Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 207/2002, de 25 de Junho

Partilhar:

Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 127.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril.

Texto do documento

Acórdão 207/2002

Processo 110/93.

Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:

I

1 - O Provedor de Justiça veio, no uso da competência que o artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa lhe confere, reproduzida pelo artigo 20.º, n.º 4, da Lei 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade:

I) Das normas contidas nos artigos 120.º, n.os 1 e 2, 122.º, 123.º, 124.º, n.º 1, 125.º, n.os 1 e 2, 126.º, n.º 1, e 127.º, em toda a sua extensão e conteúdo, do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, com a redacção que aqueles preceitos receberam do artigo 2.º do Decreto-lei 226/79, de 21 de Julho;

II) Das normas contidas nos artigos 138.º e 145.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei 465/83, de 31 de Dezembro;

III) Da norma contida no artigo 59.º, n.º 4, segunda parte, da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei 29/82, de 11 de Dezembro).

Alega em síntese:

A) Introdutoriamente, em geral:

2 - O artigo 120.º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina Militar [aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril (doravante RDM)] estabelece a competência do Supremo Tribunal Militar para o contencioso administrativo disciplinar relativamente aos actos praticados pelos chefes dos estados-maiores (CEM).

O artigo 126.º, n.º 1, do RDM opera uma remissão genérica para o direito processual militar [Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pelo Decreto-Lei 141/77, de 9 de Abril], relativamente aos recursos contenciosos daqueles actos.

Isto significa que, no tocante aos actos disciplinares para cuja definitividade e executoriedade seja necessária decisão proferida pelos CEM, há lugar a recurso de anulação para a jurisdição militar, nos termos do processo previsto no CJM.

O exercício do poder disciplinar militar, no entanto, não foi exclusivamente confiado aos CEM.

Com efeito, o artigo 37.º do RDM, completado por quadro anexo ao diploma, apresenta um sistema desconcentrado de competências em matéria disciplinar.

Em traços gerais, estão presentes dois critérios nesta distribuição: um primeiro, no sentido de à gravidade da pena disciplinar corresponder, proporcionalmente, uma competência punitiva situada em nível mais elevado da hierarquia militar; um segundo, fazendo depender da qualidade do infractor (oficial, sargento, cabo ou outras praças) a competência punitiva, da mesma escala hierárquica.

Do acto de punição disciplinar cabe reclamação - aliás, necessária para efeitos de impugnação (cf. o artigo 114.º, n.º 1, do RDM) - e recurso hierárquico «para o chefe imediato da autoridade que o puniu» (artigo 114.º, n.º 1).

A decisão então proferida confere definitividade vertical ao acto punitivo, de modo a tornar-se contenciosamente recorrível.

No entanto, para conhecer do recurso contencioso desse acto (cuja definitividade seja alcançada em nível inferior aos dos CEM) é competente não a jurisdição militar mas a jurisdição contenciosa administrativa.

Este é o entendimento que resulta da interpretação conforme à Constituição do artigo 119.º, n.º 2, do RDM, fixada pelo Acórdão 90/88 do Tribunal Constitucional (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 391 e 404-406).

Esta matéria encontra-se, assim, sob uma dualidade de regimes, a qual, como se afirma no referido aresto, parte «da entidade que haja proferido a decisão recorrida».

A Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei 29/82, de 11 de Dezembro, a seguir LDNFA) não é, de todo, alheia a esta situação, na medida em que admite o recurso para o Supremo Tribunal Militar de actos disciplinares praticados pelos CEM (cf. artigo 59.º, n.º 4).

E afirma-se que o admite porquanto, no tocante ao recurso contencioso de anulação de tais actos, deixa a atribuição da competência aos termos da lei (cf. o artigo 59.º, n.º 4, idem).

Lei essa que é, de momento, o RDM nos seus artigos 120.º e seguintes.

A LDNFA admite, assim, a impugnação contenciosa de actos dos CEM, em matéria disciplinar, junto do Supremo Tribunal Militar, tanto quanto o permitam as leis definidoras das competências daquele Tribunal - o Código de Justiça Militar e, neste ponto, o artigo 120.º, n.º 1, do RDM.

A norma contida no artigo 120.º (em ambos os seus números), bem como todas as outras normas do RDM supra-enunciadas, as quais pressupõem a validade da primeira, violam o disposto nos artigos 214.º, n.º 3, e 215.º, n.º 3, em articulação com o artigo 113.º, n.º 2, e violam ainda o direito garantido no artigo 268.º, n.º 4, sem encontrarem cobertura nas normas e princípios do artigo 18.º, todos da Constituição.

Deve, a título subsidiário, aduzir-se que o artigo 127.º do RDM, pelas limitações que introduz ao conhecimento do objecto do recurso, viola acrescidamente o preceituado no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.

Ainda que, por hipótese, as restantes normas que admitem ou pressupõem a competência do Supremo Tribunal Militar em matéria de contencioso administrativo militar não se encontrassem feridas de inconstitucionalidade, sempre a norma do artigo 127.º haveria de ter-se como inválida.

Quanto às normas do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (aprovado pelo Decreto-Lei 465/83, de 31 de Dezembro, doravante EMGNR), cuja constitucionalidade se pretende ver fiscalizada, dir-se-á que, quanto à primeira (a do artigo 138.º), colide com as garantias do recurso contencioso de anulação (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição), a menos que seja interpretada em conformidade à Constituição em sentido idêntico ao que recebeu o artigo 119.º, n.º 2, do RDM pelo Acórdão 90/88 do Tribunal Constitucional.

Por seu turno, a norma do artigo 145.º do EMGNR, ao admitir o recurso contencioso de certos actos administrativos para os tribunais militares, viola os artigos 214.º, n.º 3, 215.º, n.º 3, e 268.º, n.º 4, da Constituição.

B) Em especial quanto à violação da norma do artigo 215.º, n.º 3, da Constituição pelas normas dos artigos 120.º do RDM, 59.º, n.º 4, segunda parte, da LDNFA e 145.º do EMGNR:

3 - O requerente centra a atenção no artigo 120.º do RDM, pois as normas dos artigos 122.º, 123.º, 124.º, 125.º e 126.º, bem como, de resto, a do artigo 59.º, n.º 4, da LDNFA e a do artigo 145.º do EMGNR, fazem depender a sua conformidade constitucional da validade da primeira.

O vício de inconstitucionalidade apontado a tal norma (artigo 120.º do RDM) resulta do facto de não poder resultar do n.º 3 do artigo 215.º da Constituição, eliminado na revisão de 1997, a competência dos tribunais militares em matéria de contencioso administrativo disciplinar.

O que se retira da interpretação literal do referido n.º 3 do artigo 215.º da Constituição é, tão-só, a faculdade concedida ao legislador ordinário de levar a cabo uma jurisdicionalização da aplicação de medidas disciplinares.

Tendo presente, por um lado, o rigor dos deveres disciplinares castrenses [artigo 4.º do RDM, aplicável, também, aos militares da Guarda Nacional Republicana (GNR) ex vi do artigo 4.º do EMGNR] e, por outro, a imperiosa necessidade da sua observância estrita, pode compreender-se a gravosidade de algumas penas disciplinares, nomeadamente a pena de prisão (artigos 27.º e 28.º do RDM), reconhecida, aliás, pela Constituição [artigo 27.º, n.º 3, alínea c), actualmente alínea d) pela revisão de 1997].

Quanto à competência jurisdicional, recorde-se a situação excepcional dos tribunais militares face à proibição da existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes, do artigo 211.º, n.º 4, hoje artigo 209.º, n.º 4, da Constituição.

Se a competência dos tribunais militares é definida por regra excepcional, ela deve como tal ser interpretada.

Não pode ser esquecido, por sua vez, que as normas em matéria de competência dos tribunais militares terão de observar o disposto no artigo 113.º, n.º 2, hoje artigo 110.º, n.º 2, da Constituição (reserva de constituição).

