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Acórdão 81/86, de 22 de Abril

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, das normas do artigo 107.º do Decreto-Lei n.º 46672, de 29 de Novembro de 1965, e do artigo 134.º do Decreto-Lei n.º 176/71, de 30 de Abril, bem como, na parte em que referem a competência do Supremo Tribunal Militar, das normas dos artigos 108.º, 110.º, 111.º e 112.º do primeiro daqueles diplomas e dos artigos 136.º, 137.º, n.º 1, 138.º, 140.º e 141.º do segundo dos mencionados diplomas.

Texto do documento

Acórdão 81/86
Processo 122/85
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
1 - Relatório
O procurador-geral da República-adjunto, em exercício neste Tribunal Constitucional, por delegação do procurador-geral da República, vem, nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com o artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, requerer que se aprecie e se declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 107.º, 108.º, 110.º, 111.º e 112.º do Decreto-Lei 46672, de 29 de Novembro de 1965 (Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas), e 134.º, 136.º, 137.º, n.º 1, 138.º, 140.º e 141.º do Decreto-Lei 176/71, de 30 de Abril (Estatuto do Oficial do Exército), quando se referem à competência do Supremo Tribunal Militar, pois foram já julgados materialmente inconstitucionais nos Acórdãos n.os 61/84 (processo 102/83, Diário da República, 2.ª série, n.º 267, de 17 de Novembro de 1984), 49/85 (processo 106/84, Diário da República, 2.ª série, n.º 85, de 12 de Abril de 1985), 84/85 (processo 162/84), 105/85 (processo 159/84), 106/85 (processo 189/84), 112/85 (processo 179/84), 113/85 (processo 15/85) e 114/85 (processo 16/85).

Juntou cópias dos referidos acórdãos, para efeito de se organizar um processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade.

Solicitado a pronunciar-se sobre o pedido, nos termos da lei (Lei 28/82, artigo 54.º), o Primeiro-Ministro nada veio dizer.

O Ministério Público (MP) tem legitimidade para desencadear este tipo de processo (Lei 28/82, artigo 82.º) e verifica-se que as normas em causa foram efectivamente julgadas inconstitucionais em pelo menos três casos concretos (além dos mencionados no pedido, outros, entretanto, foram julgados no mesmo sentido). Nada obsta ao conhecimento do pedido.

Cumpre apreciar e decidir.
2 - Fundamentação
2.1 - As normas em apreciação
As normas do Decreto-Lei 46672, de 19 de Novembro de 1965 (EOFA), que aqui estão em causa são as seguintes:

Art. 107.º O Supremo Tribunal Militar é o órgão das Forças Armadas com competência para conhecer dos recursos que forem interpostos pelo oficial:

a) Em matéria de promoção, demoras, preterições e posição na escala de antiguidades;

b) Que se considere prejudicado quanto à mudança de situação.
Art. 108.º Os recursos são dirigidos ao presidente do Supremo Tribunal Militar. O prazo máximo para a sua interposição é de 30 dias, a partir da data em que os interessados tomarem conhecimento oficial da decisão ou do documento legal que motiva o recurso.

§ único. Para efeito do disposto neste artigo conta-se como data de conhecimento oficial da decisão ou documento que dá origem ao recurso a da respectiva transcrição na ordem do organismo em que o oficial presta serviço ou aquela em que foi feita a comunicação ao oficial no mesmo organismo.

...
Art. 110.º As decisões do Supremo Tribunal Militar proferidas no exercício da competência que lhe é atribuída nas matérias referidas no artigo 107.º serão comunicadas à autoridade recorrida, para as mandar executar, nos seus precisos termos, no prazo de dez dias a contar da comunicação. [Redacção dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 5-A/81, de 23 de Janeiro.]

Art. 111.º As decisões do Supremo Tribunal Militar são publicadas na ordem do respectivo ramo das Forças Armadas, no prazo de dez dias a contar da comunicação. [Redacção dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 5-A/81.]

Art. 112.º A matéria de recurso já apreciada pelo Supremo Tribunal Militar não poderá ser outra vez objecto de resolução do mesmo Tribunal, a não ser que surjam novos factos ou circunstâncias que o justifiquem.

Quanto ao Decreto-Lei 176/71, de 30 de Abril (EOE), estão em causa os seguintes preceitos:

Art. 134.º O Supremo Tribunal Militar é o órgão das Forças Armadas com competência para conhecer dos recursos que forem interpostos pelo oficial:

a) Em matéria de promoção, demora, preterição e posição na escala de antiguidades;

b) Que se considere prejudicado quanto à mudança de situação.
...
Art. 136.º A matéria de recurso já apreciada pelo Supremo Tribunal Militar não poderá ser outra vez objecto de resolução do mesmo Tribunal, a não ser que surjam novos factos ou circunstâncias que o justifiquem.

Art. 137.º - 1 - Os recursos são interpostos pelos interessados ou pelos seus representantes legais, por meio de petição dirigida ao presidente do Supremo Tribunal Militar, no prazo de 30 dias, a contar da data em que os interessados tomarem conhecimento oficial da decisão ou do documento legal que motiva o recurso.

2 - ...
Art. 138.º O recorrente poderá fazer-se representar por oficial de qualquer ramo das Forças Armadas ou por advogado, residentes ou com domicílio escolhido na área da sede do Supremo Tribunal Militar.

...
Art. 140.º - 1 - As decisões do Supremo Tribunal Militar proferidas no exercício da competência que lhe é atribuída nas matérias referidas no artigo 134.º serão comunicadas à autoridade recorrida, para as mandar executar, nos seus precisos termos, no prazo de dez dias, a contar da comunicação.

