agora saber se, ao estabelecer que só a Assembleia da República pode modificar o regime legal de certos tributos, o artigo 19.º, n.os 3 e 4, do diploma em apreço foi aqui também para além do que lhe era constitucionalmente permitido, face ao disposto nos referidos artigos 168.º, n.º 1, alínea i) e 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição. Tal conclusão resultará evidente se se verificar que se pretendeu alargar a reserva de lei parlamentar, em matéria fiscal, para além do domínio dos impostos e figuras a estes juridicamente equiparáveis e, designadamente, que se pretendeu abranger certas taxas.
16 - Em primeiro lugar, cumpre referir que, ao incluir no seu âmbito de previsão todo e qualquer diferencial cobrado «pelos serviços autónomos, pelos fundos autónomos, pela Segurança Social e pelos organismos de coordenação económica e institutos públicos», sem distinguir os tipos de diferenciais que, eventualmente, possam existir, a norma em apreço terá querido reservar à Assembleia da República a modificação do regime legal de figuras juridicamente não equiparáveis aos impostos, para o efeito que nos ocupa. Na verdade, como vimos, este Tribunal já considerou, no seu Acórdão 7/84, que os diferenciais previstos nos n.os 1 do artigo 25.º e 2 do artigo 27.º do Decreto-Lei 70/78, de 7 de Abril, não constituíam uma receita fiscal, mas um lucro.
Mas, para além disso, como o n.º 4 do citado artigo 19.º do diploma em análise exceptua da regra do seu n.º 3 «as taxas pagas pelos utilizadores directos dos bens e serviços fornecidos» pelas entidades nele referidas, «contanto que o respectivo montante corresponda ao custo dos referidos bens e serviços», suscita-se a questão de certas taxas ficarem, assim, sujeitas à reserva de lei parlamentar.
Com efeito, tal acontecerá sempre que o montante da taxa não corresponder ao custo do correspondente bem ou serviço.
Ora, não parece que, de acordo com o conceito técnico de taxa, se possa razoavelmente defender que, em tal caso, se não está perante uma verdadeira taxa, mas perante um imposto.
Na verdade, a doutrina vem entendendo, com certa uniformidade, que o que distingue a taxa do imposto é a natureza bilateral daquela, ou, se assim melhor se entender, o seu carácter sinalagmático, pois que à prestação do particular corresponderia uma contraprestação directa e específica por parte do Estado (cf. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, p. 43, Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 11, Nuno Sá Gomes, Curso de Direito Fiscal, p. 94, António Braz Teixeira, Direito Fiscal, I vol., p. 57, Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, p. 36, Teixeira Ribeiro, «Noção jurídica de taxa», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.º, n.º 3727, pp. 289 e segs., Alberto Amorim Pereira, Noções de Direito Fiscal, pp. 23 e 25, Sousa Franco, Direito Financeiro e Finanças Públicas, vol. II, 16.3, e Carlos Pamplona Corte Real, Curso de Direito Fiscal, I vol., pp. 162 e 163).
Mas a mesma doutrina não exige que o montante da taxa deva corresponder ao custo do bem ou serviço que constitui a contraprestação do Estado.
Assim, Teixeira Ribeiro afirma que as taxas, quando de montante superior ao custo, não «constituem impostos na parte excedente ao custo, visto manterem o seu carácter bilateral» (loc. cit.), dependendo aquele montante «da finalidade que o Estado deseje alcançar» (Lições de Finanças Públicas, 2.ª ed., p. 209). E Alberto Xavier, de forma sugestiva, assinala que «é certo que, do ponto de vista económico, só casualmente se verificará uma equivalência precisa entre prestação e contraprestação, entre quantitativo da taxa e o custo da actividade pública ou o benefício auferido pelo particular, aliás muitas vezes indetermináveis por não existir um mercado que os permita exprimir objectivamente. Mas ao conceito de sinalagma não importa a equivalência económica, mas a equivalência jurídica».
Assim sendo, não parece possível deixar de concluir que do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 19.º do Decreto 80/IV resulta que aí se pretendeu alargar o âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, fixada na Constituição, de forma a nela se incluir a matéria respeitante a certas taxas e a outras receitas não juridicamente equiparáveis aos impostos.
Nessa parte, portanto, os normativos em causa violam igualmente o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 168.º, n.º 1, alínea i), e 201.º, n.º 1, alínea a), da lei fundamental.
11 - Encerrada assim a análise das questões que no requerimento do Primeiro-Ministro vêm suscitadas com referência à distribuição constitucional de competências normativas entre a AR e o Governo, cabe seguidamente apreciar duas outras ordens de questões que no mesmo requerimento vêm ainda levantadas subordinadamente à epígrafe «violação do regime constitucional da competência dos órgãos de soberania», mas tendo já a ver com aspectos diferentes desse regime.
A primeira delas respeita ao artigo 18.º, n.º 4, da Lei 49/86, cujo teor é o seguinte:
ARTIGO 18.º
...
4 - O Tribunal de Contas apreciará a legalidade de todas as despesas autorizadas e pagas pelo Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça, bem como a eficiência da respectiva gestão económica, financeira e patrimonial.
Trata-se - essa é a questão fundamental - de que este preceito (assim se argumenta) «atribui um conjunto amplo de competências ao Tribunal de Contas muito para além das que efectiva e legalmente lhe cabem», e que são, por força do princípio do artigo 113.º, n.º 2, as previstas no artigo 219.º, ambos da Constituição. Em causa está, basicamente, o facto de agora se «querer permitir que o seu julgamento (portanto, competência verdadeiramente decisória) penetre na área da oportunidade, da conveniência, da eficácia, da economicidade, em suma, da equidade».
E daí advém - acrescenta-se - «outro tipo de problemas». É, por um lado, o de que, desse modo, se vai facultar ao Tribunal de Contas (TC) a aplicação «das sanções comportadas na sua competência a actos típicos de gestão e por o seu juízo de eficiência, absolutamente discricionário, não corresponder ao dos responsáveis pela gestão», o que implica violação dos princípios da legalidade e da tipicidade em matéria penal (artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição). É, por outro lado, o de que «a apreciação da gestão económica, financeira e patrimonial, que assim se impõe ao Tribunal de Contas, sobrepor-se-á, obviamente, à apreciação a cargo do órgão competente pela gestão, ficando esta gravemente comprometida e transformando-se aquele Tribunal numa verdadeira última instância supervisionadora e controladora dos critérios estabelecidos para a própria função administrativa, o que viola frontalmente o artigo 185.º da Constituição, ao referir ser o Governo o órgão superior da Administração Pública».
Entretanto, também o Prof. Teixeira Ribeiro, no seu já várias vezes mencionado parecer, opina no sentido da inconstitucionalidade do preceito agora em apreço, mas apenas na parte em que nele se atribui ao TC competência «para apreciar a eficiência de uma gestão»: é que, nessa parte, está-se «a conceder ao Tribunal uma competência que a Constituição lhe negou», sendo certo que ele, «como órgão de soberania que é, tem a competência que lhe está definida na Constituição [...] e não mais».
Pois bem: dever-se-á realmente concluir, com base nas razões enunciadas ou em alguma delas, pela inconstitucionalidade, total ou parcial, do n.º 4 do artigo 18.º da Lei 49/86?
A resposta a esta pergunta passa, primária e decisivamente, pela consideração de que a Constituição de 1976, de modo diverso do que antes dela sucedia, veio expressamente incluir o TC nas diversas categorias de tribunais (artigo 212.º, n.º 1), desse modo, e simultaneamente, lhe reconhecendo a correspondente natureza orgânica e o qualificando, por forma inequívoca, como órgão de soberania. Na verdade, em consequência disso, não sofre dúvida alguma que ao mesmo Tribunal é aplicável o princípio do artigo 113.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual a competência dos órgãos de soberania é a definida na Constituição. É essa como que uma contrapartida da maior dignidade constitucional com que a lei fundamental vigente trata o TC: seguiu-se daí (e daquele princípio) que o legislador ordinário deixou de poder livremente dispor sobre a competência desse órgão jurisdicional.
É certo - como noutro passo deste acórdão já se referiu ou insinuou (supra, n.º 5) - que o princípio da «exclusividade constitucional» da competência dos órgãos de soberania não é absoluto e que mesmo a competência deles definida ou estabelecida pela Constituição não deixa de ver o seu «conteúdo» concretizado e explicitado pela lei ordinária. E, se isso é assim quanto à AR e ao Governo (como então se notou), não o é menos para os tribunais: basta atentar, por um lado, no que se dispõe no artigo 123.º, n.º 2, alínea e), quanto ao T. Const., e, por outro lado, no facto de a Constituição deixar em aberto a definição da precisa competência a atribuir aos tribunais administrativos e fiscais e o estabelecimento dos concretos limites entre a jurisdição deles e a dos chamados «tribunais judiciais», p. ex., e muito menos proceder ela própria à distribuição da competência (hierárquica, material e territorial) entre estes últimos.
Simplesmente, isto apenas significa que nos casos e situações apontados a Constituição autorizou directa ou indirectamente a lei a fixar a competência dos órgãos de soberania em causa ou remeteu para aquela tal tarefa. Subsiste, porém, o princípio de que «não existe competência de órgãos de soberania que não esteja determinada ou autorizada pela Constituição», com a consequência de que onde - diferentemente das situações referidas - «a Constituição procede ela mesma à definição da competência» de determinados desses órgãos (e, concretamente, de determinados tribunais) «não pode a lei vir ampliá-la (nem restringi-la)».
O ponto ficou já esclarecido na jurisprudência deste Tribunal relativa à competência dos tribunais militares, constante de uma numerosa série de acórdãos, sempre em sentido uniforme e unânime, de ambas as suas secções, e por último fixada, no seguimento desses arestos, pelo Acórdão 81/86 (Diário da República, 1.ª série, de 22 de Abril de 1986), em que se declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de diversas disposições legais atinentes à atribuição ao Supremo Tribunal Militar de competência em matéria de contencioso administrativo. Não há, pois, senão que retomar e reafirmar agora essa orientação.
De acordo com ela - e voltando a citar o Acórdão 81/86, ao qual já pertencem as expressões antes destacadas -, importará, consequentemente, distinguir, «quanto aos tribunais de cuja competência a Constituição se ocupa directamente», entre os casos em que «a lei fundamental enuncia a competência, sem qualquer remissão para a lei», e aqueles outros em que «enuncia um elenco de assuntos que formam a competência do tribunal, mas admite expressamente que a lei lhe possa conferir outras, não especificadas pela própria Constituição». Claro que nesta última hipótese pode a lei atribuir ao tribunal em causa «outras funções (bem entendido, de entre as que não estão constitucionalmente atribuídas aos outros tribunais)»; mas já na primeira «não pode ampliar» a competência constitucionalmente fixada.
Ora, o TC - e o exemplo não deixou de ser referido no Acórdão 81/86 - encontra-se precisamente nesta situação, pois que a Constituição define a respectiva competência no seu artigo 219.º, e fá-lo claramente em termos de estabelecer um numerus clausus no respeitante ao âmbito «material» típico dela. Dentro desse âmbito, poderá a lei ordinária intervir para concretizar ou explicitar o «conteúdo» das faculdades nele incluídas, ou para definir os pressupostos e condições do seu exercício, e haverá até de fazê-lo para definir a «extensão» de uma dessas competências (a do julgamento das contas); mas o que lhe está vedado - à lei ordinária - é alargar esse numerus clausus, outorgando ao TC novas competências. (Não pode, pois, neste capítulo, acompanhar-se o que escreve A. Sousa Franco, Finanças Públicos e Direito Financeiro, Coimbra, 1987, p. 405.)
Nos termos do citado artigo 219.º, «compete ao Tribunal de Contas dar parecer sobre a Conta Geral do Estado, fiscalizar a legalidade das despesas públicas e julgar as contas que a lei mandar submeter-lhe». Posto isto e o antes exposto, o que importa saber é se o artigo 18.º, n.º 4 da Lei 49/86, aqui em apreço, extravasa realmente desse âmbito, ao submeter à jurisdição do Tribunal o Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça (GGFMJ).
Antecipando desde já a resposta, dir-se-á que, de facto, isso acontece na medida precisamente indicada no parecer acima citado, ou seja, no tocante à segunda parte do preceito. Na verdade, resulta claramente do artigo 219.º que a Constituição concebe o TC como órgão destinado a exercer uma função de fiscalização, no domínio das finanças públicas, de carácter essencialmente jurídico e contabilístico: são certamente esses os aspectos contidos nas noções de «legalidade das despesas» e «julgamento das contas» (as únicas que, obviamente, importa aqui considerar). Ora, afigura-se bastante claro que apreciar a «eficiência» da «gestão económica, financeira e patrimonial» de um serviço ou organismo (no caso, financeiramente autónomo) é algo que vai muito para além disso, pois importa juízos de oportunidade, utilidade e conveniência acerca da utilização dos respectivos recursos e da administração do respectivo património que notoriamente transcendem os planos antes mencionados. É algo, designadamente - e sublinha-se o ponto porque o artigo 18.º, n.º 4, parece reportar-se a uma apreciação a posteriori, e não em sede de «visto», da gestão aí referida -, que vai muito para além de um «julgamento da conta», pois que neste apenas está em causa (di-lo o próprio conceito de «conta») o controle da veracidade e da justificação legal das respectivas verbas, bem como da conformidade do seu resultado final (em função do que, ou se atesta tal conformidade, ou se verifica a existência de faltas, desvios ou omissões, exigindo-se a correspondente responsabilidade a quem ela couber).
Em suma, e por outras palavras: não pode dizer-se que, ao atribuir ao TC competência para apreciar a «eficiência» da «gestão económica, financeira e patrimonial do GGFMJ, o legislador ordinário se haja contido nos limites da tarefa de explicitação e concretização (que indiscutivelmente, mas tão-só, lhe cabe) da cláusula do artigo 219.º da Constituição; dentro destes limites apenas se manteve enquanto cometeu a esse Tribunal competência para apreciar a «legalidade de todas as despesas autorizadas e pagas» pelo referido Gabinete, já que de despesas públicas se trata.
Não se ignora que o resultado a que assim se chega parece estar em contradição com diversas disposições legais versando a competência do TC:
É o caso, antes de mais, do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 146-C/80, de 22 de Maio, que, em matéria de visto, dispõe ter ele por fim verificar não só se os documentos ao mesmo sujeitos «estão conformes com as leis em vigor» e se os respectivos encargos «têm cabimento na verba orçamental legalmente aplicável» (e que são indiscutivelmente dois aspectos da «legalidade» das despesas), mas ainda, «tratando-se de contratos, se as suas condições são as mais vantajosas para o Estado»;
É o caso, depois, dos artigos 18.º, n.º 3, e 21.º da Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado (Lei 40/83, de 13 de Dezembro), na medida em que o primeiro preceitua que nenhuma despesa pode ser efectuada sem que, além de satisfazer os requisitos de «legalidade» (referidos no número anterior), «tenha sido previamente justificada quanto à sua eficácia, eficiência e pertinência», e o segundo, após distinguir a fiscalização administrativa (n.º 1) e a fiscalização jurisdicional a cargo do TC (n.º 2) da execução orçamental, dispõe que a «fiscalização a exercer pelas entidades referidas nos números anteriores deve atender ao princípio de que a execução orçamental deve obter a maior utilidade e rendimento sociais com o mais baixo custo» (n.º 3);
É o caso, finalmente, do artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei 313/82, de 5 de Agosto (diploma que visou reformular os termos do julgamento de contas públicas pelo Tribunal), no qual veio prever-se que «a gestão económico-financeira e patrimonial das entidades legalmente obrigadas à prestação de contas ao Tribunal de Contas poderá ser objecto de apreciação por parte daquele Tribunal».
E também se não ignora que em alguns países, nomeadamente da Europa, a fiscalização exercida pelos respectivos tribunais de contas transcende o controle da legalidade estrita, abrangendo aspectos como os da «economia, rentabilidade e oportunidade dos gastos», ou da «eficiência e economia», ou da «boa gestão financeira», o mesmo acontecendo com o Tribunal de Contas das Comunidades Europeias, o qual, segundo os respectivos tratados, «examinará a legalidade e a regularidade das receitas e das despesas e garantirá a boa gestão financeira».
Simplesmente, nada disto pode, como é óbvio, sobrepor-se à indicação que se colhe da lei constitucional portuguesa, mas antes, e quando muito, suscitar (em particular os dados fornecidos pelo direito comparado) que se reflicta sobre a eventual necessidade e conveniência da revisão dela no ponto em apreço. Ou então, e pelo que respeita às disposições legais citadas, suscitar que se pergunte, seja se todas têm suficiente cobertura constitucional, seja se algumas (nomeadamente as da Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado) não deverão ser compreendidas, e ver a sua extensão fixada, nos limites decorrentes do artigo 219.º da Constituição.
Mas, para além disto - e deixando em aberto as perguntas agora formuladas, as quais já transcendem o plano jurídico, que é o deste Tribunal, ou às quais, de todo o modo, não cabe aqui, evidentemente, dar resposta definitiva e vinculante -, deve acrescentar-se que a competência referida na parte final do artigo 18.º, n.º 4, da Lei 49/86 ultrapassa, em qualquer caso, a que se acha consignado em alguns dos preceitos antes mencionados, e justamente nessa medida ganha nitidez a conclusão de que se situa fora do campo constitucional. Está a pensar-se, concretamente e em particular, no que se dispõe no artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 146-C/80, em matéria de visto, e, reflexamente, nos artigos 18.º, n.º 3, e 21.º, n.º 3, da Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado (este último, aliás, como lembra o Prof. Teixeira Ribeiro, Finanças Públicas, 2.ª ed., Coimbra, 1984, p. 111, nota 1, ainda não regulamentado), já que também estes outros preceitos (reportando-se à «execução orçamental») se destinam a operar na mesma sede (de visto).
Com efeito, uma coisa é a «fiscalização das despesas» nessa sede e o abranger ela a simples «economicidade» das despesas, entendida nos limitados termos do Decreto-Lei 146-C/80, e então não será porventura de todo impossível reconduzir ainda esta última a uma noção específica de «legalidade financeira», na medida em que, por um lado, se esta perante um princípio de «controle» que vem já, pelo menos, desde o artigo 6.º, n.º 4, do Decreto-Lei 22257, de 25 de Fevereiro de 1933 (não sendo crível que o legislador constituinte de 1976 houvesse pretendido encurtar a competência tradicional do TC), e, por outro lado, tal princípio se encontra hoje consagrado em termos expressos, como princípio «funcional» da realização de despesas do Estado, justamente no artigo 18.º, n.º 3, da Lei do Enquadramento do Orçamento de Estado; e outra coisa, bastante diversa e notoriamente de muito mais vasto alcance, é apreciar globalmente a eficiência de uma gestão não só no plano financeiro, como no económico e patrimonial, tarefa para a qual, na verdade, não se vê que o artigo 219.º forneça credencial mínima, mormente na sua última parte.
Tem, pois, de concluir-se que o artigo 18.º, n.º 4, da Lei 49/86, na parte em que confere ao TC competência para apreciar «a eficiência da [...] gestão económica, financeira e patrimonial» do GGFMJ, viola o artigo 219.º da Constituição e é, nessa mesma medida, inconstitucional.