Por ocasião da segunda revisão constitucional, a propósito das propostas de alteração (e até de supressão) do artigo 215.º, salienta-se uma intervenção do deputado Miguel Galvão Teles, a qual, de algum modo, ilustra a origem do preceito:

«Alguns passos se deram no sentido de cingir os tribunais militares a certo domínio, seja o que resultou da interpretação do Tribunal Constitucional, no sentido de que tinha, na revisão de 1982, sido impedido que os tribunais militares funcionassem como tribunais de contencioso administrativo». (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-RC, n.º 49, de 22 de Outubro de 1988, p. 1525; itálico nosso.) Não se diga em desfavor do entendimento aqui propugnado do artigo 215.º, n.º 3, que o artigo 27.º, n.º 3, alínea c), a tanto obsta.

Aqui se prevê que da aplicação de uma medida de prisão disciplinar se possa recorrer para o tribunal competente.

O seu alcance é imediato se - ou enquanto - o legislador não lançar mão da faculdade prevista no artigo 215.º, n.º 3, no sentido de o acto administrativo disciplinar das Forças Armadas ceder o lugar ao acto jurisdicional.

Nesses termos, a referida norma constitucional pretende traduzir uma garantia de recurso contra acto praticado pela administração militar, dos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição. O tribunal competente a que se refere não pode deixar de ser um tribunal administrativo.

Ainda que se assista à jurisdicionalização do procedimento disciplinar militar, o n.º 3 do artigo 27.º sempre garantirá o recurso para o tribunal competente - em tal caso, um tribunal militar.

Fica-lhe reservado o sentido de admitir uma medida disciplinar preventiva de prisão «pelo tempo e nas condições que a lei determinar» (artigo 27.º, n.º 3).

A interpretação defendida supra do artigo 215.º, n.º 3, em nada faz perder o conteúdo útil da regra contida no artigo 27.º, n.º 3, alínea c), observando-se, mais uma vez, a harmonia no quadro do sistema.

Uma coisa é confiar à administração militar a aplicação de sanções disciplinares aos elementos das Forças Armadas, com recurso por ilegalidade para o Supremo Tribunal Militar.

Outra será entregar tal função aos tribunais, ainda que militares.

Onde a Constituição consente a primeira e abre as portas à segunda, não pode deixar de vedar a solução actual (artigo 120.º do RDM): a aplicação de medidas sancionatórias pela Administração com recurso para um tribunal militar.

Bem se vê, pois, que apenas dois sistemas são possíveis à luz do artigo 215.º, n.º 3.

O primeiro será o de conferir o exercício do poder sancionatório à função administrativa (no âmbito das Forças Armadas), com a garantia de recurso para a jurisdição contenciosa administrativa (ou até comum, eventualmente).

O segundo passará pela jurisdicionalização pura e simples da aplicação das penas disciplinares militares - ou das mais gravosas, no limite. O jus puniendi disciplinar transitaria da hierarquia militar para os tribunais militares, garantindo-se o recurso no âmbito da jurisdição.

A solução resultante dos artigos 120.º e seguintes do RDM, acompanhada pelo artigo 145.º do EMGNR e permitida pelo artigo 59.º, n.º 4, da LDNFA, não se compagina com nenhum dos sistemas constitucionalmente admissíveis - razão pela qual viola o artigo 215.º, n.º 3, da Constituição.

Em suporte da posição sustentada, parece ser a leitura que do artigo 215.º, n.º 3, fazem Gomes Canotilho e Vital Moreira:

«Trata-se de uma abertura para a jurisdicionalização de medidas disciplinares, certamente das mais graves, entre as quais se encontram medidas privativas da liberdade, as quais, apesar de autorizadas pela Constituição [artigo 27.º, n.º 3, alínea c)], sempre se apresentam dificilmente harmonizáveis com os princípios do Estado de direito democrático.» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. 11, 1985, pp. 335 e 336, em anotação ao artigo 218.º, n.º 3, da versão constitucional de 1982, que hoje corresponde ao artigo 215.º, n.º 3.) C) Em especial quanto à violação da regra sobre competência dos tribunais administrativos e fiscais (artigo 214.º, n.º 3, da Constituição):

4 - No quadro de referências fornecidas pelo nosso texto constitucional, nada parece apontar no sentido de apartar as Forças Armadas da Administração Pública - antes pelo contrário.

Pese embora a sistematização dos títulos IX (Administração Pública) e X (Defesa Nacional), é no primeiro que se encontra tratada a matéria das restrições ao exercício de certos direitos por parte dos militares e agentes militarizados (cf. o artigo 270.º).

Em princípio, todas as normas e princípios contidos no título IX que não colidam com o disposto no título X aplicam-se às Forças Armadas.

Assim, o litígio emergente da aplicação de uma sanção disciplinar ao abrigo do RDM não deixa de ser um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, apesar das especificidades da disciplina militar, como, de resto, sucede noutras áreas da Administração.

O litígio emerge, pois, do binómio poder disciplinar do superior/deveres militares (artigo 4.º do RDM).

Para a resolução de tais litígios, são competentes, nos termos do artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, os tribunais administrativos e fiscais, sem excepções.

Após a segunda revisão constitucional, a existência de uma jurisdição contenciosa administrativa ficou constitucionalmente vinculada, nos termos do artigo 211.º, n.º 1, alínea b).

Por outro lado, a competência dos tribunais administrativos e fiscais foi definida constitucionalmente (artigo 214.º, n.º 3).

A justiça administrativa encontra, hoje, nesta norma uma verdadeira reserva de jurisdição.

Ora, sem prejuízo do papel que possa confiar-se aos tribunais arbitrais, a resolução jurisdicional «de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais» não pode ser subtraída, em nome de critério algum, aos tribunais previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 211.º da CRP (cf., de novo, o artigo 113.º, n.º 2).

Ao ser retirada do Supremo Tribunal Administrativo a competência sobre o contencioso administrativo disciplinar das Forças Armadas e das forças militarizadas, não pode deixar de se infringir a norma do artigo 214.º, n.º 3, da Constituição.

D) Em especial quanto à inconstitucionalidade por violação do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição:

5 - O recurso contencioso de anulação de actos administrativos encontra-se garantido pelo artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, em termos de não excluir a priori quaisquer actos administrativos.

Muito embora esta garantia se encontre colocada fora do título II da parte I da Constituição, goza do regime de protecção dos direitos, liberdades e garantias por via da cláusula de extensão do artigo 17.º da Constituição.

Por consequência, vê salvaguardada a sua posição contra restrições efectuadas à margem do disposto no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição.

Ao estabelecer a competência do Supremo Tribunal Militar para conhecer dos recursos contenciosos de alguns actos administrativos (aqueles a que se refere o artigo 120.º do RDM), restringe a esfera de protecção do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.

O recurso contencioso, por ilegalidade, de todos e quaisquer actos administrativos que firam direitos ou interesses legalmente protegidos não pode deixar de ser o recurso para os tribunais administrativos, com todas as garantias e meios processuais, principais ou acessórios, que o estatuto e a lei reguladora do processo oferecem ao administrado recorrente.

A compreensão do alcance da norma constitucional contida no n.º 4 ficaria incompleta sem observação da norma do n.º 5 do artigo 268.º da Constituição.

Depois de garantir o recurso contencioso, a Constituição viu introduzida em 1982 a garantia da chamada acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido (artigo 268.º, n.º 3, de então).

A segunda revisão constitucional foi mais longe e, em seu lugar, através do n.º 5 do artigo 268.º, pretendeu assegurar a plenitude do acesso à justiça administrativa para tutela de direitos e interesses legalmente protegidos.

O recurso que os artigos 120.º do RDM e 145.º do EMGNR garantem é, notoriamente, de alcance mais restrito que o recurso contencioso garantido pela Constituição, a tal ponto que, sob a mesma designação, se observam regimes jurídicos profundamente diversos.

Antes de mais, o RDM, através do seu artigo 126.º, afasta a aplicação das normas sobre contencioso administrativo [Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), aprovada pelo Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho] ao remeter para «as normas de processo previstas no Código de Justiça Militar».

As garantias oferecidas aos administrados recorrentes pela LPTA (a começar pelos meios processuais acessórios dos artigos 76.º e seguintes), no recurso contencioso do artigo 120.º do RDM, cedem o lugar às garantias oferecidas pelo Código de Justiça Militar (aprovado pelo Decreto-Lei 141/77, de 9 de Abril) - num processo de ordem criminal (cf. os artigos 322.º e seguintes do CJM).