2 - As decisões do Supremo Tribunal Militar são publicadas na Ordem do Exército, no prazo de dez dias, a contar da comunicação. [Redacção dada pelo n.º 1.º da Portaria 891/81.]

Art. 141.º Os recursos para o Supremo Tribunal Militar previstos neste Estatuto não prejudicam o direito da reclamação hierárquica, a qual, sendo meramente facultativa, não suspende nem interrompe o decurso do prazo para a interposição daqueles.

É fácil verificar que existe uma quase total coincidência quanto ao conteúdo normativo destes dois conjuntos de preceitos. Os artigos 107.º do EOFA e 134.º do EOE têm a mesma redacção; o artigo 108.º de um corresponde ao artigo 137.º, n.º 1, do outro; os artigos 110.º e 111.º daquele coincidem com o artigo 140.º deste; o artigo 112.º do primeiro é idêntico ao artigo 136.º do segundo. Só os artigos 138.º e 141.º do EOE é que não emparelham com nenhuma disposição do EOFA das que se encontram submetidas à apreciação do Tribunal.

De acordo com o pedido do MP, as normas transcritas só importam aqui na medida em que «se referem à competência do Supremo Tribunal Militar». Com efeito, foi apenas quanto a esse ponto que elas foram julgadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional. Assim, enquanto as normas dos artigos 107.º do EOFA e 134.º do EOE estão em causa integralmente - pois são elas as que atribuem ao Supremo Tribunal Militar (STM) a competência para as matérias aí enunciadas -, já as demais normas só estão parcialmente impugnadas, na medida em que, como reflexo daquelas, mencionam explicitamente a competência do STM.

O que aqui interessa é, na verdade, apenas a questão da conformidade constitucional daquelas normas legais que conferem ao STM a competência para julgar recursos de decisões de autoridades da administração militar, nomeadamente em matéria de situação e de carreira dos oficiais das Forças Armadas. Trata-se de saber se os tribunais militares - e em particular o STM - podem ter competência em matérias não previstas no artigo 218.º da Constituição ou se eles estão limitados a essa competência, sendo todo o contencioso administrativo militar da competência dos tribunais administrativos - e em particular do Supremo Tribunal Administrativo (STA) -, como tribunais comuns do contencioso administrativo.

Tais normas têm vindo a ser julgadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, numa jurisprudência uniforme e nemine discrepante em ambas as secções deste Tribunal, em numerosos recursos de inconstitucionalidade. Colocada agora a questão em sede de fiscalização abstracta, para efeitos de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, cumpre reexaminar globalmente o problema.

Nessa reapreciação importa não apenas retomar os argumentos em que se tem baseado a posição do Tribunal Constitucional, mas também verificar a relevância dos argumentos com que, contestando essa posição, o STM tem vindo persistentemente a defender o seu entendimento de que não são inconstitucionais as normas - as que aqui estão em causa e outras afins - que lhe dão competência em matéria de contencioso administrativo militar.

Toda a questão pode analisar-se em referência a três pontos principais: a) o sentido do artigo 218.º da Constituição à luz da história desse preceito; b) a articulação do artigo 218.º com o artigo 113.º, n.º 2, da Constituição; c) a eventual relevância da especificidade do contencioso relativo à administração militar.

Serão sucessivamente abordados estes pontos.
2.2 - O artigo 218.º da Constituição e a sua história
Na sua primitiva redacção, era o seguinte o texto deste preceito da Constituição:

Art. 218.º (Competência dos tribunais militares). - 1 - Os tribunais militares têm competência para o julgamento, em matéria criminal, dos crimes essencialmente militares.

2 - A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no n.º 1.

Não foi pacífica a interpretação deste preceito constitucional, tendo-se defrontado duas posições inconciliáveis. Segundo uma, ele definiria toda a competência dos tribunais militares, os quais só teriam, por isso, competência originária em matéria criminal militar, não possuindo, portanto, competência fora dessa área, designadamente em matéria de contencioso administrativo. A favor dessa interpretação, considerada como «mais razoável», escreveu-se, por exemplo, num comentário à Constituição:

A delimitação da competência dos tribunais militares não decorre de forma evidente deste artigo, pois este tanto pode ser entendido no sentido de definir toda a sua competência como no sentido de definir apenas a sua competência criminal, sem prejuízo de lhe ser atribuída outra. A primeira interpretação parece a mais razoável, não somente pela epígrafe do artigo - que não discrimina a competência -, mas sobretudo pelo princípio da não extensão da competência dos tribunais especiais (cf. artigo 212.º e nota). Por isso, deve ter-se por inconstitucional a atribuição, por via legal, aos tribunais militares de jurisdição não criminal, designadamente do foro civil, administrativo ou fiscal (cf. CJM, artigo 309.º), [J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, p. 406 (anotação III ao artigo 218.º); sublinhado no original.]

Tal posição não encontrou, todavia, grande eco na jurisprudência, designadamente nos próprios tribunais interessados, ou seja, os tribunais militares, por um lado - os quais, que se saiba, continuaram a ter-se por competentes para julgar, nomeadamente, questões de contencioso administrativo militar -, e Supremo Tribunal Administrativo (aqui, abreviadamente, STA), que repetidamente se julgou incompetente para apreciar de tais recursos. São de um acórdão do STA as seguintes considerações:

E o certo é que da leitura da disposição [do n.º 1 do artigo 218.º decorre que apenas houve o propósito de definir a competência em matéria criminal.