Entretanto, concluindo assim, dispensado fica este Tribunal de considerar os demais vícios de inconstitucionalidade imputados a tal preceito no requerimento do Primeiro-Ministro, já que todos, ao fim e ao cabo, teriam a ver, e só, com a parte dele agora julgada inconstitucional.
12 - O último grupo de questões suscitadas no requerimento do Primeiro-Ministro, na perspectiva da violação dos princípios constitucionais relativos à repartição de competência entre os órgãos de soberania, reporta-se ao artigo 25.º da Lei 49/86, o qual reza assim:
ARTIGO 25.º
1 - A partir do exercício orçamental em curso é vedado ao Governo e à Administração Pública o recurso a qualquer forma de publicidade comercial para fins de propaganda política.
2 - As mensagens informativas para efeitos de promoção do exercício de direitos económicos, sociais e culturais que se exprimam através de qualquer meio publicitário devem limitar-se ao estritamente necessário para a finalidade visada, não conterão qualquer juízo de valor sobre a actividade do Governo, nem poderão directa ou indirectamente, por inveracidade, omissão, exagero ou ambiguidade, induzir os cidadãos em erro quanto ao conteúdo da medida anunciada, estando sujeitas às disposições da lei geral que consagram e garantem os princípios da licitude, indentificabilidade, veracidade e respeito pela defesa dos cidadãos, bem como as relativas aos processos interditos, valores positivos e restrições de meios e métodos.
3 - Para efeitos do número anterior, a celebração de contratos de publicidade para os fins de divulgação legalmente autorizados será precedida de concurso público e anunciada na 2.ª série do Diário da República.
4 - O conteúdo das mensagens informativas a que se refere o número anterior esta sujeito a parecer prévio favorável do Conselho de Comunicação Social, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º da Lei 23/83, de 6 de Setembro.
5 - Serão inscritas em rubrica própria no orçamento dos respectivos ministérios as dotações para fins de divulgação legalmente admitidos.
Em resumo, argúi-se fundamentalmente este preceito de amputar uma parcela de competência que cabe ao Governo, nos termos do artigo 185.º da Constituição, como «órgão de condução da política geral do País e o órgão superior da Administração Pública», e de violar, assim, este princípio constitucional, conjugado com, mais uma vez, os dos artigos 113.º e 114.º, n.º 1, também da lei fundamental. Diz-se a tal propósito que, implicando o conteúdo do direito à informação um dever de informar, a «escolha da forma mais eficaz» do cumprimento deste «é da exclusiva responsabilidade da entidade adstrita a esse dever»: ora, «cabendo ao Governo», na matéria em causa (divulgação do conteúdo e incentivo ao exercício de direitos), por força do citado artigo 185.º, «o referido dever de informação, só a ele é constitucionalmente incumbida a tarefa de escolher a forma dessa informação».
Além disso, argúi-se o n.º 4 da disposição em apreço de infringir o artigo 39.º da Constituição, com fundamento em que nele se alarga o âmbito das competências por este último atribuídas ao Conselho de Comunicação Social (CCS). Tal alargamento resulta quer de se ampliar «o âmbito e os objectivos visados com a actuação do Conselho» (já que a hipótese do n.º 4 «nada tem a ver com a independência ou o pluralismo» de órgãos de comunicação social), quer de se conferirem ao Conselho poderes «em relação aos órgãos de comunicação social de nenhum modo ligados ao Estado e mesmo em relação a outros meios publicitários».
Tão-pouco, porém, volta a poder acompanhar-se aqui, em princípio, a argumentação exposta.
Quanto ao primeiro dos seus dois aspectos, deve começar por salientar-se que ela vem especificamente referida, no requerimento do Primeiro-Ministro, ao disposto no n.º 2 do artigo 25.º: não seria assim impensável entender o correspondente pedido como restrito a esse número. Como, todavia, nas conclusões do mesmo requerimento (quer parcial, no seu artigo XXXII, quer final) se conclui pela inconstitucionalidade do artigo 25.º sem qualquer restrição, será ele aqui considerado na íntegra. Para tanto, não é, aliás, necessário considerar discriminadamente os seus diversos números, havendo apenas que ressalvar o que mais adiante se dirá acerca do n.º 4.
Assim, observar-se-á que no preceito em análise vem disciplinar-se legislativamente uma certa zona da actividade do Governo e da Administração Pública: a que tem a ver com a informação e a divulgação, através de meios publicitários (publicidade comercial), de objectivos, decisões, medidas e resultados de actuação de um e de outra, bem como das possibilidades e meios ao dispor dos cidadãos para o exercício dos seus direitos económicos, sociais e culturais. Disciplina-se o conteúdo dessa actividade (n.os 1, 2 e 4), estabelece-se uma condição formal ou processual dela (n.º 3) e impõe-se uma específica discriminação orçamental das verbas que lhe serão destinadas (n.º 5). O que está em causa, pois, é uma predefinição legal de limites, critérios materiais e condições de certa actividade administrativa: tão-só isso, e não também - importa especialmente sublinhá-lo - uma substituição funcional do Governo e da Administração pelo legislador no desempenho de tarefas típicas dos primeiros. Deste ponto de vista (funcional), o legislador limitou-se à actividade, que lhe é característica, de editar normas gerais e abstractas, continuando a deixar ao Governo e à Administração (sob reserva do preceituado no n.º 4) a decisão sobre os actos concretos de informação e divulgação, decisão a tomar agora no quadro e no respeito daquelas.
Ora, como se sabe, é um princípio cardeal do Estado de direito - e é-o do Estado de direito democrático português, tal como o delineou a Constituição vigente (artigo 202.º, n.º 2) - o princípio da legalidade da administração. Um princípio que, como também se sabe, não é hoje, e de há muito, entendido como simples «reserva da lei», mas se traduz da ideia de que a lei constitui um prius normativo de toda a actividade administrativa, sendo que esta, ao menos tendencialmente, «passou a ser, toda ela, aplicação da lei ou execução da lei» (sobre este sentido do princípio da legalidade, e os termos em que deve ser compreendido, ou os descontos que deve sofrer, v., por todos, Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, pp. 23 e segs. e 55 e segs.). O que vale por dizer que o legislador dispõe de uma omnímoda faculdade - constitucionalmente reconhecida - de programar, planificar e racionalizar a actividade administrativa, pré-conformando-a no seu desenvolvimento, e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério e à autonomia dos respectivos órgãos e agentes, ou antes preocupando-o («preferência de lei»).
Nestas condições, torna-se claro que o artigo 25.º da Lei 49/86 só poderia ser julgado inconstitucional, com base na violação do artigo 185.º da Constituição, se pudesse dizer-se que nele se ultrapassavam quaisquer limites à liberdade de princípio de que o legislador dispõe no respeitante à conformação da actividade administrativa. Simplesmente, logo tais limites são muito problemáticos: é-o especialmente o que se traduz na ideia ou pretensão de uma reserva «material» da Administração ou do Executivo, semelhante na sua estrutura à reserva parlamentar, pois não se vê que a nossa Constituição forneça qualquer apoio para tal ideia fora dos casos contados de determinações suas muito específicas, como, nomeadamente, o do artigo 201.º, n.º 2; mas, ainda quando se opere simplesmente com uma ideia de limites «funcionais» - a qual já não poderá excluir-se a priori e não deixa, de resto, de ser reconhecida na doutrina e na jurisprudência (cf. supra n.º 7) -, sempre será difícil extrair dela consequências no tocante (e é o ponto que aqui pode interessar) ao grau de pormenorização e vinculação admissível na disciplina legal, de certa área da actividade administrativa.
Ora, tendo isto presente, não se vê que o preceito em apreço deva ser objecto de uma censura global de inconstitucionalidade, sob a perspectiva que tem vindo considerar-se. De facto, e por um lado, a «matéria» a que respeita não é das que se encontrem cobertas por qualquer eventual «reserva» específica do primeiro tipo apontado, consignada na nossa Constituição, nomeadamente a do citado artigo 201.º, n.º 2; por outro lado, não pode afirmar-se que nele se nos depare, em geral, um grau de regulamentação e vinculação legal da actividade administrativa tal que deva já ter-se por excessivo ou abusivo, em termos de se haver de considerar que ultrapassa já quaisquer limites constitucionais, de índole funcional, A este último respeito não deixará, entretanto, e em particular, de ser relevante a circunstância de o conteúdo propriamente substancial ou valorativo do artigo 25.º, o qual se exprime nos seus n.os 1 e 2, parecer insusceptível de qualquer crítica constitucional.
Certo que se poderá dizer ser ele desnecessário, «estéril» ou redundante, enquanto conteúdo legislativo, já que se limita a traduzir princípios de «moralidade» política ligados à própria noção de Estado democrático pluralista ou exigências perfeitamente óbvias em matéria de informação dos cidadãos pela Administração Pública (a qual há-de ser, logo por evidente imperativo constitucional, uma informação verídica e fiável). E certo também que se está num domínio (o das «simples comunicações» e «informações») que justamente se aponta como exemplo daquelas «formas de proceder ou de agir da Administração que escapam à necessidade de uma prévia regulação legislativa», e que «é tudo quanto a Administração faça e não produz efeitos jurídicos» (A. Queiró, Lições, cit. p. 58). Mas tão-pouco se afigura possível tirar alguma consequência no plano da constitucionalidade, seja da simples «desnecessidade» de uma disciplina legal, seja da sua mera «redundância».
Concluindo assim pela não inconstitucionalidade do artigo 25.º da Lei 49/86, globalmente considerado, importa, no entanto, ressalvar desta conclusão o disposto no seu n.º 4, o qual, esse sim, deve ser julgado inconstitucional.
Não, todavia, por violação do artigo 39.º da Constituição, como se argúi no requerimento do Primeiro-Ministro. É que - e isto basta para responder a esse outro e específico argumento - não cabe estender a órgãos que a Constituição prevê, mas não são órgãos de soberania (nem sequer se integram na organização política lato sensu considerada), o princípio que, relativamente à competência destes últimos, decorre do artigo 113.º, n.º 2, da lei fundamental, princípio cujo alcance já foi atrás analisado (supra n.º 11). Não há, na verdade, motivo para, quanto a esses outros órgãos (como o CCS), que já não são contemplados no artigo 113.º, n.º 2, deixar de funcionar na sua plenitude a «regra» da liberdade constitutiva (ou do poder de conformação) do legislador, o qual poderá, assim, alargar o quadro das respectivas competências para além das que a Constituição directamente estabelece.
A razão da inconstitucionalidade do artigo 25.º, n.º 4, é, pois, outra: é a de que justamente aí o legislador desrespeitou o limite funcional a essa sua liberdade constitutiva (ou poder de conformação), emergente do princípio do artigo 185.º, conjugado com o do artigo 114.º, n.º 1, ambos da Constituição.
Com efeito, nessa disposição condiciona-se «o conteúdo das mensagens informativas» que o Governo e a Administração pretendam emitir nas matérias a que se reporta o n.º 2 (exercício de direitos económicos sociais e culturais) a «parecer prévio favorável do Conselho de Comunicação Social». Tratando-se da exigência de um parecer favorável - sem o qual a mensagem não será emitida regularmente e ficará viciada de «ilegalidade» -, significa isso que, por força de tal preceito, o Governo fica, nessa matéria, vinculado não apenas aos limites e critérios definidos pelo legislador no n.º 2, mas ainda aos critérios do dito Conselho. Ora, se é lícito à lei vincular aos critérios por ela mesma elegidos, o Governo e a Administração, já não é admissível que aquela vincule o primeiro, pelo modo como o faz no preceito em causa, aos critérios, em último termo, de um órgão diverso, aliás não inserido num sistema político, stricto sensu, e não representando quaisquer interesses distintos dos que ao Governo compete encabeçar. Com isso, retira-se ao Governo a última palavra como «órgão superior da Administração Pública» (artigo 185.º), palavra que lhe cabe em razão da sua legitimação política democrática e que tem numa sua responsabilidade de idêntica natureza o correspondente contrapólo constitucional; e transfere-se essa palavra para um órgão desprovido de representatividade e responsabildiade «política».
Não importa agora decidir em definitivo se este tipo de condicionamento da competência decisória do Governo na área administrativa deve proscrever-se como constitucionalmente inadmissível em geral e sem quaisquer reservas. Mas o que desde já pode com tranquilidade afirmar-se é que, a deverem conceder-se aí algumas reservas, elas só poderão admitir-se, porventura, em casos muito contados e excepcionais e com uma clara justificação. Ora, como quer que seja, tais pressupostos de modo algum se verificariam na hipótese em apreço.
Em vista do exposto, pois, tem de julgar-se inconstitucional a norma do artigo 25.º, n.º 4, da Lei 49/86.
II.II - o artigo 87.º da Lei 49/86 e o regime da recusa de ratificação de decretos-leis
13 - Passando agora às restantes questões postas no requerimento do Primeiro-Ministro, apreciar-se-á de imediato a que vem suscitada com referência ao artigo 87.º da Lei 49/86, o qual dispõe como segue:
ARTIGO 87.º
De acordo com a resolução da Assembleia da República n.º 26/86, de 3 de Novembro, é nula a cessação dos contratos de trabalho operada por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 209-A/86, de 28 de Julho, com reposição em vigor, para todos os efeitos dos contratos de trabalho em que sejam parte a CNP, E. P., vigentes à data da entrada em vigor do referido decreto-lei, com garantia aos trabalhadores dos direitos e regalias adquiridos.
Através da resolução referida neste preceito, a AR recusou a ratificação do Decreto-Lei 209-A/86, nele igualmente mencionado, que extinguira a Companhia Nacional de Petroquímica (CNP), E. P., e determinara, na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º, a cessão dos contratos de trabalho em que tal empresa era parte. Ora - diz-se -, tendo a recusa de ratificação de decretos-leis simples eficácia ex nunc (como resulta do artigo 172.º, n.º 3, da Constituição), a disposição em apreço, ao estatuir a nulidade da cessação dos contratos de trabalho operada pela dita norma do Decreto-Lei 209-A/86 e ao repô-los em vigor com garantia aos trabalhadores dos direitos e garantias adquiridos, vem precisamente, afinal, «defraudando flagrantemente» o citado preceito da Constituição, atribuir efeitos ex tunc à recusa da ratificação do decreto-lei a que se reporta. Daí a sua inconstitucionalidade.
14 - Não pode acolher-se, porém, esta conclusão.
É fora de dúvida que, definindo a lei fundamental, no invocado artigo 172.º, n.º 3, o efeito da recusa de ratificação, não pode a AR conformá-lo caso a caso diversamente; por outro lado, dispondo-se no citado preceito que, «se a ratificação for recusada, o decreto-lei deixa de vigorar desde o dia em que a resolução for publicada», é também fora de dúvida que a Constituição atribui a tais recusa e resolução um puro efeito revogatório ex nunc. Se, pois, a Assembleia lhes conferir, num certo caso, eficácia ex tunc, teremos indiscutivelmente violação da Constituição e uma resolução nessa medida inconstitucional.
Na hipótese sub judicio, todavia, não é disso que se trata, pois não está em causa directamente a Resolução 26/86. A esta, aliás, não foi, aquando da respectiva aprovação, atribuída eficácia ex tunc, conforme pode ver-se do seu teor (cf. Diário da República, 1.ª série, de 3 de Novembro de 1986); apenas nela se acrescentou a menção expressa de que eram repristinadas as normas legais revogadas pelo Decreto-Lei 209-A/86 (mas tanto, efectivamente, nem implicada aquele efeito, nem era vedado pelo artigo 172.º, n.º 3, e antes estava na sua lógica, já que tal diploma era, ele mesmo, revogatório de outros).
Do que agora se trata, sim, é de uma nova determinação da AR, diversa da resolução de recusa de ratificação e vazada já num preceito legislativo, como o qual pretende obter-se justamente o efeito que só através daquela resolução não podia lograr-se. O problema que se põe é, pois, o de saber se, em momento ulterior ao da recusa da ratificação de um decreto-lei e com autonomia relativamente a esta, a AR pode legislar, dentro da sua competência, em ordem a tal objectivo, ou seja, em ordem a conseguir um efeito que a Constituição denega à simples não ratificação de um diploma governamental à mesma sujeito.
Ora, não se vê que semelhante possibilidade e semelhante procedimento encontrem obstáculo constitucional. Bastará pensar em que, independentemente da recusa da ratificação e em lugar dela, a AR sempre poderia revogar, através do processo legislativo comum, o decreto-lei em causa e atribuir a esta revogação eficácia retroactiva: os únicos limites a respeitar aí seriam os que a Constituição expressamente estabelece, ou dela decorrem, quanto à admissibilidade de normas com essa natureza e eficácia (sobre eles, v., em especial, os Acórdãos n.os 11/83, Acórdãos do Tribunal Constitucional, I vol., p. 11, e 93/84, Diário da República, 1.ª série, de 16 de Novembro de 1984). Respeitado que seja este mesmo limite, não há razão, por conseguinte, para dever considerar-se constitucionalmente excluído o procedimento agora em questão.
Pois bem: no caso em apreço, atenta a substância dos efeitos que a norma do artigo 87.º da Lei 49/86 visa produzir, não pode certamente dizer-se que tal limite haja sido ultrapassado. Consequentemente, não pode a mesma norma ser julgada inconstitucional com base no fundamento que vem sendo apreciado.
Entretanto, e por outro lado, não é esta conclusão posta em causa pelo facto de no artigo 87.º começar por invocar-se (indevidamente, consoante resulta do que atrás se disse), como fundamento da solução nele consagrada, justamente a resolução da AR em que se recusou a ratificação do Decreto-Lei 209-A/86: é que tal invocação é desprovida de qualquer sentido ou eficácia «normativa», não passando, no fundo, de um como que obiter dictum legislativo.
II.III - As questões relativas ao regime constitucional e legal da lei do orçamento
15 - As demais questões de constitucionalidade suscitadas no requerimento do Primeiro-Ministro [cf. supra, n.º 1, alíneas b), c) e d)] têm todas a ver com o regime que se encontra constitucional e legalmente estabelecido para a elaboração do Orçamento e da respectiva lei, podendo, pois, agrupar-se sob a mesma rubrica. Estão entre elas, em primeiro lugar, as respeitantes ao artigo 19.º, n.º 2, da Lei 49/86, preceito cujo teor é o seguinte:
ARTIGO 19.º
...
2 - São nulas quaisquer disposições administrativas visando a suspensão de tais transferências ou a compensação com créditos sobre as referidas empresas.
a) No n.º 1 deste artigo 19.º dispõe-se que «os subsídios e demais dotações constantes do Orçamento do Estado para as finalidades próprias das empresas públicas de comunicação social serão transferidos para as respectivas empresas por duodécimos». O n.º 2, ferindo de nulidade as disposições administrativas nele referidas, tem o alcance de tornar obrigatória para a Governo e para a Administração não só a efectivação dessas transferências, como a sua efectivação até ao limite do montante para elas orçamentado. Ou seja: obriga ou vincula o Governo e a Administração a gastarem integralmente certas dotações orçamentais. É precisamente com base nesta circunstância que vem sustentar-se a sua inconstitucionalidade.
A tal respeito, começa-se por argumentar que, tendo o Orçamento como função básica, nos termos do artigo 108.º, n.º 6, da Constituição, «prever as receitas necessárias para cobrir as despesas», isso apenas pressupõe, do lado das despesas, «que os créditos orçamentais constituam limites máximos dos montantes a gastar», como precisamente veio dizer-se no artigo 18.º, n.º 1, da Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado e é unanimemente reconhecido pela doutrina: assim, no artigo 19.º, n.º 2, «ultrapassou-se claramente o que, à luz da lei portuguesa, dos princípios e do próprio bom senso, constitui o objectivo orçamental em matéria de despesas».