Também os prazos (artigo 123.º do RDM), as condições de interposição (artigo 124.º) e os limites de conhecimento do objecto do recurso (artigo 127.º) se afastam do regime desenvolvido pelo legislador ordinário a partir do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.

O regime que decorre dos artigos 120.º e seguintes do RDM e 145.º do EMGNR, ao abrigo do artigo 59.º, n.º 4, segunda parte, da LDNFA, traduz-se num regime especial sem qualquer justificação constitucional. Abre uma ruptura na garantia de recurso contencioso, pois conduz à existência de um género com espécies diferentes - sendo certo que uma delas é claramente minimizadora das garantias dos administrados.

E) Em especial quanto à inconstitucionalidade própria de que padecem os artigos 127.º do RDM e 138.º do EMGNR:

6 - Ainda que, por hipótese, não fossem inconstitucionais as restantes normas enunciadas do RDM, do EMGNR e da LDNFA, sempre haveria de concluir-se pela inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 127.º do RDM e 138.º do EMGNR.

Trata-se, pelo menos em relação ao artigo 127.º do RDM, de arguir subsidiariamente - não outro vício, porquanto o vício é o mesmo, inconstitucionalidade por violação do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, mas outros motivos.

Em primeiro lugar, quanto à referida norma do RDM, torna-se patente o seu carácter restritivo no que toca ao conhecimento do objecto do recurso.

A gravidade das penas disciplinares aplicadas e a existência material das faltas imputadas ao arguido ficam, sem mais, fora do alcance do Tribunal.

O artigo 127.º do RDM, ao privar o Tribunal do conhecimento da gravidade das penas e ao privá-lo, também, do conhecimento da existência material dos factos, está a reduzir o bloc de legalité e a afastar a sindicalidade exigida.

Retira, assim, pelo menos quanto ao princípio da proporcionalidade, uma faixa essencial de alcance ao artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, afectando o conteúdo essencial da impugnação contenciosa de todos os actos administrativos ilegais (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição), sem encontrar apoio em qualquer valor, norma ou princípio constitucional.

Por seu turno, o artigo 138.º do EMGNR, a menos que receba uma interpretação semelhante à que o Acórdão 90/88 conferiu ao artigo 119.º, n.º 2, do RDM, enferma do mesmo vício.

O disposto naquela norma, ao impedir que seja obtida a definitividade vertical dos actos apontados nas alíneas a) e b), exclui a sua recorribilidade contenciosa.

Ou, em pior hipótese, exclui directamente a recorribilidade contenciosa dos actos a que se refere.

F) Em especial quanto à violação do direito de reclamação (artigo 52.º, n.º 1, da Constituição) pela norma do artigo 138.º do EMGNR:

7 - Cumulativamente à violação da garantia de recurso contencioso (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição) perpetrada pelo disposto no artigo 138.º do EMGNR, esta norma viola, ainda, o direito fundamental de reclamação, contido no artigo 52.º, n.º 1, da Constituição.

Se a colisão com a norma do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição pode ser evitada por meio de interpretação semelhante àquela que do artigo 119.º, n.º 2, do RDM foi feita no Acórdão 90/88, já a desconformidade com o direito de reclamação se mostra insusceptível de qualquer recuperação.

Ao impedir, por via de regra, a reclamação contra os actos de classificação ou apreciação obtidas em cursos, concursos, estágios ou provas, assim como em relação a apreciações de mérito para efeitos de promoção, está a coarctar-se, inelutavelmente, o conteúdo do mais simples meio gracioso de defesa de direitos e interesses.

E o certo é que esta restrição não encontra fundamento em parte alguma da Constituição, nem sequer na norma do artigo 270.º Primeiro, porque esta norma se reporta a restrições ao exercício de direitos, enquanto a norma do artigo 138.º do Estatuto do Militar da GNR importa a supressão de parte do conteúdo de um direito - o direito de reclamação.

Depois, porque o artigo 270.º da Constituição, no seu elenco de direitos cujo exercício por militares e agentes militarizados é restringível, não inclui o direito de reclamação.

8 - De acordo com o alegado, o Provedor da Justiça termina formulando as seguintes conclusões, assentes na redacção que os preceitos constitucionais invocados tinham em 1989:

«A) As normas contidas nos artigos 120.º, n.os 1 e 2, 122.º, 123.º, 124.º, n.º 1, 125.º, n.os 1 e 2, 126.º, n.º1, e 127.º do Regulamento de Disciplina Militar (Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 226/79, de 21 de Julho), bem como na segunda parte do n.º 4 do artigo 59.º da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei 29/82, de 11 de Dezembro) e no artigo 145.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (aprovado pelo Decreto-Lei 465/83, de 31 de Dezembro), por distorcerem as competências constitucionalmente definidas dos tribunais militares, violam directa e materialmente a norma constitucional do artigo 215.º, n.º 3, da CRP, lida em consonância com o princípio inscrito no artigo 113.º, n.º 2, da CRP;

B) As mesmas normas são inconstitucionais, também, por reduzirem a competência constitucionalmente consagrada dos tribunais administrativos e fiscais, violando, assim, a norma do artigo 214.º, n.º 3, da CRP, à luz do princípio vertido no artigo 113.º, n.º 2, da CRP;

C) Padecem de inconstitucionalidade directa e material, ainda, por produzirem uma significativa ablação ao conteúdo essencial da garantia de recurso contencioso de todos os actos administrativos, a qual, ex vi do artigo 268.º, n.º 5, da CRP, compete à justiça administrativa; colidem, pois, com a norma do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição;

D) A norma do artigo 127.º do Regulamento de Disciplina Militar viola, por si, a norma constitucional do artigo 268.º, n.º 4. Isto é, sem prejuízo das desconformidades desta norma com os princípios e normas constitucionais apontados na alínea a), b) e c), ela colide, autonomamente, com a garantia de recurso contencioso dos actos administrativos lesivos e feridos de ilegalidade, ao retirar ao conhecimento do julgador parte substancial dos elementos vinculados (e não técnicos ou discricionários) de certos actos;

E) A norma vertida no artigo 138.º do Estatuto Militar da Guarda Nacional Republicana enferma de inconstitucionalidade por excluir o recurso (gracioso e contencioso) de certos actos administrativos. Será assim, a menos que receba interpretação conforme à Constituição, no sentido de querer excluir, apenas, o recurso hierárquico necessário, conferindo a tais actos imediata recorribilidade contenciosa. Todavia, sempre parte da norma em questão sofrerá de inconstitucionalidade ao vedar o direito fundamental de reclamação, colidindo, assim, com o disposto no artigo 52.º, n.º 1, da Constituição.» 9 - Foram notificados o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro para responderem.

O Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou documentos.

O Primeiro-Ministro respondeu ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, alegando, em conclusão:

«a) Que o n.º 3 do artigo 215.º da Constituição da República habilita o legislador a atribuir por lei ordinária aos tribunais militares a competência para aplicarem sanções disciplinares a militares, através do julgamento de recursos interpostos dos actos definitivos e executórios praticados pela administração castrense;

b) Que o artigo 120.º do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), ao atribuir essa mesma competência ao Supremo Tribunal Militar relativamente a decisões sancionatórias dos chefes de estado-maior, é plenamente compatível com o disposto no artigo 215.º, n.º 3, da CRP, determinando-se consequentemente, através do princípio da especialidade acolhida por este último artigo, uma compressão legítima da competência genérica e residual dos tribunais administrativos e fiscais, contida no n.º 3 do artigo 214.º da CRP, a qual assumirá, na situação vertente, carácter supletivo;

c) Que o referido preceito do RDM não restringe ilegitimamente a garantia prevista no n.º 4 do artigo 268.º da CRP, pois esta última disposição limita-se a assegurar aos administrados a faculdade de interposição de recurso contencioso de actos administrativos com fundamento em ilegalidade, e não a fixar a jurisdição competente para proceder ao correspondente julgamento;