Na verdade, esta expressão «em matéria criminal» seria inteiramente redundante e, portanto, supérflua se não houvesse o propósito de deixar aberta à lei ordinária a possibilidade de conferir competência aos tribunais militares no domínio destas matérias.

Com efeito, no caso contrário, o n.º 1 do artigo 218.º teria necessariamente omitido a referida locução «em matéria criminal» e diria, tão-somente, que «os tribunais militares têm competência para o julgamento dos crimes essencialmente militares».

É apodíctico que a disposição, assim redigida, implicaria exclusivamente competência criminal [...]

Porém, o artigo 218.º não quis fazer uma enunciação exaustiva da competência, em diversas matérias. Bem ao contrário, somente se ocupou daquilo que, em matéria criminal, cabe ao Supremo Tribunal Militar conhecer. [Acórdão do STA de 31 de Maio de 1979, in Acórdãos Doutrinais, n.º 215, pp. 977 e 978.]

Não tem interesse aqui apreciar a validade das razões e fundamentos que poderiam apoiar cada uma das teses em confronto. A verdade é que, com as alterações introduzidas no artigo 218.º da Constituição pela 1.ª revisão constitucional (Lei Constitucional 1/82, de 29 de Setembro), a questão ganhou um novo perfil.

Dispõe agora esse preceito constitucional:
Art. 218.º (Tribunais militares). - 1 - Compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares.

2 - A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no n.º 1.

3 - A lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de medidas disciplinares.

A modificação na redacção do n.º 1 - donde desapareceu o inciso «em matéria criminal» - e o aditamento do n.º 3 - que estende a competência dos tribunais militares a uma matéria não criminal - não podem deixar de ser lidos no sentido de limitar a competência desses tribunais às matérias enunciadas nesse preceito. A alteração do n.º 1 eliminou aquilo em que assentava o principal argumento da posição contrária (se é que o texto primitivo dava azo a tal argumento ...). O aditamento do n.º 3 mostra que se achou necessário conferir expressamente tal competência aos tribunais militares, o que seria supérfluo se fosse válido o entendimento de que a Constituição não vedava à lei o alargamento da competência dos tribunais militares, em relação à competência constitucionalmente estabelecida.

No quadro da controvérsia criada em torno da interpretação do artigo 218.º, na sua primitiva redacção, a mudança de texto só pode ter o sentido de decidir a questão, sendo evidente que a decisão foi a favor da limitação da competência dos tribunais militares ao âmbito do direito penal militar (e, eventualmente, às duas áreas previstas no n.º 2 e no novo n.º 3). Recorde-se que o STA, antes da revisão constitucional de 1982, ao figurar a hipótese de o artigo 218.º, n.º 1, dizer o que ele hoje efectivamente diz (isto é, uma vez retirado o inciso «em matéria criminal»), concluía nestes termos: «É apodíctico que a disposição, assim redigida, implicaria exclusivamente competência criminal.»

O que não pode é deixar de atribuir-se à alteração textual do n.º 1 do artigo 218.º um significado no contexto da disputa acerca da interpretação do preceito. Se na primitiva redacção do texto se considerava que o tal inciso «em matéria criminal» significava que o preceito apenas curava de delimitar a competência dos tribunais militares no âmbito criminal, sem excluir que eles possuíssem competência noutros domínios, não se pode, agora que tal inciso desapareceu, argumentar que ele era irrelevante e que só foi suprimido por ser supérfluo. Não importa saber se tal expressão era ou não realmente supérflua na economia do preceito, na sua primitiva redacção; a verdade é que na interpretação jurisprudencial dominante na altura essa expressão foi considerada como argumento de relevo a favor da tese do carácter constitucionalmente não limitado da competência dos tribunais militares, não podendo agora considerar-se que o preceito, com outra redacção, continua a dizer o mesmo que dizia antes. Carece, por isso, de qualquer fundamento a posição reiteradamente expendida em acórdãos do Supremo Tribunal Militar segundo a qual a posição defendida pelo Tribunal Constitucional não tem o mínimo de suporte verbal no texto do artigo 218.º da Constituição.

Mas se restassem quaisquer dúvidas quanto ao sentido da alteração do preceito na revisão constitucional de 1982, aí estão os respectivos trabalhos preparatórios para confirmar que foi isso que, deliberada e precisamente, a motivou.

Na verdade, pode ler-se na acta da reunião de 19 de Novembro de 1982 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, a propósito das propostas de alteração ao artigo 218.º, o seguinte:

Sobre o n.º 1, o PCP propõe uma redacção diferente, no sentido da qual os tribunais militares têm apenas competência em matéria criminal, competindo-lhes julgar os crimes essencialmente militares [...] Na Subcomissão formou-se consenso quanto ao n.º 1, na base da proposta de alteração do PCP, com uma redacção que seria a seguinte: «Compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares.» [Diário da Assembleia da República, 2.ª série, suplemento ao n.º 44, de 27 de Janeiro de 1982, p. 904-(42); itálico acrescentado.]

Foi essa a redacção que, depois, veio a ser aprovada por unanimidade, sem discussão, pelo plenário da Assembleia da República, sendo incorporada na lei de revisão constitucional.

Não restam, pois, dúvidas quanto a três pontos: a) que existiu consenso quanto a uma proposta de alteração do texto; b) que essa proposta de alteração visava reduzir explicitamente a competência dos tribunais militares ao domínio penal; c) que a alteração consistiu, designadamente, na eliminação do mencionado inciso «em matéria criminal».

