Acórdão 38/87
Processo 221/86
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional (T. Const.):
I - O procurador-geral da República-adjunto em exercício neste T. Const., por delegação do procurador-geral da República, requer, nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com o artigo 281.º, n.º 2, da Constituição (CRP), a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do artigo 196.º do Decreto 377/71, de 10 de Setembro (Estatuto do Oficial da Força Aérea - EOFAP) - com excepção da alínea b), esta já declarada pelo Acórdão 204/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 145, de 27 de Junho de 1986 -, no que se refere à competência do Supremo Tribunal Militar (STM), pois já foi materialmente julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 29/86 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 101, de 3 de Maio de 1986), 241/86, processo 4/86, de 16 de Julho, e 209/86, processo 176/85 (publicados respectivamente no Diário da República, 2.ª série, n.os 266, de 18 de Novembro de 1986, e 255, 2.ª série, de 5 de Novembro de 1986).
Notificado para se pronunciar, querendo, nos termos do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro-Ministro nada respondeu.
Há que decidir.
II - Já no texto originário da Constituição de 1976 se consignava que o Conselho da Revolução podia declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de uma norma se a Comissão Constitucional (C. Const.) a tivesse julgado inconstitucional em três casos concretos, ou num só, se se tratasse de inconstitucionalidade orgânica ou formal, sem ofensa dos casos julgados.
Com a revisão constitucional, o artigo 281.º, n.º 2, veio estabelecer que «o T. Const. aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos».
E o artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conferiu ao Ministério Público (MP) legitimidade para tomar a iniciativa de requerer essa apreciação e declaração no T. Const. O mesmo artigo concede igual prerrogativa a qualquer dos juízes do Tribunal.
Dada, pois, a manifesta legitimidade do MP, há que verificar se se verificaram os pressupostos legitimadores do pedido: isto é, se há três julgamentos de inconstitucionalidade, em três casos concretos, da norma posta em causa decidindo pela sua inconstitucionalidade e se tais julgamentos são relevantes para a declaração, com força obrigatória geral, dessa norma, uma vez que essa declaração se não opera automaticamente.
III - O requerimento de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral respeita à norma contida no artigo 196.º do EOFAP, aprovado pelo Decreto 377/71, de 10 de Setembro.
O artigo referido dispõe:
O Supremo Tribunal Militar é o órgão das Forças Armadas com competência para conhecer dos recursos que forem interpostos pelos oficiais:
a) Em matéria de promoção, demora, preterição e posição na escala de antiguidade;
b) Que se considerem prejudicados quanto à mudança de situação.
Não há que cuidar da norma constante da alínea b) do artigo, dado que essa já foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do artigo 218.º da CRP pelo Acórdão 204/86 do T. Const., publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 145, de 27 de Junho de 1986.
Só nos preocupa, portanto, no caso em apreço o corpo do artigo 196.º e a sua alínea a), mas se dos acórdãos juntos se verificar que o T. Const. se pronuncia pela inconstitucionalidade da alínea a), está implicitamente declarada a inconstitucionalidade do corpo do artigo.
As decisões dos acórdãos juntos são, como segue:
a) No Acórdão 29/86, de fls. 2 a 12: «julgam-se inconstitucionais, por violação do artigo 218.º da CRP, as normas dos artigos [...] e a norma do artigo 196.º do EOFAP, aprovado pelo Decreto 377/71, de 10 de Setembro;».
b) No Acórdão 209/86, junto de fls. 13 a 17: «e julgando inconstitucional o artigo 196.º do EOFAP, aprovado pelo Decreto 377/71, de 10 de Setembro»;
c) No Acórdão 241/86, junto de fls. 18 a 21: «julgar [...] b) Inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 218.º e 113.º, n.º 2, da CRP, a norma da alínea a) do artigo 196.º do Decreto 377/71, de 10 de Setembro;».
Verifica-se, pois, que os três acórdãos são unânimes na declaração de inconstitucionalidade da alínea a) do artigo 196.º do Decreto 377/71, sendo, até, que dois deles, os n.os 29/86 e 209/86, declaram mesmo a inconstitucionalidade da norma contida em todo o artigo 196.º, o que aliás acontece em outros acórdãos - embora não juntos aos autos - já proferidos por este T. Const. (cf., por todos, o n.º 317/85, citado no Acórdão 204/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 145, de 27 de Junho).
Não pode, pois, restar dúvida de que a norma em causa - alínea a) do artigo 196.º do Decreto 377/71 - foi utilizada nos três casos concretos que constam dos autos juntos a este processo, e neles foi julgada a sua inconstitucionalidade, pelo que esse pressuposto legitimador do requerimento do MP resulta provado.
IV - Dúvidas não podem restar de que a alínea a) do artigo 196.º viola o artigo 218.º da CRP, como já também foi declarado quanto à alínea b), o que vem a implicar não só a inconstitucionalidade das duas únicas alíneas do artigo, como do corpo deste.
De resto, o T. Const. sempre assim o entendeu.
Efectivamente, como já se demonstrou no Acórdão 29/86, junto a estes autos:
Esta interpretação de que o artigo 218.º da CRP, na sua presente redacção, não reconhece aos tribunais militares competência para julgamento de questões de contencioso administrativo militar é hoje hegemónica e tem sido uniformemente seguida pelo T. Const. (além dos Acórdãos n.os 61/84 e 123/84, v. ainda os Acórdãos n.os 124/84 e 49/85, publicados no Diário da República, 2.ª série, n.os 55 e 85, de 7 de Março de 1985 e 13 de Abril de 1985, respectivamente, e os Acórdãos n.os 105/85, 106/85 e 132/85, já atrás referidos).
É que, como no mesmo acórdão se escreveu:
[...] a Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, deu nova redacção ao artigo 218.º da CRP, e com isso o problema foi grandemente clarificado. Este preceito, cuja epígrafe passou a ser «Tribunais militares», dispõe agora:
1 - Compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares.
2 - A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no n.º 1.
3 - A lei pode atribuir aos tribunais militares competência para aplicação de medidas disciplinares.
Face ao novo texto do preceito em exame, já não é lícito, de modo nenhum, sustentar que aos tribunais militares podem caber hoje outras competências além das que nele são taxativamente demarcadas.
É certo que este preceito constitucional, no que se refere à exacta delimitação da soma de poderes atribuídos aos tribunais militares, faz apelo à lei. Apesar disso, essa definição de competência, a nível constitucional, é fechada, o que se prova através de curta análise do preceito.
Enquanto o n.º 1 do artigo 218.º especifica em termos directos certo sector que se pode considerar nuclear, da competência dos tribunais militares, os n.os 2 e 3 do mesmo artigo definem, em quadro potencial, mas com igual rigor, duas outras faixas dessa competência. Invoca-se a lei nos n.os 2 e 3, não para alargar a competência dos tribunais militares, estritamente definida no artigo 218.º, mas apenas para passar a actos certos poderes jurisdicionais ali já inconstitucionalmente atribuídos.
[...] a interpretação, que se vem fazendo, de que a competência global dos tribunais militares consta, toda ela, do artigo 218.º se radica em tríplice argumentação: um argumento de ordem textual, outro arranca do princípio da competência limitada dos tribunais especiais e o terceiro releva do princípio da definição constitucional da competência dos órgãos de soberania.
E fundamenta as razões de cada um desses argumentos, a saber:
Após a revisão constitucional, o artigo 219.º deixou de conter a expressão restritiva em matéria criminal, pelo que a sua presente textualidade aponta para uma definição abrangente de toda a sua competência.
Isto é, aliás, confirmado pelo que se passou na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, onde, na sequência do projecto de revisão do Partido Comunista Português, se assentou em que a eliminação, no primitivo artigo 218.º, da expressão «em matéria criminal» visava tornar claro que a competência dos tribunais militares era toda ela definida naquele preceito [Diário da Assembleia da República, II Legislatura, 1.ª sessão legislativa, 2.ª série, n.os 44, pp. 904-(42), 904-(45) e 904-(46), 90, supl., p. 1676-(2), e 114, 2.º supl., p. 2076-(25)].