d) Que sendo o artigo 120.º da RDM plenamente compatível com a lei fundamental, no âmbito da interpretação conforme à Constituição acolhida na presente resposta, se têm igualmente por constitucionais certas disposições sindicadas que do mesmo preceito dependem, como é o caso dos artigos 122.º e 123.º, do n.º 1 do artigo 124.º, dos n.os 1 e 2 do artigo 125.º, do n.º 1 do artigo 126.º do RDM e, ainda, do artigo 145.º do Estatuto do Militar da Guarda Nacional Republicana (EMGNR);

e) Que o artigo 127.º do RDM restringe, sem cobertura constitucional, a amplitude do objecto do recurso contencioso garantido pela lei fundamental, ao impossibilitar os tribunais competentes de conhecerem da gravidade da pena aplicada e da existência das faltas imputadas aos arguidos, em relação causal com outros vícios que não o de desvio de poder, violando nestes termos o n.º 4 do artigo 268.º da Constituição da República;

f) Que o artigo 138.º do EMGNR é apenas parcialmente inconstitucional: o disposto naquela prescrição que veda o direito de reclamação dos administrados relativamente a actos lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos viola o n.º 1 do artigo 52.º da CRP; contudo, quer as estimativas inerentes à apreciação de mérito [alínea b)] quer os juízos de apreciação e classificação que respeitam à realização da justiça administrativa [alínea a)] constituem decisões que, pela sua natureza intrínseca, não são susceptíveis de recurso contencioso, exceptuados os elementos vinculados inerentes à decisão, cujo recurso contencioso é aliás salvaguardado pela própria lei, que dá assim cumprimento ao alcance garantístico do artigo 268.º, n.º 4, da CRP.»

II

10 - São as seguintes as normas em causa:

1) Da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas:

«Artigo 59.º

[...]

4 - Dos actos definitivos e executórios praticados pelos Chefes de Estado-Maior cabe recurso contencioso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, salvo quanto aos actos praticados em matéria disciplinar ou noutra que, nos termos da lei, sejam da competência do Supremo Tribunal Militar.» 2) Do Regulamento de Disciplinar Militar:

«Artigo 120.º

1 - Das decisões definitivas e executórias dos Chefes dos Estados-Maiores proferidas em matéria disciplinar cabe recurso contencioso para o Supremo Tribunal Militar, com fundamento em ilegalidade.

2 - O recurso a que se refere o número anterior é de anulação.

Artigo 122.º

O recorrente deve ser representado por advogado ou por oficial dos quadros permanentes de qualquer ramo das Forças Armadas, domiciliado ou prestando serviço na área dos concelhos de Lisboa e limítrofes.

Artigo 123.º

O recurso é interposto no prazo de 30 dias a contar da data da notificação da decisão recorrida.

Artigo 124.º

A petição de recurso é dirigida ao presidente do Supremo Tribunal Militar e será entregue no comando, unidade ou serviço onde o recorrente está apresentado, os quais anotarão, na própria petição, a data da apresentação e o número de documentos que a acompanham.

Artigo 125.º

1 - Os serviços onde a petição foi apresentada enviá-la-ão imediatamente, pelas vias competentes, à entidade recorrida, que poderá, querendo, responder o que tiver por conveniente no prazo de 30 dias.

2 - A petição, depois de se lhe apensar o processo disciplinar e a resposta a que se refere o número anterior, decorrido o prazo para esta, será imediatamente remetida ao Supremo Tribunal Militar, dentro do prazo a que se refere o mesmo número.

Artigo 126.º

1 - O julgamento no Supremo Tribunal obedecerá às normas de processo prescritas no Código de Justiça Militar, com exclusão da parte respeitante à discussão da causa em sessão.

Artigo 127.º

Limites do julgamento

O tribunal não poderá conhecer da gravidade da pena aplicada nem da existência material das faltas imputadas aos arguidos, salvo quando se alegue desvio de poder.» 3) Do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana:

«Artigo 138.º

Actos não admitindo reclamações e recurso

Excepto com o fundamento em desvio de poder ou em erros de registo ou de cálculo ou quaisquer outras inexactidões materiais devidas a omissão ou lapso, não são admitidas reclamações e recursos contra:

a) Classificações ou apreciações obtidas em cursos, concursos, estágios e provas;

b) Apreciações de mérito absoluto e relativo para efeitos de promoção, por entidades competentes.

Artigo 145.º

Recurso contencioso

Das decisões definitivas e executórias da hierarquia sobre matéria administrativa cabe recurso contencioso, com fundamento em vício previsto na lei, para os tribunais militares ou administrativos, conforme as respectivas competências.

O recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar da data da notificação da decisão recorrida.» 11 - Põe-se, em primeiro lugar, a questão prévia do não conhecimento do pedido quanto às normas dos artigos 138.º e 145.º do EMGNR de 1983, antes transcritos.

Com efeito, o EMGNR de 1983 foi substituído pelo Decreto-Lei 265/93, de 31 de Julho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 298/94, de 24 de Novembro, 297/98, de 28 de Setembro, 188/99, de 2 de Junho, 504/99, de 20 de Novembro, e 15/02, de 29 de Janeiro.

O Decreto-Lei 265/93, que aprovou o novo Estatuto, revogou expressamente as normas aqui em causa, dispondo no seu artigo 16.º que são revogados o Decreto-Lei 465/83, de 31 de Dezembro, e as Portarias n.os 621/85, de 20 de Agosto, e 463/86, de 23 de Agosto.

Consagra-se no novo Estatuto, expressamente, o direito de reclamação e recurso em matéria disciplinar, regulado pelo RDM (artigo 183.º) e de reclamação e de recurso hierárquico e contencioso dos actos administrativos (artigos 184.º a 190.º), desapareceram as limitações ao conhecimento do recurso e estabelece-se que o recurso contencioso dos actos administrativos é regulado pela Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.

É, pois, porque deixaram de vigorar as normas impugnadas do Estatuto de 1983 que se levanta a questão prévia do conhecimento do pedido.

Com efeito, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, carece manifestamente de interesse jurídico relevante a apreciação das normas questionadas, na sua primitiva formulação. É que, muito embora a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas revogadas se possa revestir de utilidade em certas circunstâncias, no caso vertente tal não acontece - a entender-se que as normas dos artigos 138.º e 145.º do Estatuto da GNR eram inconstitucionais, a eventual declaração de inconstitucionalidade só se projectaria sobre actos anteriores à entrada em vigor da nova redacção, sendo certo que, relativamente a eles, ou já caducou o direito ao recurso contencioso ou tal recurso foi tempestivamente interposto e a questão se encontra ainda pendente, sendo então suficientes os meios ordinários, máxime o da fiscalização concreta da constitucionalidade. O Tribunal tem invocado aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, considerando razoável exigir um interesse com conteúdo prático apreciável na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Nas palavras do Acórdão 238/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12.º vol., pp. 273 e 282):

«Seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração de inconstitucionalidade, [...] para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos por outro modo.

Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade.» É esta uma doutrina constante do Tribunal, já adoptada pela Comissão Constitucional (parecer 21/81, Pareceres da Comissão Constitucional, 17.º vol., pp. 199 e 203-204) e reafirmada, nomeadamente, pelos Acórdãos n.os 17/83 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º vol., pp. 93 e 96), 238/88, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12.º vol., pp. 273 e 282), 308/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º vol., pp. 177 e 181), 397/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25.º vol., pp. 235 e 241), 187/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., pp. 171 e 178), 453/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., pp. 221 e 231), 580/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32.º vol., pp. 35 e 39), 786/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34.º vol., pp. 23 e 34), 117/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pp. 83 e 86-87), 592/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45.º vol., pp. 7 e 13), 140/00 (Diário da República, 2.ª série, de 26 de Outubro de 2000), 413/00 (inédito) e 32/02 (Diário da República, 2.ª série, de 18 de Fevereiro de 2002).

Em consequência, não é de conhecer do pedido relativamente aos artigos 138.º e 145.º do EMGNR, aprovado pelo Decreto-Lei 465/83, de 31 de Dezembro.