Nestes termos, não é razoável nenhuma dúvida séria acerca do sentido da alteração do artigo 218.º, n.º 1, da Constituição. Ela consistiu, rigorosa e explicitamente, em reduzir a competência dos tribunais militares às matérias constitucionalmente indicadas. Contra isto não pode fundadamente argumentar-se que a mens legislatoris não está firmada sem margem para dúvidas, dado que não existe registo da posição de todas as forças políticas que intervieram na revisão constitucional; é indesmentível a conclusão que se colhe das actas, segundo a qual houve acordo unânime («formou-se consenso») quanto à proposta de alteração apresentada com o objectivo explicitamente assinalado. Também é manifestamente irrelevante o facto de o texto não dizer que os tribunais militares têm competência apenas em matéria criminal, isto por duas razões: por um lado, pura e simplesmente, o preceito não poderia dizer tal coisa, pois a mesma revisão constitucional aditou o actual n.º 3, que admite que os tribunais militares possam ter competência para a aplicação de medidas disciplinares; por outro lado, se a Constituição entendeu dever definir a competência dos tribunais militares, incluindo aquela que a lei lhe pode atribuir, há que concluir então que a lei não pode ampliar essa competência a áreas não previstas no referido artigo 218.º da Constituição.

Finalmente, seria totalmente descabido invocar contra o sentido da revisão constitucional do artigo 218.º, n.º 1, da Constituição a posterior aprovação da Lei 29/82, de 11 de Dezembro (Lei de Defesa Nacional), que aparentemente supõe que os tribunais militares possam ter competência em matéria de contencioso administrativo; é que, a admitir-se tal raciocínio, estar-se-ia a inverter a lógica das coisas: em vez de ler a lei à luz da Constituição, ler a Constituição à luz da lei.

É certo que não foram entretanto revogadas as normas legais - entre elas as que aqui estão em causa - que consideram ser o STM o tribunal competente para certas áreas do contencioso administrativo militar; e é igualmente verdade que, posteriormente à revisão constitucional, foi aprovado o artigo 59.º da Lei 29/82, que supõe e salvaguarda tais preceitos. Mas, como é evidente, nem a inércia do legislador pode testemunhar a favor da conformidade constitucional dessas normas, nem a aprovação da Lei de Defesa Nacional pode ser retroactivamente interpretada no sentido de a AR não ter querido na revisão constitucional explicitar a delimitação da competência dos tribunais militares. Pois é óbvio que não é o legislador que pode certificar a constitucionalidade das normas que não revoga nem das que ele mesmo edita; por um lado, não basta que uma lei continue a existir para que deixe de ser inconstitucional e, por outro lado, quando a AR adopta soluções legislativas discrepantes com as decorrentes da revisão constitucional, devem prevalecer não aquelas, mas sim estas.

Absurdo seria admitir que, só pelo facto de ter sido aprovada pela mesma AR, a Lei 29/82 possa ter a virtualidade de rever a revisão constitucional. Os poderes exercidos pela AR ao aprovar cada uma das leis - a Lei Constitucional 1/82 e a Lei 29/82 - não têm a mesma natureza: as duas leis não são fungíveis.

A este propósito, já o Acórdão 49/85 do Tribunal Constitucional rejeitou tal argumento. É dele a seguinte passagem:

Antes de mais, há que recusar, por ser de todo incrível, o aval, atrás indicado, que o STM pretende encontrar para a sua tese no artigo 59.º da Lei 29/82, de 11 de Dezembro [Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas].

De facto, estando justamente em causa ajuizar da inconstitucionalidade de uma norma de direito ordinário - no caso, a constante do artigo 134.º, alínea a), do Decreto-Lei 176/71, de 30 de Abril -, não é razoável pleitear em seu favor esgrimindo com outra norma também infraconstitucional, só porque esta pressupõe a regularidade constitucional daquela. Isso seria argumentar partindo da lei para a Constituição, o que não é legítimo, pois, tratando-se de avaliar a regularidade constitucional de uma norma de direito ordinário, o que há que fazer é conferi-la com as normas e ou princípios constitucionais que, eventualmente, ela possa afrontar.

Não se vê qualquer razão para não reiterar estas considerações, que se limitam, aliás, a pôr em relevo uma regra elementar num Estado de direito constitucional.

2.3 - Os tribunais militares e o artigo 113.º, n.º 2, da Constituição
Dispõe a Constituição:
Art. 113.º (Órgãos de soberania). - 1 - São órgãos de soberania [...] os tribunais.

2 - A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição.

Esta disposição da lei fundamental só tem uma leitura, no que aqui importa: os tribunais, como órgãos de soberania que são (todos e cada um deles), têm a competência que lhe seja fixada pela própria Constituição (expressa ou implicitamente) e a que a lei lhes defina, mas, neste caso, apenas quando a mesma Constituição directa ou indirectamente autorizar que a lei o faça ou quando ela remeter para a lei tal tarefa. Não existe competência de órgãos de soberania que não esteja determinada ou autorizada pela Constituição. Tal regra está, aliás, em perfeita consonância com uma das funções primárias da lei fundamental, que é justamente a de fixar o elenco dos órgãos titulares de soberania e de delimitar as respectivas áreas de competência. Nestes domínios não pode haver leis independentes da Constituição, ou seja, competência sem base constitucional; aqui, seguramente, a Constituição não é apenas um limite da lei - é fundamento e pressuposto, necessário.

Ora, sendo os tribunais militares órgãos de soberania e tendo a Constituição definido ela mesma a competência deles (numa parte, directamente; noutra, remetendo para a lei), então tem de concluir-se que não existe qualquer margem para intervenção legislativa a alargar a competência dos tribunais militares a áreas não previstas na Constituição.