[...] Na medida em que a competência dos tribunais judiciais é definida pela negativa, é de todo indispensável que a competência dos tribunais especiais, essa, sim, determinada pela positiva, o seja com a maior precisão. Parece, pois, lógico que a CRP, sempre que tenha querido ocupar-se da caracterização componencial da competência dos tribunais especiais, haja sido cristalinamente explícita. Nesta perspectiva, o artigo 218.º tem de ser encarado como preceito de valência omnicompreensiva.
Finalizando pela análise do terceiro argumento, é de principiar por referir que, segundo o artigo 113.º, n.º 2, da CRP, a competência dos órgãos de soberania, entre os quais se incluem os tribunais, é a definida na Constituição.
Assim é que a CRP ou exprime directamente a soma de poderes que cabe a cada órgão de soberania, ou delega complementarmente tal tarefa na lei ordinária, que não pode, todavia, dilatar, para além do permitido na CRP, a competência de cada um desses órgãos (neste sentido o voto do vogal Luís Nunes de Almeida no parecer 6/79 da C. Const., edição oficial, vol. 8.º, p. 205, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 264).
[...] conclui-se que a interpretação do actual artigo 218.º, onde não há remissão para o direito infraconstitucional, não pode divergir daquela que, por outras razões, até agora se lhe vem dando: aí reconhecem-se aos tribunais militares unicamente poderes nos domínios criminal e disciplinar.
É por tudo isto que no Acórdão 81/86, no qual este Tribunal decidiu declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das normas dos artigos dos diplomas que referem a competência do STM, se consignou:
É de rejeitar todo o entendimento de que certas áreas do contencioso administrativo devem, por natureza, ser da competência dos tribunais militares, constituindo uma espécie de reserva necessária destes; e muito menos pode aceitar-se que, qualquer que seja o juízo de conveniência que se faça quanto a este assunto - motivado ou não por prejuízos de índole castrense -, tal concepção tenha de determinar à outrance a leitura da Constituição quanto à matéria.
E, a terminar, o citado acórdão referia ainda:
Cabe aqui recordar o que a este respeito ficou dito no Acórdão 135/85 deste Tribunal:
Não parece legítimo afirmar que é de tal forma desacertado remeter para os tribunais administrativos o julgamento dos recursos contenciosos cuja única especialidade radica no facto de respeitarem a actos praticados no âmbito da instituição militar que se justificaria proceder aí a uma interpretação correctiva da Constituição.
Tanto assim que hoje, após a revisão constitucional, a referida instituição militar se inscreve, sem margem para dúvidas, na Administração Pública, como decorre da inclusão do artigo 270.º - respeitante a militares - no tít. VIII da Constituição («Administração Pública») e da alteração da epígrafe do tít. IX (de «Forças Armadas» para «Defesa nacional»).
V - Em conclusão, o artigo 196.º, alínea a), do EOFAP, considerando o STM como o órgão das Forças Armadas com competência para conhecer dos recursos que forem interpostos pelos oficiais em matéria de promoção, demora, preterição e posição na escala de antiguidade, viola o artigo 218.º, bem como o n.º 2 do artigo 113.º da CRP, pelo que há que declarar a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral, como vem legitimamente requerido, nos termos do n.º 2 do artigo 281.º da CRP.
Pelo exposto, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 196.º, alínea a), do EOFAP, aprovado pelo Decreto 377/71, de 10 de Setembro, por violação dos artigos 218.º e 113.º, n.º 2, da CRP.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1987. - José Magalhães Godinho - Vital Moreira - Raul Mateus - Antero Alves Monteiro Diniz - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida - Martins da Fonseca - Mário Afonso - José Manuel Cardoso da Costa - Mário de Brito - Armando Manuel Marques Guedes.