12 - Restam as seguintes questões de constitucionalidade, tendo presente que o Tribunal é livre na fundamentação constitucional das suas respostas (artigo 79.º-C da Lei do Tribunal Constitucional):

A) As normas contidas no artigo 120.º, n.os 1 e 2, do RDM e no artigo 59.º, n.º 4, segunda parte, da LDN são inconstitucionais por atribuírem competência ao Supremo Tribunal Militar para o contencioso administrativo disciplinar relativamente aos actos praticados pelos CEM? B) As normas contidas nos artigos 122.º, 123.º, 124.º, n.º 1, 125.º, n.os 1 e 2, e 126.º, n.º 1, do RDM são inconstitucionais por pressuporem a validade da primeira e conjuntamente com ela reduzirem o conteúdo essencial da garantia de recurso contencioso de todos os actos administrativos? C) A norma do artigo 127.º do RDM viola autonomamente o artigo 268.º, n.º 4? A) Quanto às questões de constitucionalidade do artigo 120.º, n.º 1, do RDM e artigo 59.º, n.º 4, segunda parte, da LDN:

13 - O cerne da questão é a discussão da competência do Supremo Tribunal Militar para conhecer dos recursos em matéria disciplinar das decisões dos CEM, consagrada no artigo 59.º, n.º 4, segunda parte, da LDN e no artigo 120.º, n.os 1 e 2, do RDM, face ao disposto no artigo 215.º da Constituição na versão de 1989.

Convém, para situar o problema, analisar no plano constitucional a evolução das competências da jurisdição militar.

Dispunha o primitivo artigo 218.º da Constituição de 1976:

«Artigo 218.º

Competência dos tribunais militares

1 - Os tribunais militares têm competência para o julgamento, em matéria criminal, dos crimes essencialmente militares.

2 - A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparados aos previstos no n.º 1.» Duas posições radicalmente opostas foram alinhadas no tocante à interpretação desta norma:

Uma, sufragada por J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1978, p. 406), fazia uma leitura muito restritiva do preceito e, defendendo a tese contrária a qualquer extensão da competência de jurisdições especiais, entendia que a Constituição outorgaria unicamente aos tribunais militares competências para julgamento em matéria criminal, em domínios que abarcariam crimes essencialmente militares (ou crimes dolosos equiparados àqueles, quando a lei ordinária, com fundamentos relevantes, o viesse a determinar).

Outra posição, que era então defendida pelos tribunais militares e pelo Supremo Tribunal Administrativo (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Maio de 1979, Acórdãos Doutrinais, n.º 215, pp. 977 e segs.), segundo a qual o artigo 218.º não definiria toda a competência passível de exercício legítimo pelos tribunais militares. O preceito limitar-se-ia apenas a tornar explícita a competência das jurisdições castrenses em matéria criminal, não vedando todavia que a lei ordinária pudesse atribuir às mesmas jurisdições outras faculdades (mormente as correspondentes ao contencioso administrativo militar, seja de tipo comum, seja em matéria disciplinar).

Dos dois entendimentos prevaleceu o segundo na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que, na linha do acórdão anteriormente citado, se julgou incompetente para apreciar recursos interpostos pelos administrados no âmbito do contencioso administrativo militar.

A expressão «em matéria criminal», ínsita no n.º 1 do artigo 218.º, foi então interpretada como a explicitação exemplificativa de um domínio material de competência e não como uma proibição de um possível acesso dos referidos órgãos, na base de uma habilitação legislativa, a competências susceptíveis de envolver áreas substantivas de natureza não criminal.

14 - Com a revisão constitucional de 1982, o artigo 218.º foi alterado, tendo resultado dos trabalhos preparatórios a intenção de se limitar a competência da jurisdição militar ao foro essencialmente criminal e, eventualmente, ao foro disciplinar.

Passou a dispor o seguinte, o referido preceito:

«Artigo 218.º

Tribunais militares

1 - Compete aos tribunais militares o julgamento de crimes essencialmente militares.

2 - A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparados aos previstos no n.º 1.

3 - A lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de medidas disciplinares».

Este artigo manteve a sua redacção na revisão constitucional de 1989, passando a ser o artigo 215.º A revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional 1/97) veio substituir o artigo 215.º pelo actual 213.º, que dispõe:

«Durante a vigência do estado de guerra serão constituídos tribunais militares com a competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar.» O n.º 3 do artigo 211.º da Constituição estabelece:

«Da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes estritamente militares fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei».

O artigo 197.º da Lei Constitucional 1/97 estabelece, porém, que:

«Os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regula o disposto no n.º 3 do artigo 211.º da Constituição.» Em consequência desta disposição, a questão deve ser analisada à luz da situação jurídico-constitucional anterior, ou seja, o artigo 215.º na versão de 1989.

Também não foi pacífica a interpretação deste artigo no concernente à competência jurisdicional relativa ao contencioso administrativo militar.

O Supremo Tribunal Militar acolheu a tese segundo a qual, para lá das competências que lhe seriam atribuídas pelo artigo 215.º da Constituição, aquele órgão poderia ter outras competências outorgadas pela lei ordinária.

Tendo a mesma lei concedido faculdades jurisdicionais relativas a matérias do contencioso administrativo castrense aos tribunais militares, estes seriam legitimamente competentes para julgar nesse mesmo âmbito substantivo.

Mais aduzia o Supremo Tribunal Militar, em reforço da sua posição, que a «complexidade» e a «especialidade» dos actos administrativos militares obstariam racionalmente que fossem os órgãos judiciais comuns a apreciar a respectiva legalidade (acórdão proferido no processo 192/A/114/M/84, citado no Acórdão 81/86 do Tribunal Constitucional, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., t. I, pp. 103 e 123).

O Tribunal Constitucional entendeu que, com a eliminação do inciso «em matéria criminal» do n.º 1 do artigo 218.º, e com a adição do n.º 3, relativo a competências eventuais em matéria disciplinar, o referido preceito passou a delimitar de forma mais precisa os poderes dos tribunais militares.

A Constituição passou a fixar aos tribunais militares competências explícitas e de exercício imediato em matéria criminal com incidência castrense, quanto aos crimes essencialmente militares, facultando também à mesma jurisdição, por alargamento operável pelo legislador ordinário, outras competências em matéria criminal, nas condições previstas no n.º 2, e em matéria disciplinar.

Não há hoje dúvidas de que o chamado contencioso administrativo militar (exceptuada a vertente disciplinar) ficou retirado do universo da competência jurisdicional castrense, passando as faculdades ao mesmo respeitantes a ser atribuídas, nos termos gerais do artigo 214.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, ao foro dos tribunais administrativos.

Assim, o Tribunal Constitucional julgou contrárias à Constituição, primeiro em processos de fiscalização concreta e depois em processos de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade (Acórdãos n.os 81/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol. t. I, pp. 103, e 204/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol. t. I, p. 253), disposições do antigo Estatuto do Oficial das Forças Armadas (Decreto-Lei 46672, de 29 de Novembro de 1965), do antigo Estatuto do Oficial do Exército (Decreto-Lei 176/71, de 30 de Abril) e do antigo Estatuto do Oficial de Força Aérea Portuguesa (Decreto-Lei 377/71, de 10 de Setembro), que outorgavam ao Supremo Tribunal Militar poderes para julgar matérias do contencioso administrativo das Forcas Armadas.

Se bem que o antigo artigo 215.º da Constituição (que passou a corresponder, depois da revisão constitucional de 1989, ao primitivo artigo 218.º) exclua consequentemente a possibilidade de, por via de intervenção legislativa ordinária, se poder alargar «a competência dos tribunais militares a áreas não previstas na Constituição» (Acórdão 204/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., t. I, pp. 253 e 256), o preceito em causa admite, ainda assim, essa mesma possibilidade de alargamento, realizada por acto legislativo, em relação a matérias que os preceitos constitucionais expressamente acolham.

Sendo certo que de entre as referidas matérias se encontra explicitamente mencionada, no artigo 215.º, n.º 3 (antigo artigo 218.º), a da aplicação de medidas disciplinares, não resultaram ainda assim, uma vez mais, como inteiramente pacíficos os termos exactos em que as mesmas competências jurisdicionais conexas àquele domínio podem ser exercidas pelos tribunais militares.