Este raciocínio não é, porém, acompanhado pelo STM, que defende uma outra interpretação das disposições em causa, designadamente do artigo 113.º, n.º 2, da Constituição. Torna-se necessário apreciar tal argumento. Para o efeito, nada melhor do que citar os próprios arestos do STM. No acórdão proferido no processo 192/A/114/M/84, que deu lugar a um recurso pendente no Tribunal Constitucional, pode ler-se:

Este raciocínio [o do Tribunal Constitucional] peca por dar ao n.º 2 do artigo 113.º citado um alcance que ele não tem.

De facto, a competência dos órgãos de soberania só está constitucionalmente fixada em relação a cada um deles, tomado, quando colectivo ou múltiplo, globalmente.

Assim, definem-se as competências dos órgãos singulares - Presidente da República e Assembleia da República - e dos órgãos colectivos - Governo e tribunais - apenas globalmente.

Nem a Constituição prevê, nem ela delega na lei, a competência concreta dos ministros e secretários de Estado, como o não faz em relação aos tribunais administrativos, fiscais e marítimos. E registe-se que, quanto aos ministros, o n.º 2 do artigo 204.º da lei fundamental fixa-lhes taxativamente as competências de executar a política definida para os seus ministérios e assegurar as relações de carácter geral entre o Governo e os demais órgãos do Estado.

Serão inconstitucionais todos os numerosos preceitos que atribuem aos diversos ministros competências administrativas, regulamentares e até legislativas?

E é inconstitucional o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ao conferir competências a estes órgãos, que a Constituição não fixou nem autorizou a lei a fixar?

Em face desta situação absurda a que a tese exposta necessariamente conduzia, haverá que concluir que a competência do órgão de soberania Governo é a constante dos artigos 200.º e 201.º da Constituição, como a dos tribunais a fixada nos artigos 205.º e 206.º do mesmo diploma. Quanto à competência de cada membro ou espécie destes órgãos de soberania, ela é fixada pela lei.

É certo que o texto constitucional por vezes vem atribuir a certo membro do Governo ou a certo tribunal ou espécie de tribunais competências, mas fá-lo quando entende regulá-las directamente, consignando-as a certo ou certos tribunais. É o que sucede com o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas e os tribunais militares. Mas a regra geral é de ser a lei ordinária aquela que fixa a competência dos tribunais.

A não ser assim, a ser a Constituição que fixa tal competência, seja directamente, seja delegando na lei, os tribunais administrativos, fiscais, marítimos e arbitrais não tinham nem podiam ter quaisquer atribuições.

Há assim que assentar que os tribunais têm a competência genérica que lhes é constitucionalmente atribuída pelos artigos 205.º e 206.º da Constituição e a concreta que lhes for concedida por esta e pela lei, tudo de harmonia com os artigos 113.º e 168.º, n.º 1, alínea q), da lei fundamental.

Há neste argumento um manifesto, e grande, equívoco. Os tribunais não constituem um órgão de soberania «colectivo ou múltiplo». Não existe um órgão de soberania integrado por todos os tribunais; todos e cada um dos tribunais são órgãos de soberania. É o artigo 205.º da Constituição que o diz de forma inequívoca, quando dispõe que «os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo». Sublinhe-se: os órgãos de soberania, não o órgão de soberania.

Por isso, não colhe o invocado paralelismo entre os tribunais e o Governo. Este é um órgão de soberania complexo; os tribunais são um complexo de órgãos de soberania. Cada tribunal não está para o conjunto dos tribunais como os ministros para o Governo; cada tribunal é um órgão de soberania, enquanto cada ministro é apenas um membro de um órgão de soberania. Assim, a regra do artigo 113.º, n.º 2, da Constituição diz respeito a cada tribunal - e, desde logo, a cada espécie de tribunais. E de duas uma: ou a Constituição, ela mesma, define a competência de cada espécie de tribunais, e então não pode a lei vir ampliá-la (nem restringi-la), ou a Constituição não o faz, remetendo (expressa ou implicitamente) para a lei, devendo esta respeitar as esferas de competência constitucionalmente definidas para os demais tribunais.

Analisados os preceitos constitucionais relativos aos tribunais, verifica-se que, das várias categorias de tribunais constitucionalmente previstas, a lei fundamental só tratou expressamente da competência do Tribunal Constitucional, do Tribunal de Contas e dos tribunais militares (cf. os artigos 213.º, 218.º e 219.º). Em relação aos demais tribunais previstos no artigo 212.º, a Constituição remete implicitamente para a lei a definição da sua competência, pois esta não está directamente prevista na Constituição, e, naturalmente, eles hão-de ter alguma competência. Em todo o caso, a liberdade legislativa na definição da competência desses tribunais está longe de ser completa: por um lado, a lei não pode atribuir-lhes matérias que constitucionalmente cabem a outros tribunais (v. g., a lei não pode entregar aos tribunais judiciais a competência para o julgamento dos crimes essencialmente militares); por outro lado, a competência que lhe venha a ser atribuída por lei há-de ser conforme com a natureza e função geral de cada uma dessas categorias de tribunais, não podendo atribuir, por exemplo, aos tribunais marítimos jurisdição em matérias de todo alheias ao direito marítimo ou aos tribunais administrativos assuntos estranhos ao direito administrativo (cf. o Acórdão 135/85, no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Outubro de 1985).