Além disso - acrescenta-se -, ficando o Governo, por força desse preceito, impedido de «racionalizar gastos e, consequentemente, a gestão pública em geral», fica ele impossibilitado de assumir plenamente a responsabilidade que constitucionalmente lhe cabe da «condução da política geral do País» e da «orientação superior da Administração Pública», já que «no cerne desta [...] não pode deixar de se considerar a obrigação de assegurar a gestão mais eficiente possível dos recursos disponíveis»: também o n.º 2 do artigo 19.º importa, deste modo, violação do artigo 185.º, conjugado com os artigos 113.º, n.º 2, e 114.º, n.º 1, da Constituição.
Por último, alega-se que a disposição em apreço «traduz, de per si, por outro lado, uma violação clara do princípio da 'não consignação' - na medida em que o Governo não pode deixar de transferir o total das dotações orçamentadas -, previsto no artigo 6.º da Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado». Uma violação desse princípio - faz-se notar - que não se integra nas excepções que, segundo o n.º 2 do mesmo artigo 6.º lhe são admissíveis, «nem respeita os princípios tradicional e comummente apontados pela doutrina para as justificar».
Entretanto, e no contexto desta argumentação, sustenta-se ainda no requerimento do Primeiro-Ministro que deve o T. Const. julgar-se competente para apreciar a ilegalidade resultante de violações da Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado, como aquela em que incorre a disposição em apreço da lei orçamental para 1985. Isso - diz-se - porque tal ilegalidade não pode deixar de ser qualificada como «inconstitucionalidade indirecta», em virtude da «relação de verdadeira imediação» existente entre a Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado (em especial no tocante a princípios como o da «não consignação») e a Constituição. Tal «relação de imediação» resulta e exprime-se na circunstância de esta última pressupor «necessariamente» aquela Lei, como «corporização concretizante e directamente implementadora dos princípios constitucionais».
b) Também quanto à questão que fica assim enunciada, porém, não pode acompanhar-se e acolher-se o requerimento do Primeiro-Ministro.
Para tanto não se torna sequer necessário afastar o pressuposto, em que o mesmo requerimento assenta e que expressamente refere, de que entra na competência deste Tribunal conhecer das infracções à Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado que ocorram em leis orçamentais anuais. Trata-se de um pressuposto que, no mínimo, é altamente discutível e problemático (no sentido de que na referida situação não há «inconstitucionalidade» se manifesta expressamente o Prof. Teixeira Ribeiro no parecer junto aos autos e também em os Poderes Orçamentais da Assembleia da República, Coimbra, 1987, separata do Boletim de Ciências Económicas, vol. XXX, pp. 7 e 13; em sentido diverso pronuncia-se M. Rebelo de Sousa, A Constituição de 1976, o Orçamento e o Plano, Lisboa, 1986, p. 18, sem, todavia, explicitar se e quais consequências poderão e deverão extrair-se, no plano contencioso, da qualificação da situação como de «inconstitucionalidade indirecta». Mas, seja como for, sucede que no caso nem sequer se verifica qualquer infracção ou violação da Lei do Enquadramento.
De facto, desde logo, a norma questionada em nada afecta o princípio da «não consignação». Na verdade, significa este princípio que, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 6.º da Lei do Enquadramento, o Orçamento não pode afectar certas receitas à cobertura de certas despesas, de tal forma que (é o duplo cabimento) estas apenas poderão ser satisfeitas na medida em que o montante cobrado daquelas o possibilite (v., por todos, Teixeira Ribeiro, Finanças Públicas, cit., pp. 49 e segs.). Ora, o artigo 19.º, n.º 2, da Lei 49/86, conjugado com o n.º 1, só trata de despesas (de certas despesas orçamentais), e não se vê em que, e como, afecte à cobertura delas quaisquer determinadas receitas orçamentais.
Mas tão-pouco se verifica infracção do artigo 18.º, n.º 1, da Lei do Enquadramento, segundo o qual «as dotações orçamentais constituem o limite máximo a utilizar na realização das despesas». É que o sentido de um tal princípio é tão-só, e justamente, o de fixar um limite máximo às despesas (um sentido puramente «negativo», portanto), e não também, o de conceder aos agentes da execução orçamental uma margem de liberdade na realização delas. Este outro aspecto não depende do preceito ora citado da Lei do Enquadramento: depende de se estar, ou não, perante despesas obrigatórias ou de montante obrigatório, ou seja, depende de haver outras normas legais ou legalmente autorizadas que «determinem» a despesa ou lhe fixem o montante. Claro que, sempre que isso acontece (e acontece quanto a numerosas despesas), a dotação orçamental terá de ser integralmente gasta quando corresponda exactamente ao montante legal da despesa, sem que isso em nada implique, como é óbvio, com o princípio do artigo 18.º, n.º 1, da Lei do Enquadramento.
Ora, o que, no fundo, temos no artigo 19.º, n.º 2, é uma situação do tipo descrito, a saber, a fixação legal, em certo ano económico, do montante de uma certa espécie de despesas, com a particularidade de tal montante ser estabelecido por referência à expressão orçamental das respectivas dotações. Não há, pois, que falar em infracção do artigo 18.º, n.º 1, da Lei do Enquadramento, nem consequentemente, (e com isso se responde a outro aspecto da argumentação expendida no requerimento do Primeiro-Ministro) que falar em desvio da «função básica» do Orçamento, tal como emerge do artigo 108.º, n.º 6, da Constituição (ou do n.º 1 do artigo 4.º daquela lei).
Posto isto, resta só a questão da violação pelo artigo 19.º, n.º 2, do princípio do artigo 185.º da Constituição. E essa, sim, é a questão de constitucionalidade que - como resulta do antes exposto - pode afinal e verdadeiramente suscitar-se com referência a esse preceito: tratar-se-á de saber se o legislador, ao fixar, ele próprio, o montante das despesas públicas em causa no ano económico de 1987 e ao condicionar e conformar estritamente, assim, a actividade administrativa a que respeitam as mesmas despesas, não terá ultrapassado, de todo o modo, um limite «funcional» a esse seu poder de conformação, emergente do citado princípio constitucional, conjugado com o dos artigos 113.º, n.º 2, e 114.º, n.º 1, também da lei fundamental.
Não se afigura, porém, que a esta pergunta possa dar-se resposta afirmativa, sendo que para concluir assim bastará simplesmente recordar quanto atrás se expôs, a propósito do artigo 25.º, no seu conjunto, sobre os poderes de conformação legal da actividade administrativa (supra, n.º 12) e que tem aqui exacta e idêntica aplicação. Bastará recordar isso e conjugá-lo - o que será decisivo - com a circunstância de estarmos situados num domínio (o das opções orçamentais) em que por definição constitucional, cabe à AR a «última palavra» e lhe são reconhecidas entre nós largas faculdades conformadoras [como noutro contexto do presente acórdão já teve ocasião de dizer-se (supra, n.os 5 e 6); cf. também J. M. Cardoso da Costa, estudo aí citado, em especial p. 14 e n.º 14].
16 - Uma segunda ordem de questões que, com referência ao regime constitucional e legal do Orçamento, vem posta no requerimento do Primeiro-Ministro reporta-se ao princípio da anualidade orçamental. As disposições da Lei 49/86 questionadas sobre esse ponto de vista são as dos artigos 13.º, n.º 3, 16.º, n.º 3, e 89.º A primeira foi já transcrita (supra, n.º 7); as duas restantes dispõem como segue:
ARTIGO 16.º
...
3 - Na preparação do PIDDAC para 1988, o Governo enviará à Assembleia da República, até 15 de Outubro de 1987, uma descrição pormenorizada dos programas que pretende concluir, do seu enquadramento nas Grandes Opções do Plano, do grau de execução material atingido em anos anteriores, do custo global previsto para o programa, das respectivas fontes de financiamento e ainda da programação, mesmo que indicativa, da respectiva execução financeira.
ARTIGO 89.º
1 - As alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 100/86, de 17 de Maio, passam a ter a seguinte redacção:
...
d) Para a 5.ª fase - de 21 anos de bom e efectivo serviço docente prestado no ensino oficial ou equiparado;
e) Para a 6.ª fase - de 25 anos de bom e efectivo serviço docente prestado no ensino oficial ou equiparado.
2 - Durante o ano de 1987 o Governo adoptará as providências necessárias para a entrada em vigor do regime previsto no número anterior do início do ano económico de 1988.
Argumenta-se que, obedecendo o Orçamento ao princípio da anualidade - o qual «está claramente subjacente» ao artigo 108.º da Constituição e decorre do seu artigo 93.º, alínea c), e ainda do artigo 239.º da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro -, são de considerar inconstitucionais «as disposições contidas numa 'Lei do Orçamento do Estado' que, de forma expressa, se reportam exclusivamente a períodos diferentes do abrangido pelo Orçamento em causa, orçamento no qual não têm qualquer incidência, ainda que apenas ao nível da sua execução ou do respectivo controle». É o que acontece - diz-se - com os preceitos mencionados.
Ainda esta argumentação e esta conclusão, todavia, não podem acolher-se.
Depois da revisão de que foi objecto em 1982, o artigo 108.º, n.º 1, da Constituição deixou de conter a referência expressa à regra da anualidade do Orçamento. Não há dúvida, porém, de que tal regra ou princípio subsiste, como ainda resulta implicitamente dos artigos 93.º, alínea c), e 108.º, n.º 2, da Constituição e é reconhecido una voce pela doutrina (por todos, cf. Teixeira Ribeiro, Os Poderes Orçamentais, cit., p. 10).
Por outro lado, também não haverá dúvida em reconhecer que as três disposições citadas no requerimento do Primeiro-Ministro se não reportam ao ano orçamental de 1987 - isto é, à execução do Orçamento para 1987 -, que é aquele a que se refere a Lei 49/86.
Todavia, não se deve concluir daí que elas violem o princípio da anualidade do Orçamento. É que, em rigor, este só será violado quando a uma certa previsão de receita ou de despesa do Orçamento - à previsão de uma receita do respectivo mapa; ou à dotação de certas verbas de um mapa de despesa - se atribuir uma duração plurianual. Ora, não é o caso em nenhuma das normas em apreço.
A verdade é que, se o Orçamento é, antes de tudo, um mapa de previsão de receitas e despesas e a exposição de um programa financeiro, na respectiva lei não deixam de surgir com frequência disposições que vão para além da estrita expressão dessa previsão e desse programa. As disposições em causa são dessa natureza. O problema que elas podem suscitar é, pois, outro: é o de saber se, dada essa sua natureza e a matéria sobre que versam, elas ainda têm cabimento na lei orçamental, atento o carácter desta.
17 - Justamente essa é a última das questões - ou a última ordem de questões - colocada no requerimento do Primeiro-Ministro, vindo suscitada quanto aos artigos 25.º, n.os 1, 2, 3 e 4, 70.º, n.os 1 e 2, 87.º, 88.º e 89.º da Lei 49/86. Os artigos 25.º (supra, n.º 12), 87.º (supra, n.º 13), 88.º (supra, n.º 4) e 89.º (supra, número anterior) já se transcreveram nos lugares indicados; o artigo 70.º, n.os 1 e 2, reza assim:
ARTIGO 70.º
1 - São suspensos os processos de execução fiscal em que os executados sejam trabalhadores com retribuições em atraso e que provem a situação.
2 - A suspensão referida no número anterior mantém-se até dois meses após a regularização das retribuições, findo o qual se renovará a execução em causa.
Às disposições referidas, porém, devem ainda juntar-se os artigos 13.º, n.º 3, e 16.º, n.º 3, em vista do que se concluiu no final do número anterior e atento o princípio do artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional.
a) Partindo da distinção constitucional entre a competência da AR para aprovar o Orçamento [artigo 164.º, alínea g), in fine], embora exercida sob forma de lei (artigo 169.º, n.º 2, da Constituição), e a competência legislativa em sentido próprio, e outras afins desta, também da Assembleia [artigo 164.º, alíneas d), e) e h)], e partindo, por outro lado, de que o conteúdo do Orçamento é caracterizado [como decorre do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da Constituição] «por se destinar à discriminação das receitas e despesas do Estado», argumenta-se no requerimento do Primeiro-Ministro que o Orçamento «não é o instrumento constitucionalmente idóneo para o exercício pela Assembleia da República de outras competências que não a prevista na parte final da alínea g) do artigo 164.º».
E, nesse contexto, acrescenta-se que, «apesar de a prática constitucional demonstrar alguma maleabilidade na utilização da lei do orçamento, dessa prática se extrai com clareza que, não obstante, um mínimo de respeito pela alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da CRP exige que não seja permitida a inclusão nessa lei de disposições que não tenham qualquer relação específica com as disposições estritamente orçamentais nela contidas». Será esse o caso - diz-se - «nomeadamente de disposições cuja única relação com o Orçamento consiste em a sua execução implicar o dispêndio de dinheiros públicos ou a percepção de receitas por parte do Estado, ou em regular a prática de actos que impliquem esse dispêndio ou essa percepção». Se outro fosse o entendimento - conclui-se -, «toda e qualquer disposição reguladora da actividade do Estado poderia, na prática, constar da 'Lei do Orçamento do Estado', o que seria manifestamente inconstitucional».
Ora, sustenta-se no requerimento do Primeiro-Ministro que os preceitos a esse propósito aí referidos não têm qualquer relação com o conteúdo especificamente orçamental (contendo, designadamente, regulamentações não financeiras e até relativas a áreas não sujeitas ao poder orçamental da AR) ou têm com ele apenas uma relação não específica (designadamente a de a sua execução implicar o dispêndio de dinheiros públicos). Daí se conclui pela inconstitucionalidade dos mesmos preceitos, por violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 108.º da Constituição.
b) Tão-pouco pode sufragar-se, porém, esta última tese do requerimento em apreço, a qual se reporta, como se vê, ao problema de legitimidade dos chamados cavaliers budgétaires ou riders.
Trata-se de um problema bem conhecido da prática constitucional e da doutrina, quer no nosso, quer noutros ordementos. E um problema que nalguns destes encontra resposta constitucional expressa, que se traduz na delimitação precisa das normas susceptíveis de serem inseridas na lei orçamental (assim, o artigo 110.º, n.º 4, da Grundgesetz da República Federal da Alemanha) ou na proibição de nesta se inscreverem disposições de certo tipo com certo alcance (assim, o artigo 81.º, n.º 3, da Constituição italiana).
Entre nós, porém, não se depara com qualquer preceito expresso da Constituição similar aos referidos. E daí que a doutrina viesse entendendo não ser constitucionalmente questionável a inserção na lei do orçamento de normas sem imediata incidência financeira ou normas «não orçamentais», um procedimento que se compreenderia tanto melhor quanto deve considerar-se superada uma concepção puramente «formal» daquela lei (assim, J. M. Cardoso da Costa, est. cit., pp. 19 e segs., e A. Lobo Xavier, «'Enquadramento orçamental' em Portugal: Alguns problemas», na Revista de Direito e Economia, ano IX, 1983, pp. 242 e segs.). Isto, fosse qual fosse o juízo que a correspondente prática devesse merecer sob o ponto de vista doutrinal ou da clareza do exercício das competências constitucionais e até da clareza do ordenamento jurídico (um juízo, aliás, não negativo, para ambos os autores citados, no tocante a normas que tenham ainda a ver com o delineamento do programa financeiro da lei orçamental, como serão, v. g., as que exprimam a sua vertente fiscal).
Contra este entendimento - mas sem o pôr definitivamente em causa -, ponderou-se, todavia, que ele poderia conduzir, afinal, a uma limitação da competência legislativa da AR. É que, como a iniciativa da lei do orçamento pertence ao Governo, e só a este poderá pertencer, consequentemente, a iniciativa da alteração dessa lei, o alargamento dela para além das matérias que preencham a função orçamental virá a traduzir-se numa restrição da liberdade de iniciativa parlamentar (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. 1.º, p. 472). Só não seria assim - ressalvam os autores citados - se «pudesse entender-se, o que não é fácil, que nessas matérias a lei poderia ser alterada nos termos gerais».
O argumento, porém, não é probante, como, por último, mostrou o Prof. Teixeira Ribeiro (Os Poderes Orçamentais, cit., p. 6). É que a dificuldade em consentir que se mantenha a iniciativa parlamentar para a alteração da lei do orçamento em matérias «não orçamentais» é só «a de destrinçar tais matérias das restantes» e, portanto, «simples dificuldade de ordem prática». Daí que - concluindo com o mesmo autor - não deva considerar-se atentatório da Constituição, com base na razão assinalada, «o inserimento no articulado do Orçamento de disposições estranhas à administração orçamental».
Ora, não sendo por essa razão, por outra realmente não se vê que a Constituição obste ao procedimento referido. E tanto menos quando se trata de um procedimento com uma longa tradição entre nós (vindo já do período do constitucionalismo monárquico e passando por todos os que se lhe seguiram), que só justificaria ver precludido pela Constituição em vigor se nesta existisse disposição clara nesse sentido. Ora, como começou por salientar-se, tal não sucede.
Poderá a prática em causa ser discutível, e até censurável, seja do ponto de vista doutrinário, seja do da técnica da legislação. De todo o modo, não o é de um estrito ponto de vista jurídico-constitucional.
Por consequência, e em conclusão, não podem julgar-se inconstitucionais, com base no fundamento agora e por último em análise, as normas que antes foram indicadas.
III - Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
1.º Não declarar a inconstitucionalidade dos n.os 5 e 8 do artigo 10.º, do n.º 3 do artigo 13.º, do n.º 2 do artigo 14.º, do n.º 3 do artigo 16.º, do n.º 2 do artigo 18.º, do n.º 2 do artigo 19.º, dos n.os 1, 2, 3 e 5 do artigo 25.º, do n.º 3 do artigo 26.º, do artigo 58.º, dos n.os 1 e 2 do artigo 70.º, do artigo 87.º, do artigo 88.º e do artigo 89.º da Lei 49/86, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1987;
2.º Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dos seguintes preceitos da mesma lei:
a) Do artigo 18.º, n.º 4, na parte em que atribui ao TC competência para apreciar a eficiência da gestão económica, financeira e patrimonial do GGFMJ, por violação do artigo 219.º, conjugado com o artigo 113.º, n.º 2, da Constituição;
b) Do artigo 25.º, n.º 4, por violação dos princípios emergentes dos artigos 114.º, n.º 1, e 185.º da Constituição;
c) Do artigo 71.º, na parte em que, pela conjugação do disposto nos seus n.os 1 e 2, reserva à AR a modificação de todo o regime legal de certos impostos e outras receitas a ele juridicamente equiparáveis, para além dos respectivos elementos essenciais enunciados no artigo 106.º, n.º 2, da Constituição, e na parte em que reserva à AR a modificação do regime legal de certas taxas e outras receitas não equiparáveis aos impostos, por violação do artigo 201.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição.
Lisboa, 16 de Dezembro de 1987. - José Manuel Cardoso da Costa (vencido quanto à não declaração da inconstitucionalidade parcial do artigo 18.º, n.º 2) - José Martins da Fonseca (vencido nos termos da declaração de voto junta) - Mário de Brito (com a declaração de voto junta) - Vital Moreira (vencido, em parte, conforme a declaração de voto junta) - Raul Mateus (vencido parcialmente, nos termos da declaração de voto junta) - Antero Alves Monteiro Dinis (vencido na parte em que foi declarada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 18.º, n.º 4, e 25.º, n.º 4, da Lei 49/86, de 31 de Dezembro, nos termos da declaração junta) - Messias Bento (vencido quanto à não declaração de inconstitucionalidade do artigo 18.º, n.º 2, basicamente nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Cardoso da Costa) - Armando Manuel Marques Guedes (vencido quanto ao decidido relativamente à segunda parte do n.º 4 do artigo 18.º, com os mesmos fundamentos que o Exmo. Conselheiro Monteiro Dinis) - (O Exmo. Conselheiro Nunes de Almeida não assina por não estar presente, tendo votado vencido nos mesmos termos que o Exmo. Conselheiro Monteiro Dinis - José Manuel Cardoso da Costa.)
Declaração de voto
Vencidas que foram as dificuldades, ainda que num ou noutro ponto sem eliminar por completo a sombra de alguma dúvida, que a natureza e a complexidade das questões analisadas no presente acórdão não podiam deixar de suscitar, apenas não acompanhei a decisão e os correspondentes fundamentos no que concerne ao artigo 18.º, n.º 2, da Lei 49/86.
Efectivamente, não me convenceram as razões que levaram a maioria do Tribunal a entender que a revisão normativa, prevista em tal preceito, dos critérios de gestão integrada do Cofre Geral dos Tribunais (CGT) e do Cofre dos Conservadores, Notários e Funcionários de Justiça (CCNFJ) seja tarefa de natureza necessariamente legislativa e deva, por conseguinte, revestir a correspondente forma (de decreto-lei).
Na verdade, se esses Cofres passaram a ficar sujeitos ao «regime geral aplicável aos fundos e serviços autónomos» (artigo 18.º, n.º 1), claro que os anteriores critérios legais-formais (isto é, os critérios integrantes da formal legalidade especificamente financeira) da sua gestão se tornaram obsoletos; só que ficaram ipso facto substituídos pelos aplicáveis à generalidade daqueles fundos e serviços e, nomeadamente, pelos constantes do Decreto-Lei 459/82, de 26 de Novembro. Nessa medida, pois, nenhuma «legislação» era necessária. Por outro lado, não só as receitas dos ditos Cofres, mas também o destino delas - ou seja, os encargos e despesas que lhes cabe suportar -, se acham previstos em variadas disposições legais, das quais se podem dar como principais exemplos os artigos 255.º, 257.º e 258.º do Código das Custas Judiciais e 85.º do Decreto-Lei 385/82, de 16 de Setembro, este (que entretanto dará lugar, a partir de 1 de Janeiro de 1988, ao artigo 206.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 376/87, de 11 de Dezembro, mantendo essencialmente o regime anterior) conjugado com o Decreto-Lei 386/82, da mesma data, e os preceitos relativos aos vencimentos dos funcionários de justiça a que se refere. Também, pois, a definição (material) das afectações ou utilizações possíveis dos recursos dos Cofres se encontra já assegurada ao indispensável nível legislativo.
Claro que, estabelecido o condicionalismo legal sumariamente descrito, coisa diversa serão depois os «critérios» (isto é, as regras, orientações e princípios, naturalmente de índole «material») que, nos limites desse condicionalismo e com obediência ao mesmo, vão ser perfilhados na «gestão» dos Cofres em causa, em especial na sua gestão «integrada». Ora, preexistindo o dito condicionalismo legal e não podendo a AR ignorá-lo, compreender-se-á que seja, afinal, dos critérios ora referidos que se trata no artigo 18.º, n.º 2.
Como já se está a ver, porém, a definição - e, logo, a «revisão» - desses critérios é tarefa tipicamente administrativa e, portanto, se e na medida em que deva observar ainda um modo normativo, tarefa «regulamentar». Por isso, quando a AR pretende, no artigo 18.º, n.º 2, que o Governo proceda à revisão deles por decreto-lei, está a determinar-lhe realmente não apenas a disciplina normativa de uma certa área da actuação administrativa, mas ainda - em meu modo de ver - a utilização da forma legislativa no tratamento de uma matéria puramente administrativa ou regulamentar. Daí que tenha votado a inconstitucionalidade do preceito em questão nessa parte.
É que - mesmo sem discutir se a determinação legal do uso da forma legislativa no tratamento de matéria em princípio regulamentar deve ser em absoluto tida por inadmissível - na hipótese em apreço, em qualquer caso, isso interfere de modo claramente excessivo e desproporcionado com o exercício da função administrativa típica do Governo [da função que constitucionalmente lhe cabe enquanto «órgão superior da Administração Pública» (artigo 185.º)], afectando aquele mínimo de «autonomia» que no exercício de tal função não pode deixar de ser-lhe reconhecido, em nome do princípio da «separação e interdependência dos órgãos de soberania» (que outra coisa não é, do meu ponto de vista, que o princípio da divisão dos poderes), consignado no artigo 114.º, n.º 1, da Constituição. Por esta razão, pois, entendi que a norma em causa - impondo uma substituição funcional do Governo-administrador pelo Governo-legislador e ultrapassando assim, por outras palavras e em suma, limites «funcionais» aos poderes de conformação do legislador, no sentido em que destes se fala no acórdão, a propósito do artigo 25.º, n.º 4, da Lei 49/86 (n.º 12) - viola igualmente os princípios que emergem da conjugação dos dois preceitos constitucionais citados. - José Manuel Cardoso da Costa.
Voto de vencido
I - Foi decidido que as normas dos artigos 10.º, n.os 5 e 8, 13.º, n.º 3, 14.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 26.º, 58.º e 88.º da Lei 49/86 não ofendem o princípio da separação de poderes, consignado nos artigos 113.º e 114.º da Constituição, pelo que não padecem da inconstitucionalidade arguida pelo Sr. Primeiro-Ministro.
Não se acolheu a melhor doutrina, como procurarei demonstrar.
A C. Const. tomou posição sobre problema similar no parecer 16/79, de 21 de Junho, e ali se sustentou que do «facto de os artigos 113.º e 114.º falarem, antes que em 'poderes', em 'órgãos de soberania' e na sua 'separação' e 'interdependência' não é legítimo concluir que a nossa Constituição recusou e afastou o conteúdo essencial da ideia da divisão dos poderes. Bem pelo contrário, o sistema do poder político nela consignado, como sistema próprio de um Estado de direito democrático, só se deixa apreender na sua essência e na sua desejável harmonização quanto interpretado à luz do núcleo essencial daquela ideia: ela foi, é e por certo continuará a ser um dos essentialia do conceito de Estado de direito democrático e a sua violação sinal de tentativa ilegítima de reabilitação do princípio da concentração de poderes. Nesta medida bem poderá continuar a afirmar-se - com o artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 - que 'qualquer sociedade em que não esteja estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição'!».
E, depois de assinalar as dúvidas e dificuldades que pode haver em definir o alcance concreto do princípio, bem como o facto de este não ser levado às últimas consequências lógicas pela Constituição, acrescentava:
Nada disto, porém, impedirá a existência de largo consenso quanto ao núcleo essencial do princípio. Ele radica em duas direcções: por um lado, na de que a função legislativa é atribuída, em princípio, ao Parlamento, a função executiva ao Governo, a função judicial aos tribunais; por outro, na de que os órgãos do Legislativo, do Executivo e do Judiciário se controlam ou limitam mutuamente, de tal forma que o poder do Estado resulte e a liberdade das pessoas seja protegida. E daqui já deverá concluir-se que haverá inconstitucionalidade - por violação da norma do artigo 114.º, n.º 1, ou do princípio constitucional da divisão e repartição de funções entre os diferentes órgãos de soberania - sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão.
E a respeito do problema então em apreço concluía a Comissão:
Sendo assim, ao obrigar o Governo a dar forma de decreto-lei à decisão de cessar qualquer intervenção, o legislador ordinário vincula ilegitimamente à forma legislativa um acto materialmente administrativo, altera arbitrariamente a natureza do acto em causa e, nesta medida, subverte a repartição de competências constitucionalmente estabelecida. Por isso, a violação do artigo 114.º, n.º 1, é inarredável. [Cf. o vol. 8.º, pp. 210 e segs.]
Parece não ser divergente a posição de Marcelo Rebelo de Sousa ao sustentar:
E não se diga que a nossa Constituição e o sistema de governo nela consagrado se apartam da divisão de poderes, como partilha das funções do Estado pelos diversos órgãos de soberania, na base da delimitação de áreas de reserva e cooperação ou de concorrência. [Cf. Estudos de Direito Público, n.º 12, A Constituição de 1976, o Orçamento e o Plano, p. 29, nota 22.]
Entende é que se deve distinguir a «divisão de poderes» da «separação de poderes», a qual está ligada a uma delimitação constitucional da repartição de funções do Estado com coincidência rígida e fixista de uma função com um só órgão de soberania (ob. cit. e loc. cit.).
A. Lobo Xavier, a propósito da questão de saber se, em matéria de autorizações contidas no Orçamento, estas últimas devem ser encaradas como autênticas imposições de legislação, pronuncia-se pela seguinte forma:
A verdade é que alguns argumentos se poderiam alinhar a favor desta ideia porventura ousada. Poder-se-ia figurar uma obrigação, imposta ao Governo, de elaborar legislação em obediência ao objecto, sentido e extensão das autorizações, em nome da tarefa, que lhe compete, de executar o Orçamento, no exercício da qual deve «aprovar os decretos-leis contendo as disposições necessárias a tal execução». [Cf. o artigo 16.º da Lei 40/83.]
Por outro lado, esta obrigação poderia ainda apoiar-se na chamada «regra da veracidade» do Orçamento, embora entre nós ela não seja normalmente referida pela doutrina nem encontre qualquer expressão normativa. Segundo esta regra, a previsão orçamental deve aproximar-se, tanto quanto possível, da realidade; assim, se a expressão numérica da previsão das receitas tributárias depende da legislação a emanar pelo Governo ao abrigo das autorizações pedidas na proposta de orçamento, a não elaboração ulterior dessa mesma legislação constituirá, de alguma forma, uma violação do próprio conteúdo orçamental.
Parece-nos, contudo, que não será de ir tão longe. A razão está, com certeza, do lado de Cardoso da Costa, quando afirma que tais autorizações legislativas envolvem a «definição de grandes limites e linhas de orientação», que o Governo não poderá ultrapassar ou contrariar, sendo, no entanto, a sua utilização uma «questão política, que não jurídica».
Desde logo, não se vê que figura da «imposição de legislação governamental» encontre, neste caso, acolhimento no nosso quadro constitucional das relações entre o Parlamento e o Executivo. Depois, a execução do Orçamento não assume um significado unívoco em relação a todos os seus elementos, nem sequer representa todo o Orçamento - como vimos vendo -, um «conjunto de estritas vinculações para o Governo» [Revista de Direito e Economia, ano IX, n.os 1-2, Janeiro-Dezembro de 1983, p. 233.]
Jorge Miranda é bastante incisivo ao escrever:
[...] nenhum órgão, mesmo legislativo, pode obrigar outro, mesmo se também legislativo, a conferir forma de lei a qualquer acto da competência deste - não pode, seja qual for a natureza da competência, por directa imposição do princípio da separação de órgãos constitucionais (1); e não pode, especificamente, quando a competência seja administrativa, porque a forma de lei não é para o exercício da competência não legislativa (2). (Cf. Funções, Órgãos dos Actos do Estado, Apontamentos das Lições, Lisboa, 1986.]
Por outro lado, o artigo 201.º da CRP atribui também ao Governo competência legislativa. Está ali previsto que o Governo possa fazer decretos-leis em três casos: no de matérias não reservadas à AR; no de matérias de reserva relativa, com sua autorização; no de desenvolvimento de leis de bases. Mas o que não está previsto é que o Governo possa ser obrigado a fazer decretos-leis em qualquer dos três casos. Por conseguinte, a competência legislativa do Governo é uma competência autónoma, livre, que ele exerce ou não exerce conforme queira. Não é permitido à AR constranger o Governo a legislar, como o inverso também não é consentido (cf. parecer junto, do Prof. Teixeira Ribeiro).
Nalgumas das normas citadas (entre outras, v. o n.º 2 do artigo 18.º) determina-se ao Governo que use a forma de decreto-lei, quando seria mais correcto expedir-se um regulamento. Daí colocar-se também o problema de saber se a AR pode determinar que o Governo regulamente certas matérias por decreto-lei.
Poderia argumentar-se no sentido afirmativo, alegando que se estaria apenas perante um reforço de garantias pela inclusão em lei formal de actos materialmente de administração. No entanto, o argumento não procede, pois tal conduziria o Parlamento a converter-se, se o pretendesse, em órgão supremo da Administração Pública e derrogaria o princípio da divisão dos poderes e o disposto no artigo 185.º da Constituição, que arvora o Governo em órgão supremo da Administração Pública (cf. Marcelo Rebelo de Sosua, ob. cit., p. 30, nota 22).
Para além disso, a conferir-se tão amplos poderes ao Parlamento, transformar-se-ia o regime parlamentar ou semipresidencialista que nos rege em sistema de governo representativo convencional (cf. Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. 1.º, p. 364, Almedina, Coimbra).
Cumpre ao Governo expedir regulamentos para a boa execução das leis. E, para além disso, também lhe cumpre emitir os diplomas de desenvolvimento de leis de bases dos regimes jurídicos [cf. o artigo 115.º n.º 2, e a alínea b) do artigo 201.º da CRP].
Ora, só nesta última hipótese (e também, claro está, quando usa uma autorização legislativa) está o Governo obrigado a usar a forma de decreto-lei. Fora de tais hipóteses, tipicamente previstas na Constituição, a regulamentação de leis propriamente ditas deverá ser feita por diploma regulamentar, de harmonia com o disposto na alínea c) do artigo 202.º da Constituição.
Dir-se-á, porém, que a Constituição não fornece qualquer critério de definição da fronteira material entre o domínio legislativo e o domínio regulamentar (cf. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., vol. II, p. 55, nota III), e daí ser lícito ao Governo poder optar, em muitos casos, pela forma de decreto-lei. De qualquer modo, tal não lhe pode ser imposto pela AR, pelas razões já expostas.
De sublinhar até que a doutrina de Canotilho e Vital Moreira segundo a qual a Constituição não fornece qualquer critério de definição de fronteira material entre o domínio legislativo e o domínio regulamentar é contestada por Marcelo Rebelo de Sousa quando escreve:
É possível uma definição material das funções legislativa e administrativa, que não seja mero produto de congeminações doutrinárias antes traduza o conteúdo constitucional. Existe na Constituição uma clara fronteira material entre as duas funções, como o demonstra o citado artigo 26.º, n.º 3, e sobretudo entre as alíneas a) e c) do artigo 165.º e a separação nítida entre os artigos 201.º, n.º 2, e 202.º, alínea b). A Constituição fornece-nos pistas importantes para a substância do domínio da reserva de competência correspondente à função administrativa e que a função legislativa não pode usurpar - é o caso das alíneas d) e e) do artigo 202.º (Cf. «10 Questões sobre a Constituição, o Orçamento e o Plano», in Nos Dez Anos da Constituição, pp. 140 e 141.]
Não é necessário tomar posição favorável à construção de Rebelo de Sousa para se concluir que existe em tais hipóteses uma violação do princípio da divisão dos poderes. É que, como já se frisou, ainda quando se aceite a doutrina oposta, a AR não pode impor ao Governo que adopte a forma de decreto-lei ou regulamento. Este e só este é que poderá decidir na matéria. Procedendo-se como se procedeu violou-se também, por este motivo, o princípio da separação dos poderes.
II - Para se chegar à solução que fez vencimento acolheu-se doutrina semelhante à constante do Acórdão 48/84, de 31 de Maio de 1984, onde se decidiu:
Efectivamente, ao contrário do que acontece com a generalidade das autorizações legislativas constantes da lei do orçamento, não se refere aqui que «fica o Governo autorizado» a aprovar determinadas medidas legislativas, antes se estabelece que «deverá o Governo» proceder a uma revisão do Código do Imposto Complementar.
Terá esta formulação qualquer relevância do ponto de vista estritamente jurídico?
Pensamos que não.
O facto de o preceito se encontrar redigido de forma injuntiva para o Governo não altera a sua natureza. Ele valerá como uma injunção no plano político, mas tal não obsta a que, no plano jurídico, possa valer como uma autorização legislativa que o Governo poderá ou não utilizar, conforme melhor entender.
E, para além do mais, afigurar-se-ia absurdo que, com fundamento numa formulação demasiado vinculativa para o Governo, se viesse sustentar que a disposição nem como autorização legislativa poderia valer.
A diversidade de redacção entre o n.º 7 do artigo 16.º e as restantes disposições da Lei 42/83 que concedem autorizações legislativas ao Governo justifica-se, aliás, pela circunstância de aquele dispositivo ter sido introduzido na referida lei não por iniciativa do Governo, mas na sequência de uma proposta subscrita por vários deputados.
15 - Uma outra questão que se poderia levantar a propósito deste n.º 7 do artigo 16.º da Lei 42/83 seria exactamente a da legitimidade de uma autorização legislativa concedida pelo Parlamento e não solicitada pelo Governo.
Esta problemática foi, aliás, embora incidentalmente e a propósito do artigo 15.º, suscitada na própria discussão da lei do orçamento pelo Ministro do Estado e dos Assuntos Parlamentares, que afirmou então:
É que, para além de todos os problemas que foram colocados, há um outro que gostaria de sujeitar à reflexão da Câmara, que é o da figura da autorização legislativa não solicitada. Embora não sendo o momento de o discutirmos, parece-me que a referida figura é uma alteração no campo do próprio conceito de autorização legislativa.
Não parece, porém, que no plano dos princípios se deva considerar necessariamente aberrante a concessão de uma autorização legislativa não solicitada.
Efectivamente, tal figura justifica-se, designadamente, quando, como no caso presente, não se encontrando a Assembleia em condições de legislar, ela própria, sobre determinada matéria, opta por conceder uma autorização legislativa ao Governo, responsabilizando-o politicamente pela emissão das medidas legislativas adequadas, de acordo com certos princípios constantes da própria autorização.
É óbvio que em tais casos não fica o Governo juridicamente obrigado a aprovar a legislação em causa. Mas tal constitui mais um argumento no sentido de se não ver motivo para considerar constitucionalmente ilegítimas as autorizações legislativas não solicitadas. [Cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional, t. 3, pp. 23 a 25; itálicos meus.]
No texto deste acórdão, em que fiquei vencido, não se sustenta com igual transparência a doutrina do aresto a que já nos referimos e do qual até se transcreveram alguns trechos. Mas resulta claramente, apesar disso, que se perfilha idêntica orientação.
Basta, para se chegar a tal conclusão, ter em atenção o que ficou escrito, nomeadamente, a fls. 10, 11, 12, 13, 25, n.º 9, 26, 27 e 28, que se dão por inteiramente reproduzidas.
A construção é brilhante, mas parte de premissas erradas, isto salvo o devido respeito, pelo que a conclusão é forçosamente inexacta. Disso me apercebi quando subscrevi aquele primeiro aresto.