15 - No que respeita a competência em matéria de contencioso disciplinar, a doutrina mostra-se dividida. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, p. 817) pronunciam-se sobre a questão da forma seguinte:

«Problemática é a questão de saber se aos tribunais militares pode ser confiado o julgamento dos recursos em matéria do contencioso disciplinar militar. A solução mais conforme à Constituição é a negativa (v. nota ao artigo 27.º), visto que a norma fala em 'aplicação' de sanções disciplinares e não no julgamento dos recursos da sua aplicação administrativa, os quais, pertencendo obviamente à justiça administrativa, caem na alçada dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do artigo 214.º, n.º 1.» E na referida nota ao artigo 27.º (p. 183) acrescentam:

«Problemático é saber qual é o 'tribunal competente' a que se refere o preceito:

se os tribunais administrativos (cf. artigo 214.º, n.º 3) se os tribunais militares (artigo 211.º, n.º 4), devendo observar-se que a Constituição admite que a lei atribua a estes a competência para aplicar directamente sanções disciplinares, em vez da administração militar (cf. artigo 215.º, n.º 3) - compreendendo-se que, então, estejam necessariamente abrangidas as sanções disciplinares mais graves, incluindo as privativas da liberdade -, mas não lhes atribui competência em matéria de contencioso administrativo, pelo que, quando a pena seja de aplicação administrativa, o tribunal competente parece dever ser o STA (cf. nota ao artigo 215.º).» Esta posição, que assenta numa interpretação literal restritiva do artigo 215.º, n.º 3, da Constituição, é contrariada por outros autores.

Luís Nunes de Almeida (Justiça Militar, Colóquio Parlamentar, Lisboa, 1995, p.

80) observa:

«[...] que é manifestamente inconveniente atribuir aos tribunais administrativos o conhecimento dos recursos em matéria disciplinar, até porque é incongruente com o sistema da justiça militar. Se se vai atribuir aos tribunais o conhecimento daquilo que é específico da instituição militar em matéria criminal, não faz sentido que o que é específico em matéria disciplinar vá caber aos tribunais administrativos. Não quero dizer com isto que outra solução não fosse possível, mas, a ser decidido assim, então todo o sistema constitucional nesta matéria, para ser congruente, deveria ser reedificado.» No mesmo sentido, escreve Alexandra Leitão («A administração militar», em Jorge Miranda, Blanco de Morais, O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas, 2000, p. 510):

«Todavia, o anterior artigo 215.º da CRP, relativo aos tribunais militares, permitia à lei atribuir a estes tribunais competência para a aplicação de medidas disciplinares (artigo 215.º, n.º 3, da CRP), salvando, assim, a constitucionalidade da norma do artigo 120.º do RDM. Atendendo à natureza especial desta norma, a todas as situações que não caibam na sua previsão aplica-se a regra geral, ou seja, os tribunais administrativos são competentes para apreciar todos os recursos contenciosos de actos em matéria disciplinar que não tenham sido praticados pelo CEMGFA ou pelos chefes de estado-maior dos três ramos.» No mesmo sentido se pronunciou António Araújo («A jurisdição militar», em O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas, cit., p. 561).

16 - Outro tem sido o entendimento do Provedor de Justiça, órgão que em dois processos diferentes alegou, sucessivamente, a inconstitucionalidade dos artigos 119.º (no processo que deu origem ao Acórdão 90/88) e 120.º do RDM, no presente processo. Nos pedidos formulados, entendeu o requerente que à justiça militar em geral e ao Supremo Tribunal Militar em especial se encontraria vedado o julgamento de recursos de decisões definitivas e executórias da administração militar, em matéria disciplinar, pelo facto de a Constituição remeter essa mesma competência para os tribunais administrativos e fiscais, no quadro do n.º 3 do artigo 214.º da Constituição.

O Tribunal Constitucional entendeu, no primeiro processo, ser o artigo 119.º do RDM compatível com a Constituição através de uma interpretação conforme.

O problema da constitucionalidade do artigo 120.º do RDM, bem como dos artigos que dele se encontram dependentes, coloca-se agora, expressamente, no presente processo.

17 - A jurisprudência do Tribunal Constitucional contém referências às questões de constitucionalidade dos artigos 120.º do RDM e 59.º, n.º 4, da LDN, sem contudo se ter alguma vez pronunciado sobre elas.

Assim, no Acórdão 90/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., p.

391), o Tribunal esteve de acordo em que a norma do n.º 2 do artigo 119.º do RDM, que estabelecia que a decisão proferida em recurso hierárquico pelo chefe imediato da autoridade recorrida «é definitiva», seria inconstitucional se interpretada no sentido da irrecorribilidade (excepto nos casos das decisões dos CEM previstas no artigo 120.º do RDM). O Tribunal, porém, dividiu-se quanto à questão de saber se deveria ficar pela declaração de inconstitucionalidade, como entenderam os conselheiros Mário de Brito, Cardoso da Costa e Raul Mateus, ou de deveria adoptar uma interpretação conforme com a Constituição. A maioria pronunciou-se neste último sentido, entendendo que o recurso deveria ser para o tribunal administrativo de círculo.

Discutido foi também o ponto de saber qual a eventual consequência de uma declaração de constitucionalidade. Segundo a fundamentação do acórdão, seria ainda a de se abrir recurso para o tribunal administrativo de círculo.

Diferentemente, para o conselheiro Cardoso da Costa, haveria recurso hierárquico até ao chefe de estado-maior (embora com reserva quanto à possibilidade de alguns limites) e depois recurso contencioso para o Supremo Tribunal Militar, por força do artigo 120.º do RDM. A opinião que fez vencimento deixou, porém, em aberto a questão da conformidade à Constituição do artigo 120.º do RDM, que para o conselheiro Cardoso da Costa não oferecia dúvidas.

No Acórdão 167/92 (inédito), tendo sido suscitada no processo tão-somente a questão da inconstitucionalidade orgânica do artigo 120.º do RDM, entendeu-se que não havia interesse jurídico relevante na decisão, em face do idêntico conteúdo da norma do artigo 59.º, n.º 4, da LDN, que o tribunal a quo tinha igualmente aplicado no caso, considerando-a não inconstitucional. Neste contexto, lê-se no aresto:

«Fosse qual fosse o sentido da decisão deste Tribunal quanto à questão de constitucionalidade que lhe vem posta, o resultado seria sempre o mesmo: a competência do Supremo Tribunal Militar para conhecer do recurso em causa, ante o que dispõe o artigo 59.º, n.º 4, da Lei 29/82.» Mas também sobre esta última norma o Tribunal se não pronunciou, por ela não integrar o objecto do recurso.

18 - Passando agora a analisar a questão em apreço, cumpre dizer que, desde logo, não há violação do antigo artigo 214.º da Constituição, sobre a competência dos tribunais administrativos, que tem de se entender compatível com o artigo 215.º da mesma Constituição. Com efeito, os tribunais militares constituem uma jurisdição especial e as competências que lhes são atribuídas significam sempre uma limitação constitucionalmente legítima da jurisdição dos tribunais cuja competência genérica, caso aqueles não existissem, abarcaria normalmente essas matérias (Acórdão 81/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., t. I, pp. 103 e 121).

Ora, havendo concorrência jurisdicional de competências nas matérias penal e disciplinar, os tribunais militares, como foro especial, limitarão respectivamente, nos domínios da sua competência singular, os tribunais de competência genérica e residual, ou seja, os tribunais judiciais e administrativos (Acórdão 90/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 391 e 404).

19 - No respeitante a sanções disciplinares aplicadas a militares, estipula o artigo 120.º do RDM que caberá recurso para o Supremo Tribunal Militar de actos sancionatórios, definitivos e executórios, aprovados pelos CEM.

Regista-se assim a existência de um poder disciplinar (que incide, de um modo geral, sobre as infracções mais graves) atribuído aos órgãos máximos da hierarquia militar, bem como a consagração de um direito de recurso do administrado para a máxima instância jurisdicional que é o Supremo Tribunal Militar.

Aos tribunais em geral compete, nos termos constitucionais, a administração da justiça (n.os 1 e 2 do artigo 205.º da Constituição). Ora, no plano do contencioso disciplinar, a administração da justiça poderá processar-se através da decisão de um recurso, o qual visa resolver um litígio sobre o qual a Administração Pública já tomou posição através de uma decisão disciplinar da autoridade competente.