Por conseguinte, tem de concluir-se que existe uma diferença essencial entre o caso daqueles tribunais acerca de cuja competência a Constituição é totalmente omissa (caso dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos) e o caso daqueles em que a Constituição procede ela mesma à definição da competência (como é o caso dos tribunais militares). No primeiro caso, existe, obviamente, uma remissão implícita para a lei, pois seria absurda a conclusão de que não podem ter nenhuma competência; no segundo caso, tendo a Constituição curado de definir ela própria a competência, não pode então invocar-se nenhuma remissão implícita para a lei. Por isso, se existe algum argumento a tirar do facto de haver tribunais a respeito de cuja competência a Constituição é omissa, aquele não é favorável à tese da disponibilidade legal da competência dos tribunais militares.

Quanto aos tribunais de cuja competência a Constituição se ocupa directamente, há ainda uma distinção a fazer. Nuns casos, a lei fundamental enuncia a competência, sem qualquer remissão para a lei, a qual, portanto, não pode ampliar tal competência (cf. o artigo 219.º, sobre o Tribunal de Contas). Noutros casos, a Constituição enuncia um elenco de assuntos que formam a competência do tribunal, mas admite expressamente que a lei lhe possa conferir outras, não especificadas pela própria Constituição - cf. o artigo 213.º, n.º 2, alínea e), sobre o Tribunal Constitucional -, podendo então a lei atribuir-lhe outras funções (bem entendido, de entre as que não estão constitucionalmente atribuídas aos outros tribunais). Finalmente, noutros casos - justamente o dos tribunais militares -, a Constituição confere-lhes uma determinada competência (artigo 213.º, n.º 1) e admite que a lei amplie esta, mas somente quanto a duas matérias expressamente indicadas pela própria Constituição (artigo 218.º, n.os 2 e 3).

É, assim, evidente que não existe nenhum paralelismo entre a posição do Tribunal Constitucional e a dos tribunais militares nesta matéria; quanto àquele, a Constituição não limita positivamente a discricionariedade legislativa, enquanto quanto aos segundos ela está nitidamente confinada. É por isso que a lei pode legitimamente ampliar a competência do Tribunal Constitucional e não pode fazê-lo em relação aos tribunais militares (para além das duas matérias expressamente indicadas nos n.os 2 e 3 do artigo 218.º).

Ao ocupar-se directamente da competência dos tribunais militares e ao indicar expressamente as áreas em que a lei pode intervir, a Constituição não pode ser lida de outra maneira que não seja a de que os tribunais militares não têm competência fora das áreas indicadas no artigo 218.º

É certo que, em relação à sua competência criminal, os tribunais militares não poderiam tê-la se a Constituição não o previsse ou não o admitisse expressamente, pois tal competência vai de encontro à regra constitucional do artigo 212.º, n.º 4, que proíbe a existência de tribunais criminais especiais (e, portanto, não poderia ser contrariada pela lei, sem expressa autorização constitucional). Poderia, assim, argumentar-se - como faz o STM - que a Constituição só prevê a competência dos tribunais militares, não para a limitar ao nela previsto, mas sim para lhe atribuir uma competência que, de outro modo, a lei só por si não lhes poderia atribuir. Mas o argumento não procede: por um lado, não é líquido que igual argumento possa ser utilizado a respeito da competência disciplinar prevista no n.º 3 do artigo 218.º, pois nenhum princípio ou norma constitucional impede expressamente a jurisdicionalização da aplicação de medidas disciplinares e não é seguro que uma tal competência esteja implicitamente reservada à Administração; por outro lado, e principalmente, se a Lei Fundamental quisesse deixar à lei a possibilidade de intervir na definição da competência dos tribunais militares, para além do expressamente previsto na Constituição, então seria mais do que lógico que, tendo sentido a necessidade de prever a sua competência em matéria penal e disciplinar, tivesse remetido expressamente para a lei a definição da sua competência noutras áreas. Foi o que fez em relação ao Tribunal Constitucional, como se viu; a falta de uma norma afim da da alínea e) do artigo 213.º, n.º 2, só pode ter o sentido de não deixar tal faculdade para a lei no caso dos tribunais militares.

Uma tal norma seria tanto mais necessária quanto é verdade que se trata de competência de uma categoria especial de tribunais. É de notar, a este propósito, que, das categorias constitucionalmente obrigatórias de tribunais - os previstos no artigo 212.º, n.º 1, da Constituição -, a Constituição debruçou-se apenas sobre a competência das três categorias de tribunais de competência vincadamente específica, a saber o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas e os tribunais militares. É razoável e é lógico: trata-se de definir a competência daqueles tribunais de vocação específica, cujas funções, na falta deles, ou não existiriam ou pertenceriam, aos tribunais cuja competência genérica abarcaria a daqueles (tribunais judiciais e administrativos).

No caso dos tribunais militares, sucede até que a sua existência e competência jurisdicional significam sempre uma compressão ou limitação dos tribunais, cuja competência genérica, caso aqueles não existissem, abarcaria normalmente essas matérias. Assim, em matéria criminal militar, os tribunais militares exercem uma competência que sem eles caberia aos tribunais criminais comuns (os tribunais judiciais); do mesmo modo, a terem também uma competência de contencioso administrativo militar, ela implicaria uma limitação da competência que nessa matéria caberia genericamente aos tribunais administrativos e fiscais (ou, na falta destes, aos tribunais judiciais). Sendo as coisas assim, não se vê como é que tal compressão da competência de tribunais de vocação genérica em matéria criminal e administrativa, a favor do alargamento da competência de tribunais de competência específica, poderia ter lugar sem uma explícita autorização constitucional, uma vez que a Constituição, em vez de remeter para a lei a definição da competência dos tribunais militares, se ocupou dela directamente.