III - Diz-se no acórdão citado que o facto de o preceito se encontrar redigido de forma injuntiva para o Governo não altera a sua natureza. Ela valerá como uma «injunção» no plano político, mas tal não obsta a que, no plano jurídico, possa valer como uma autorização legislativa que o Governo poderá ou não utilizar, conforme melhor entenda, e, ainda, que não parece aberrante a concessão de uma autorização legislativa não solicitada. E conclui-se que em tais casos não fica o Governo juridicamente obrigado a emitir a legislação em causa.
Ora, não é assim. Tanto na hipótese decidida naquele aresto como na sub iudice, a AR não quis conceder uma autorização legislativa. Determinou, sim, ao Governo que legislasse sem este o ter solicitado, como lhe incumbia, se o quisesse fazer em matéria de competência reservada da AR.
Proferiu-se uma «ordem», não se deferiu um «pedido».
Parte-se do princípio de que a vontade hipotética ou conjectural da AR e do Governo era a de considerar a «injunção» como uma autorização legislativa.
Não é assim, porém. Quer a AR quer o Governo entenderam a «injunção» como tal, tanto assim que o Primeiro-Ministro veio pedir a declaração de inconstitucionalidade das normas referidas.
De resto, é do domínio público que não existia uma tão grande harmonia entre aqueles dois órgãos de soberania que fizesse presumir que um deles, sponte sua, quisesse conferir ao outro poderes que só a si cabiam.
Desta forma, é o T. Const. que vem proceder à «conversão» de um «acto jurídico», ou melhor, de «acto legislativo», noutro de «espécie e natureza diferentes». E quando é manifesto que nenhum dos órgãos de soberania referidos quis e entendeu a «injunção» como simples «autorização legislativa». Não existe preceito constitucional que autorize tal «conversão» e que atribua ao T. Const. competência para oficiosamente a fazer. E não podemos perder de vista que é no plano jurídico, e não no político, que nos encontramos quando se procede à dita «conversão». Ora, ela só seria lícita se houvesse preceito a consenti-la e se devesse presumir que era essa a vontade conjectural da AR e do Governo.
E não pode também aceitar-se a «conversão» porque, como procuraremos demonstrar noutro momento, falta um elemento essencial da autorização legislativa, que é a solicitação formulada pelo Governo. Por outro lado, é princípio geral que, fora do domínio da autonomia da vontade, a «conversão» de um «acto jurídico», noutro de espécie e natureza diferentes só é possível quando a lei o permitir.
E não se diga que não existe «conversão» alguma, porque a «natureza» do «acto jurídico», é a mesma; que há até «identidade» entre os dois «actos jurídicos». Este é mais um dos vícios da construção de que discordamos.
A «injunção» é um «acto simples» ou «singular», constituído por um «facto só». A «autorização legislativa» pressupõe um «facto complexo», constituído por dois factos relacionados entre si: dois factos agremiam-se num facto único, tornando-se necessário o concurso de ambos para a produção de determinado efeito jurídico. Dito de outro modo, o «pedido de autorização», formulado pelo Governo, conjugado com a anuência da AR, é que permite o aparecimento da «autorização legislativa». «Esta», a «autorização legislativa». depende, assim, de uma pluralidade de «factos jurídicos». Ao Governo pode não interessar em determinado momento legislar sobre matéria da competência da AR e, no entanto, ficaria «obrigado» politicamente a fazê-lo sempre que a AR assim o entendesse, apesar de esta o poder fazer. Muito menos se poderia admitir a «conversão» da «injunção» em «recomendação» nos casos de competência concorrencial, porque, como já se acentuou, a competência legislativa do Governo é uma competência autónoma, livre, que ele exerce ou não exerce conforme queira.
Por todos estes fundamentos dir-se-á, salvo sempre o devido respeito, que não se pode entender juridicamente como autorização legislativa aquilo que objectiva e subjectivamente é uma «injunção». Isso envolve uma alteração da sua «natureza jurídica» que nem a Constituição nem o direito ordinário consentem.
Creio, assim, que a interpretação em causa se traduz numa «substituição do legislador» pelo T. Const., o que não se afigura curial.
IV - Mas há mais. As autorizações legislativas revestem a forma de lei e, embora a Constituição não o diga, a iniciativa legislativa originária compete apenas ao Governo, não podendo a AR, por sua iniciativa, conceder autorizações legislativas (v. o Regimento da Assembleia da República, artigo 191.º). Há áreas de iniciativa reservada, quer porque isso resulta expressamente da Constituição, quer porque isso decorre implicitamente da própria natureza especial de certas leis. Assim, são reserva de iniciativa legislativa do Governo a lei do plano e o Orçamento, bem como as leis de autorização legislativa (cf. Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., pp. 204 e 210).
E não pode esquecer-se que o Executivo, ao legislar sobre matérias reservadas do Parlamento, «age em nome próprio», e não em nome daquele (cf. Canotilho, Direito Constitucional, 3.ª ed., p. 634).
Competindo, assim, apenas ao Governo a iniciativa legislativa originária, no domínio das autorizações legislativas a AR não pode antecipar-se àquele para conferir uma autorização legislativa, porque o pedido do Governo constitui um elemento essencial ou um pressuposto da lei de autorização legislativa.
Dito de outro modo, o pedido de autorização é um elemento constitutivo do acto legislativo ou um seu pressuposto necessário.
Se a AR o fizer, se conceder a autorização legislativa sem prévia solicitação do Governo, os elementos e os pressupostos do acto legislativo, ou seja, da autorização legislativa, não ficam em conformidade com o modelo constitucional, Daí seguir-se, como consequência necessária, a inconstitucionalidade da concessão de uma autorização legislativa não pedida pelo Governo.
V - No citado Acórdão 48/84 entendeu-se que a circunstância de o Governo não ficar juridicamente obrigado constitui um argumento no sentido de não se ver motivo para considerar constitucionalmente ilegítimas as autorizações legislativas não solicitadas.
Mas afirma-se que, a haver um «injunção», ela vale como tal no plano político.
No presente aresto, apesar de o mesmo não ser dito expressamente, parece-me dever inferir-se que não se repudia a afirmação feita no outro acórdão. E compreende-se que exista alguma coincidência nas duas decisões, uma vez que atribuem à responsabilidade política do Governo perante a AR uma dimensão da qual divergimos.
A responsabilidade política conexiona-se com o princípio do Estado de direito democrático: responsabilidade pelos actos praticados no exercício de competências constitucionais ou legais, directa ou indirectamente cobertos pela legitimidade democrática. A responsabilidade política é também uma responsabilidade juridicamente conformada através de diversos mecanismos (cf. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º vol., p. 84).
Na responsabilidade política stricto sensu é elemento essencial a confiança política do órgão perante o qual ela se efectiva no titular ou titulares dos órgãos que ela vincula, confiança que supõe uma certa consonância ou, pelo menos, ausência de conflitualidade de princípios e de actividades políticas (cf. Marcelo Rebelo de Sousa, in Sistema do Governo Português antes e depois da Revisão Constitucional, p. 46).
A concepção de responsabilidade política pode tomar-se em dois sentidos:
a) Em sentido amplo, a ideia de responsabilidade política traduz-se num acervo de mecanismos em que se traduzem as relações de confiança do Governo face ao Parlamento. Por exemplo, são manifestações de responsabilidade política neste sentido não só a votação de moções de censura ou confiança, mas outrossim as interpelações parlamentares ao Governo;
b) Em sentido restrito, a responsabilidade política conexiona-se com a continuação ou demissão do Governo. Nesta perspectiva, os meios adequados para a efectivar serão, principalmente, a moção de censura e a moção de confiança, mas não, por exemplo, uma simples interpelação (cf. O Sistema do Governo Semipresidencial, de Isaltino Morais, Ferreira de Almeida e Leite Pinto, pp. 40 e 41).
O desenvolvimento da responsabilidade política do Governo perante o Parlamento também não se afasta, no nosso sistema, do clássico modelo parlamentar: ou se trata de uma iniciativa da AR através de uma moção de censura [artigo 198.º, n.º 1, alínea f)]; ou se trata de uma iniciativa do próprio Governo através de uma moção de confiança [artigos 166.º e 168, n.º 1, alínea e)] (cf. Canotilho, in Direito Constitucional, 4.ª ed., p. 547).
As principais disposições da Constituição que revelam a responsabilidade política do Governo perante a AR são as seguintes: artigos 159.º, alíneas c) e d), 164.º, 165.º, alíneas a) e c), 166.º, alíneas d) e e), 168.º, n.º 2, 172.º, 193.º, 194.º, 195.º, 196.º e 197.º
Mas a existência de responsabilidade política significa que haja subordinação política?
A resposta negativa impõe-se.
Marcello Caetano escreveu que se chama «governo parlamentar» ao que é exercido por um gabinete, formado segundo as indicações do Parlamento, da sua confiança e perante ele responsável politicamente sob a égide de um chefe de Estado irresponsável. Ao contrário do que sucede no governo convencional, aqui o Governo é um órgão independente da Assembleia, embora obrigado a proceder com o acordo dela (Manual da Constituição, t. 1, p. 366).
Mais incisivo é Canotilho quando sustenta:
Todos os órgãos constitucionais de soberania são «poderes constituídos» igualmente ordenados pela Constituição. Não se quer dizer com isto que a lei fundamental não estabeleça relações de controle e interdependência. Assim, por exemplo, os órgãos do «poder judicial» estão submetidos às leis e decretos-lei da Assembleia da República e do Governo (artigo 206.º); o Governo depende da Assembleia da República no que respeita ao exercício da função legislativa relativamente a certas matérias (cf. os artigos 167.º e 168.º); os órgãos com competência legislativa (Assembleia da República, Governo e Assembleias Regionais) estão sujeitas à declaração de inconstitucionalidade das leis pelo Tribunal Constitucional (artigos 213.º, 277.º e segs.). Todavia, a posição dos órgãos constitucionais de soberania é sempre uma posição equiordenada. A Constituição considera-os a todos como órgãos constitucionais de soberania [...] e, por isso, as relações intercorrentes entre órgãos que exercem funções de soberania são relações de paridade e não relações de «substtuição» ou de «subordinação». [Cf. Direito Constitucional, 4.ª ed., pp. 539 e 540; itálicos meus.]
Portanto, há que distinguir «responsabilidade política» de «relações de subordinação» e concluir que o «poder executivo» não é um poder subordinado ao «poder legislativo». O Governo responde perante a AR, mas só nos termos e nos casos em que a Constituição o estabelece.
Ora, não há preceito constitucional que permita à AR «ordenar» ao Governo que legisle quer em matéria da sua exclusiva competência, quer em matéria de competência concorrencial. Logo, não pode haver «injunção» quer num caso, quer noutro.
Sendo assim, se a AR preferir tais «determinações», o Governo não fica obrigado a cumpri-las em qualquer plano (jurídico ou político), porque as referidas «ordens» não podem ser havidas como «autorizações legislativas» ou «recomendações», uma vez que são dadas sem credencial constitucional. Só este entendimento harmoniza o «princípio da divisão de poderes» com a responsabilidade do «poder executivo» perante o «poder legislativo» nos regimes parlamentares e semipresidencialistas. Se o Governo for confrontado com situações do tipo das referidas, não fica obrigado a cumprir, porque inexiste não só dever jurídico, como também dever político. Se o Parlamento excede os seus poderes, se invade indevidamente a esfera de acção de outro órgão de soberania, carece de competência para o fazer, quer no plano jurídico quer no político.
Outro entendimento conduziria à inobservância de um dos princípios fundamentais do Estado de direito que é o da divisão de poderes entre órgãos de soberania (v., por todos, O Sistema de Governo Semipresidencial, já citado a fl. 23).
Por estes fundamentos, os actos assim praticados estão eivados de vício de inconstitucionalidade por violação dos artigos 113.º e 114.º da CRP.
No artigo 58.º determina-se:
O Governo proporá à Assembleia da República, com carácter de urgência, um conjunto articulado de incentivos fiscais ao turismo, designadamente de exportação.
Existe uma certa nuance entre esta norma e as demais. É que nela não se impõe ao Governo uma obrigação de legislar, mas sim de apresentar propostas de lei. É irrecusável que o Governo, no exercício de funções políticas, tem competência para apresentar propostas de lei à AR, de harmonia com a alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º da Constituição. Discute-se apenas se tal competência é autónoma e, portanto, livremente exercida. Não se pode deixar de concluir pela afirmativa. Com efeito, a proposta de lei é a forma que reveste a iniciativa do Governo perante a AR, de harmonia com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º e n.º 1 do artigo 170.º, ambos da Constituição. No entanto, tal competência só pode ser exercida mediante resolução do Conselho de Ministros, conforme dispõe o artigo 203.º, n.º 1, alínea c) (cf. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º vol., p. 293). Ora, tratando-se de iniciativa legislativa originária que compete apenas ao Governo, não pode a AR, por sua iniciativa, impor ao Governo que tome tal iniciativa (v., a propósito, o que Canotilho e Vital Moreira escreveram acerca das autorizações legislativas a fl. 204 da obra e volume citados). Daí que continua infringir-se o disposto nos artigos 113.º e 114.º, e agora também o n.º 1 do artigo 170.º, a alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º e a alínea c) do n.º 1 do artigo 203.º, todos da Constituição.
No artigo 87.º ficou consignado:
De acordo com a Resolução da Assembleia da República n.º 26/86, de 3 de Novembro, é nula a cessação dos contratos de trabalho operada por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 209-A/87, de 28 de Julho, com reposição em vigor, para todos os efeitos, dos contratos de trabalho em que sejam parte a CNP, E. P., vigentes à data da entrada em vigor do referido decreto-lei, com garantia aos trabalhadores dos direitos e regalias adquiridos.
Diz-se na petição que este norma afronta o disposto no artigo 172.º da Constituição sobre os efeitos da recusa de ratificação pela AR de um decreto-lei, efeitos esses que são, nos termos do preceito constitucional citado, meramente ex nunc.
Entendo, porém, que não se devia tomar conhecimento do pedido em relação a esta norma. Já noutra ocasião sustentei que o T. Const. não tinha competência para conhecer dos recursos em que estivessem em causa as denominadas «leis medida» (cf. o Acórdão 26/85, in Diário da República, 2.ª série, n.º 96, de 26 de Abril de 1985).
Ali se escreveu:
É conhecida a polémica doutrinária em torno da questão relativa às características essenciais das normas jurídicas, designadamente no que respeita ao problema de saber se o conceito de norma se deve restringir aos comandos gerais e abstractos ou se, pelo contrário, se deve estender igualmente aos comandos individuais e concretos.
Não tenho hesitações em entender o que é norma jurídica. A definição tradicional de norma jurídica. é a seguinte: «Comando (ou regra de conduta) geral, abstracto e convencional, ditado pela autoridade competente.»
É duvidosa a caracterização da norma jurídica como imperativo. Não há motivos suficientes, porém, para lhe recusar a generalidade e a abstracção. O geral contrapõe-se ao individual e o abstracto ao concreto.
Uma lei (no sentido de norma) não pode nunca ser individual e concreta, pois, de outro modo, violar-se-ia o princípio da igualdade perante a lei.
A propósito das chamadas «leis medida», Mário Esteves de Oliveira escreve:
Recusamo-nos a aceitar que tais actos individuais e concretos provenientes de órgãos legislativos, não obstante serem tomados sob a forma de «lei», possam ser considerados, sem mais, como manifestações de função legislativa: a generalidade e a abstracção da norma legal não são dogmas do liberalismo, fruto do pensamento rousseauniano, mas a verdadeira trave mestra de um Estado de direito [...] (V. Direito Administrativo, vol. 1.º, p. 22.)
Portanto, tem de se antender a um conceito material de norma, e não formal.
Noutro momento, com inteira pertinência, o mesmo autor escreve:
Será de aceitar a afirmação de que, por dimanarem de um órgão legislativo e serem praticados sob a forma de lei, tais diplomas, mesmo que contenham actos materialmente administrativos, se devem considerar como actos legislativos?
Não nos parece.
É que, segundo julgamos, está constitucionalmente consagrada entre nós a obrigatoriedade de distinguir as funções estaduais de acordo com critérios materiais, e não com base em considerações orgânico-formais.
E, se assim for - como esperamos poder demonstrar -, não hão-de ser a forma ou a origem dos actos estaduais que servirão como critérios para determinar que função se exerceu através deles; ao invés, será o seu conteúdo o critério decisivo para esse efeito.
Confrontem-se, a este propósito, os artigos 201.º e 202.º da CRP.
Aí se diz: «Compete ao Governo»:
Artigo 201.º: no exercício de funções legislativas, fazer decretos-lei;
Artigo 202.º: no exercício de funções administrativas, fazer regulamentos e praticar actos [alíneas c), e) e g)].
É quanto basta para demonstrar que o nosso legislador constituinte tomou a função estadual exercida como critério para a determinação da forma do acto, e não esta como índice daquela: só quando exerce funções legislativas é que o Governo está autorizado a fazer decretos-leis.
Do mesmo modo para a função administrativa: quando a exerce, o Governo deve praticar «actos» ou fazer «regulamentos», não podendo enveredar pelas formas próprias do exercício da função legislativa (os decretos-leis).
Constitucionalmente, não pode, portanto, qualificar-se como lei o comando emanado no exercício da função administrativa.
O que aqui se disse para o Governo vale igualmente para os diplomas dimanados da AR: também aí, a forma legislativa só pode ser usada no exercício de funções legislativas - é o que resulta da conjugação do n.º 2 do artigo 169.º com as alíneas b), c) e d) [e, eventualmente, a alínea g) também] do artigo 164.º
Quer dizer que entre nós os órgãos legislativos não gozam de liberdade para escolher a forma de dar aos seus actos: antes devem utilizá-la consoante a competência que exercem em cada manifestação da sua vontade.
Em conclusão: a lei e o decreto-lei que contém actos pertencentes à função administrativa não podem qualificar-se, constitucionalmente, como diplomas legislativos.
E será verdadeiro o outro argumento segundo o qual o Governo e a AR podem optar, nos diplomas legislativos, por uma formulação individual e concreta, já que nada obriga a que as leis tenham um conteúdo geral e abstracto?
Também aqui nos parece passível de crítica a posição jurisprudencial.
Em primeiro lugar notar-se-á a fragilidade lógica do argumento jurisprudencial, que bem pode dizer-se estar eivado de petição de princípio, porque o que está em causa - e é necessário demonstrar - é, precisamente, saber se a lei pode deixar de ser geral e abstracta.
Depois, julgamos que a afirmação de que a lei pode ter conteúdo individual e concreto deve ser confrontada com alguns princípios constitucionais, nomeadamente com o artigo 13.º, n.º 1.
Aí se contém o chamado «princípio da igualdade perante a lei».
O sentido generalizadamente aceite desse princípio é o de que por ele se vincula o legislador a tratar de modo igual aquilo que é essencialmente igual: a lei deve, pois, conter disciplina jurídica semelhante para todas as pessoas ou situações que revistam as mesmas características de facto, não sendo constitucionalmente legítimo dar um determinado tratamento a umas e não o assegurar igualmente em relação às outras.
Ora, uma lei individual e concreta que sujeita a certa disciplina jurídica um ou vários cidadãos individualizados, uma ou várias situações especificadas, viola o referido princípio da igualdade, na medida em que deixa, ou pode deixar, fora dessa disciplina outros cidadãos ou outras situações factualmente iguais e que mereceriam, portanto, o mesmo tratamento jurídico.
Para que se possa considerar observado o princípio do artigo 13.º da CRP é necessário, portanto, que o pressuposto ou requisitos através dos quais se definem as pessoas e as situações abrangidas sejam indicados de forma abstracta: o princípio de igualdade será respeitado se a lei disser, por exemplo, que «os proprietários urbanos com rendimento superior a 1000 contos pagarão 20% de contribuição predial». Mas, se a lei tiver um conteúdo individual e concreto - «A pagará 20% de contribuição predial urbana quando o seu rendimento seja superior a 1000 contos» -, é evidente que o princípio da igualdade foi infringido por não se sujeitarem à mesma taxa os restantes proprietários com iguais rendimentos prediais e urbanos.
É certo que à posição aqui defendida pode ser oposto um argumento a contrario retirado do n.º 3 do artigo 18.º da CRP, nos termos do qual «as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto». Se assim é, dir-se-ia, as outras leis, aquelas que não são restritivas dos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição, podem deixar de revestir carácter geral e abstracto.
Contra esta maneira de argumentar deve, porém, contrapor-se a manifesta e consabida falibilidade dos raciocínios a contrário sensu, nomeadamente quando desacompanhados de qualquer outra razão de ordem formal ou material, como é o caso.
E no sentido inverso - portanto, no sentido por nós proposto militam algumas outras razões.
Assim, o n.º 2 do artigo 16.º da CRP, manda interpretar os preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias - entre os quais se encontra o princípio da igualdade perante a lei - de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ora, esta consagra inequivocamente, no seu artigo 7.º, o entendimento de que «a igualdade perante a lei» é também «direito, sem distinção, a uma igual protecção da lei».
Do que precede podemos, pois, concluir que não existe para o legislador a tal liberdade de opção entre o preceito geral e abstracto ou o comando individual e concreto; constitucionalmente, a lei tem de revestir carácter geral e abstracto, sob pena de violação do princípio da igualdade.
Isto não quer dizer, obviamente, que o legislador não tenha liberdade para escolher, dentro de cada situação da vida real, aqueles requisitos que considera determinantes para efeitos de delimitar o âmbito da previsão legal, daí resultando que a extensão desta possa ser maior ou menor. Não viola o princípio da igualdade, evidentemente, uma lei de expropriação que se aplique apenas aos «proprietários de prédios rústicos não cultivados no Alentejo», na medida em que a previsão legislativa continua a ser formulada por forma geral e abstracta, o que torna possível que qualquer cidadão (ou prédio) se encontre, ou possa vir a encontrar, no âmbito da disciplina legal.
Finalizando, dir-se-á que, do nosso ponto de vista, um diploma que contenha um acto materialmente administrativo, ainda que seja emanado sob a forma legislativa, não pode considerar-se uma manifestação da actividade legislativa por a isso se oporem o princípio da distinção material das funções estaduais e o princípio da igualdade, consagrados nos artigos 164.º, 169.º, 201.º e 202.º e no artigo 13.º, todos da CRP. (Cf. Direito Administrativo, cit. pp. 24 e segs.)
Duvidoso será até que se esteja perante uma «lei medida».
Jorge Miranda, que admite a possibilidade da lei individual, não deixa, porém, de estabelecer restrições, ao escrever:
Não recusamos, porém, a possibilidade de lei individual, de lei directa ou aparentemente individual, contanto que por detrás do comando aplicável a certa pessoa possa encontrar-se uma prescrição ou um princípio geral.
Tudo parece estar em saber se a razão da medida concreta e individual que se decreta (tal como o da lei posta perante a Constituição flexível) leva consigo uma intenção de generalidade, se corresponde a um sentido objectivo, a um princípio geral, por virtude do qual se alarga o âmbito da lei de maneira a abranger aquela medida, ou se, pelo contrário, se esgota na aplicação ou execução do que outra lei formal e material dispõe (ou disporia), sem exprimir um novo juízo de valor legal.
Uma coisa é então a lei individual ainda reconduzível ao cerne da generalidade, implícita ou indirectamente; outra coisa o acto administrativo sob forma de lei, simples decisão de um caso concreto e individual, simples aplicação de regra preexistente e só válida se com ela se conforma. Entretanto, a distinção nem sempre é fácil e nem sempre é feita. [Cf. Nos Dez Anos da Constituição, p. 180].
No caso parece que não se pode encontrar um princípio geral ou dizer-se que a «medida concreta» leva consigo uma «intenção de generalidade».
De todo o modo, recusamos às denominadas «leis medida» a natureza de norma jurídica, que o T. Const. É incompetente para conhecer do vício que às mesmas possa ser atribuído.
VII - Em relação às normas não estritamente orçamentais deve dizer-se: sustenta o Governo que a competência da AR para aprovar o Orçamento, embora exercida sob a forma de lei, é distinta da competência legislativa em sentido próprio e que o Orçamento não é o instrumento constitucionalmente idóneo para o exercício de outras competências que não a prevista na parte final da alínea g) do artigo 164.º da Constituição. E acrescenta que, apesar de a prática constitucional demonstrar alguma maleabilidade na utilização da lei do orçamento, dessa mesma prática se extrai com clareza a exigência de um mínimo de respeito pelo princípio do artigo 108.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, ou seja, pela ideia de que é vedada a inclusão nessa lei de disposições que não tenham qualquer relação específica com as disposições estritamente orçamentais nela contidas.
É a esta luz que, por violação dessa exigência, o Primeiro-Ministro argúi a inconstitucionalidade dos artigos 25.º, n.os 1, 2, 3 e 4, 70.º, n.os 1 e 2, 87.º, 88.º e 89.º da Lei 49/86.
No acórdão decidiu-se que nada obsta a que no orçamento se incluam normas que não tenham qualquer conexão com as disposições nele contidas.
Continua a discordar, pelas razões constantes do meu projecto de acórdão, da doutrina que obteve vencimento. Irei agora reproduzi-las.
Não há dúvida de que as leis orçamentais incluem correntemente no seu articulado disposições que vão muito para além da aprovação dos mapas de receitas e despesas e que, nesse sentido, não têm um imediato objectivo ou alcance financeiro.
Tal prática é reconhecida como lícita pela doutrina dominante, porquanto deixou de ser controvertido que o Orçamento é uma lei (Cf. Cardoso da Costa, Sobre as Autorizações Legislativas, p. 9).
Sobre o ponto é elucidativo o que escreve A. Lobo Xavier (em estudo já citado várias vezes), versando, em especial, o aspecto das normas «fiscais» inscritas na lei do orçamento:
Para as concepções formalistas do acto de aprovação parlamentar do Orçamento - segundo as quais o referido acto, porque formal, não pode conter regras jurídicas -, a introdução de preceitos fiscais, ou de outra ordem, no documento orçamental seria inaceitável (cf., a propósito, o já citado artigo 81.º, III, da Constituição italiana). Sem querer, aqui, ir longe no tratamento deste tema, apenas diremos que a doutrina, entre nós, discutindo a natureza formal ou material do acto normativo que consubstancia a intervenção parlamentar no ciclo orçamental, tem-se inclinado para a última destas teses, sobretudo argumentando com o amplo poder de configurar o Orçamento que aos parlamentares pertence.
Mesmo assim, poder-se-ia discutir a bondade da inclusão de preceitos fiscais no Orçamento, em nome da inconveniência dos chamados cavaliers budgétaires ou riders. Com estas expressões têm-se designado matérias sem imediata incidência financeira que se incluem no Orçamento - quando reclamam, pela sua própria natureza, um processo legislativo autónomo - com o intuito de aproveitar um procedimento mais expedito ou, ainda, com a intenção de beneficiar da proverbial distracção parlamentar aquando dos longos debates orçamentais.
Entre nós não há qualquer disposição constitucional ou legal que proíba a inclusão no Orçamento destes cavaliers budgétaires: Os artigos 10.º e 11.º da Lei 40/83, que se referem ao conteúdo da proposta de lei do orçamento, longe de estabelecerem um verdadeiro numerus clausus dos elementos do Orçamento, parecem antes indicar o conteúdo necessário daquele documento - porventura um conteúdo que apenas pode ter lugar no Orçamento -, sem impedirem a inclusão de outras matérias.
Sem embargo de em termos que, realmente, o Orçamento não deve incluir o tratamento de matérias que não estejam com ele estreitamente conexas, não nos inclinamos, de forma alguma, para considerar as autorizações legislativas sobre matéria fiscal - que faziam parte das leis do orçamento e fazem parte, hoje, do Orçamento - como algo de estranho, por natureza, àqueles documentos ou como disposições sem imediata expressão financeira. Julgamos, bem ao contrário, que a prática discutida, como Cardoso da Costa já salientou, contribui para a compreensão do programa financeiro do Executivo, sendo, portanto, aceitável que este queira revelar a vertente fiscal de tal programa através da formulação de pedidos de autorização legislativa, inseridos na proposta de orçamento. [Cf. Revista de Direito e Economia, ano 9.º, n.os 1 e 2, pp. 231 e segs.]
À licitude constitucional de inclusão na lei do orçamento de disposições não orçamentais não pode deixar, porém, de estabelecer-se um limite. E esse é o de que tais disposições hão-de ter algum relacionamento com a matéria orçamental, com a função do Orçamento, com a finalidade da respectiva lei. É de exigir, pois, que as questões versadas nessas normas - para ser legítima a sua inserção nesta lei - tenham a ver directa ou, pelo menos, indirectamente (e isto já é conceder) com a sua meteria e finalidade; quanto àquelas que não tenham qualquer ligação com esta matéria, não poderão constar do Orçamento. E isto porque, sendo o Orçamento uma lei especial que só pode ser alterada por proposta do Governo, o alargamento do seu âmbito para além das matérias que preenchem a sua função vem a traduzir-se, em relação às matérias excrescentes, numa limitação da competência da AR e da liberdade de iniciativa parlamentar (cf. A. Lobo Xavier no local citado, a fl. 232).
A abertura consentida pela orientação vencedora retira ao Orçamento a sua própria natureza. O Orçamento é, por definição, um mapa de previsão de receitas e despesas. Se nele se pudessem incluir normas de toda a natureza, sem a mínima conexão com as matérias que preenchem a sua função, seria o caos.
Que dizer então, à luz destas considerações, das várias normas antes referidas?
a) Quanto ao artigo 25.º, n.os 1, 2, 3 e 4, afigura-se ser razoável a inclusão na lei orçamental do primeiro desses preceitos, mas não dos restantes.
O n.º 1, com efeito, também tem a ver com o gasto de dinheiros públicos (é uma proibição de gastos com certa finalidade) e ainda pode dizer-se relacionado, pois, com a orçamentação das despesas; mas já as normas dos n.os 2, 3 e 4 não têm a mínima relação com o Orçamento. A sua inclusão na Lei 49/86 traduz-se, pois, numa violação do n.º 1 do artigo 108.º da Constituição.
Em relação ao artigo 70.º, sustenta o Sr. Primeiro-Ministro que só matérias «substancialmente tributárias», e não «as de processo tributário», podem ser incluídas no Orçamento. Não se vê razão suficiente, porém, para se abrir a distinção pretendida. Com efeito, tanto as matérias substancialmente tributárias como as de direito adjectivo tributário podem ter relação com a previsão orçamental das receitas do Estado, podem ter reflexos na mesma. Por isso, não padece de inconstitucionalidade a norma em apreço.
O artigo 87.º, visto à luz do conteúdo possível da lei orçamental, afigura-se não poder deixar de se concluir pela sua inconstitucionalidade, por tratar-se de disposição sem nada a ver com a função e a finalidade de tal lei.
Isto que se diz do artigo 87.º valerá igualmente para o artigo 88.º
b) No artigo 89.º estipula-se:
1 - As alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 100/86, de 17 de Maio, passam a ter a seguinte redacção:
d) Para a 5.ª fase - de 21 anos de bom e efectivo serviço docente prestado no ensino oficial ou equiparado;
e) Para a 6.ª fase - de 25 anos de bom e efectivo serviço docente prestado no ensino oficial ou equiparado.
Também no caso vertente é fácil reconhecer que o limite máximo do conteúdo da lei orçamental é ultrapassado. Com efeito, o artigo 89.º não tem a mínima conexão com a matéria que preencha a função de um orçamento do Estado. Daí mostrar-se violado o n.º 1 do artigo 108.º da Constituição.
Em síntese, as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 25.º, bem como as normas dos artigos 87.º, 88.º e 89.º, padecem de inconstitucionalidade por violação do n.º 1 do artigo 108.º da Constituição.
Por todos estes fundamentos fiquei vencido.
Lisboa, 17 de Dezembro de 1987. - José Martins da Fonseca.
Declaração de voto
Pelas razões constantes das declarações de voto que fiz nos Acórdãos n.os 26/85, de 15 de Fevereiro (no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1985), 150/86, de 30 de Abril (no Diário da República 2.ª série, de 26 de Julho de 1986), e 405/87, de 6 de Outubro (no processo 57/87), entendo que o artigo 87.º do diploma em apreciação não reveste a natureza de «norma» para efeito de fiscalização de constitucionalidade: nesse ponto, não tomaria, pois, conhecimento do pedido, por incompetência do Tribunal. - Mário de Brito.
Declaração de voto
1 - Não votei a decisão constante da conclusão do n.º 2, alínea b), sobre a inconstitucionalidade do artigo 25.º, n.º 4, quanto à exigência de um parecer prévio favorável do CCS sobre o conteúdo das mensagens publicitárias promovidas pelo Governo e pela Administração Pública.
Não compartilho do entendimento de que um tal requisito contenda indevidamente com os poderes constitucionais do Governo. Em primeiro lugar, julgo necessário sublinhar que essa norma não afectaria a liberdade de decisão do Governo quanto à necessidade e oportunidade de recorrer a meios publicitários com fins informativos; é evidente que tal parecer do CCS não poderia interferir no se e no quando da decisão, ficando inteiramente preservada a liberdade de decisão político-administrativa do Governo. Depois, no meu modo de ver as coisas, a intervenção do CCS estaria limitada à verificação da conformidade do conteúdo da mensagem publicitária com os critérios legais enunciados nos anteriores números do mesmo artigo 25.º, designadamente o n.º 2; portanto, o Conselho seria chamado a pronunciar-se não sobre a oportunidade ou conveniência da decisão governamental de recorrer à publicidade, mas apenas sobre o conteúdo da mensagem publicitária em si mesma, e, mesmo aqui, tão-somente quanto ao respeito pelos critérios legais, e não quanto a qualquer outro aspecto. Em terceiro lugar, o CCS limitar-se-ia a dar parecer positivo ou negativo (isto é, verificaria apenas se a mensagem proposta pelo Governo é ou não conforme à lei), não tendo qualquer poder para propor um texto alternativo, ou seja, para se substituir ao Governo na elaboração da mensagem. Finalmente, mesmo no caso de o Conselho dar parecer negativo, isso apenas obrigaria o Governo a substituir aquela mensagem por outra que se conformasse com os requisitos legais, não ficando de modo nenhum materialmente condicionado pelo Conselho quanto ao conteúdo da nova mensagem nem, muito menos, impedido de levar a cabo a publicitação desejada.
Em suma, não vejo nenhuma razão para a afirmação do acórdão segundo a qual o Governo ficaria vinculado, nessa matéria, «não apenas aos limites e critérios definidos pelo legislador no n.º 2, mas ainda aos critérios do dito Conselho». Tenho por evidente que a única coisa que o dito Conselho poderia fazer seria justamente verificar a observância dos critérios da lei, não podendo formular critérios suplementares e conduzir-se de acordo com eles. De qualquer modo, mesmo que o preceito consentisse a interpretação suposta no acórdão, nada impediria uma interpretação restritiva, conforme à Constituição.
Por tudo isto, é ilegítimo censurar a referida disposição por ela supostamente limitar a discricionariedade política e administrativa do Governo e da Administração. Nada disso está na disposição censurada. A única coisa que ela determinava era que um órgão constitucional independente - aliás oriundo da AR - controlasse previamente a conformidade do conteúdo das mensagens publicitárias do Governo e da Administração com certos critérios legais, cuja legitimidade é inquestionável (como, aliás, se reconhece no acórdão). Não vejo o que é que há nisso de constitucionalmente intolerável.
2 - Também não acompanhei a decisão constante da 1.ª conclusão do acórdão, na parte em que conclui pela não inconstitucionalidade das normas cujo objecto é alheio à matéria orçamental (designadamente os artigos 25.º, salvo o n.º 5, 70.º, 87.º, 88.º e 89.º).
Na minha opinião, a lei do orçamento não pode conter mais do que o Orçamento, nas componentes que decorrem do artigo 108.º da CRP. A função constitucional da lei do orçamento é aprovar o Orçamento e o conteúdo do Orçamento está definido no artigo 108.º
A lei do orçamento não é uma lei como as outras. A iniciativa legislativa cabe em exclusivo ao Governo; é uma lei necessária e obrigatória; é feita para um ano, caducando automaticamente com a sua execução (salvo aprovação tardia do Orçamento para o ano subsequente); tem processo especial de elaboração e execução; há-de observar uma lei quadro específica (a chamada «lei de enquadramento orçamental»), bem como respeitar as obrigações financeiras decorrentes de leis anteriores; só pode ser alterada mediante proposta do Governo.
A lei do orçamento é, pois, uma lei específica. O seu regime constitucional não se compadece com a inserção de matérias alheias ao objecto constitucional da lei do orçamento, ou seja, de matérias que devam ser objecto de lei comum. Pois de duas, uma: ou valeria para esses enxertos estranhos também o regime específico da lei do orçamento (inalterabilidade, salvo por proposta do Governo, anualidade, etc.), e então a AR ficaria ilegitimamente limitada na sua liberdade de alteração legislativa em matérias constitucionalmente «livres»; ou se admitiria - como se admite no acórdão - que nessas áreas a lei do orçamento fica sujeita ao regime comum, e então cai-se, necessariamente, na descaracterização da lei do orçamento, que passaria a ser lei do orçamento e lei de tudo o mais que, por motivos de conveniência e oportunidade política a maioria de cada momento resolvesse introduzir na lei do orçamento.
Tenho por seguro que isso se traduz num claro abuso da função constitucional da lei do orçamento e que não é admissível que esta possa legitimamente servir para «contrabandear» soluções legislativas estranhas à matéria orçamental, à revelia das regras comuns da legiferação, que passam pela iniciativa legislativa originária, pela sua publicação e conhecimento público, pela discussão e votação na generalidade, pela apreciação na comissão especializada competente, pela discussão e votação na especialidade, pela votação final global, tudo num processo que dá garantias de publicidade, ponderação e votação autónoma. Tudo isto é infringido nesses enxertos exógenos à lei do orçamento, que normalmente são feitos em comissão, à última da hora, sem publicidade e discussão prévia, votados globalmente no final, com o conjunto da lei do orçamento, fazendo vingar, de forma expedita, propostas não amadurecidas, impossibilitando ou dificultando a sua discussão autónoma (dado o processo de tempo limitado na discussão orçamental), limitando ou vedando o exercício do veto presidencial e o controle preventivo de constitucionalidade em relação a elas (pois isso atrasaria ou poria em cheque a entrada em vigor do Orçamento).
Não é difícil antecipar que, com a generalização deste expediente, a lei do orçamento passaria a ser um veículo de promoção de «golpismo legislativo», de aprovação de soluções que, em iniciativa legislativa autónoma, não seriam aprovadas ou não o seriam nos mesmos termos, ou não o seriam sem publicidade crítica. Com o aproveitamento dessa faculdade, a lei do orçamento passaria a ser não apenas a lei do orçamento, mas também a lei de revisão geral anual da ordem jurídica, com possibilidade de intromissões em todas as áreas desta (em última instância não estaria excluída a utilização da lei do orçamento para aprovar, por exemplo, um novo Código Penal ou um novo Código de Estrada...).
Não consigo aceitar que isto seja constitucionalmente admissível.
Nem se diga que a Constituição é omissa a este respeito, pois considero que não é preciso grande esforço de interpretação do artigo 108.º da CRP para concluir que a lei do orçamento é a que aprova o Orçamento do Estado e que o Orçamento está constitucionalmente definido no mesmo preceito constitucional.
Seguramente que não basta que uma solução seja doutrinalmente censurável e politicamente intolerável para ser inconstitucional. Mas afigura-se-me que, no caso concreto, para além de tal prática ser «discutível e até censurável sob o ponto de vista doutrinário ou de técnica legislativa» - como se admite no acórdão -, ela é também igualmente censurável sob o ponto de vista jurídico-constitucional. - Vital Moreira.
Declaração de voto
1 - O princípio da separação de poderes, «modernamente» afirmado por Locke e Montesquieu - que, aliás, nunca defenderam uma separação rígida dentro da tríade clássica dos poderes públicos (legislativo, executivo e judicial) -, informa hoje, apenas em termos tendenciais, o sistema jurídico-político português de órgãos de soberania.
Que assim é decorre desde logo dos artigos 113.º e 114.º da CRP, que de seguida se transcrevem:
Artigo 113.º
(Órgãos de soberania)
1 - São órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais.
2 - A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição.
Artigo 114.º
(Separação e interdependência)
1 - Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição.
2 - Nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou do poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei.
Destes preceitos constitucionais decorre, nomeadamente:
a) Que a competência dos órgãos de soberania (Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais) é a definida na CRP (artigo 113.º, n.os 1 e 2);
b) Que os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na CRP (arigo 114.º, n.º 1);
c) Que nenhum órgão de soberania, a não ser nos casos previstos na CRP pode delegar os seus poderes noutros órgãos (artigo 114.º, n.º 2).
No quadro das relações que a CRP genericamente estabelece, nos artigos 113.º e 114.º, entre órgãos de soberania são, pois, destacáveis dois vectores essenciais:
Em regra, rege entre eles o princípio da separação de competências;
Excepcionalmente, pode registar-se uma certa interdependência no seu relacionamento, com intromissões recíprocas ou unilaterais, mas sempre pelos modos e formas previstos na CRP (a delegação de poderes é, aliás, disso um claro exemplo).
Partindo desta perspectiva estrutural do nosso sistema político e tendo em conta as implicações daí decorrentes, designadamente no plano da articulação funcional dos vários poderes públicos que a CRP diferenciadamente estabelece, divergi, em alguns pontos, do acórdão a que esta declaração de voto se acha apendiculada.
Essas divergências ocorreram em dois planos: umas vezes, apenas ao nível da fundamentação de decisões com que alinhei; outras vezes, mesmo ao nível das próprias decisões.
De seguida se concretizarão, para uns e outros casos, as razões do meu relativo afastamento do acórdão.
3 - Eis, pois, quanto a cada uma das normas questionadas pelo Primeiro-Ministro, o meu posicionamento:
a) Artigo 10.º, n.º 5, da Lei 49/86, de 31 de Dezembro
Considerei que esta norma não era inconstitucional, tal como, aliás, se entendeu no acórdão. No entanto, não secundei a motivação conducente à decisão consequente.
Brevemente se dirá porquê.
No n.º 5 do artigo 10.º concede-se espontaneamente autorização ao Governo, ou seja, sem este a haver pedido, para legislar no sentido de definir o regime de aposentação antecipada e bonificada para os trabalhadores da administração central, regional e local, tomando por base, isto é, por modelo, o regime contido na Lei 9/86, de 30 de Abril (ou, mais precisamente, o regime constante do artigo 9.º, n.os 6, 7 e 8, dessa lei). Permite-se, pois, que o Executivo legisle em domínios próprios da reserva relativa de competência legislativa da AR [cf. o artigo 168.º, n.º 1, alínea u)].
Ora, já no Acórdão 48/84 do T. Const. (Acórdãos, 3.º vol., p. 7), a propósito de um caso semelhante, se entendera que não perdia a natureza de autorização legislativa a que era concedida por norma redigida de forma injuntiva para o Governo, embora tal injunção só valesse no plano político, podendo o Governo, no plano jurídico, utilizar ou não utilizar a autorização, conforme melhor entendesse.
Sob tal óptica, e considerando que esta «intromissão» da AR na área do Governo corresponde a uma das formas constitucionalmente previstas como de interdependência no relacionamento entre órgãos de soberania (a autorização legislativa a que se refere o artigo 168.º, n.os 1, 2 e 3, da CRP consubstancia afinal a uma delegação de poderes do Parlamento no Executivo), teve-se por não violado o princípio da separação de poderes decorrente dos artigos 113.º e 114.º da CRP.
b) Artigo 10.º, n.º 8
Igualmente aqui emparelhei com o acórdão, enquanto decidiu não declarar a inconstitucionalidade da norma, mas já não fui de par com ele no plano da fundamentação. De imediato se explicará o porquê da divergência.
Determina-se no n.º 8 do artigo 10.º que o Governo aprovará legislação tendente a não permitir a admissão e a renovação do exercício de funções remuneradas, no âmbito dos serviços da administração central e local, de pessoal aposentado, reformado ou abonado de pensão de reserva, bem como beneficiários de pensão atribuída por instituições de segurança social, exceptuando a modalidade de contrato de prestação de serviço regulado pela lei civil.
Nesta norma de duplo alcance, a AR, por um lado, fixou determinada base de um regime jurídico (estabelecendo a regra, que comporta uma única excepção da não admissão e da não renovação do exercício de funções remuneradas, na função pública quanto a dada categoria de cidadãos), ou, mais precisamente, fixou uma das bases do regime jurídico da função pública, matéria que constitucionalmente lhe está reservada [artigo 168.º, n.º 1, alínea u), da CRP] e, por outro lado, incumbiu o Governo de proceder ao seu ulterior desenvolvimento.
Vendo as coisas por este ângulo, forçoso é concluir que tudo se passa normalmente, ou seja, no domínio do relacionamento articulado da AR com o Governo, tal como a CRP nesta situação particular, o contempla [v. o artigo 201.º, n.º 1, alínea c), da CRP, onde se dispõe que compete ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis de desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a elas se circunscreveram].
Sendo assim, não se verifica violação, também aqui, do princípio da separação de poderes afirmado nos artigos 113.º e 114.º da CRP.
c) Artigo 14.º, n.º 2
Escreveu-se no acórdão, a propósito deste preceito, o seguinte:
Quanto ao artigo 14.º, n.º 2, por sua vez, está-se perante uma disposição decorrente do facto de, no número anterior, a AR haver fixado em 4000 milhares de contos a dotação específica destinada a assegurar, no exercício orçamental de 1987, o financiamento do «novo regime legal de dedicação exclusiva dos docentes do ensino superior e do pessoal de investigação científica», que ela pouco antes estabelecera (Lei 6/87, de 27 de Janeiro, mas votada em 20 de Novembro de 1986). Consciente da insuficiência de tal verba para uma integral aplicação desse novo regime, ou pelo menos admitindo essa insuficiência, a Assembleia previu então que a utilização dela fosse objecto, no exercício em causa, de uma regulamentação específica, no tocante às diuturnidades especiais daquele pessoal, que justamente foram inovatoriamente introduzidas pela Lei 6/87. Ou seja: a Assembleia previu que no ano de 1987 este último diploma sofresse uma derrogação, no âmbito referido, de modo que a sua execução, nesse ano, se contivesse no limite orçamental previamente estabelecido.
Concorda-se totalmente com a interpretação que, numa breve perspectiva histórica, se fez de tal dispositivo da Lei 49/86. No entanto, desse particular posicionamento do artigo 14.º, n.º 2, no tempo jurídico se não retiram exactamente as mesmas consequências que no acórdão se retiraram.
Vêem-se, de facto nesse n.º 2 do artigo 14.º duas coisas distintas:
a) A afirmação de uma base do regime jurídico da função pública (os docentes do ensino superior e do pessoal da carreira de investigação científica, embora beneficiando, à partida, do regime de diuturnidades especiais da Lei 6/87, ao tempo já votada, delas só beneficiariam efectivamente, no decurso do ano de 1987, na medida em que tal fosse consentido pela dotação específica referida no n.º 1 do artigo 14.º); e
b) A determinação ao Governo de desenvolvimento dessa base.
A situação é, pois, similar à que se descreveu em relação ao artigo 10.º, n.º 8, da Lei 49/86, valendo aqui, mutatis mutandis, as considerações então feitas. Reacentua-se apenas um ponto, qual seja o de que, nos termos do artigo 201.º, n.º 1, alínea c), da CRP, o desenvolvimento de bases tem de ser feito por decreto-lei.
Deste modo, a imposição ao Governo de legislar por meio de decreto-lei, constante do artigo 14.º, n.º 2, não sai dos quadros constitucionais.
d) Artigo 18.º, n.º 2
Estatui o n.º 2 do artigo 18.º da Lei 49/86 que «durante o ano de 1987 o Governo adoptará as providências necessárias à elaboração dos orçamentos dos serviços dos registos e do notariado, procederá, mediante decreto-lei, à revisão dos critérios de gestão integrada dos Cofres mencionados no número anterior e concluirá as acções destinadas e adequar o respectivo regime financeiro aos princípios da unidade e da universalidade do Orçamento do Estado».
Pelo Primeiro-Ministro não é, no entanto, posta em causa a constitucionalidade de toda a norma, mas apenas a constitucionalidade do inciso que dispõe que «durante o ano de 1987 o Governo [...] procederá, mediante decreto-lei, à revisão dos critérios de gestão integrada dos Cofres mencionados no número anterior» (CGT e CCNFJ).
Em relação a tal inciso, votei, pelas razões de seguida expostas, a respectiva declaração de inconstitucionalidade.
No sistema da CRP, a função legislativa é repartida entre a AR e o Governo nos seguintes termos:
Há um conjunto de matérias, elencadas no artigo 164.º (actos políticos que revistam a forma de lei) e no artigo 167.º da CRP, em relação às quais é fixada uma reserva absoluta de competência legislativa em favor da AR (competência insusceptível de delegação);
Há um outro grupo de matérias, discriminadas no artigo 168.º da CRP, em relação às quais é estabelecida uma reserva relativa de competência legislativa em favor da AR (competência susceptível de delegação no Executivo);
Há ainda um restritíssimo sector de reserva absoluta de competência legislativa em favor do Governo, o referido no artigo 201.º, n.º 2, da CRP;
Fora destas áreas, a competência legislativa da AR e do Governo são concorrentes.
O inciso em exame do artigo 18.º, n.º 2, refere-se a matéria em relação à qual tanto poderiam legislar o Parlamento como o Executivo.
Daqui partindo, observa-se que tal inciso é susceptível de duas leituras, qualquer delas implicando a inconstitucionalidade. do preceito:
Ou, através dele, a AR delegou parte dessa competência legislativa concorrencial no Governo, que de seguida - procedendo legislativamente à revisão dos critérios de gestão integrada dos Cofres em causa - agiria, não por conta própria, mas por conta do Parlamento, e então a inconstitucionalidade adviria do facto de ali se haver praticado, em contravenção ao disposto no artigo 114.º, n.º 2, da CRP, uma delegação de poderes não autorizada;
Ou, através dele, a AR vinculou, ainda que apenas no plano político, o Governo à edição, por conta própria, de um decreto-lei em matéria que era da competência legislativa de ambos, sendo então inconstitucional a norma jurídica em causa, por ela envolver uma interferência não ortodoxa (isto é, não contemplada na CRP) do Parlamento sobre a competência do Executivo, que assim se viu coarctado na sua liberdade de iniciativa legislativa, ou, mais sinteticamente, por ela violar o princípio da separação de poderes consignado nos artigos 113.º e 114.º da CRP [observa-se, a propósito, que o T. Const. tem sistematicamente adoptado uma concepção formal de norma jurídica (v.º, por todos, os Acórdãos n.os 26/85 e 150/86, publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, n.os 96, de 26 de Abril de 1985, e 170, de 26 de Julho de 1986), observação que se faz, porquanto, em dados passos do acórdão a que esta declaração de voto se acha anexada, parece haver-se adoptado, ao arrepio daquela jurisprudência, uma concepção material de norma jurídica, sendo disto exemplo o passo em que, implicitamente, como que se sustenta que certos preceitos da Lei 49/86 não são autênticas normas jurídicas, pois que com eles se «teve simplesmente o propósito de formular um juízo sobre a necessidade ou conveniência do tratamento legislativo de determinada matéria e de simultaneamente devolver (ou devolver em primeira linha) ao Governo esse encargo (v. g., por razões de indisponibilidade temporal ou até por julgá-lo melhor habilitado para o efeito), 'convidando-o' a assumi-lo e a emitir os pertinentes diplomas»].
Por tudo isto me afastei, neste ponto, do decidido no acórdão.
e) Artigo 26.º, n.º 3
Reza o artigo 26.º, n.º 3, da Lei 49/86 que «serão objecto de debate na Assembleia da República as bases do sistema de informação sobre a situação económica e social, a cuja revisão o Governo procederá até ao termo do prazo previsto no número anterior».
O Primeiro-Ministro, no confronto deste preceito com a CRP, pôs em xeque unicamente o seu último inciso, precisamente aquele que determina que à «revisão [das bases do sistema de informação sobre a situação económica e social] o Governo procederá até ao termo do prazo previsto no número anterior».
Esse inciso refere-se a matéria que se situa no domínio da competência legislativa comum ao Parlamento e ao Executivo. A situação é em absoluto similar à do trecho do artigo 18.º, n.º 2, ulteriormente analisado.
Valem, pois, aqui, e de pleno, as considerações então expendidas. Assim, e repetindo o que atrás se disse, ou se trate de uma delegação de poderes, ou se trate de uma injunção ao Governo para legislar, sempre haveria inconstitucionalidade de tal inciso do artigo 26.º, n.º 3.
Deste modo, e neste passo, rejeitei a decisão final do acórdão.
f) Artigo 58.º
É o seguinte o texto do artigo 58.º:
O Governo proporá à Assembleia da República, com carácter de urgência, um conjunto articulado de incentivos fiscais ao turismo, designadamente de exportação.
A matéria de incentivos fiscais é da exclusiva competência da AR, salvo autorização ao Governo [artigo 168.º, n.º 1, alínea i), em articulação com o artigo 106.º, n.º 2, da CRP]. No entanto, em vez de tomar a iniciativa legislativa neste campo, através de deputados ou grupos parlamentares (artigo 170.º, n.º 1, da CRP), a AR determinou antes que fosse o Governo a apresentar-lhe uma proposta de lei.
Dispõe efectivamente esse artigo 170.º n.º 1, da CRP, [cf. ainda o artigo 200.º, n.º 1, alínea d)] que a iniciativa de lei parlamentar compete, entre outras entidades, ao Governo, cabendo ao Conselho de Ministros aprovar as propostas de lei [artigo 203.º, n.º 1, alínea c)]. Em princípio, essa iniciativa é livremente exercida pelo Executivo, constituindo excepções a esta regra os casos das propostas de lei do plano e do orçamento (artigos 94.º, n.º 2, e 108.º, n.º 3, da CRP).
Ora, o artigo 58.º da Lei 49/86, vinculando o Governo, ainda que só politicamente, mas através de uma norma jurídica, a apresentar uma proposta de lei a que este não estava constitucionalmente obrigado, envolve uma intromissão abusiva, isto é, não autorizada pela CRP, do Parlamento na esfera da competência do Governo.
Deste modo, entendi que a norma do artigo 58.º da Lei 49/86, contrariava o princípio da separação de poderes, destilável dos artigos 113.º e 114.º da CRP, e nesse sentido, no sentido da sua inconstitucionalização, foi o meu voto.
g) Artigo 88.º, n.º 1
Determina o n.º 1 do artigo 88.º da Lei 49/86 que «o regime de alienação de participações do Estado ou de qualquer fundo autónomo, instituto público, instituições de segurança social, empresa pública ou sociedade de capitais públicos no capital de sociedades será estabelecido mediante decreto-lei, o qual assegurará que a mesma se processe exclusivamente mediante concurso público e sob proposta do conselho de gestão competente».
Relativamente a esta norma, acompanhou-se o acórdão, enquanto nele se entendeu que não existia inconstitucionalidade formal, consistente no facto de a AR haver utilizado a Lei do Orçamento do Estado para 1987 para a veicular. No mais houve um afastamento praticamente total da argumentação que, a este respeito, nele se desenvolveu.
A norma em apreço respeita a matéria que se localiza naquela particular área de legislação em que as competências da AR e do Governo se sobrepõem. Como assim, a situação é de todo semelhante à do inciso médio do artigo 18.º, n.º 2, da Lei 49/86, cuja constitucionalidade foi investigada noutro lugar desta declaração de voto.
Tem aqui pleno cabimento a argumentação então desenvolvida, argumentação por via da qual se concluiu pela insolvência constitucional desse inciso do n.º 2 do artigo 18.º Assim, e na linha dessa mesma argumentação, se reitera uma vez mais, agora, no entanto, com referência à norma em apreciação no presente momento, que, ou se trate de uma delegação de poderes ou se trate de uma simples injunção ao Governo para legislar, sempre ocorrerá a inconstitucionalidade da norma do artigo 88.º, n.º 1.
Logo, o meu voto foi no sentido da sua inconstitucionalização.
h) Artigos 13.º, n.º 3, 16.º, n.º 3, 18.º, n.º 4, 19.º, n.º 2, 25.º, 70.º, n.os 1 e 2, 71.º, 87.º, 88.º, n.º 2, e 89
Quanto a estas normas, acompanhei plenamente o acórdão, quer no campo da fundamentação, quer no campo da decisão. - Raul Mateus.
Declaração de voto
A) O artigo 18.º, n.º 4
1 - O artigo 18.º da Lei 49/86, de 31 de Dezembro, depois de no seu n.º 1 revogar o artigo 21.º do Decreto-Lei 459/82, de 26 de Novembro, e sujeitar ao regime geral aplicável aos fundos e serviços autónomos a gestão das receitas e despesas do CGT, do CCNFJ, dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça e das demais administradas pelo GGFMJ, estatuiu no seu n.º 4 a seguinte disciplina:
O Tribunal de Contas apreciará a legalidade de todas as despesas autorizadas e pagas pelo Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça, bem como a eficiência da respectiva gestão económica, financeira e patrimonial.
No acórdão a que a presente declaração respeita ponderou-se primeiramente que o artigo 219.º da Constituição define a competência do TC em termos de se estabelecer um numerus clausus no tocante ao seu âmbito material típico. E ajuntou-se:
Dentro desse âmbito, poderá a lei ordinária intervir, para concretizar ou explicitar o «conteúdo» das faculdades nele incluídas, ou para definir os pressupostos e condições do seu exercício, e haverá até de fazê-lo para definir a «extensão» de uma dessas competências (a do julgamento das contas); mas o que lhe esta vedado - à lei ordinária - é alargar esse numerus clausus, outorgando ao Tribunal de Contas novas competências.
E na esteira deste entendimento logrou-se alcançar a conclusão seguinte:
[...] a Constituição concebe o TC como órgão destinado a exercer uma função de fiscalização, no domínio das finanças públicas, de carácter essencialmente jurídico e contabilístico: São certamente esses os aspectos contidos nas noções de «legalidade das despesas» e «julgamento das contas» (as únicas que, obviamente, importa aqui considerar). Ora, afigura-se bastante claro que apreciar a «eficiência» da «gestão económica, financeira e patrimonial» de um serviço ou organismo (no caso, financeiramente autónomo) é algo que vai muito para além disso, pois importa juízos de oportunidade, utilidade e conveniência acerca da utilização dos respectivos recursos e da administração do respectivo património, que notoriamente transcendem os planos antes mencionados. É algo [...] que vai muito para além de um «julgamento da conta», pois que neste apenas está em causa (di-lo o próprio conceito de «conta») o controle da veracidade e da justificação legal das respectivas verbas, bem como da conformidade do seu resultado final (em função do que ou se atesta tal conformidade ou se verifica a existência de faltas, desvios ou omissões, exigindo-se a correspondente responsabilidade a quem ela couber).
Por via desta conclusão, declarou-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do transcrito artigo 18.º, n.º 4, na parte em que atribui ao TC competência para apreciar a eficiência da gestão económica, financeira e patrimonial do GGFMJ, por violação do artigo 219.º, conjugado com o artigo 113.º, n.º 2, da Constituição.
O dissentimento desta visão das coisas escora-se nas razões que de seguida se deixarão assinaladas.
2 - O Decreto-Lei 459/82 dispõe sobre o regime geral da movimentação e utilização das receitas próprias, da organização e publicação dos orçamentos privativos e da prestação e publicidade das contas de gerência dos fundos e organismos autónomos e também dos serviços com autonomia administrativa, na parte em que elaboram orçamentos privativos para aplicação de receitas próprias, e dos organismos de coordenação económica cuja natureza o justifique.
Por força do seu artigo 21.º, a disciplina nele prevista não era aplicável, além do mais, ao CGT e ao CCNFJ, achando-se assim estas entidades dispensadas da apresentação das suas contas de gerência à apreciação e julgamento do TC (cf. o artigo 8.º).
Na verdade, as receitas daqueles Cofres, que eram administradas pela Direcção de Serviços dos Cofres, passaram, na sequência da publicação do Decreto-Lei 104/80, de 10 de Maio, que criou o GGFMJ, para a égide deste Gabinete, dotado de autonomia administrativa e financeira e tutelado pelo Ministro da Justiça.
Ao conselho administrativo do CCNFJ e do CGT compete, nos termos do artigo 2.º, alínea b), do Decreto-Lei 233/83, de 30 de Maio, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 184/85, de 28 de Maio, pronunciar-se sobre os orçamentos e contas de gerência elaborados pelo GGFMJ, submetendo-os à aprovação do Ministro da Justiça.
Com a revogação do referido artigo 21.º do Decreto-Lei 459/82 passaram as contas de gerência das entidades cujas receitas são administradas por este Gabinete a estar sujeitas ao julgamento do TC.
Tudo o que vem de dizer-se sobre esta matéria importa a uma rigorosa delimitação do conteúdo do normativo em controvérsia e também a uma perfeita compreensão do seu alcance, sem os quais não será possível o aferimento da sua legitimidade constitucional.
Achando-se adquirido que a gestão das receitas e despesas das entidades financeiramente integradas no GGFMJ se acha obrigada ao julgamento do TC, poderia defender-se que o n.º 4 do artigo 18.º nada mais faz do que traduzir a injunção já contida no n.º 1 do mesmo preceito, isto é, sujeitar aquelas entidades ao regime geral aplicável aos serviços e fundos autónomos em matéria de apreciação e julgamento das suas contas de gerência.
Entende-se, porém, que o normativo em causa contempla, para além da já referida, uma outra previsão, qual seja a de sujeitar todas as despesas autorizadas pelo Gabinete à apreciação da legalidade prévia nos termos do regime vigente neste domínio, designadamente o estatuído pelos Decretos-Leis 146-C/80, de 22 de Maio e 374/80, de 12 de Setembro. Em realidade, até à entrada em vigor da Lei 46/87, não só as entidades em causa estavam isentas da apresentação para julgamento das contas ao TC, como também não deviam cumprimento à disciplina geral em matéria de fiscalização preventiva das despesas, quer no plano do pessoal, quer no plano contratual.
A fiscalização preventiva das despesas públicas, através da qual o TC verifica se os documentos sujeitos a visto «estão conformes com as leis em vigor e se os encargos deles resultantes têm cabimento em verba orçamental legalmente aplicável, bem como, tratando-se de contratos, se as suas condições são as mais vantajosas para o Estado» (cf. o artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 146-C/80), pese embora o bem fundado da argumentação daqueles que situam esta competência do TC na esfera da sua competência jurisdicional (cf., sobre esta matéria, Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1987, p. 412, e a doutrina aí citada a propósito da natureza jurídica do visto), e sem agora tomar posição a tal respeito por isso não importar ao tema em apreço, sempre se distingue da competência que o Tribunal exerce ao «julgar as contas que a lei manda submeter-lhe» (cf. o artigo 219.º da Constituição).
Ora, o artigo 18.º, n.º 4, em apreciação, sujeita, de um lado, as despesas autorizadas pelo GGFMJ ao regime geral da fiscalização a priori e, de outro lado, impõe o julgamento das suas contas de gerência, no qual será objecto de apreciação, por parte do TC e de harmonia com o regime geral definido no Decreto-Lei 313/82, de 5 de Agosto, «a gestão económico-financeira e patrimonial das entidades legalmente obrigadas à prestação de contas».
O conteúdo que assim se demarcou à norma em controvérsia, e pese embora alguma imprecisão dos termos em que a mesma foi vazada, é o único harmonizável com a sua formulação literal e lógica e também com o pensamento legislativo que é possível ali excogitar.
3 - Aqui chegados, importa salientar que o acórdão não deixou de ponderar que a «fiscalização das despesas», abrangendo a simples «economicidade», entendida nos limitados termos do Decreto-Lei 146-C/80, poderia eventualmente ser reconduzida a uma noção específica de «legalidade financeira», na medida em que, por um lado, se está perante um princípio de «controle» que vem já, pelo menos, desde o artigo 6.º, n.º 4, do Decreto-Lei 22257, de 25 de Fevereiro de 1933 (não sendo crível que o legislador constituinte de 1976 houvesse pretendido encurtar a competência tradicional do TC), e, por outro lado, tal princípio se encontra hoje consagrado em termos expressos como princípio «funcional» da realização de despesas do Estado, justamente no artigo 18.º, n.º 3, da Lei 40/83, de 13 de Dezembro (Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado).
Mas, na esteira desta reflexão, logo ajuntou que «outra coisa, bastante diversa e notoriamente de muito mais vasto alcance, é apreciar globalmente a 'eficiência' de uma gestão, não só no plano financeiro, como no económico e patrimonial, tarefa para a qual, na verdade, não se vê que o artigo 219.º forneça credencial mínima, mormente na sua última parte».
Mas será efectivamente assim?
Vejamos.
4 - A delimitação precisa dos conceitos de «legalidade das despesas públicas» e de «legalidade tributária» está essencialmente dependente da análise da constituição financeira e dos objectivos que no texto constitucional se assinalam à gestão dos dinheiro públicos.
A Constituição determina para os instrumentos financeiros funções que resultam numa subordinação da sua gestão aos interesses nacionais (artigo 2.º), às tarefas fundamentais do Estado (artigo 9.º) e aos objectivos normativos de política económica e financeira do Estado (artigo 81.º).
A concepção funcional das finanças públicas, manifestamente adoptada no texto constitucional, tem, aliás, expressão quer nas disposições dos artigos 106.º e 107.º (sistema fiscal e impostos), quer na interligação estabelecida entre o Orçamento e o Plano.
De facto, quando o artigo 93.º, alínea c), da Constituição estabelece que o plano anual constitui a base fundamental da actividade do Governo e tem a sua expressão financeira no Orçamento do Estado, claramente evidencia que a execução orçamental há-de fazer-se em respeito por esse plano e com os seus objectivos, tal-qualmente se acham definidos no artigo 91.º, do texto constitucional (cf. L. Cabral Moncada, Perspectivas do Novo Direito Orçamental Português, Coimbra, 1984, p. 55).
É por isso que na apreciação da legalidade das despesas públicas não só deve ser consentida a apreciação da sua economicidade, como até esta há-de constituir uma exigência sem a qual a verificação da legalidade se torna de todo impossível de apurar.
Na verdade, a despesa pública tem de ser entendida numa perspectiva funcional e só a sua adequação à finalidade que lhe é assinalada possibilita um juízo sobre a sua legalidade.
Ora, é esse controle sobre a adequação da despesa à respectiva finalidade que constitui, em termos amplos, a apreciação da sua economicidade e da sua eficiência.
Aliás, e no domínio do direito comparado, há-de acentuar-se que nos congressos internacionais que o Secretariado Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (INTOSAI) vem realizando desde 1953 têm sido formuladas sucessivas recomendações no sentido de controle da economicidade das despesas públicas, querendo com isso significar-se a avaliação da sua rentabilidade, utilidade, racionalidade e eficiência.
Assim, e nesta linha de orientação, a apreciação da economicidade das despesas públicas haverá, genericamente, de se traduzir «na emissão de um juízo de valor sobre a qualidade da gestão. Haverá que apreciar as escolhas feitas para verificar se as mesmas permitem obter o melhor resultado pelo mais baixo preço; haverá que proceder à análise de resultados através de estados custo-rendimento; ou haverá, como modernamente se aponta, que examinar os métodos que conduziram à decisão (cf. Carlos Moreno, o «Tribunal de Contas e o controlo das despesas públicas», Revista de Administração Pública, ano VII, n.º 23, Janeiro-Março de 1984, pp. 31 e segs.).
5 - Importa, neste ponto da exposição, manifestar inteira concordância com a doutrina estabelecida no Acórdão 81/86, que, aliás, foi tirado por consenso unânime de todos os juízes do T. Const. Nesta conformidade, também se entende que à lei ordinária está vedado, no caso concreto do TC, face ao teor do artigo 219.º da Constituição, alargar o âmbito «material» da competência aí definida, por forma a atribuir-lhe outras e novas competências, sem embargo de ser legítico concretizar ou explicitar o inteiro alcance do conteúdo inserido naquela norma constitucional.
E é aqui, na exacta concretização e explicitação da competência atribuída ao TC, pela Constituição, que verdadeiramente reside o punctum saliens da questão.
Já se viu que o conceito de «fiscalização da legalidade das despesas públicas» (o próprio acórdão o admite, embora com alguma timidez) não deve, no plano de uma interpretação actualizada e que tenha em conta o sentido unitário do texto constitucional, circunscrever-se a uma verificação de mera legalidade estrita, inteiramente burocratizada e formal, em suma, despojada de qualquer parcela de avaliação crítica por parte do respectivo agente.
E, se assim é quanto à fiscalização do princípio da legalidade, o mesmo sucede no domínio do acto jurisdicional a que se reconduz o julgamento das contas, desde logo porque os seus conteúdos se acham conexos e interligados.
No julgamento das contas compete ao TC, em especial a partir da vigência do Decreto-Lei 30294, de 21 de Fevereiro de 1940, apreciar as infracções dos «preceitos legais que regulam a realização e pagamento das despesas públicas», o que envolve, desde logo, da sua parte, uma verificação sobre os critérios utilizados e os métodos aplicados na efectivação e pagamento das despesas, sempre que a lei impõe aos contáveis o cumprimento de certas e determinadas regras, que são daquelas pressuposto.
Ora, a Lei 40/83 determina no seu artigo 18.º, n.º 3, que «nenhuma despesa pode, ainda, ser efectuada sem que, além de satisfazer os requisitos referidos no número anterior, tenha sido previamente justificada quanto à sua eficácia, eficiência e pertinência».
E logo a seguir estatui no artigo 21.º, n.º 3, que a fiscalização jurisdicional da execução orçamental compete ao TC, devendo atender ao princípio de que aquela execução «deve obter a maior utilidade e rendimento sociais com o mais baixo custo».
Se, por um lado, estas normas da lei do enquadramento do Orçamento do Estado evidenciam com nitidez o conceito funcional de despesa pública, a que atrás se fez alusão (acentuando-se, para além da sua legalidade administrativa e regularidade financeira, outros requisitos da sua «legalidade financeira», como a eficácia, a eficiência e a pertinência, a maior utilidade e rendimento sociais com o mais baixo preço), por outro lado, acentuam um facto que, por incontroverso, não pode ignorar-se: quer a fiscalização preventiva das despesas quer o julgamento das contas acabam por se saldar, no essencial, num controle, numa avaliação, num julgamento de uma ou mais despesas, integradas ou não numa conta de gerência, que, reportadas a certas e determinadas receitas, se dirigem à concretização de concretos objectivos, institucionais próprios das entidades sujeitas à fiscalização e julgamento.
E, se os agentes responsáveis pela «realização e pagamento das despesas» (na terminologia do artigo 1.º do Decreto-Lei 30294) estão sujeitos aos preceitos legais que disciplinam a sua execução, não é admissível que ao órgão competente para a fiscalização externa de tais despesas esteja vedado o apuramento dos pressupostos ou condições que determinarão, consoante os casos, a sua legalidade ou ilegalidade.
Esta situação, pelas implicações que comporta, afigura-se de todo insustentável.
6 - Acresce que, ao contrário do afirmado, nomeadamente no pedido, o julgamento do TC não envolve qualquer juízo de mérito, de oportunidade, de conveniência sobre a despesa ou despesas em causa.
O acto jurisdicional limita-se a uma avaliação objectiva da «economicidade» de harmonia com critérios científicos e técnicos bem estabelecidos, que nunca podem confundir-se com aqueles juízos que cabem à tutela, à hierarquia ou aos responsáveis pela gestão.
Os fins do sistema financeiro e do sistema fiscal, estabelecidos de modo juridicamente cogente pelos artigos 105.º, n.º 1, e 106.º, n.º 1, da Constituição, não são apenas susceptíveis de um contrato político, mas também de um juízo de avaliação objectiva que pertence ao TC quando fiscaliza preventivamente a «legalidade financeira» ou julga as contas que a lei manda submeter-lhe.
À luz dos desenvolvimentos anteriores bem pode dizer-se que a apreciação da eficiência da gestão económica, financeira e patrimonial do GGFMJ se reconduz àquele juízo de avaliação objectiva em que o acto de julgamento se há-de concretizar, sob pena de ser despojado do seu conteúdo essencial por impossibilidade manifesta de pronúncia sobre a legalidade ou ilegalidade das despesas em causa, cujos pressupostos de regularidade deixarão de estar sujeitos à verificação e avaliação do julgador.
É assim de todo inadequado afirmar-se que a apreciação da eficiência do gestão «importa juízos de oportunidade, utilidade e conveniência acerca da utilização dos respectivos recursos e da administração do respectivo património».
Semelhante entendimento radica numa interpretação literal do texto constitucional e não atende ao facto de o julgamento das contas, enquanto julgamento da legalidade das despesas, se integrar num processo dinâmico, orientado e disciplinado por regras próprias de autorização, execução e concretização. O acto de julgamento apenas se justifica enquanto se traduza em efectiva fiscalização orçamental, e esta, no domínio da legalidade financeira, apenas é viável e exequível se ao órgão de julgamento for consentido o controle dos requisitos de que aquela depende e, repete-se, nada têm a ver com a oportunidade ou mérito da despesa (cf. Guilherme Oliveira Martins, Constituição Financeira, 2.º vol., Lisboa, 1987, p. 352, Luís Cabral Moncada, ob. cit., P. 54).
O Prof. Teixeira Ribeiro, no parecer que acompanhou o pedido, excluiu, por carência de base constitucional, a fiscalização económica da competência do TC. No entanto, nas suas Lições de Finanças Públicas, 2.ª edição, refundida e actualizada, Coimbra, 1984, parecia manifestar entendimento diverso, quando escrevia, a propósito dos documentos sujeitos a visto:
O Tribunal de Contas verifica a legalidade de fundo e de forma desses documentos [...] E verifica ainda a utilidade dessas despesas (nos mesmos termos que a contabilidade pública - Lei 40/83, artigo 21.º, n.º 3) e particularmente a economicidade dos contratos, isto é, se as condições deles são as mais vantajosas para o Estado.
Do exposto parece ser legítimo considerar que o artigo 219.º da Constituição, quando interpretado à luz dos princípios que constituem e informam a constituição financeira e quando se tenham presentes os conceitos constitucionalmente adequados de despesa pública e legalidade financeira, constitui credencial bastante para a lei ordinária atribuir ao TC uma competência de fiscalização e julgamento das despesas na plano da sua eficácia, eficiência e pertinência.
E, assim sendo, concluiu-se não existir qualquer violação das normas conjugadas dos artigos 113.º, n.º 2, e 219.º da Constituição.
E, porque a invocação que no pedido se faz, relativamente ao afrontamento do artigo 29.º do texto constitucional, se tem por inteiramente desajustada (com efeito não assiste ao TC qualquer competência em matéria de aplicação de lei criminal), votei no sentido de não declarar a inconstitucionalidade do artigo 18.º, n.º 4, da Lei 49/86.
B) O artigo 25.º, n.º 4
1 - O artigo 25.º, n.º 4, da Lei 49/86, também declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, dispõem assim:
O conteúdo das mensagens informativas a que se refere o número anterior está sujeito a parecer prévio favorável do Conselho de Comunicação Social, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º da Lei 23/83, de 6 de Setembro.
No essencial, a argumentação que serviu de suporte àquele julgamento ateve-se à consideração de não ser constitucionalmente admissível que a lei vincule o Governo, pelo modo como o fez, aos critérios de um órgão diverso, aliás não inserido num sistema político, stricto sensu, e não representando quaisquer interesses distintos dos que ao Governo compete encabeçar. Dessa forma retira-se ao Governo a última palavra como «órgão superior da Administração Pública» (artigo 185.º) e transfere-se essa palavra para um órgão desprovido de representatividade e responsabilidade política.
2 - Importa desde logo assinalar que o CCS apenas emite parecer prévio relativamente à verificação das condições materiais a que as mensagens informativas devem obedecer, nos termos dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo.
A oportunidade e a conveniência das mensagens sempre permanecem na esfera da disponibilidade política. e administrativa do Governo, o mesmo, aliás, em última análise, se podendo dizer do próprio conteúdo daquelas, que em caso algum pode ser estabelecido pelo órgão consultivo. Quer dizer: o Governo apenas faz divulgar a mensagem informativa quando achar adequado e pela forma havida por conveniente, desde que sejam respeitados os critérios definidos no artigo 25.º, n.os 2 e 3.
O CCS limita-se a dar parecer sobre o acatamento ou não das exigências legais ali definidas, não sendo assim legítima a afirmação de que para ele se transfere, neste domínio, a última palavra, que ao Governo pertence como «órgão superior da Administração Pública»
Não se considerou, à luz deste entendimento, existir violação, por parte daquela norma, de qualquer dispositivo constitucional, razão pela qual se não acompanhou a tese que no acórdão fez vencimento. - Antero Alves Monteiro Dinis.