Através desse acto, existe já uma primeira definição de direito aplicável, facultando-se ao administrado, por via de recurso, contestar essa definição, ou questionar as circunstâncias ou os pressupostos de facto que justificaram a materialização da decisão. A jurisdição de recurso procurará determinar, se for caso disso, em termos definitivos, o direito aplicável, julgando procedente ou improcedente o recurso.

O Supremo Tribunal Militar, ao apreciar um recurso interposto de uma decisão de chefe de estado-maior, em matéria disciplinar, e ao confirmar ou anular as sanções fixadas pela hierarquia, exerce uma actividade de aplicação jurisdicional de medidas de âmbito disciplinar, inserida na actividade mais vasta da aplicação do direito pelos tribunais.

Logo isto conduz a que se deva interpretar o artigo 215.º, n.º 3, no sentido da admissibilidade de a lei ordinária poder estatuir como jurisdição competente para julgar recursos de decisões disciplinares de certos órgãos da administração militar os tribunais militares. No mesmo sentido, a alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição, quando prevê a possibilidade de os militares serem punidos, no âmbito do direito disciplinar, com pena de prisão, consagra uma garantia de recurso para o tribunal competente, remetendo neste caso específico para a lei ordinária a respectiva identificação.

Encontra-se na legítima esfera da liberdade de conformação do legislador a fixação da natureza da jurisdição de recurso dos actos da administração militar praticados em matéria disciplinar que possam, nos termos constitucionais, afectar os direitos dos administrados ou os seus interesses legalmente protegidos.

O legislador, dentro da margem de conformação que lhe foi dada pelo artigo 215.º, n.º 3, quanto à fixação da competência dos tribunais militares na aplicação do direito disciplinar, só se pronunciou, no artigo 120.º do RDM, expressamente pela competência do Supremo Tribunal Militar.

20 - A revisão de 1982 sublinhou o carácter fechado ou completo da fixação constitucional da competência dos tribunais militares ao eliminar do n.º 1 do artigo 218.º a expressão «em matéria criminal», que servia de argumento à tese oposta, e veio alargar a competência dos tribunais militares à disciplina militar, dando ao legislador ordinário a possibilidade de nela fazer incluir essa matéria.

E bem sabia o legislador constitucional que a disciplina militar era assegurada por actos de hierarquia, ao ponto de fazer consignar no próprio texto constitucional a possibilidade de haver prisão como uma das penas disciplinares.

Assim sendo, só se não fosse possível entender que a expressão literal do artigo 215.º, n.º 3, da Constituição comportaria a interpretação ampla do seu comando se poderia concluir que seria inconstitucional a norma de direito ordinário que assegurasse o recurso contencioso de um acto punitivo de um militar para os tribunais militares.

Esta solução é permitida pelo teor do artigo 215.º, n.º 3, da Constituição e assegura um mais efectivo sentido útil a este comando constitucional, sendo certo que seria dificilmente concebível que na esfera militar, onde as relações hierárquicas são especialmente importantes, a Constituição, contra a tradição histórica neste domínio, retirasse toda a competência disciplinar aos superiores hierárquicos, como seria o caso de um sistema que jurisdicionalizasse integralmente a aplicação de penas disciplinares militares.

Neste contexto, será assegurada uma maior eficácia ao artigo 215.º, n.º 3, da Constituição se se entender a expressão «aplicação de medidas disciplinares» com o sentido amplo de abranger o julgamento dos recursos contenciosos dos actos que apliquem penas disciplinares e em certos casos a aplicação dessas penas.

Assim, há que concluir que o artigo 59.º, n.º 4, da LDNFA e o artigo 120.º do RDM, ao admitirem o recurso para o Supremo Tribunal Militar dos actos dos CEM em matéria disciplinar, não violam o artigo 215.º da Constituição.

21 - Tão-pouco é correcto que o artigo 120.º do RDM restrinja o alcance do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição, na redacção de 1989. Este preceito assegurava aos interessados a garantia de recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos que, independentemente da sua forma, lesassem os seus direitos ou interesses protegidos por via legal. Ao salvaguardar um direito de recurso no plano do contencioso administrativo, a prescrição em causa não fixa todavia a jurisdição competente para julgar o referido recurso nem estabelece regras processuais específicas.

Daí que a determinação do foro administrativo, geral ou especial, competente para julgar um recurso relativo ao contencioso disciplinar militar dependa daquilo que for prescrito pelas regras constitucionais e legais relativas a esta matéria. Necessário é que respeitem as regras constitucionais referentes a um julgamento correcto e equitativo.

Ora estas, como vimos, atribuem o julgamento dos recursos das decisões de ordem disciplinar dos CEM a uma jurisdição especial, que é o Supremo Tribunal Militar. Não se restringe, pois, no artigo 120.º do RDM, um direito de recurso, o qual é expressamente salvaguardado pelo preceito sindicado; mas tão-só se determina, no respeito pelo artigo 215.º, n.º 3, da Constituição, a jurisdição competente para o julgar.

A tutela jurisdicional efectiva garantida aos administrados pelo actual n.º 4 do artigo 268.º é evidentemente extensiva aos militares e, fora da hipótese prevista no artigo 120.º do RDM, ela é assegurada pela jurisdição administrativa.

Conclui-se pela conformidade dos preceitos sindicados (artigos 120.º, 123.º, 124.º e 126.º do RDM) com o n.º 4 do artigo 268.º (quer na sua redacção anterior, quer na sua redacção actual) da Constituição.

B) Quanto à inconstitucionalidade dos artigos 122.º, 123.º, 124.º, n.º 1, 125.º, n.os 1 e 2, e 126.º do RDM:

22 - Analisada a argumentação do Provedor de Justiça, não se alcança qualquer argumentação autónoma válida quanto aos artigos 122.º, 123.º, 124.º, n.º 1, 125.º, n.os 1 e 2, e 126.º, n.º 1, do RDM.

Essas normas não distorcem as competências constitucionalmente definidas dos tribunais militares nem reduzem a competência constitucionalmente consagrada dos tribunais administrativos e fiscais.

Manifestamente, também, não afectam directa ou indirectamente o conteúdo essencial da garantia de recurso contencioso de todos os actos administrativos nem restringem os direitos de defesa dos arguidos em processo disciplinar.

Aliás, repete-se, o requerente não avança qualquer argumentação específica relevante para pôr em causa a legitimidade constitucional dos referidos preceitos.

Refere apenas que essas normas pressupõem a validade da primeira (o artigo 120.º do RDM).

Analisando cada um desses artigos, verifica-se que o artigo 122.º diz apenas respeito à possibilidade de representação por advogado ou por oficial do arguido, o que não se afasta das regras aplicáveis nos tribunais em geral, alargando mesmo, de acordo com a tradição do direito militar português, a possibilidade de o patrocínio ser exercido por oficial; o artigo 123.º fixa o prazo de recurso em 30 dias, o qual, sendo embora inferior ao do recurso para o Supremo Tribunal, não constitui, porém, uma dificuldade que impeça o acesso aos tribunais garantido no artigo 20.º ou o restrinja em medida não aceitável. A entrega da petição de recurso no local onde o recorrente está apresentado não coloca qualquer dificuldade, podendo mesmo facilitar a apresentação do recurso.

O artigo 125.º garante o direito de resposta da autoridade recorrida em termos semelhantes ao do contencioso administrativo, sendo o prazo para a resposta igual ao do recorrente. A instrução do recurso pela junção do processo disciplinar e da resposta corresponde a uma tramitação processual correcta e corresponde, em termos gerais, à tramitação dos processos em contencioso administrativo. O artigo 126.º remete quanto ao julgamento para as normas do Código de Justiça Militar, aplicáveis ao Supremo Tribunal Militar, contidas no capítulo IX deste Código, nomeadamente as normas dos artigos 454.º e 467.º, em relação às quais não foi alegada pelo Provedor de Justiça qualquer inconstitucionalidade.

Embora haja diferenças em relação à tramitação na jurisdição administrativa, essas diferenças não põem em causa direitos fundamentais dos arguidos, não ofendem as garantias constitucionais de defesa nem têm como resultado que o processo não seja equitativo (cf. os artigos 32.º e 20.º da Constituição).