Contra esta conclusão não pode ser invocado o preceito, do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição, que reserva para a AR a competência para legislar em matéria de «organização e competência dos tribunais e do Ministério Público». Com efeito, trata-se de uma simples norma de distribuição da competência legislativa entre o Governo e a AR, que não pode, obviamente, prevalecer sobre os limites constitucionais materiais à liberdade de conformação legislativa sobre a definição da competência dos tribunais. Tal como as leis que versem «direitos, liberdades e garantias» [artigo 168.º, n.º 1, alínea b)] ou qualquer outra das matérias enunciadas no artigo 168.º (e no artigo 167.º) não podem deixar de respeitar os limites materiais contidos na Constituição nesse domínio, também as leis sobre a competência dos tribunais têm de respeitar o disposto na Constituição sobre a matéria. O único alcance jurídico-constitucional da norma do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), é o de que, na medida em que constitucionalmente dependa da lei a definição da competência dos tribunais, só a AR tem competência para legislar sobre ela, não podendo o Governo fazê-lo (salvo prévia autorização legislativa). Ora, da combinação dos artigos 113.º, n.º 2, e 218.º da Constituição, a definição da competência dos tribunais militares só depende da lei quanto às matérias referidas nos n.os 2 e 3 do artigo 218.º nenhuma das quais permite atribuir-lhes competência em matéria de contencioso administrativo militar. Esta última nem ao menos pode considerar-se como competência derivada ou decorrente de qualquer das competências constitucionalmente previstas (nem sequer é de algum modo conexa com elas).

2.4 - Os tribunais militares e o contencioso administrativo militar
Para demonstrar que a Constituição não permite que a lei confie aos tribunais militares competência em matéria de contencioso administrativo militar (e que, portanto, os tribunais competentes são os tribunais administrativos) não se torna necessário provar - nem sequer alegar - que essa é que é a solução acertada e razoável no quadro de um Estado de direito democrático dotado de uma jurisdição comum de contencioso administrativo. Basta argumentar e demonstrar - como se procurou aqui fazer - que, independentemente do juízo a fazer quanto à bondade ou conveniência da solução, é essa a que a Constituição adoptou.

Sucede, todavia, que ex adverso se argumenta que a lei fundamental deve ser interpretada diversamente, quando mais não seja porque a solução legal - ou seja, a consagrada nas normas aqui em apreciação - a que se afigura ser mais razoável e mais acertada e que, por isso, se deve presumir ser a adoptada também pelo legislador constitucional. As mesmas razões que impuseram a competência dos tribunais militares no domínio penal militar e a sua admissão no domínio disciplinar militar reclamariam também a sua competência na área do contencioso administrativo militar.

A este propósito pode ler-se no acima referido acórdão do STM o seguinte argumento:

Ora o que sucede, no campo criminal, com os crimes essencialmente militares sucede em outros, nomeadamente disciplinar e, limitadamente, administrativo.

[...]
Pelo menos desde 1945, a lei tem atribuído aos tribunais militares, ou, melhor, a este Supremo Tribunal, a jurisdição contenciosa administrativa relativamente às promoções e mudanças de situação dos militares dos quadros permanentes, ou actos correlativos (demoras, preterições e posição nas escalas de antiguidades).

Os actos administrativos cuja legalidade se discute através destes recursos contenciosos são extraordinariamente complexos, porque o processo respectivo da formação da vontade da Administração se fundamenta em numerosos preceitos legais, todos eles eivados de uma linguagem técnica militar e concedendo margens de discricionariedade que é difícil balizar.

[...]
Pela complexidade dos actos administrativos respectivos, pela especialidade que eles revestem, pelo risco que pode causar confiar a outrem a sua última apreciação, a lógica impõe que, existindo órgãos judiciais militares, de composição mista, sejam estes a apreciar a legalidade de tais actos.

Não se nega a experiência, o saber e a muita competência do douto Supremo Tribunal Administrativo ou de qualquer outro alto tribunal. Mas uma coisa é o direito administrativo tout court e outra o direito administrativo castrense, tendo este especialidades tão flagrantes que os próprios juízes togados deste Supremo Tribunal, não obstante a larga experiência nestas matérias, apenas as conseguem julgar com justiça com a intervenção e a participação dos juízes militares escolhidos de entre os que atingem os mais altos postos das Forças Armadas.

Por isto mesmo, o Governo afirmou expressamente ser gravemente inconveniente a transferência desta jurisdição para fora da competência dos tribunais militares. Secundou-o a Assembleia da República, ao manter o n.º 4 do artigo 59.º da Lei 29/82.

Deste modo, os tribunais militares são os naturalmente vocacionados para o julgamento destas questões e, mais do que isso, só eles o são. [Itálicos acrescentados.]

Não pode, porém, acompanhar-se um discurso desta natureza. Por mais específica que seja a administração militar, não pode compartilhar-se do entendimento que essa especificidade seja tal que imponha que o respectivo contencioso seja retirado aos tribunais comuns do contencioso administrativo para ser entregue aos tribunais militares e que essa consideração seja de tal modo exigente que sobreleve todas as outras, em termos de conduzir a uma leitura da Lei Fundamental que a todas as demais luzes não é comportável pelos seus princípios e preceitos.

É essencialmente variável com os tempos e com o quadro político-constitucional o entendimento daquilo que são as particularidades da «instituição militar» nos seus reflexos em matéria jurisdicional. Houve tempos - até 1976! - em que se considerava que tal especificidade impunha a existência de um foro pessoal dos militares, que não podiam ser julgados pelos tribunais comuns; também à luz da mesma especificidade se consentiu durante muito tempo nessa área a existência de actos administrativos insusceptíveis de impugnação contenciosa, ao mesmo tempo que se submetiam as próprias decisões dos tribunais militares a homologação das autoridades militares. Naturalmente, nada disso é hoje defensável, nem, muito menos, constitucionalmente tolerável. Por isso, nesta área justifica-se um prudente relativismo, que evite a hipostasiação da especificidade do contencioso administrativo militar.

É de rejeitar todo o entendimento de que certas áreas do contencioso administrativo devem, por natureza, ser da competência dos tribunais militares, constituindo uma espécie de reserva necessária destes; e muito menos pode aceitar-se que, qualquer que seja o juízo de conveniência que se faça quanto a este assunto motivado ou não por prejuízos de índole castrense -, tal concepção tenha de determinar à outrance a leitura da Constituição quanto à matéria.

Cabe aqui recordar o que a este respeito ficou dito no Acórdão 135/85 deste Tribunal:

Não parece legítimo afirmar que é de tal forma desacertado remeter para os tribunais administrativos o julgamento dos recursos contenciosos cuja única especialidade radica no facto de respeitarem a actos praticados no âmbito da instituição militar que se justificaria proceder aí a uma interpretação correctiva da Constituição. Tanto mais que hoje, após a revisão constitucional, a referida instituição militar se inscreve, sem margem para dúvidas, na Administração Pública, como decorre da inclusão do artigo 270.º - respeitante a militares - no título VIII da Constituição («Administração Pública») e da alteração da epígrafe do título IX (de «Forças Armadas» para «Defesa Nacional»).

A única competência constitucional normal - e, por assim dizer, natural - dos tribunais militares é a que respeita ao direito penal militar (julgamento dos crimes essencialmente militares). Quanto ao mais que a Lei Fundamental refere, é apenas uma faculdade deixada ao legislador. O que está para além disso não tem cobertura constitucional.

3 - Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 107.º do Decreto-Lei 46672, de 29 de Novembro de 1965, e do artigo 134.º do Decreto-Lei 176/71, de 30 de Abril, bem como, na parte em que referem a competência do Supremo Tribunal Militar, das normas dos artigos 108.º, 110.º, 111.º e 112.º do primeiro daqueles diplomas e dos artigos 136.º, 137.º, n.º 1, 138.º, 140.º e 141.º do segundo dos mencionados diplomas.

Tribunal Constitucional, 12 de Março de 1986. - Vital Moreira - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Diniz - Raul Mateus - José Manuel Cardoso da Costa - António Luís Correia da Costa Mesquita - José Magalhães Godinho - Mário Afonso - Armando Manuel Marques Guedes.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42946.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1965-11-29 - Decreto-Lei 46672 - Presidência do Conselho - Gabinete do Ministro da Defesa Nacional

    Promulga o Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas.

  • Tem documento Em vigor 1971-04-30 - Decreto-Lei 176/71 - Ministério do Exército - Repartição do Gabinete do Ministro

    Aprova o novo Estatuto do Oficial do Exército.

  • Tem documento Em vigor 1981-01-23 - Decreto-Lei 5-A/81 - Conselho da Revolução

    Dá nova redacção aos artigos 54.º, 75.º, 76.º, 77.º, 110.º e 111.º do Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas (EOFA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46672, de 29 de Novembro de 1965.

  • Tem documento Em vigor 1981-10-07 - Portaria 891/81 - Conselho da Revolução - Estado-Maior do Exército

    Dá nova redacção aos artigos 44.º, 57.º, 59.º, 60.º, 70.º, 71.º, 72.º e 140.º do Decreto-Lei n.º 176/71, de 30 de Abril (Estatuto do Oficial do Exército), em cumprimento do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 5-A/81, de 23 de Janeiro.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1982-12-11 - Lei 29/82 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1986-06-27 - Acórdão 204/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 196.º, alínea b), do Estatuto do Oficial da Força Aérea, aprovado pelo Decreto n.º 377/71, de 10 de Setembro, por violação do artigo 218.º da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1987-03-17 - Acórdão 38/87 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 196.º, alínea a), do Estatuto do Oficial da Força Aérea Portuguesa (EOFAP), aprovado pelo Decreto n.º 377/71, de 10 de Setembro. ( Proc. nº 221/86 )

  • Tem documento Em vigor 1988-01-15 - Acórdão 461/87 - Tribunal Constitucional

    Não declara a inconstitucionalidade de várias normas da Lei n.º 49/86, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1987, e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de alguns preceitos da mesma lei.

  • Tem documento Em vigor 1995-09-06 - Acórdão 472/95 - Tribunal Constitucional

    PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS CONSTANTES DO ARTIGO 1 DO DECRETO NUMERO 266/VI DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, QUANDO CONJUGADO COM O DISPOSTO NAS ALÍNEAS F) E G) DO SEU ARTIGO 2, POR VIOLAÇÃO DO PRECEITUADO NO ARTIGO 167, ALÍNEA L), DA CONSTITUICAO DA REPÚBLICA PORTUGUESA - RESERVA ABSOLUTA DE COMPETENCIA LEGISLATIVA -, NAO SE PRONUNCIA PELA INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA CONSTANTE DO ARTIGO 1 DO DECRETO ACIMA REFERIDO, CONJUGADA COM O DISPOSTO NA ALÍNEA A) DO ARTIGO 2 DO MESMO DECRETO. (PR (...)

  • Tem documento Em vigor 2002-06-25 - Acórdão 207/2002 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 127.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril.

  • Tem documento Em vigor 2008-08-18 - Acórdão do Tribunal Constitucional 402/2008 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se no sentido da inconstitucionalidade ou da não inconstitucionalidade de várias normas do Decreto n.º 217/X, da Assembleia da República, que aprovou a 3.ª revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.

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