Afirma o requerente que as outras normas do RDM evocadas pressupõem a validade da primeira, que ele contesta. Porém, não se pronunciando este Tribunal pela inconstitucionalidade do artigo 120.º do RDM, e analisadas, especificamente, as normas em causa e não se alcançando em que é que as mesmas poderão violar os artigos 214.º, n.º 3, e 215.º, n.º 3, em articulação com o artigo 113.º, n.º 2, ou o direito garantido no artigo 268.º, n.º 4 (na redacção que estes artigos tinham em 1989), ou, ainda, os artigos 32.º e 20.º da Constituição, não se vê razão para declarar a inconstitucionalidade das referidas normas.

C) Quanto à inconstitucionalidade do artigo 127.º do RDM:

23 - Dispõe esse artigo: «O tribunal não poderá conhecer da gravidade da pena aplicada nem da existência material das faltas imputadas aos arguidos, salvo quando se alegue desvio de poder.» Este preceito foi inspirado na redacção do artigo 817.º do Código Administrativo e do artigo 20.º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei 40768, de 8 de Setembro de 1956).

Dispunha, nomeadamente, o último dos dois preceitos o seguinte: «Nos recursos das decisões proferidas em processos disciplinares em que sejam arguidos agentes administrativos, o tribunal não poderá conhecer da gravidade da pena aplicada nem da existência material das faltas imputadas aos arguidos, salvo quando a lei fixar expressamente quer a existência da infracção ou pena quer as condições quando se alegue desvio de poder.» Estas duas disposições mencionadas entravam em conflito com o conteúdo do texto originário do n.º 2 do artigo 269.º da Constituição, o qual garantia aos interessados «recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios». Foi então entendido que a entrada em vigor da Constituição teria revogado os dois preceitos mencionados.

Em consequência, tais limitações desapareceram do direito administrativo comum.

O n.º 4 do artigo 268.º da Constituição, quer na sua redacção anterior, quer na actual, estabelece que:

«É garantida aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.» Assegura, pois, aos interessados recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra quaisquer actos administrativos que lesem os seus interesses legalmente protegidos. Segundo a doutrina que procura interpretar o sentido amplo de ilegalidade, inerente ao preceito, nesse conceito se integrariam «a incompetência e o desvio de poder, o vício de forma e a violação de lei». Ora, ao obstar a que os tribunais conhecessem da «gravidade da pena aplicada», ou da «existência de faltas imputadas aos arguidos», o artigo 127.º do RDM restringe a amplitude do objecto do recurso no tocante à possibilidade de o tribunal conhecer de outros vícios que não o de desvio do poder.

Como afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., cit., p. 938): «hoje o princípio da legalidade deve apontar para um princípio da juridicidade mais amplo que o conceito tradicional da legalidade, pelo que o recurso contencioso abarca hipóteses anteriormente não contempladas, como as de violação do princípio de proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade (cf. artigo 266.º, n.º 2)».

A referida restrição não só não tem cobertura constitucional como diminui injustificadamente os direitos dos administrados reconhecidos pelo n.º 4 do artigo 268.º da CRP, sendo, portanto, contrária à Constituição.

Especificamente, no que concerne à pena aplicada, o facto de o tribunal não poder conhecer da sua gravidade conforma uma diminuição igualmente injustificada do controlo jurisdicional quanto à observância do princípio da proporcionalidade pela administração militar quando a mesma fixa as sanções disciplinares; princípio da proporcionalidade, que a Constituição, no seu artigo 266.º, n.º 2, converte em princípio vinculante da actividade desenvolvida pelos órgãos da Administração.

Esta redução, afectando a garantia fundamental da impugnação contenciosa de todos os actos administrativos que enfermem de ilegalidade, é, por isso, inconstitucional.

Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade material do artigo 127.º do RDM.

III

Em consequência, decide-se:

a) Não tomar conhecimento do pedido quanto às normas contidas nos artigos 138.º e 145.º do Estatuto Militar da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei 464/83 de 31 de Dezembro;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 127.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, por violação do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição;

c) Não declarar a inconstitucionalidade das restantes normas impugnadas.

21 de Maio de 2002. - José de Sousa e Brito - Maria Helena Brito - Maria Fernanda Palma - Alberto Tavares da Costa - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - Luís Nunes de Almeida - Artur Maurício - Guilherme da Fonseca - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2002/06/25/plain-153365.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/153365.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1956-09-08 - Decreto-Lei 40768 - Presidência do Conselho

    Regula o funcionamento do Supremo Tribunal Administrativo.

  • Tem documento Em vigor 1965-11-29 - Decreto-Lei 46672 - Presidência do Conselho - Gabinete do Ministro da Defesa Nacional

    Promulga o Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas.

  • Tem documento Em vigor 1971-04-30 - Decreto-Lei 176/71 - Ministério do Exército - Repartição do Gabinete do Ministro

    Aprova o novo Estatuto do Oficial do Exército.

  • Tem documento Em vigor 1977-04-09 - Decreto-Lei 141/77 - Conselho da Revolução

    Aprova o Código de Justiça Militar, que faz parte integrante deste diploma, mantendo-se em vigor o disposto no artigo 403 do Código anterior. Determina que o presente diploma e o Código de Justiça Militar, que dele faz parte, entram em vigor em 10 de abril de 1977. Dispõe que o presente Código se aplica aos crimes essencialmente militares, considerando-se como tais os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa na (...)

  • Tem documento Em vigor 1977-04-09 - Decreto-Lei 142/77 - Conselho da Revolução

    Aprova o Regulamento de Disciplina Militar e publica-o em anexo.

  • Tem documento Em vigor 1979-07-21 - Decreto-Lei 226/79 - Conselho da Revolução

    Estabelece prazos a observar na execução da justiça e da disciplina militares.

  • Tem documento Em vigor 1982-12-11 - Lei 29/82 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.

  • Tem documento Em vigor 1983-12-31 - Decreto-Lei 464/83 - Ministérios da Administração Interna, das Finanças e do Plano e do Equipamento Social

    Prorroga pelo prazo de 10 anos, a contar de 21 de Dezembro de 1983, a isenção estabelecida no n.º 7 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 688/73, de 21 de Dezembro (isenções fiscais da Carris).

  • Tem documento Em vigor 1983-12-31 - Decreto-Lei 465/83 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o Estatuto do Militar da Guarda Nacional Republicana, bem assim como os Estatutos do Oficial, do Sargento e da Praça da mesma Guarda.

  • Tem documento Em vigor 1985-07-16 - Decreto-Lei 267/85 - Ministério da Justiça

    Aprova a lei de processo nos tribunais administrativos.

  • Tem documento Em vigor 1986-04-22 - Acórdão 81/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, das normas do artigo 107.º do Decreto-Lei n.º 46672, de 29 de Novembro de 1965, e do artigo 134.º do Decreto-Lei n.º 176/71, de 30 de Abril, bem como, na parte em que referem a competência do Supremo Tribunal Militar, das normas dos artigos 108.º, 110.º, 111.º e 112.º do primeiro daqueles diplomas e dos artigos 136.º, 137.º, n.º 1, 138.º, 140.º e 141.º do segundo dos mencionados diplomas.

  • Tem documento Em vigor 1986-06-27 - Acórdão 204/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 196.º, alínea b), do Estatuto do Oficial da Força Aérea, aprovado pelo Decreto n.º 377/71, de 10 de Setembro, por violação do artigo 218.º da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1988-05-13 - Acórdão 90/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, PARCIAL DAS NORMAS CONSTANTES DOS ARTIGOS 76 E 82 DO REGULAMENTO DE DISCIPLINA MILITAR, APROVADO PELO DECRETO LEI NUMERO 142/77, DE 9 DE ABRIL, POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 18, NUMERO 2, 52, 32, NUMERO 3 E 269, NUMERO 3, DA CONSTITUICAO, E NAO DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA CONSTANTE DO NUMERO 2 DO ARTIGO 119 DO CITADO REGULAMENTO.

  • Tem documento Em vigor 1991-04-09 - Lei 9/91 - Assembleia da República

    Aprova o estatuto do Provedor de Justiça.

  • Tem documento Em vigor 1993-07-31 - Decreto-Lei 265/93 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o estatuto dos militares da Guarda Nacional Republicana (GNR).

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda