Acórdão do Tribunal Constitucional 626/2022, de 10 de Novembro
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 217/2022, Série I de 2022-11-10
- Data: 2022-11-10
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Sumário
Texto do documento
Sumário: Não declara a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho (Concurso de vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino); declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho (Revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário).
Processo 841/21
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - O Primeiro-Ministro requereu, ao abrigo da competência que lhe é conferida pela alínea c) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das disposições normativas constantes do n.º 1 e do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho; e dos artigos 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, e, a título consequente, por conexão instrumental, também a norma constante do artigo 1.º desta última lei.
2 - O fundamento do pedido radica na desconformidade das normas mencionadas com o disposto no n.º 1 do artigo 111.º, conjugado com as alíneas d) e e) do artigo 199.º, ambos da CRP.
Em termos mais específicos, o pedido de declaração de inconstitucionalidade encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição parcial, sem destaques e sem notas de rodapé):
«I. A estrutura complexa do requerimento
1.º
O presente pedido de fiscalização de constitucionalidade reveste natureza complexa, ao sindicar normas distintas que figuram em leis parlamentares diferentes, complexidade que se justifica pela circunstância de as mesmas disposições assumirem um objeto e fins parcialmente idênticos, serem dirigidas à mesma categoria funcional genérica de destinatários (professores do ensino básico e secundário de estabelecimentos escolares públicos), enfermarem do mesmo tipo de inconstitucionalidade e terem sido publicadas em sequência cronológica e numérica no decurso do mesmo mês.
2.º
A sobredita natureza complexa do pedido, que se justifica por razões de economia processual e de urgência na decisão, não obsta ao seu conhecimento pelo Tribunal Constitucional, de acordo com a jurisprudência deste órgão vertida sobre a matéria, tal como dispõe o Acórdão 105/86 desse mesmo Tribunal.
II. Factualidade relevante e questão de ordem
A. Enquadramento normativo da Lei 46/2021, de 13 de julho
3.º
A Lei 46/2021, de 13 de julho, impugnada neste requerimento, atento o disposto no seu artigo 1.º, desdobra-se em dois eixos, a saber:
a) Determinação ao Governo do encargo de abertura de um concurso de vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino;
b) Estipulação ao mesmo órgão, da obrigação de dar início a um processo negocial com as estruturas sindicais, para aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais.
4.º
Concretizando o objeto definido no artigo 1.º desta lei, o artigo 2.º prescreve nos seus n.os 1 e 2 a abertura, no prazo de 30 dias posteriores à publicação do mesmo ato legislativo, de um procedimento concursal para a vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino, determinando algumas condições para a fixação das vagas a prover.
5.º
O n.º 5 do mesmo preceito legal prescreve, por seu turno, a aplicação do regime transitório constante do artigo 9.º do Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, na sua redação atual [diploma que aprova o regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado da música e da dança) no tocante às condições de integração na carreira do pessoal docente recrutado na sequência do referido procedimento.
6.º
O n.º 6 do mesmo artigo 2.º determina a abertura, até ao final do ano letivo de 2020/2021, de um processo de negociação com as associações sindicais, tendente à aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, sendo que o artigo 3.º deste diploma impõe que, até à entrada em vigor do novo regime específico de seleção e recrutamento, seja aplicável, com as devidas adaptações, aos docentes por ele abrangidos, o regime de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado da música e da dança constante do Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, na sua redação atual.
7.º
Finalmente, o artigo 4.º determina que o Governo proceda à regulamentação da lei em exame no prazo de 30 dias subsequentes à sua publicação, tornando obrigatória a sua negociação com as estruturas sindicais.
8.º
Importa ter presente que a motivação do legislador parlamentar se encontra sintetizada na exposição justificativa introdutória do projeto legislativo que esteve na base da Lei 46/2021, de 13 de julho (Projeto de Lei 660/XIV/2.º, do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português), que toma em consideração a circunstância de:
a) O ensino artístico especializado das artes visuais e dos audiovisuais ser, no entendimento dos proponentes, assegurado por docentes contratados para lecionar as disciplinas de técnicas especiais que, na sua maioria, se mantêm com contratos anuais, preenchendo necessidades permanentes das respetivas escolas;
b) O Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, ter aprovado um concurso extraordinário de vinculação de docentes dessas áreas, sem que tenha ocorrido, posteriormente, mais nenhum concurso idêntico e não tendo sido criado um regime específico de recrutamento e seleção para os docentes do ensino artístico especializado nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, o que favoreceria a precariedade laboral de dezenas de docentes das artes visuais e dos audiovisuais, "que, em vez de integrarem a carreira, apenas veem, ano após ano, o seu contrato a ser renovado. Em muitos casos, estes docentes já somam três contratos sucessivos em horário completo, tendo assim sido reconduzidos nos últimos anos letivos".
9.º
Com relevância para a apreciação das questões de constitucionalidade que são suscitadas neste requerimento, a moldura legal subjacente à aprovação da Lei 46/2021, de 13 de julho, bem como as opções materiais nela vertidas, poderá ser sintetizada do seguinte modo:
a) O artigo 62.º da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei 46/86, de 14 de outubro), comete diretamente ao Governo a aprovação da legislação complementar de desenvolvimento, designadamente no domínio das carreiras do pessoal docente e de outros profissionais da educação (cf. n.º 1, alínea c) dessa Lei);
b) De acordo com o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário (ECD), aprovado pelo Decreto-Lei 139-A/90, de 28 de abril, ao abrigo do desenvolvimento da Lei de Bases do sistema educativo, "o ingresso na carreira docente faz-se mediante concurso destinado ao provimento de lugar do quadro de entre docentes que satisfaçam os requisitos de admissão a que se refere o artigo 22.º do mesmo diploma;
c) No domínio da docência do ensino artístico especializado - áreas das Artes Visuais e dos Audiovisuais, da Dança e da Música - o Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, veio aprovar o regime específico de seleção e recrutamento do pessoal docente do ensino artístico especializado da música e da dança;
d) O referido diploma foi emitido ao abrigo do disposto no artigo 24.º do ECD, nos termos do qual a regulamentação dos concursos deve ser operada por decreto-lei;
e) O Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, que regula o regime de concursos;
f) Em conformidade com o disposto no artigo 28.º do ECD, no artigo 19.º do Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, na sua redação atual, e nos artigos 4.º e 8.º do Regime de Seleção e Recrutamento de Docentes do Ensino Artístico Especializado da Música e da Dança, publicado em anexo ao Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, na sua redação atual, a dotação das vagas a preencher pelos concursos previstos e regulados neste âmbito é fixada por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da educação;
g) É então na esteira destes últimos preceitos legais que se configura a regulamentação prevista no artigo 4.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, o respetivo objeto e o seu alcance (cf. o artigo 2.º, n.º 4 do mesmo diploma).
10.º
Considera o Primeiro-Ministro que tanto a norma do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, que impõe ao Governo a abertura de um concurso para a vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico no prazo de 30 dias contados a partir da data de entrada em vigor da referida lei, como a norma do n.º 6 do mesmo artigo que dita ao Executivo a obrigação de, até ao final do ano letivo de 2020/2021, iniciar negociações com os sindicatos, tendo por fim a aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes dessa categoria funcional, suscitam dúvidas pertinentes de constitucionalidade, assentes na violação do princípio da separação de poderes e do núcleo de competências administrativas reservadas ao Governo.
B. Enquadramento da Lei 47/2021, de 23 de julho
11.º
A Lei 47/2021, de 23 de julho, resultou da iniciativa parlamentar do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda (Projeto de Lei 761/XIV/2), e tem por objeto, de acordo com o seu artigo 1.º, vincular o Governo à abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime estabelecido pelo Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, na sua redação atual, que estabelece o regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário.
12.º
Com efeito, estabelece o artigo 1.º do diploma em crise - sob a epígrafe "objeto" - , que «A presente lei determina a abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário estabelecido pelo Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho.»
13.º
Por seu turno, conferindo obrigatoriedade à abertura do referido processo negocial, o artigo 2.º do diploma dispõe que: "No prazo de 30 dias, o Governo inicia negociação com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário deforma a garantir a valorização da carreira docente nos termos definidos no artigo 3.º da presente lei".
14.º
Por sua vez o artigo 3.º do diploma em análise, para o qual a parte final do artigo 2.º supratranscrito remete os parâmetros que devem guiar a negociação com os sindicatos de modo a ser alcançado o objetivo de valorização da carreira docente, prescreve muito perentoriamente que:
"A revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário prevista na presente lei orienta-se pelos seguintes critérios:
"a) Respeito pela graduação profissional e eliminação de ultrapassagens;
b) Vinculação de docentes contratados mais célere e sistemática;
c) Inclusão dos horários incompletos para efeitos de mobilidade interna;
d) Alteração dos intervalos horários."
15.º
Em síntese, por via dos normativos supra elencados, a Assembleia da República impõe ao Governo (i) a abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais; (ii) num prazo determinado (30 dias); (iii) para um fim específico (rever o Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, na sua redação atual, de modo a ser alcançado o objetivo de valorização da carreira docente); e (iv) em cumprimento dos critérios especificamente consagrados, a serem considerados na negociação para efeito da formatação dos termos da revisão do referido regime legal (os do artigo 3.º da lei em crise).
16.º
Nestes termos, no entendimento do Primeiro-Ministro, os artigos 2.º e 3.º, em conjugação com o artigo 1.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, desrespeitaram o princípio da separação de poderes, dado que permitem à Assembleia da República, ao abrigo de um ato com a forma de lei, agir como superior hierárquico do Governo e interferir, mediante ordens e orientações, em matérias que, no domínio da função administrativa, a Constituição reserva ao Executivo.
III. A problemática do núcleo da reserva de administração do Governo na doutrina e na jurisprudência
17.º
A doutrina admite, pacificamente, domínios materiais reservados à Administração autónoma, considerando, contudo, um tema mais complexo e difícil na sua determinação, a existência de uma reserva geral de Administração, nomeadamente no eixo das relações entre o Parlamento legislador e o Governo como órgão superior da Administração Pública.
18.º
Ainda assim, a existência de uma reserva de Administração do Governo em face da densidade reguladora da lei é reconhecida pela doutrina, não mediante uma linha de demarcação material fixa, mas antes no contexto casuístico de aferição de uma "reserva de decisão no caso concreto" o qual diz "respeito ao modo de agir em situações concretas e perante pessoas determinadas", cumprindo destacar os seguintes passos doutrinais de referência:
a) Não havendo "setores materiais determináveis aprioristicamente" que impliquem uma reserva de administração, haverá "formas de atuação, procedimentos e dispositivos organizativos que são necessariamente inerentes à função administrativa". Assim "é concebível que, em certa medida, eles sejam suscetíveis de apreensão normativa pelo legislador, porque este estará, em princípio, legitimado a pré-ocupar (...) um espaço da atividade executiva. Mas já não será constitucionalmente admissível uma interferência legislativa que paralise os procedimentos operativos da Administração pública, subvertendo ou diluindo os nexos de imputação e responsabilidade política que devem existir entre a Assembleia da República e o Governo. (...)". A reserva de funções tem ínsita uma dimensão positiva de separação de poderes na vertente racionalizadora do mandato organizatório-funcional do Estado de Direito democrático".
b) "O princípio da separação de poderes não pode deixar de limitar a Assembleia da República enquanto órgão legislativo, face ao Governo, enquanto órgão da Administração pública, nem o Tribunal Constitucional poderá deixar de se sentir limitado na configuração das relações entre o poder legislativo e o poder administrativo. O poder legislativo, apesar de conformar o exercício da atividade administrativa e de fixar o grau de liberdade decisória das estruturas administrativas terá sempre de respeitar um espaço mínimo de intervenção autónoma da Administração pública: a função administrativa não é uma dádiva da lei, nem o seu exercício um ato de graça do legislador, antes deparamos com uma função que encontra na Constituição o seu título legitimador, o alicerce de um espaço reservado de decisão e uma autoridade soberana paralela aos demais poderes do Estado";
c) "(...) esse poder de modelação e conformação do legislador não pode ser havido como absoluto, ilimitado ou incondicionado, sob pena de lhe ser mesmo consentido subverter o sentido do reconhecimento constitucional de um quadro próprio de legitimação e responsabilidade da Administração (...)". Há um limite funcional que se "traduz na impossibilidade de o legislador restringir a competência de órgãos da Administração e programar a atividade administrativa (...) em termos que acabam por verdadeiramente desvirtuar e desfigurar essa função. Se tal limite for ultrapassado aí teremos uma violação do núcleo essencial do princípio da divisão e separação de poderes, por desrespeito (...) daquele mínimo de autonomia própria da administração pública (...)."
d) "A separação de poderes não compromete a validade de leis formais do Parlamento que, ditando critérios de decisão e até comandos jurídicos singulares, assumam caráter auto-aplicativo (dispensando atos de execução). Inibirá; sim, a intromissão por via legal no poder de direção do Governo relativamente à administração direta, mormente através de normas que reduzam o sentido útil desse poder de direção ou de atos materialmente administrativos editados taticamente pelo Parlamento sob a forma de lei, suscetíveis de constituir uma inversão nuclear do princípio da separação de poderes. O mesmo critério que proíbe que o núcleo essencial do exercício de uma função, cometido a um órgão de poder, seja usurpado pelos poderes qualitativamente diversos de outro órgão que não tem acesso a esse núcleo, utilizando como expediente para essa usurpação a forma de um ato de hierarquia superior".
19.º
Pela sua pertinência relativamente à configuração de um domínio funcional de reserva de administração do Governo em face do legislador parlamentar, no contexto de governos minoritários, importa atentar nos seguintes passos de outra doutrina também referencial:
a) "A inexistência de quaisquer limites à função legislativa perante a Administração é totalmente incompatível com o princípio da separação de poderes. A mais intensa legitimidade democrática do legislador e a necessidade de controlo parlamentar do Executivo (...) não são argumentos em contrário da reserva de Administração, pois o significado último do princípio da separação de poderes é precisamente o de evitar que a distribuição do poder pelo aparelho público conduza a situações de omnipotência (...). Uma coisa é admitir que a lei pode ter um conteúdo individual e concreto quando traduza escolhas de primeiro grau, e portanto, de natureza política e outra muito diversa é sustentar que pode descer ao nível de pura administração";
b) A levarem-se tais argumentos até às últimas consequências, e por absurdo, a Assembleia da República poderia na prática gerir através de leis os serviços do estado Administração e da sua administração direta e indiretamente dependente em vez de um governo minoritário."
c) O papel do Governo como órgão da condução política geral do País e órgão superior da Administração Pública ficaria "em perigo caso se admitisse a interferência da Assembleia da República em tais matérias; isto para já não falar na própria lógica da sua responsabilidade perante o Presidente da República e a Assembleia da República, que ficaria esvaziada no primeiro caso e sem sentido no segundo".
20.º
Na esfera jurisprudencial, há muito que o Tribunal Constitucional português, ao abrigo do princípio democrático e da natureza primária ou dominante da atividade legislativa, acolhe uma construção expansiva de lei formal, no sentido de admitir a possibilidade dessa lei pré-ocupar domínios ordinariamente cometidos à função administrativa, pelo que nos Acórdãos n.os 1/97 e 24/98 legitimou essa expansão vertical da lei, se bem que tenha admitido, em tese, a existência de um "núcleo" da atividade administrativa governamental, defendido pela Constituição contra apropriações intoleráveis por parte do poder legislativo parlamentar.
21.º
Contudo, ulteriormente, no Acórdão 214/2011, o Tribunal deu um passo sensível no reconhecimento de um domínio próprio da Administração e pronunciou-se pela inconstitucionalidade, com vários fundamentos, de um decreto da Assembleia da República que, em matéria de avaliação de desempenho de professores, afrontou o princípio da separação de poderes e perpetrou uma incursão indevida na reserva de Administração do Governo, constituindo este aresto uma referência fundamental na articulação do presente requerimento.
22.º
Do exposto importa registar uma tendência para uma aproximação da jurisprudência constitucional em relação à doutrina dominante, relativamente à aceitação de domínios móveis de reserva de Administração do Governo ancorados, positivamente, nas competências que a Constituição lhe reconhece, mormente no respeitante aos seus poderes de direção e superintendência e, no plano negativo, no reconhecimento de limites funcionais no uso da competência legislativa parlamentar bem como do defeso da autonomia funcional, política e administrativa, do Governo em face do Parlamento, com exclusão de qualquer relação de subordinação hierárquica.
IV. Fundamentos da inconstitucionalidade das normas impugnadas
A. Da inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho
23.º
O n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, impõe a abertura de um concurso para a vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado no prazo de 30 dias subsequente à entrada em vigor da referida lei.
24.º
É, contudo, muito duvidoso que, numa matéria da esfera constitucional da competência administrativa do Governo, como a que respeita a um procedimento concursal singular para ingresso nas carreiras da função pública [alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP], a Assembleia da República possa dar, através da forma de lei, injunções ao Governo para a abertura de um concreto e determinado concurso, respeitante a uma dada categoria funcional e na observância de um período de tempo exíguo e pré-determinado.
É que,
25.º
Se se atentar, considerada a similitude da matéria, no teor do Acórdão 214/2011 do Tribunal Constitucional, uma injunção dessa natureza não seria conforme à Constituição.
26.º
Enfatiza a este propósito o mencionado Acórdão 214/2011 que:
a) "As relações do Governo com a Assembleia da República são relações de autonomia e de prestação de contas e de responsabilidade; não são relações de subordinação hierárquica ou de superintendência, pelo que não pode o Governo ser vinculado a exercer o seu poder regulamentar (ou legislativo) por instruções ou injunções da Assembleia da República (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit, vol. II, p. 415)";
b) "Efetivamente, o Governo é um órgão dotado de legitimidade e competências constitucionais próprias, cujo estatuto escapa à decisão do legislador ordinário. Dentro dos limites da Constituição e da lei, o Governo é autónomo no exercício da função governativa e da função administrativa. Nas zonas de confluência entre atos de condução política e atos de administração a condução política e atos de administração a cargo do Governo, a dimensão positiva do princípio da separação e interdependência de órgãos de soberania impõe um limite funcional ao uso da competência legislativa universal da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea c), da CRP], de modo que esse poder de chamar a si do Parlamento não transmude a forma legislativa num meio enviesado de exercício de competências de fiscalização com esvaziamento (...) do núcleo essencial da posição constitucional do Governo enquanto órgão superior da Administração Pública (artigo 182.º da CRP), encarregado de dirigir os serviços da administração direta do Estado [artigo 199.º, alínea d), da CRP];
c) "A Assembleia, nas suas relações com o Governo "(...) não pode ordenar-lhe a prática de determinados atos políticos ou a adoção de determinadas orientações (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit, p. 414). Designadamente, não pode fazê-lo sem previamente alterar os parâmetros legais dessa atividade, no domínio das competências administrativas que a Constituição lhe comete como o de dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, em que as escolas públicas e o seu pessoal docente se integram."
27.º
A Assembleia da República é um órgão dotado do primado da função legislativa, mas desprovido de competências administrativas com eficácia externa e alcance intersubjetivo.
Ora, no presente caso,
28.º
O Parlamento, através da norma sindicada, usou a forma legal para impor ao Governo a abertura de um concurso extraordinário para uma categoria funcional determinada, num período temporal pré-definido e respeitante a uma situação concreta (porque desprovida de aplicação sucessiva] e, ao fazê-lo:
a) Derrogou tacitamente, para providenciar uma situação concursal singular, uma base geral aprovada pela própria Assembleia - a alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º da Lei 46/86 - que comete exclusivamente ao Governo a competência para regular, sob a forma de decreto-lei, a matéria relativa às "carreiras de pessoal docente e de outros profissionais da educação", sem que tenha alterado previamente a mesma base, onde figuram os parâmetros da competência governamental sobre a matéria;
b) Derrogou, igualmente para reger uma situação concreta, sem prévia alteração do regime legal vigente, tanto o disposto no artigo 24.º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei 139-A/90, de 28 de abril (ECD), que desenvolve as mesmas bases gerais e que determina que a regulamentação dos concursos previstos no mesmo estatuto deve fazer-se por decreto-lei, como o disposto no Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, que, precisamente ao abrigo do preceito anterior, regulamentou o regime específico de seleção e recrutamento do pessoal docente do ensino artístico especializado da música e da dança;
c) Criou, por conseguinte, uma decisão-medida injuntiva que impôs ao Governo, em prazo certo, a abertura de um concurso extraordinário para uma dada categoria funcional ao arrepio de toda a legislação reforçada e de desenvolvimento referida nas alíneas precedentes, a qual conferia ao Executivo autonomia decisória para regulamentar as carreiras de pessoal docente e respetivos concursos;
d) Apropriou-se, em conclusão, mediante o uso indevido e abusivo da forma legal, de poderes inerentes ao exercício da função administrativa em áreas reservadas ao Executivo, ao abrigo dos seus poderes de direção (alínea d) do artigo 199.º da CRP) no que tange a domínios próprios de gestão do mesmo Executivo relativos a atos concursais que tangem a carreiras de trabalhadores em funções públicas (alínea e) do mesmo artigo 199.º), poderes que não foram alterados pela legislação vigente sobre a matéria (cf. artigo 9.º deste requerimento).
Em suma,
29.º
A Assembleia da República, ao utilizar a forma de lei, mediante a aprovação do n.º 1 do artigo 2.º da Lei sindicada, para ditar injunções ao Governo, constrangendo-o a abrir um concurso específico ou singular mediante um comando de conteúdo concreto:
a) Alcandora-se materialmente a uma posição ilegítima de órgão superior da Administração, colocando o Governo numa relação de subalternidade, em violação do princípio da separação de poderes (n.º 1 do artigo 111.º da CRP];
b) E perpetra uma incursão no núcleo reservado das competências administrativas do Governo, ínsitas nas alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP, programando a atividade de gestão administrativa do Executivo em relação a pessoal docente das carreiras públicas e reduzindo todo o sentido útil das referidas competências governamentais.
B. Da inconstitucionalidade da norma do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho
30.º
O teor do n.º 6 do artigo 2.º assume contornos identitários ao artigo 1.º do Decreto 84/XI, da Assembleia da República, objeto de controlo preventivo de constitucionalidade promovido pelo então Presidente da República, o qual deu origem ao já referido Acórdão 214/2011 do Tribunal Constitucional.
31.º
Dispunha o artigo 1.º do Decreto 84/XI que, até final do ano letivo então em curso, o Governo deveria iniciar um processo de negociação sindical tendente à aprovação do enquadramento legal e regulamentar que concretizasse um novo modelo de avaliação do desempenho de docentes do ensino básico e secundário, de modo a produzir efeitos a partir do início do ano letivo seguinte.
Sucede que,
32.º
Com grande semelhança, o artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, que se encontra em apreciação impõe, igualmente, no seu n.º 6, a abertura, até ao final do ano letivo de 2020/2021, de um processo negocial com as estruturas sindicais do qual resulte a aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais.
33.º
A legislação em vigor prevê que a aprovação de um regime específico de recrutamento de docentes de categorias funcionais determinadas seja sujeita a uma prévia negociação coletiva [cf. alínea g) do artigo 4.º e artigo 24.º do ECD e artigo 347.º e seguintes da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, na sua redação atual, aprovada em anexo à Lei 35/2014, de 20 de junho ("LTFP")], pelo que, numa primeira leitura, seria possível considerar que a norma sindicada seria apenas uma disposição redundante.
Contudo, a redundância é apenas aparente, pois,
34.º
O que resulta ser constitucionalmente inadmissível consiste na fixação de uma obrigação concreta ao Governo, estabelecida em lei parlamentar, para que o mesmo negoceie com estruturas sindicais e na observância de limites temporais precisos a alteração de um diploma legal.
35.º
A este propósito, cumpre salientar que, o n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, ao prescrever que "até ao final do ano letivo de 2020/2021, é aberto um processo negocial com as estruturas sindicais para aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais", não deixa margem para dúvidas sobre a natureza imperativa do comando legal que vincula o Governo a essa diligência e com prazo-limite para o seu início, não estando em causa uma "norma programática" ou uma "lei-cartaz", reconduzível a uma recomendação de conteúdo não vinculativo, mas antes, tratando-se de uma disposição impositiva.
36.º
Ademais, quanto à natureza desse comando, o enunciado vinculante da norma em apreço redunda numa injunção ou numa ordem para que, ao abrigo das suas competências administrativas, o Governo inicie um processo negocial em prazo determinado, como ato preparatório necessário à aprovação de um regime de seleção ao qual fica adstrito.
37.º
Por outras palavras, a Assembleia da República utilizou a forma de lei para interferir na esfera das competências administrativas do Governo previstas na alínea d), conjugada com a alínea e) do artigo 199.º da CRP, atuando como seu superior hierárquico, ao ditar-lhe uma injunção para negociar com estruturas sindicais, num prazo determinado, a aprovação de um regime, e agindo igualmente como titular de um poder de superintendência administrativa ao estabelecer orientações específicas sobre o objeto dessa negociação.
38.º
Ora, sobre a inadmissibilidade constitucional quanto à fixação de uma obrigação ao Governo, estabelecida em lei parlamentar, para que o mesmo negoceie com estruturas sindicais, numa situação concreta ou específica, a alteração de um diploma legal ou regulamentar, o Tribunal Constitucional parece claro, cumprindo chamar de novo à colação o Acórdão 214/2011, nas seguintes passagens:
a) Nada parece proibir que a lei fixe um prazo côngruo para regulamentação das leis que dela precisem para serem exequíveis.
Mas a norma em presença não pode ser interpretada como de estatuição de um mero prazo para o Governo regulamentar as normas do Estatuto que disso careçam porque não houve aí qualquer alteração e a matéria já estava regulamentada. O seu sentido jurídico é, na base de um juízo político «não serve, faça-se outro», o de vincular o Governo a iniciar o processo negocial com vista ao estabelecimento de um novo modelo de avaliação";
b) Assim priva-se a Administração do instrumento normativo de gestão existente e fixa-se um limite temporal (deadline) para que um outro seja estabelecido: o início do próximo ano letivo";
c) Pelo que "(...) a decisão sobre o se e o quando da iniciativa de desencadear negociações com vista à alteração do ordenamento - com as associações sindicais ou com outros portadores de interesses que devam participar - é uma opção política que um órgão de soberania não pode impor ao outro, mesmo nos espaços onde ambos concorram no poder de regulação emergente, seja este equiordenado (lei-decreto-lei) seja escalonado (ato legislativo-ato regulamentar)";
d) "As relações do Governo com a Assembleia da República são relações de autonomia e de prestação de contas e de responsabilidade; não são relações de subordinação hierárquica ou de superintendência, pelo que não pode o Governo ser vinculado a exercer o seu poder regulamentar (ou legislativo) por instruções ou injunções da Assembleia da República (tf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit, vol. II p. 415)";
e) "A Assembleia, nas suas relações com o Governo "(...) não pode ordenar-lhe a prática de determinados atos políticos ou a adoção de determinadas orientações".
39.º
A ordem para negociar com os sindicatos, no limite de um tempo determinado, tendo em vista a ulterior alteração de um decreto-lei, conforma uma instrução ou injunção materialmente administrativa própria do poder de um superior hierárquico em relação a um órgão subalterno, que resulta ser inadmissível na relação entre dois órgãos de soberania, no âmbito da qual o Governo não se encontra subordinado a ordens por parte de um Parlamento que:
a) Não é titular da função administrativa exercida com eficácia externa intersubjetiva e, por consequência, encontra-se privado de poderes de direção e superintendência sobre a administração direta, bem como dos poderes gestionários das carreiras da função pública (cfr respetivamente, as alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP);
b) No exercício da função política, não se pode apropriar do estatuto nuclear do Governo como órgão de condução da política geral do País (artigo 182.º da CRP).
40.º
Haverá, por conseguinte, neste segmento da norma, uma violação do princípio da separação de poderes (n.º 1 do artigo 111.º da CRP], bem como uma intrusão indevida na reserva governamental de administração relativa ao poder de direção sobre a administração pública direta (alínea d), conjugada com a alínea e) do artigo 199.º da CRP).
C. Da inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2 021, de 23 de julho
41.º
Parece inequívoco que a norma do artigo 2.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, tal como se encontra enunciada juridicamente, não assume a natureza de uma "norma programática" ou de uma "lei-cartaz", reduzível a uma recomendação de conteúdo não vinculativo, tratando-se, antes, de uma disposição cogente que impõe ao Governo o início de negociações com os sindicatos para a revisão de um decreto-lei e até fixa imperativamente um prazo de 30 dias para o início das mesmas negociações, sendo que:
a) A expressão "A presente lei determina a abertura de um processo negocial," ínsita no artigo 1.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, quando conjugada com a fórmula prevista no artigo 2.º que estabelece que "No prazo de 30 dias, o Governo inicia negociação" não deixa margem para dúvidas sobre a natureza imperativa do comando legal que vincula o Governo a essa diligência e com prazo-limite para o seu início;
b) Ademais, quanto à natureza desse comando, o enunciado vinculante das duas normas sistematicamente conjugadas redunda numa injunção ou numa ordem para que, ao abrigo das suas competências administrativas previstas na alínea e) do artigo 199.º da CRP, o Governo inicie um processo negocial em prazo determinado, como ato preparatório necessário da revisão de um decreto-lei à qual fica adstrito.
42.º
Quanto ao artigo 3.º, para o qual o artigo 2.º remete, ele contém diretrizes genéricas dirigidas ao Governo que delimitam o objeto material da revisão do decreto-lei e orientam o modo e os termos segundo os quais, no respeitante a quatro matérias delimitadas, o mesmo Governo deve negociar com os sindicatos o regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário, sendo também inequívoco o sentido de obrigatoriedade dos referidos critérios, o qual se encontra patente nas expressões:
a) "(...) de forma a garantir a valorização da carreira docente nos termos definidos no artigo 3.º da presente lei" (artigo 2.º da Lei 47/2021, de 23 de julho);
b) "A revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário prevista na presente lei orientasse pelos seguintes critérios (...)" (artigo 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho).
43.º
A Assembleia da República, ao abrigo da sua competência legislativa genérica (alínea c) do artigo 161.º da CRP) é um órgão dotado dos poderes funcionais apropriados para aprovar legislação de trabalho relativamente a trabalhadores em funções públicas. Porém, no presente caso, o Parlamento optou por impor ao Governo uma tarefa de revisão, dando-lhe uma injunção para iniciar preparatoriamente, ao abrigo das competências administrativas do mesmo Executivo (alínea e) do artigo 199.º da CRP), um processo negocial prévio com os sindicatos, no respeito por um prazo determinado, delimitando as matérias a negociar e fixando diretrizes ou orientações sobre os termos e limites que o Governo deve acatar na negociação, tendo em vista a ulterior modificação do Decreto-Lei 132/2012, 27 de junho, à luz dessas diretrizes.
44.º
Ao ter-se decidido pela segunda opção, a Assembleia da República utilizou a forma de lei para interferir na esfera das competências administrativas do Governo, atuando como seu superior hierárquico, ao ditar-lhe uma injunção para negociar num prazo determinado com estruturas sindicais a alteração de um decreto-lei e agindo, igualmente, como titular de um poder de superintendência administrativa ao estabelecer orientações específicas sobre o objeto e os termos da negociação.
45.º
Dado que:
a) Sem prejuízo da responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República, as duas instituições são órgãos de soberania com estatuto e poderes autónomos;
b) A Assembleia da República não é titular de competências administrativas com eficácia externa;
c) A densidade reguladora da lei deve respeitar um núcleo mínimo de competências úteis reservadas pela Constituição ao Governo, nomeadamente as previstas nas alíneas d) e e) do artigo 199.º;
Considera o Primeiro-Ministro que as normas dos artigos 2.º e 3.º, em conjugação com o artigo 1.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, violaram o princípio da separação de poderes e interferiram, mediante ordens e orientações, na reserva da função administrativa que a Constituição comete ao Governo.
Senão, vejamos:
46.º
O processo de negociação coletiva entre o Governo e as organizações sindicais tendo em vista a fixação do regime de recrutamento e a mobilidade do pessoal docente do ensino público, prevista aliás na LTFP e no ECD (em disposições já citadas neste requerimento), é matéria da exclusiva competência do Governo, seja como órgão de condução da política geral do País, seja como órgão superior do Estado-Pessoa na administração da educação pública (artigo 186.º, conjugado com as alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP).
47.º
No que respeita ao estatuto de trabalhadores em funções públicas, a alínea e) do artigo 199.º da CRP atribui ao Governo a faculdade de "praticar todos os atos exigidos por lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado e de outras pessoas coletivas públicas" o que envolve, para além de poderes gestionários, a decisão relativa à iniciação de um processo concreto de audição ou de negociação do estatuto profissional desses trabalhadores com os seus representantes sindicais, como é o caso.
48.º
Paralelamente, a jurisprudência constitucional (cf. Acórdão 374/2004 e Acórdão 602/2013 do Tribunal Constitucional) reconhece um domínio material de autonomia privada aos parceiros sociais, mormente aos sindicatos no plano da negociação coletiva, se for esse o caso, domínio que, encontrando-se sujeito à lei, não deixa de se encontrar salvaguardado de interferências intrusivas do legislador no condicionamento casuístico das partes, num concreto processo negocial.
49.º
A norma contida no artigo 2.º do diploma em crise, a qual obriga o Governo a negociar, num prazo determinado, os termos da alteração a um decreto-lei, consiste materialmente numa "instrução" ou numa "ordem", definida como "a imposição de uma ação ou de uma abstenção concreta", sendo que a faculdade de dar ordens à Administração (direta) é um poder reservado ao Governo (alínea d) do artigo 199.º da CRP), dado que "o Governo tem poder de direção sobre a Administração direta do Estado, com a faculdade de emissão de ordens e comandos, expressão de um poder hierárquico".
50.º
Sucede que o Governo, como órgão de soberania, sendo politicamente responsável perante o Parlamento e fiscalizado por este quanto ao exercício da sua atividade administrativa, não se encontra sujeito a ordens ou injunções da Assembleia da República a qual, como reconhece o Acórdão 214/2011, não exerce sobre ele qualquer poder de hierarquia, sendo certo que, ao arrepio desta realidade constitucional, o comando do artigo 2.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, configura a natureza deslocada de uma ordem ou injunção.
51.º
Mas a Lei 47/2021, de 23 de julho, não se limita a expedir a referida injunção ou instrução para negociar e fazê-lo com limites temporais pré-determinados, mas pretende, igualmente, fixar diretrizes sobre os termos dessa negociação.
52.º
Isto significa que as "orientações" (sic) negociais ínsitas no artigo 3.º do diploma, para o qual o artigo 2.º remete, dirigidas a uma negociação específica e a partes concretas, envolve não apenas o exercício de poderes de condução política, mas sobretudo, faculdades de superintendência sobre aquele que é o órgão superior da Administração Pública, atribuições funcionais que, na esfera administrativa, a Constituição não comete ao Parlamento, mas reserva ao Governo na alínea d) do artigo 199.º da CRP.
53.º
Com efeito, a superintendência:
a) Consiste na "relação jurídica entre duas entidades da administração pública, na qual uma delas, a entidade principal, detém um poder de orientação da outra, entidade instrumental (...) que se materializa através de medidas de definição das prioridades e objetivos a prosseguir, das estratégias a adotar e das metas a atingir, bem como a da emissão de diretrizes e de instruções sobre o modo de realização dos referidos objetivos e metas por parte da entidade instrumental";
b) Consiste no "poder de orientação, no poder de emitir diretivas" e a diretiva "encerra uma enunciação de objetivos e métodos genéricos de atuação".
54.º
Ao expedir ordens e formular orientações ao Governo como órgão superior da Administração Pública, a Assembleia da República:
a) Retorce ou desvirtua o exercício da função legislativa de forma a poder substituir-se ao mesmo Governo como órgão superior da mesma Administração e assume uma posição de supremacia sobre este no exercício de uma função do Estado - a atividade administrativa - a qual se encontra vedada à mesma Assembleia no plano das relações intersubjetivas com eficácia externa, utilizando para o efeito um comando de conteúdo administrativo mas com forma de lei;
b) Programa a atividade administrativa do Executivo, definindo metas e prioridades num procedimento administrativo específico, condicionando diretamente a tramitação gestionária de apuramento e suprimento das necessidades previsionais que a lei concede à Administração competente.
Parece, contudo, evidente que,
55.º
Tal como sucede com a norma do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, nos termos evidenciados no n.º 30.º e seguintes do presente requerimento, o sentido do artigo 2.º do diploma assume contornos de semelhança com o artigo 1.º do Decreto 84/XI, da Assembleia da República, alvo de pronúncia pela inconstitucionalidade pelo Acórdão 214/2011 desse Tribunal.
56.º
Importa uma vez mais rememorar que aquele diploma dispunha que, até final do ano letivo em curso, o Governo deveria iniciar um processo de negociação sindical tendente à aprovação do enquadramento legal e regulamentar que concretizasse um novo modelo de avaliação do desempenho de docentes do ensino básico e secundário, de modo a produzir efeitos a partir do início do ano letivo seguinte.
57.º
Analogamente ao que sucedeu com a situação que foi objeto do juízo de inconstitucionalidade no referido Acórdão 214/2011, a Lei 47/2021, de 23 de julho, priva o Governo de institutos que a Constituição lhe confere, no âmbito dos seus poderes administrativos e de autonomia decisória, previstos nas alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP, para determinar o "se e o quando da iniciativa de desencadear negociações com vista à alteração do ordenamento" implicando:
a) A norma do artigo 2.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, a fixação de uma injunção de conteúdo administrativo para o Governo atuar, em tempo concreto, no domínio das competências administrativas explícitas que lhe são reservadas pela Lei Fundamental;
b) O artigo 3.º, a emissão de uma diretriz ou orientação ao Governo sobre os termos em que deve formatara sua proposta negocial e, ainda, como efeito da negociação, as linhas de força que devem presidir à revisão de um decreto-lei, sendo que o mesmo preceito, atenta a sua densidade e objeto, não pode ser definido como uma base geral de um regime jurídico, suscetível de servir de parâmetro de ilegalidade superveniente do Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, no caso de o Governo vir a omitir a revisão deste último diploma.
58.º
Cumprindo a este requerimento especificar a intrusão indevida na reserva de competências administrativas do Governo aqui sustentada, anote-se que os critérios fixados no artigo 3.º desta Lei encerram orientações concretas de diferente densidade que vinculam o Governo a assumir/negociar uma proposta negocial que assegure não só:
a) O seu efetivo comprometimento com a promoção regular/programada de processos de vinculação permanente dos docentes contratados a termo (cf. a alínea b) do artigo 3.º);
b) A disponibilização simultânea de horários completos e incompletos para efeitos de colocação em mobilidade interna (cf. decorre da alínea c) do artigo 3.º).
59.º
A conformação necessária com tais critérios permite que a Assembleia da República condicione diretamente o procedimento gestionário de recolha e suprimento das necessidades previsionais da administração educativa que a lei concede às estruturas administrativas (cf. artigo 27.º, do Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, na sua redação atual e o Decreto-Lei 125/2011, de 29 de dezembro, na sua redação atual), interferindo com o racional do processo de levantamento e preenchimento de necessidades (o "se", o "quantum" e o "como") que é indissociável dos princípios de boa-administração dos recursos humanos e financeiros existentes e da prossecução do interesse do sistema público de ensino.
60.º
Tenha-se presente que:
a) Em desenvolvimento da Lei de Bases do Sistema Educativo, o artigo 17.º do ECD estabelece o concurso como o processo de recrutamento e seleção, normal e obrigatório, do pessoal docente que se rege pelos princípios reguladores dos concursos na Administração Pública, nos termos e com as adaptações previstas no decreto-lei a que se refere o artigo 24.º do mesmo diploma (vide ainda o artigo 36.º do ECD para efeitos de ingresso na carreira docente];
b) Por seu turno, o artigo 25.º do ECD dispõe sobre a estrutura dos quadros de pessoal docente dos estabelecimentos de educação ou de ensino públicos que fixam as dotações para a carreira docente e se desdobram em: i) Quadros de agrupamento de escolas; ii) Quadros de escola não agrupada; e iii) Quadros de zona pedagógica;
c) Ainda de acordo com o artigo 26.º do ECD, os quadros de agrupamento de escolas, bem como os quadros das escolas não agrupadas, destinam-se a satisfazer as necessidades permanentes dos respetivos estabelecimentos de educação ou de ensino, sendo a dotação de lugares discriminada por ciclo ou nível de ensino e grupo de recrutamento e categoria, nos termos que forem fixados por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da educação;
d) Por outro lado, os quadros de zona pedagógica destinam-se a facultar a necessária flexibilidade à gestão dos recursos humanos no respetivo âmbito geográfico e a assegurar a satisfação de necessidades não permanentes dos estabelecimentos de educação ou de ensino, a substituição dos docentes dos quadros de agrupamento ou de escola, as atividades de educação extra-escolar, o apoio a estabelecimentos de educação ou de ensino que ministrem áreas curriculares específicas ou manifestem exigências educativas especiais, bem como a garantir a promoção do sucesso educativo (cf. artigo 27.º do ECD);
e) A dotação dos quadros referida na alínea anterior é feita por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças, da Administração Pública e da Educação ou por portaria apenas deste último, consoante dessa alteração resulte ou não aumento dos valores totais globais (cf. artigo 28.º do ECD e artigo 19.º do Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho);
f) Por seu turno, a vinculação do pessoal docente pode revestir a forma de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado ou de contrato de trabalho a termo - cf. artigos 29.º, 30.º, 32.º e 33.º do ECD, cuja terminologia se deve considerar alterada por força da redação do artigo 69.º-A, do Decreto-Lei 20/2006, de 31 de dezembro, introduzida pelo Decreto-Lei 51/2009, de 27 de fevereiro, do Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, e atenta a nomenclatura de vínculos adotada pela LTFP (artigos 7.º e 8.º);
g) Acresce que, nos termos do Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, na sua redação atual (diploma que estabelece o regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário e de formadores e técnicos especializados, em conformidade com o artigo 24.º do ECD), a seleção e o recrutamento do pessoal docente pode revestir a natureza de: (i) concurso interno; (ii) concurso externo; e (iii) concurso para a satisfação de necessidades temporárias (cf. artigo 5.º, n.º 1);
h) Com vista à satisfação das necessidades educativas permanentes dos agrupamentos de escolas e de escolas não agrupados, são abertos concursos internos (que visam a mobilidade, através da transição do grupo de recrutamento ou transferência de quadro, dos docentes pertencentes aos quadros) e externos (que se destinam ao provimento de docentes em lugares de quadros de agrupamentos de escolas e de quadros de zona pedagógica (cf. artigo 5.º, n.os 2 e 3);
i) São abertos anualmente (cf. artigo 5.º, n.os 5 e 6) concursos para a satisfação de necessidades temporárias que visam suprir necessidades que não sejam satisfeitas pelos dois primeiros concursos ou que ocorram no intervalo da sua abertura, sendo estas necessidades asseguradas pela colocação de docentes de carreira candidatos à mobilidade interna (artigo 28.º) e pela contratação a termo resolutivo;
j) Registe-se que o concurso de reserva de recrutamento visa assegurar o preenchimento de horários que persistirem por preencher dos procedimentos concursais antecedentes (cf. artigos 27.º, n.º 4, e 30.º) ou que decorram de necessidades sobrevenientes após a conclusão destes últimos (cf. artigo 36.º, n.º 2) recorrendo a docentes vinculados e não vinculados ainda sem colocação e assegurando a sua ocupação mesmo que parcial.
61.º
Nos termos do Decreto-Lei 125/2011, de 29 de dezembro, na sua redação atual, é o Ministério da Educação o departamento governamental que tem por missão definir, coordenar, promover, executar e avaliar as políticas nacionais dirigidas aos sistemas educativo, articulando-as com as políticas de qualificação e formação profissional (artigo 1.º) sendo-lhe cometido, entre outras atribuições: "Planear e administrar os recursos humanos, materiais e financeiros afetos aos sistemas educativo e científico e tecnológico, sem prejuízo da autonomia das instituições de ensino superior e das que integram o sistema científico e tecnológico nacional" [cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea n)].
Por outro lado,
62.º
É especificamente:
a) Confiada à Direção-Geral da Administração Escolar, nos termos do artigo 4.º, alínea e), a prossecução da atribuição referida no número anterior, designadamente, através do: i) desenvolvimento das políticas de recursos humanos relativas ao pessoal docente e não docente das escolas, em particular as políticas relativas a recrutamento e seleção, carreiras, remunerações e formação; ii) definição das necessidades de pessoal docente e não docente das escolas; e iii) promoção do recrutamento do pessoal docente e não docente das escolas [cf. artigo 14.º, n.º 2, alíneas a), b) e c)];
b) Cometida ao Diretor-Geral da Administração Escolar a definição do procedimento de recolha das necessidades temporárias de forma a garantir a correta boa gestão e utilização dos recursos humanos docentes (cf. o artigo 27.º, n.º 2, do DL n.º 132/2012, de 27 de junho, na sua redação atual).
63.º
Em face do exposto, parece inequívoco que a parametrização imposta pelo órgão parlamentar à configuração da proposta negocial do Governo, obrigando-o a assumir ab initio a sistematização do princípio da vinculação permanente dos docentes contratados a termo, assim como a distribuição, no âmbito do concurso de mobilidade interna, tanto de horários completos como de horários incompletos a docentes de carreira, tem como efeito a redução do espaço de apreciação política e administrativa do Governo e dos serviços competentes da administração direta do Estado sujeitos à sua direção e superintendência, em matéria de gestão dos respetivos recursos humanos e financeiros, à margem de qualquer ponderação de racionalidade de meios que lhe é exigida pelo n.º 5 do artigo 267.º, n.º 5 da CRP.
64.º
Em síntese, quando o Parlamento perpetra uma incursão na esfera reservada das competências administrativas do Governo ínsitas nas alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP, e se propõe dirigir e orientar no plano administrativo e político a sua atividade, no sentido de lhe impor negociações com os sindicatos que o levem a alterar o Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, sem optar por revogar ou alterar previamente o mesmo diploma, apropria-se claramente de poderes inerentes ao exercício da função política e administrativa em áreas reservadas ao Governo.
65.º
Cumpre, deste modo, convocar as linhas de força da jurisprudência do Acórdão 214/2011, que exibem um sensível paralelismo com a situação que envolve o caso sub iuditio, que se encontram enunciadas no n.º 38 deste requerimento, quando foram invocadas para arguir uma inconstitucionalidade análoga da norma do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
66.º
No que especialmente releva para Executivos minoritários - e esta argumentação aplica-se a todas as normas impugnadas neste requerimento - parece claro que o defeso constitucional da reserva material de poderes de direção e superintendência do Governo sobre as administrações correspondentes assume uma especial sensibilidade, sob pena de alteração indevida do modelo semipresidencial de sistema político para um modelo alternativo de "parlamentarismo governativo", na qual a legitimação democrática direta do Parlamento seria transfigurada e dilatada ao ponto de ser este órgão a gerir superiormente a Administração com a conversão do Governo numa instituição subalterna, passando a lei a ascender a um patamar de omnipotência que o princípio da separação de poderes não lhe reconhece.
67.º
Como afirmam certeiramente certos expoentes doutrinários, com especial preocupação no que concerne à autonomia funcional de governos minoritários, a "(...) reserva de administração veda, por exemplo, a substituição do legislador à Administração na decisão de matérias que a Constituição e a lei tenham configurado como devendo ser objeto de decisão administrativa. A reserva de administração não impede, naturalmente, o legislador de modificar o regime legal de exercício do poder administrativo nas matérias em causa, predeterminando assim a conduta da administração por força do princípio da legalidade (...)".
68.º
Sucede que, no caso em julgamento, o Parlamento, ao invés de modificar o regime legal vigente sobre recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário, decidiu dar diretivas ao Governo para proceder a essa alteração, estabelecendo imposições políticas, bem como instruções e orientações sobre o modo como o Executivo deveria preparatoriamente negociar essas alterações, interferindo assim nos critérios gestionários de recolha e suprimento de necessidades previsionais que pressupõem, no plano administrativo, a possibilidade de valorização de carreiras.
69.º
Atento o seu conteúdo, as normas impugnadas da Lei 47/2021, de 23 de julho, usurpam a atividade administrativa reservada ao Governo no plano dos seus poderes de direção e superintendência administrativas (alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP), desidratam a sua autonomia política como órgão condutor da política geral do Estado e subalternizam o seu estatuto como órgão superior da Administração Pública, ofendendo o artigo 182.º, bem como o n.º 1 do artigo 111.º da CRP.
V. Conclusões
70.º
Atenta a argumentação exposta no articulado do presente pedido, o Primeiro-Ministro requer ao Tribunal Constitucional a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral, com fundamento em violação do núcleo da reserva de administração do Governo que deflui do disposto nas alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP, bem como do princípio da separação de poderes enunciado no n.º 1 do artigo 111.º da Constituição da República, das seguintes disposições:
a) As normas constantes do n.º 1 e 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho;
b) As normas constantes dos artigos 2.º e 3.º, em conjugação com a norma do artigo 1.º, da Lei 47/2021, de 23 de julho;
71.º
Considerada a necessidade e urgência de preparação atempada e adequada do próximo ano letivo, o Primeiro-Ministro solicita ainda ao Senhor Conselheiro- Presidente do Tribunal Constitucional, que seja dada prioridade à apreciação e decisão do processo sub iuditio.».
3 - Notificado nos termos dos artigos 54.º, 55.º, n.º 3, e 65.º, n.º 4, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC), o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos, tendo enviado uma nota técnica, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Educação, Ciência, Juventude e Desporto, relativa aos trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação das Leis n.os 46/2021 e 47/2021.
Foram também juntas aos autos duas exposições apresentadas ao Tribunal Constitucional pela FENPROF - Federação Nacional dos Professores, contendo uma descrição dos factos e do contexto político e socioprofissional que entendem estar subjacentes à aprovação das referidas leis.
4 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e tendo este sido submetido a debate, de acordo com o n.º 2 do referido preceito, cumpre agora decidir em conformidade com a orientação do Tribunal, que então foi fixada.
II - Fundamentação
5 - Assiste legitimidade ao Primeiro-Ministro para requerer a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas, com força obrigatória geral, por força do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
6 - As normas cuja constitucionalidade é questionada pelo requerente constam (i) do n.º 1 e do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, e (ii) dos artigos 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, e a título consequente, por conexão instrumental, também do artigo 1.º da referida Lei, e apresentam a seguinte redação:
[Lei 46/2021, de 13 de julho]
Artigo 2.º
Abertura de concurso extraordinário de vinculação de docentes
1 - Nos 30 dias subsequentes à publicação da presente lei, é aberto um concurso para a vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino.
2 - [...]
3 - [...]
4 - [...]
5 - [...]
6 - Até ao final do ano letivo de 2020/2021, é aberto um processo negocial com as estruturas sindicais para aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais.
[Lei 47/2021, de 23 de julho]
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei determina a abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário estabelecido pelo Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho.
Artigo 2.º
Revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário
No prazo de 30 dias, o Governo inicia negociação com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário de forma a garantir a valorização da carreira docente nos termos definidos no artigo 3.º da presente lei.
Artigo 3.º
Valorização da carreira docente
A revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário prevista na presente lei orienta-se pelos seguintes critérios:
a) Respeito pela graduação profissional e eliminação de ultrapassagens;
b) Vinculação de docentes contratados mais célere e sistemática;
c) Inclusão dos horários incompletos para efeitos de mobilidade interna;
d) Alteração dos intervalos horários.
7 - Com vista a um melhor entendimento do sentido e do alcance das normas sindicadas, importa fazer uma abordagem prévia sobre cada uma delas antes de avançarmos.
7.1 - No que se refere à Lei 46/2021, de 13 de julho, resulta do seu artigo 2.º, n.º 1, a imposição da abertura de um concurso de vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino. O n.º 6 do mesmo preceito legal, por seu turno, estabelece a obrigação de dar início a um processo negocial com as estruturas sindicais, para aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais. Ambas as disposições parecem trazer consigo o sentido de um comando ou mandado dirigidos ao Governo, que a eles fica adstrito.
Apesar da sua (in)constitucionalidade não ser sindicada nos presentes autos, deve também ser convocado, para uma melhor compreensão da questão em apreço, o n.º 5 do mesmo artigo 2.º da Lei supracitada. Este normativo prescreve a aplicação do regime transitório constante do artigo 9.º do Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, na sua redação atual (regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado da música e da dança) no tocante às condições de integração na carreira do pessoal docente recrutado na sequência do referido procedimento.
O mesmo se diga do artigo 3.º da Lei em apreciação (Lei 46/2021, de 13 de julho) o qual impõe que, até à entrada em vigor do novo regime específico de seleção e recrutamento - a que se refere o n.º 6 do artigo 2.º, este sim impugnado nos presentes autos, como vimos -, seja aplicável, com as devidas adaptações, aos docentes por ele abrangidos, o regime de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado da música e da dança constante do Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, na sua redação atual.
Finalmente, revela-se ainda oportuno trazer à colação o artigo 4.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, o qual determina que o Governo proceda à regulamentação desta Lei no prazo de 30 dias subsequentes à sua publicação, tornando obrigatória a sua negociação com as estruturas sindicais.
7.2 - A Lei 47/2021, de 23 de julho, não se distingue substancialmente da Lei 46/2021, de 13 de julho, apresentando em todo o caso como traços diferenciadores a maior amplitude do seu âmbito e a acrescida densidade da injunção dirigida ao Governo. Na verdade, não se cinge esta Lei aos docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, uma vez que vincula o Governo, de acordo com o respetivo artigo 1.º, à abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime estabelecido pelo Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho, na sua redação atual, diploma que estabelece o regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário.
Em complemento ou concretização da injunção contida no seu artigo 1.º, o artigo 2.º determina que o referido processo negocial deveria iniciar-se no prazo de 30 dias e, no artigo 3.º, estabelece mesmo um conjunto de critérios materiais destinados a condicionar e balizar a visada revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário.
8 - Como resulta do que ficou dito, o presente pedido de fiscalização de constitucionalidade incide sobre dois conjuntos distintos de normas, que se inserem em leis parlamentares diferentes: por um lado, os n.os 1 e 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho; e, por outro, os artigos 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, e, a título consequente, também a norma constante do artigo 1.º A complexidade do pedido, formulado nestes termos, é justificada pelo próprio requerente com base na «(...) circunstância de as mesmas disposições assumirem um objeto e fins parcialmente idênticos, serem dirigidas à mesma categoria funcional genérica de destinatários (professores do ensino básico e secundário de estabelecimentos escolares públicos), enfermarem do mesmo tipo de inconstitucionalidade e terem sido publicadas em sequência cronológica e numérica no decurso do mesmo mês».
E parece fundada a pretensão de apreciação do pedido nos termos requeridos, tanto pelas razões processuais que a justificam como pela conexão com jurisprudência anterior deste Tribunal. Na verdade, as razões de economia processual invocadas são de atender, uma vez que esta solução promove o princípio processual da economia processual, cuja valia é cada vez mais reclamada nos dias que correm e que se reflete em inúmeras soluções acolhidas no Código de Processo Civil, designadamente no n.º 2 do seu artigo 36.º, onde se admite a coligação de autores e de réus, ainda que fundada em pedidos diferentes e mesmo quando a causa de pedir não seja a mesma, desde que «a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas».
E o Tribunal Constitucional tem também trilhado este caminho em alguns acórdãos e não apenas nos mais recentes: já no Acórdão 105/86 decidiu-se que «(...) a Lei 28/82, no domínio dos processos de fiscalização abstrata da constitucionalidade de normas jurídicas, dá de pedido uma noção puramente formal, considerando como um só pedido aquele que, embora se dirigindo a várias e diversas normas jurídicas, porventura, localizadas em diferentes diplomas, é expresso em um só requerimento, subscrito por entidade com legitimidade para o fazer».
Tendo em conta o caráter fundado da pretensão do requerente, sublinhado pelo contexto histórico comum, pela proximidade cronológica e, sobretudo, pela afinidade teleológica entre as normas impugnadas, bem como a circunstância de convocarem a aplicação, fundamentalmente, dos mesmos parâmetros constitucionais (como resulta do pedido, todas elas são impugnadas com um mesmo e essencial fundamento), entendeu-se levar a cabo a apreciação conjunta do pedido formulado, independentemente do diploma legal em que as normas sindicadas se encontram - o que não desonerará o Tribunal, em todo o caso, da apreciação do pedido de forma autónoma sobre cada um do conjunto de normas impugnadas.
9 - Para uma compreensão mais abrangente das questões de constitucionalidade que são suscitadas nos autos importa dizer algo mais no que tange ao enquadramento normativo infra-constitucional das normas sindicadas. Em relação à Lei 46/2021, em primeiro lugar, é mister convocar o artigo 62.º da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei 46/86, de 14 de outubro), do qual resulta a competência do Governo para a aprovação de legislação complementar de desenvolvimento, designadamente no domínio das «carreiras do pessoal docente e de outros profissionais da educação» - cf. n.º 1, alínea c). Já no que diz respeito ao ingresso na carreira docente, determina o artigo 36.º, n.º 1, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário ("ECD"), aprovado pelo Decreto-Lei 139-A/90, de 28 de abril - objeto de múltiplas alterações posteriores - , que o mesmo «(...) faz-se mediante concurso destinado ao provimento de lugar do quadro de entre docentes que satisfaçam os requisitos de admissão a que se refere o artigo 22.º do mesmo diploma».
No domínio mais específico da docência do ensino artístico especializado - áreas das Artes Visuais e dos Audiovisuais, da Dança e da Música - o Decreto-Lei 15/2018, de 7 de março, emitido na sequência do disposto no artigo 24.º do ECD, nos termos do qual a regulamentação dos concursos deve ser operada por decreto-lei, aprovou o regime específico de seleção e recrutamento do pessoal docente do ensino artístico especializado da música e da dança.
Em suma: em função dos preceitos normativos convocados, é importante destacar, desde já, que no plano infraconstitucional a definição normativa do regime de seleção e recrutamento do pessoal docente do ensino artístico especializado insere-se no âmbito competencial do Governo.
10 - Recuperando os termos do pedido, entende o requerente que a imposição ao Governo, resultante dos n.os 1 e 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, da abertura de um concurso para a vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico, no prazo de 30 dias contados a partir da data de entrada em vigor da referida lei, tal como a imposição de iniciar negociações com os sindicatos, tendo por fim a aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes dessa categoria funcional, consubstancia uma violação do princípio da separação de poderes e do núcleo de competências administrativas reservadas ao Governo.
A questão central suscitada é, assim, a de saber se a intrusão do Parlamento neste âmbito competencial, valendo-se do recurso à forma de lei, é constitucionalmente aceitável ou se, no fundo, se traduz numa violação do princípio da separação e interdependência de poderes (cf. artigo 111.º da Constituição); ou, por outro lado, se contende com a atribuição ao Governo das funções de direção dos serviços e da atividade da administração direta do Estado ou da prática de todos os atos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado - cf. alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP.
Já no que respeita à Lei 47/2021, de 23 de julho, cumpre avaliar se, como sustenta o requerente, «os artigos 2.º e 3.º, em conjugação com o artigo 1.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, desrespeitaram o princípio da separação de poderes, dado que permitem à Assembleia da República, ao abrigo de um ato com a forma de lei, agir como superior hierárquico do Governo e interferir, mediante ordens e orientações, em matérias que, no domínio da função administrativa, a Constituição reserva ao Executivo».
11 - Como resulta dos termos do pedido e do breve enquadramento efetuado, os contornos da questão de (in)constitucionalidade suscitada nos autos movem-se, em larga medida, no âmbito do princípio da separação dos poderes - ou, mais exatamente, e nos termos da Constituição da República, da «separação e interdependência» dos órgãos de soberania (cf. artigo 111.º da CRP). Assim, impõe-se que a questão seja abordada, em primeiro lugar, no plano das suas refrações teoréticas ou dogmáticas, tendo por base a doutrina nacional que se tem debruçado sobre o tema, para depois passar em revista os arestos mais significativos deste Tribunal sobre a matéria - abordagem que, como é evidente, será realizada tomando em conta as projeções que poderá ter no âmbito das questões suscitadas no pedido.
11.1 - O princípio da separação e interdependência dos poderes é um rasgo característico essencial da forma do Estado de direito, apesar de as suas raízes serem mais antigas, havendo grandes pensadores inelutavelmente associados ao mesmo, nomeadamente John Locke e Montesquieu. O princípio da separação dos poderes desempenha hoje funções fundamentais de moderação do exercício do poder e de diversificação dos centros de poder no seio das comunidades político-constitucionais, em articulação com a necessária interdependência da atividade dos poderes do Estado, razão pela qual se opta - como faz a nossa Constituição - pela referida fórmula da separação e interdependência dos órgãos de soberania. Nesta decorrência, a doutrina jusconstitucional assinala ao princípio da separação e interdependência de poderes uma pluralidade de funções constitucionais: função de medida, função de racionalização, função de controlo e função de proteção (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 209). E que lhe está subjacente uma ideia material de moderação, concertação e racionalidade da atuação dos poderes públicos, que implica a proibição do arbítrio e de disfunção do modo político de decidir ou a ordenação adequada de funções, com um mandado constitucional de limitação e racionalização dos poderes públicos, numa evidente relação de sentido com o princípio do Estado de Direito e uma função positiva de racionalização e estabilização de uma ordem de competências ancorada na soberania da Constituição (cf. Assunção Esteves, "Os limites do poder do Parlamento e o procedimento decisório da co-incineração", in: Estudos de Direito Constitucional, Coimbra, 2001, p. 17 e seg.).
Em temos doutrinários são atribuídos três sentidos fundamentais a este princípio: o sentido político, relativo à questão da titularidade ou soberania do poder, que procura averiguar onde reside a soberania, quem é ou quem são os titulares do poder, existindo separação dos poderes nos sistemas em que se aceitam as pretensões de vários centros ou diferentes candidatos ou centros de poder; o sentido funcional ou material, que se reporta às principais tarefas ou funções do Estado, procurando-se caracterizá-las materialmente, por forma a permitir a sua distinção; e o sentido organizatório, relativo à divisão dos serviços dentro de uma organização política previamente definida, com a existência de diferentes complexos organizatórios autónomos uns em relação aos outros.
Excluindo o primeiro dos sentidos - uma vez que, na análise de direito constitucional positivo que interessa os propósitos do presente acórdão, no princípio da separação de poderes «não se trata de "dividir" o poder soberano, cujo titular é apenas o povo (cf. art. 3.º-1), mas da separação das funções do Estado e da sua ordenação e distribuição por vários órgãos de soberania» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 2010, p. 45) -, importa sublinhar que, historicamente, tem havido bastante confusão entre o sentido material e o sentido organizatório da separação dos poderes. Embora este tema não vá assumir uma importância decisiva na resolução da questão de constitucionalidade suscitada nos autos, é ainda relevante assinalar que a distinção material das funções do Estado evoluiu e o quadro originário das funções foi alargado. Para parte da doutrina, às três funções originárias decantadas pelos revolucionários franceses a partir da obra de Montesquieu (legislativa, administrativa ou executiva e jurisdicional) veio juntar-se uma quarta, a função política, caracterizada por ser uma atividade desenvolvida pelos órgãos supremos do Estado (designadamente Presidente da República, Assembleia da República e Governo), cujas competências são definidas, nos seus traços essenciais, pela própria Constituição, com um conteúdo próximo ao da atividade administrativa, mas cujos atos jurídicos em que se consubstancia estão, em geral, subtraídos ao controlo dos tribunais. Todavia, de acordo com a doutrina nacional hoje maioritária, continua a haver uma tripartição das funções estaduais, embora a função política tenha emergido como função que se decompõe nas atividades legislativa e política em sentido estrito, sendo definida, no seu sentido amplo, como uma «atividade de ordenação da vida coletiva assente em valores, ideologias e programas e exercida em benefício da mesma coletividade», com o mérito de não «apartar a lei da essência da atividade política». (cf. Blanco de Morais, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, 3.ª ed., p. 30 e segs.). Jorge Miranda que, na esteira da maioria dos autores, segue também a divisão tricotómica das funções do Estado, distingue na função política a função legislativa e a função governativa ou política stricto sensu, consoante a mesma se traduza em atos normativos ou em atos de conteúdo não normativo (cf. Atos Legislativos, Almedina, 2019, p. 33).
De qualquer forma, o centro das nossas atenções deverá ser orientado noutro sentido, uma vez que, como assinala Sérvulo Correia («A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito administrativo», in: AA. VV., XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2009, p. 164), «o progressivo esbatimento das fronteiras entre funções do Estado descentrou o princípio da separação de poderes de uma ideia de diferenciação material ou intrínseca das funções jurídicas do Estado para o transpor para a sistematização dos critérios de exata delimitação das competências entre órgãos constitucionais» - critérios esses que se revelam particularmente importantes para determinar o exercício, pela Assembleia da República, de competências atribuídas pela CRP mas que se podem transmutar na "condução da política geral do país", sendo por isso tal exercício suscetível de transformar a Assembleia da República em «contragoverno» (neste sentido, em termos expressos, cf. Nuno Piçarra, "O princípio da separação de poderes e os limites da competência do Parlamento face ao Governo na jurisprudência constitucional portuguesa", in: AA. VV., Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, 2012, p. 39 e seg.). Isto porque a doutrina - bem como a jurisprudência deste Tribunal - se tem vindo a apartar de uma teoria geral das funções estaduais como elemento essencial do princípio da separação dos poderes, para se fixar antes numa análise das funções do Estado constitucionalmente adequada, no quadro da constituição concreta, no sentido de construir este princípio a partir da ordenação concreta de competências jurídico-constitucionais (cf. Nuno Piçarra, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional, Coimbra, 1989, p. 264).
11.2 - Em face do que ficou dito, a análise a levar a cabo deve naturalmente centrar-se nos dados do direito positivo da ordem constitucional portuguesa, com o exame teleologicamente orientado, como é bom de ver, para as especificidades das normas sindicadas. Foi a revisão constitucional de 1997 que incluiu expressamente o princípio da separação e interdependência dos poderes como princípio fundamental constitutivo do Estado de Direito democrático, com o que procedeu à «explícita normativização da sua fundamentalidade» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., vol. I, p. 208).
Recuperando a «perceção», já fortemente sugerida no subponto anterior, de que não pode ser feita uma correspondência rigorosa entre os complexos orgânicos e os tipos de atividade (funções), é importante igualmente fazer uma leitura contemporânea do princípio da separação de poderes. Esta leitura implica que centremos a análise, como foi dito, na ordem constitucional portuguesa, afastando a leitura da separação dos poderes oitocentista face ao paradigma que lhe está subjacente no nosso Estado constitucional. De acordo com Blanco de Morais (cf. Curso de Direito Constitucional, Tomo I, 3.ª ed., p. 52-58), há quatro razões que sustentam tal afastamento da leitura oitocentista: «mutações na morfologia do princípio da separação de poderes derivadas de transformações nas funções e nos fins do Estado»; «a liberdade conformadora do constituinte para configurar diversas modalidades ou formas de expressão da separação de poderes»; os «limites políticos e jurídicos fixados pela teoria do "núcleo essencial" ao poder constituinte e aos poderes constituídos como garantia identitária do princípio da separação de poderes», que determina designadamente «que a nenhum órgão soberano podem ser cometidas funções de que resulte quer o "esvaziamento" das funções materiais atribuídas a outro órgão quer a intromissão no círculo indisponível das funções que, por razões de essencialidade material, devam pertencer a outro órgão»; e, por último, a «complementaridade incindível entre separação e interdependência de poderes», que constitui o «critério complementar e inseparável do axioma da separação», que este Tribunal designou, no seu Acórdão 214/2011, como a «dimensão negativa do princípio da separação de poderes».
Assim, a separação dos poderes com assento constitucional, nos seus artigos 2.º e 111.º - a que releva no caso dos autos - aparta-se do significado que lhe foi dado no Estado de direito liberal dos séculos XVIII e XIX. Em face da «confusão» (Verquickung) entre a teoria da separação dos poderes e a teoria das funções jurídicas do Estado de que nos fala Nuno Piçarra (cf. A separação dos poderes..., cit., p. 247), o exame das normas sindicadas a levar a cabo tem de se centrar na separação organizatória dos poderes constitucionalmente atribuídos aos órgãos de soberania, tendo por base o artigo 111.º da CRP. Ou seja, não nos deparamos apenas, ou principalmente, com o acolhimento de um princípio estrutural de natureza essencialmente dogmática, mas de um princípio que tem o propósito de se firmar e de afirmar a repartição de poderes e funções positivada na Lei Fundamental: trata-se, então, de respeitar o imperativo de respeito pela separação e interdependência estabelecidas na Constituição, como literalmente se dispõe nesse preceito.
Como ponto prévio a este exame, revela-se pertinente convocar o artigo 110.º da CRP, de acordo com o qual «são órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais» (n.º 1), determinando o n.º 2 que «a formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição». Com efeito, antes de examinar as relações que intercedem entre órgãos de soberania à luz do princípio da separação de poderes, é decisiva a compreensão da estrutura orgânica em que a Lei Fundamental fez assentar a organização do poder político.
Deve, assim, reter-se que, se em sentido amplo são órgãos constitucionais todos os mencionados pela Constituição, «(...) em sentido restrito consideram-se órgãos constitucionais apenas aqueles que revestem cumulativamente as seguintes características: (a) existência, posição institucional e competências essenciais imediatamente constituídas pela Constituição (são órgãos imediatos, na terminologia tradicional); (b) faculdade de auto-organização interna; (c) posição de equiordenação relativamente aos outros órgãos de soberania, independentemente das relações extra e intra-orgânicas estabelecidas pela própria Constituição» - cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., vol. II, p. 40. Distinguindo-se dos Tribunais, o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo constituem órgãos de direção política do Estado, nos quais assenta a forma de governo constitucionalmente instituída (ibidem, p. 41).
Assim, é preciso enquadrar o exame do princípio da separação e interdependência dos poderes - enquadrar e fazer anteceder, também como resultado da precedência sistemática do artigo 110.º da Constituição sobre o artigo 111.º - num modelo orgânico ou infraestrutural sobre o qual assenta, depois, uma separação ou repartição funcional das atividades, atribuições ou competências estaduais pelos diferentes órgãos de soberania. Separação ou repartição essas que não podem ser havidas como estanques ou imóveis, mas admitem e pressupõem interseções, controlos recíprocos ("checks and balances") e a delimitação de esferas de intervenção predominantemente tendenciais. Eis o que resulta, inequivocamente, do apelo à noção de interdependência entre os órgãos de soberania, tão claramente enfatizada na formulação do n.º 1 do artigo 111.º da Constituição.
11.3 - O facto de ser imperioso centrarmo-nos na separação dos poderes enquanto divisão entre as competências dos órgãos de soberania disciplinados na nossa Constituição torna-se ainda mais evidente por, pelo menos em boa parte do pedido formulado, estar em causa uma única função do Estado: a função legislativa, que em relação aos órgãos de soberania referidos - e sem tomar aqui em conta, por não se revelar nem necessário, nem pertinente, os poderes legislativos das Assembleias Legislativas das regiões autónomas - tanto pode ser exercida pela Assembleia da República, como pelo Governo.
Esta circunstância demonstra a necessidade de nos ocuparmos, com mais pormenor, da posição do Governo na ordem jurídico-constitucional portuguesa. O Governo é o único órgão de soberania responsável pelo exercício de três funções estaduais (ou, para quem adote um modelo tripartido, por duas subfunções e uma função estadual): de acordo com os artigos 197.º, 198.º e 199.º da CRP, é este órgão de soberania responsável pelo exercício, respetivamente, de «funções políticas», «funções legislativas» e «funções administrativas». O que constitui uma nota bastante singular, em termos de direito comparado: como salienta Mário Aroso de Almeida (cf. Teoria Geral do Direito Administrativo, 8.ª ed., p. 238 e seg.), suportado no pensamento de Paulo Otero e de Jorge Miranda, o sistema português reveste-se «de uma especificidade "sem paralelo em qualquer outra experiência constitucional europeia de matriz democrática", que resulta da circunstância de a CRP não reservar o exercício da função legislativa ao Parlamento (a Assembleia da República), mas atribuir diretamente ao Executivo (ao Governo, que emana da Assembleia da República) amplas competências legislativas próprias, que, no essencial, lhe cabe exercer em concorrência com a Assembleia da República (cf. artigo 198.º da CRP), através da emanação de decretos-leis, que a Constituição qualifica formalmente como atos legislativos (artigo 112.º, n.º 1, da CRP). Essas competências incidem sobre todas as matérias, encontrando apenas o seu limite nas matérias de reserva, absoluta ou relativa, de competência legislativa da Assembleia da República, enunciadas nos artigos 164.º e 165.º da CRP (...)», o que implica uma redução muito significativa do espaço para o exercício da função administrativa pelo Governo, em especial através da via regulamentar. Esta «outorga ao Governo do maior acervo de competências legislativas existente num Estado da União Europeia» tem reflexos ao nível da conceção do princípio da separação dos poderes no nosso país, o qual «foi concebido, desde 1976, à luz de uma lógica de intervencionismo legislativo governamental» (cf. Blanco de Morais, ob. cit., p. 181).
Antecipando o que constituirá um ponto central do percurso argumentativo, na análise da (des)conformidade constitucional das normas sindicadas - e, ao mesmo tempo, replicando jurisprudência anterior deste Tribunal - importa sublinhar que este intervencionismo legislativo governamental, constitucionalmente fundado, tem implicações significativas no plano das relações entre a Assembleia da República e o Governo: como ficou expresso no Acórdão 214/2011 (12.), «[a]s relações do Governo com a Assembleia da República são relações de autonomia e de prestação de contas e de responsabilidade; não são relações de subordinação hierárquica ou de superintendência, pelo que não pode o Governo ser vinculado a exercer o seu poder regulamentar (ou legislativo) por instruções ou injunções da Assembleia da República» (itálicos nossos). Não podendo, nos termos do mesmo aresto, o poder de «chamar a si» do Parlamento transmudar «a forma legislativa num meio enviesado de exercício de competências de fiscalização com esvaziamento, pelo controlo democrático-parlamentar e pela regra da maioria, do núcleo essencial da posição constitucional do Governo enquanto órgão superior da administração pública (artigo 182.º da CRP), encarregado de dirigir os serviços da administração directa do Estado [artigo 199.º, alínea d) da CRP]».
11.4 - É relevante esclarecer ainda melhor os limites das competências legislativas da Assembleia da República em confronto com as mesmas competências, quando exercidas pelo Governo - por tal aspeto ocupar um lugar central na questão da (in)constitucionalidade das normas sindicadas.
As leis da Assembleia da República e os decretos-lei do Governo gozam de igual força adstritiva e idêntica dignidade constitucional (cf. artigo 112.º, n.os 1 e 2, da Constituição), sem embargo de uma certa primazia da Assembleia da República, traduzida, nomeadamente, numa competência legislativa genérica (cf. artigo 161.º, alínea c), da Constituição) e na sujeição dos decretos-leis do Governo a apreciação parlamentar, com eventual cessação de vigência, suspensão ou alteração pela Assembleia da República (cf. artigos 162.º, alínea c), e 169.º da Constituição). Primazia esta que lhe advém da legitimidade outorgada pela condição de assembleia representativa de todos os cidadãos, nos termos do artigo 147.º da Constituição.
Mas se a Assembleia da República está constitucionalmente habilitada a determinar a cessação de vigência, suspensão ou alteração de um decreto-lei ao abrigo do instituto da apreciação parlamentar, a regulação desse instituto, plasmada no artigo 169.º da Constituição, não deixa de transparecer, precisamente, a autonomia legislativa do Governo. É que, se o Governo pode ver o resultado do exercício dessa autonomia colocado em crise e privado de efeitos por intervenção da Assembleia da República, de modo algum se acha dependente deste órgão de soberania para a adoção de medidas legislativas ou sujeito ao indirizzo daquela.
Na verdade, «o Governo pode tomar decisões legislativas válidas e eficazes sem dependência de sanção da Assembleia; por sua vez, esta pode, observados os requisitos do artigo 169.º, chamar a si a última palavra sobre a subsistência de tais decisões», nisto consistindo «(...) o instituto [apreciação parlamentar de atos legislativos] da ótica das relações entre o Governo e o Parlamento» - cf. Jorge Miranda, anotação ao artigo 169.º, in Constituição Portuguesa Anotada, coord. Jorge Miranda/Rui Medeiros, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2018, p. 579.
A consagração constitucional de uma competência legislativa genérica da Assembleia da República não deve, portanto, ser sobrevalorizada ou fundamentar uma hipertrofia da posição relativa daquela na respetiva articulação com o Governo.
11.5 - Há ainda dois temas muito caros à doutrina da separação dos poderes, na sua leitura presente no nosso país e de que o pedido se ocupa com alguma insistência - e que, por isso, têm de ocupar o seu espaço na economia do presente acórdão. São os argumentos relacionados com a necessidade de preservar o núcleo essencial das competências atribuídas ao Governo pela Constituição, por um lado; e o da existência ou não, em face da nossa Lei Fundamental, de uma reserva geral de Administração ou, pelo menos de reservas administrativas específicas que teriam de ser tomadas em conta, no momento de decidir sobre a constitucionalidade das normas sindicadas.
11.5.1 - Em relação à teoria do núcleo essencial, o apelo feito a tal conceção não tem o intuito de contribuir para a separação das funções estaduais - uma vez que, como vimos, tal separação não assume relevo autónomo na resolução da questão dos presentes autos.
Como já ficou supra fixado, a análise que guia o percurso argumentativo que está a ser levado a cabo pressupõe uma teleologia específica do princípio da separação de poderes, com vista a «fornecer critérios de solução quanto à exata delimitação de competências entre os órgãos constitucionais» e dando operatividade e lastro «aos conceitos de estrutura funcionalmente adequada, de legitimação para a decisão e de responsabilidade pela decisão» (cf. Nuno Piçarra, A Separação dos poderes..., cit., p. 262). No plano metodológico, importa destacar também a «progressiva transição de um método abstrato-dedutivo para um método normativo-concreto na abordagem e no tratamento dogmático do princípio da separação dos poderes», que só pode adquirir preciso sentido «a partir da ordenação de competências jurídico-constitucionais concreta» (ibidem, p. 264).
Como é posto em destaque por Reis Novais (cf. Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Assembleia da República, Lisboa, Lex, 1997, p. 34), estamos no âmbito de uma polémica sugestivamente denominada de «competencialmente orientada», procurando determinar-se se do princípio da divisão de poderes «é possível retirar consequências juridicamente vinculantes, de tal sorte que seja possível delimitar uma zona de reserva insuscetível de ser invadida por outro órgão sob pena de inconstitucionalidade». Em termos metodológicos, Reis Novais sublinha, por um lado, que «a relação Parlamento/Executivo não é uma relação intemporal ou mera expressão de continuidade de anteriores poderes originários, mas sim uma relação de validade circunstancialmente condicionada por cada sistema constitucional em concreto», sem deixar de reconhecer, por outro lado, que «não é possível retirar do texto constitucional uma resposta direta, imediata e exaustiva àquelas questões, designadamente à da existência de um âmbito funcional nuclear reservado ao Executivo» (ibidem, p. 35). Como tal, e «na medida em que a Constituição apenas enumera competências pontuais de cada órgão, restará sempre indagar em que medida é que essa enumeração é suscetível de ser interpretada como integrando uma estrutura de repartição de competências com uma lógica própria - e qual o seu sentido - e, designadamente, se dela é possível deduzir conclusões juridicamente vinculantes para as situações não expressamente decididas» (ibidem, p. 35).
O Autor reconhece, todavia, que a problemática em apreço tem contornos de especial complexidade, pois «a partir do momento em que a lei se politiza e a função legislativa concretiza ou integra o exercício da função política, não é mais possível proceder a uma separação orgânico-constitucional estanque entre as funções legislativa e a função governativa e, consequentemente, entre a Assembleia da República enquanto órgão com competência legislativa genérica e o Governo enquanto titular primeiro da função governativa» (ibidem, p. 42).
Entramos assim no campo da chamada teoria do núcleo essencial, nos termos da qual «a nenhum órgão de soberania podem ser reconhecidas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais específica e principalmente atribuídas a outro órgão», implicando, assim, que «nenhum dos órgãos de soberania pode intrometer-se no núcleo essencial das funções pertencentes a outro órgão» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., vol. II, p. 46), teoria cuja atualidade é bem visível em função do facto de os limites políticos e jurídicos por ela fixados ao poder constituinte e aos poderes constituídos, enquanto «garantia identitária do princípio da separação de poderes», constituir uma das razões que afastam na atualidade a leitura da divisão de poderes oitocentista face ao paradigma da separação de poderes no Estado constitucional no tempo presente (cf. Blanco de Morais, ob. cit., p. 53 e segs.). Acrescente-se que esta ideia de um «núcleo essencial de funções» deve ser modelada por critérios de razoabilidade e proporcionalidade, não sendo «muito mais do que uma "metáfora" da proporcionalidade na inter-relação dos órgãos do poder» (cf. Assunção Esteves, ob. cit., p. 20, nota 37).
E é assim que ela tem sido recebida na nossa jurisprudência constitucional, desde os tempos da Comissão Constitucional - a qual, no seu Parecer 16/79, afirmara que, embora não sendo «tarefa isenta de dúvidas e dificuldades definir (...) em concreto e perante todas as possíveis constelações problemáticas, o exato alcance da divisão de funções entre os diferentes órgãos de soberania», não deixa de ocorrer violação daquele núcleo essencial «sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão» - cf. Pareceres da Comissão Constitucional, vol. VIII, pp. 222 e ss. - e, em tempos mais recentes, na jurisprudência deste Tribunal. Tendo as notas porventura mais impressivas sobre a ideia do núcleo essencial sido escritas no Acórdão 214/2011, em termos muito próximos dos que agora nos interessam, como veremos adiante:
«a decisão sobre o se e o quando da iniciativa de desencadear negociações com vista à alteração do ordenamento - com as associações sindicais ou com outros portadores de interesses que devam participar - é uma opção política que um órgão de soberania não pode impor ao outro, mesmo nos espaços onde ambos concorram no poder de regulação emergente, seja este equiordenado (lei - decreto-lei), seja escalonado (ato legislativo - ato regulamentar).
E não pode sequer invocar-se o maior apetrechamento ou relação de proximidade do Governo com a matéria a regular para levar a cabo os atos propedêuticos ou preparatórios e a necessidade de viabilizar as opções políticas primárias que à Assembleia, como órgão de representação da vontade geral também competem.».
Buscando novamente apoio no estudo doutrinal sobre o tema, foi a esta luz que Reis Novais concluiu «pela necessidade jurídica de recortar, na totalidade do âmbito funcional genericamente atribuído pela Constituição ao Executivo, um núcleo juridicamente protegido da hétero-determinação parlamentar, onde, sob pena de inversão dos critérios constitucionais de repartição de competências e de violação do princípio da divisão de poderes, deva ser o Executivo a determinar exclusivamente o sentido e o conteúdo das suas competências constitucionais» (ob. cit., p. 59). E esse núcleo apenas pode ser delimitado ou afirmado caso a caso, nunca aprioristicamente, embora tal não invalide que haja necessidade de obedecer a um critério fundamental: «há violação daquele núcleo essencial quando, por força de determinação parlamentar, o Governo é pontualmente degradado ao nível de um órgão subordinado que recebe ordens ou instruções vinculativas da Assembleia da República - de forma não consentânea com o seu estatuto constitucional de órgão de soberania, de órgão encarregado da condução da vida política ou de órgão supremo da Administração Pública - ou quando vê frustrada, por força das mesmas imposições, a possibilidade de determinar auto-responsavelmente, na medida que lhe esteja constitucionalmente atribuída, o sentido e o conteúdo do exercício das suas competências» (ibidem, p. 61).
Em termos basicamente coincidentes, Gomes Canotilho destaca que «o princípio da separação e interdependência é também um princípio de ordenação de competências funcionalmente orientado», decorrendo da noção de adequação funcional que «o órgão ou órgãos de soberania são, do ponto de vista estrutural, constitucionalmente idóneos e adequados para o exercício de funções que, a título específico ou primário, lhes são atribuídas» - cf. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 557 e seg.. Consequentemente, «[d]o facto de a CRP consagrar uma estrutura orgânica funcionalmente adequada é legítimo deduzir que os órgãos especialmente qualificados para o exercício de certas funções não podem praticar atos que materialmente se aproximam ou são mesmo característicos de outras funções e da competência de outros órgãos» (ibidem, p. 559).
Desta ordenação funcionalmente adequada das competências dos órgãos constitucionais resulta então, na sequência do que vem de ser dito, a necessidade de recortar o tal núcleo essencial, mesmo que esse núcleo apenas possa ser preenchido caso a caso e, em abstrato, se possa traduzir em pouco mais do que um critério orientador.
A teoria do núcleo essencial como critério de repartição e limite à intersecção de competências entre órgãos constitucionais não se confunde com a afirmação de uma reserva da função governativa ou administrativa. Em boa verdade, a inultrapassável indefinição apriorística que acompanha, nos termos expostos, a teoria do núcleo essencial é até logicamente incompatível, pelo menos, com uma reserva geral da função administrativa estabelecida em termos próximos ou análogos, designadamente, aos da reserva da função jurisdicional. Sobre esta questão nos ocuparemos de seguida.
11.5.2 - Antes de se abordar ex professo a questão da existência, ou não, de uma reserva geral administrativa ou de reservas específicas da função administrativa, impõe-se dar um passo atrás e recuperar o que foi dito sobre o sentido material ou funcional da separação de poderes e a caracterização das funções estaduais, uma vez que não faria sentido averiguar se existe ou não - e se sim, em que termos - uma reserva da administração se não reconhecermos uma função administrativa de forma autónoma. Como foi aí sugerido (cf. supra, 11.1.) se não há uma impossibilidade na caracterização hodierna das funções estaduais, há pelo menos uma enorme dificuldade em tal tarefa, que levam a doutrina a defender que tal distinção não pode ser feita com base num modelo definitório, mas apenas recorrendo a um modelo tipológico. Isto é, uma vez que «não é possível encontrar um critério preciso para a separação das funções do Estado», e tendo em conta que o «quadro orientador de cada uma das funções (...), em vez de obedecer a exigências de determinação lógica necessária, há de satisfazer, muito mais, solicitações dogmáticas duma dada situação política, e ser assim histórico-concretamente condicionado» (Rogério Ehrhardt Soares, Direito Administrativo, Universidade Católica, p. 40), será necessário ter presente «que a distinção prática entre as funções estaduais não é possível no contexto rigoroso de um modelo definitório, em que se pretenda a verificação integral e exclusiva das características de cada uma das funções (...), mas apenas no quadro de um modelo tipológico, em que se admita a inclusão de uma atividade em determinada função apesar de não satisfazer a todas essas características, bastando que corresponda a um núcleo significativo delas» (cf. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 4.ª ed., 2015, p. 36).
Como demonstra Vieira de Andrade (ob. cit., p. 30 e segs.), a distinção da função administrativa no confronto com as outras funções apresenta-se como um trabalho de grande dificuldade, desde logo quando a comparamos com a função política ou governativa, residindo a dificuldade da distinção «em especial na circunstância de as duas funções (...) se situarem, nuclearmente, no âmbito da atividade do tradicional poder executivo - atualmente, entre nós, bicéfalo (Presidente da República e Governo) - tratando-se em ambos os casos, tipicamente, de atuações de caráter concreto.». Já no que se refere ao confronto com a função legislativa, ainda segundo o mesmo Autor, «[a]s dificuldades atuais de distinção resultam de diversos fatores de perturbação, entre os quais se destaca sobretudo a circunstância peculiar de o Governo, além de exercer as funções política e administrativa, constituir, na nossa ordem jurídico-constitucional, um órgão com competências legislativas normais (artigo 198.º da CRP).» (ibidem, p. 33). A que se somam outras dificuldades, subsumidas na questão central da alteração do conceito de ato legislativo, nomeadamente o exercício pelo Executivo da função legislativa, o facto de o caráter geral e abstrato não ser decisivo para definir este conceito, de a hierarquia normativa não ser inequívoca e a inexistência de uma «reserva de regulamento administrativo» que leva a que se admita, «entre nós, que a lei regule em termos gerais e abstratos a totalidade dos aspetos, mesmo de aspetos de pormenor, do regime de qualquer matéria, que adquirem assim qualidade legislativa» (cf. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 33). Neste quadro, os principais problemas de distinção entre a função legislativa e a função administrativa põem-se «sobretudo perante decisões administrativas tomadas por um órgão que também dispõe de poderes legislativos, como o Governo» (id., ibidem, p. 34).
Ainda que se admita a ultrapassagem de tais dificuldades - e só assim se justifica esta nota - há então que abordar se será ou não constitucionalmente reconhecida uma reserva da função administrativa. Em termos expressos parece evidente que não: ao contrário do que acontece com a função legislativa (artigos 164.º e 165.º) e com a função jurisdicional (artigo 202.º, todos da CRP), a nossa Constituição não contém qualquer disposição que caracterize substancialmente a função administrativa, pelo que a alusão àquela reserva se poderia destinar apenas a demonstrar que o princípio da separação de poderes garante também um espaço de ação próprio da Administração, quer perante a função legislativa, quer no confronto com a função judicial. Todavia, esse espaço de ação próprio, ou a hipotética admissibilidade de um núcleo essencial da função administrativa não pode legitimar ou tornar defensável a existência de uma reserva geral de Administração.
Nas palavras de Nuno Piçarra, «(...) dada, pois, a natureza heterogénea da função administrativa no quadro da CRP, torna-se impossível definir o seu "núcleo essencial", em que consistiria a reserva de administração, entendida como reserva geral, tendencialmente absoluta (...)» - cf. "A reserva de administração", in O Direito, ano 122.º, 1990, tomos II e III-IV, p. 573.
Assim, a doutrina nacional está hoje de acordo em relação à inexistência, com base na Constituição, de uma reserva material de Administração, tendo a jurisprudência deste Tribunal vindo a trilhar o mesmo caminho. Como foi proclamado, em termos emblemáticos, num dos mais importantes arestos nesta sede, o Acórdão 1/1997, fundado em jurisprudência anterior:
«não é configurável, no ordenamento jurídico-constitucional português, qualquer reserva material de administração, que inclua, nomeadamente, uma reserva de regulamento ou impeça a Assembleia da República de tornar objeto de lei matéria disciplinável administrativamente [cf. Acórdão 461/87 (...), em que se afirmou que "(...) o legislador dispõe de uma omnímoda faculdade - constitucionalmente reconhecida - de programar, planificar e racionalizar a atividade administrativa, pré conformando-a no seu desenvolvimento, e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério e à autonomia dos respetivos órgãos e agentes, ou antes preocupando-o (preferência de lei)"]».
Ainda que tal omnímoda faculdade (assinalada, pela primeira vez, no citado Acórdão 461/87, mas sucessivamente reafirmada, não só neste Acórdão 1/97, mas também nos Acórdãos n.os 24/98 e 214/2011, sobre os quais nos debruçaremos infra - cf. pontos 12.2 e 12.3.) não possa justificar «uma pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua atividade normal, pelo Parlamento, sem qualquer justificação especial», como é dito no mesmo Acórdão 1/97.
Questão diferente, e que encontra algum apoio na doutrina e na jurisprudência constitucional nacional tem a ver com o reconhecimento de reservas específicas da função administrativa, as quais se poderão identificar no seio da administração autónoma (regiões autónomas, autarquias locais, universidades) e também da administração independente (Comissão Nacional de Eleições, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Comissão Nacional de Proteção de Dados, para além das entidades independentes com poderes reguladores, como a Comissão do Mercado de Valores Imobiliários ou a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, para citar só dois exemplos).
Apesar de parte da doutrina circunscrever a análise dos domínios específicos de reserva da administração à administração autónoma (cf., por todos, Mário Aroso de Almeida, ob. cit., p. 242), autores há que vão mais longe, admitindo espaços reservados também no âmbito da Administração central (cf. Blanco de Morais, ob. cit., p. 184 e segs., para quem o artigo 111.º, n.º 1, da CRP «assegura uma esfera ou margem útil de poder próprio do Governo, em face do Parlamento, para poder concretizar a lei no universo administrativo», mencionando o «poder de direção do Governo relativamente à administração direta», domínio no qual o Parlamento estará inibido de emitir normas «que reduzam o sentido útil desse poder de direção ou de atos materialmente administrativos editados taticamente pelo Parlamento sob a forma de lei suscetíveis de constituir uma inversão do critério nuclear da separação de poderes.»). Ou que fazem tal exame articulando-o com a própria CRP, identificando reservas especiais de administração nas alíneas d) e e) do seu artigo 199.º, preceitos que apontarão «para um campo de ação governativa que o legislador pode enquadrar, mas não pode preencher», reclamando-se «como de um domínio de competência irredutível» do Governo. Falando, nesta linha, de um campo de ação próprio do Governo que a Constituição demarca por competências específicas - tanto administrativas como políticas, o que implica que nos afastemos de reservas administrativas especiais - que «configura limites funcionais à intervenção do Parlamento», o qual «não pode usurpar a atuação daquelas competências», podendo apenas acionar mecanismos aposteriorísticos de responsabilidade política do Governo (cf. Assunção Esteves, ob. cit., p. 10-13).
Todavia, não é legítimo chegar aqui a respostas definitivas, nem tal análise permite dispensar a advertência de Reis Novais, acima reproduzida, no sentido de que os limites recíprocos na interação de órgãos constitucionais só podem ser estabelecidos, com rigor, em cada caso concreto (cf. ob. cit., p. 61).
Há que concluir, quanto ao tema da reserva da Administração, sendo para o efeito pertinente recorrer ao Acórdão 1/97, recuperado e citado em jurisprudência posterior, em especial no Acórdão 24/98 e em algumas das declarações de voto ao Acórdão 214/2011. Como ficou dito no Acórdão 1/97, tendo por base o princípio da separação dos poderes, a ideia de uma «(...) reserva geral de administração surge como inadequada à função atual do princípio, na medida em que diminuiria possibilidades de efetivação do controlo democrático do Executivo, limitando as áreas de intervenção legislativa do Parlamento e excluindo-o da direta decisão política». Destacou-se no mesmo aresto que «(...) não decorre seguramente do artigo 114.º [atual artigo 111.º], n.º 1, da Constituição, em conjugação com o próprio artigo 2.º, que consagra o princípio do Estado de direito democrático, uma reserva geral de administração», inexistindo «(...) qualquer estrita correspondência entre separação de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles». O aresto em causa afasta, assim, de forma veemente, a existência de uma reserva geral de administração, que, na ótica que obteve aí vencimento, apenas teria cabimento num «(...) modelo de rígida sobreposição de órgãos a funções, em que se viesse a enquadrar uma reserva geral de administração».
No mesmo Acórdão - articulando a problemática com a do núcleo essencial, que foi supra abordada (11.5.1.), o Tribunal Constitucional teve oportunidade de frisar que «(...) mesmo que se reconheça que sempre será inerente ao princípio do Estado de direito democrático a reserva de um núcleo essencial da administração ou do executivo - como condição da limitação do exercício dos poderes pelos órgãos de soberania e da própria necessidade de responsabilização do Governo - , ainda assim a colisão com tal núcleo haveria de implicar uma pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua atividade normal, pelo Parlamento, sem qualquer justificação especial», sustentando que as normas então sindicadas representavam um mero «(...) exercício da faculdade de definir e pré-conformar o espaço de manobra dos órgãos da Administração, não se sobrepondo materialmente ao poder regulamentar, anteriormente conferido ao Governo pelo Decreto-Lei 28-B/96, de 4 de abril».
E, indo ainda mais longe, o Tribunal Constitucional recusou - ainda no Acórdão 1/97 - a própria existência de «reservas funcionais específicas» alicerçadas em torno das alíneas do atual artigo 199.º da Constituição (antigo artigo 202.º), entendendo que tal visão mais não faz do que reduzir «(...) a um plano meramente positivo a tese do núcleo essencial, lendo a atribuição pelo legislador constitucional de competência administrativa ao Governo como reserva efetiva».
No Acórdão 214/2011, seguiu o Tribunal a mesma linha, ao afirmar (sublinhando tratar-se de jurisprudência reiterada) que «a Constituição não (...) confere ao Governo uma reserva de competência originária regulamentar em certas matérias. O poder regulamentar conferido ao Governo pela alínea c) do artigo 199.º para fazer "os regulamentos necessários à boa execução das leis" não corresponde a qualquer reserva de regulamento, no sentido de a lei não poder ultrapassar um determinado nível de pormenorização ou particularização de modo a deixar sempre ao Governo, enquanto titular do poder regulamentar, um nível de complementação normativa relativamente a cada uma das leis», fazendo remissões posteriores para os Acórdãos n.os 461/87 (sobre a já mencionada «omnímoda faculdade - constitucionalmente reconhecida - de planificar e racionalizar a atividade administrativa, pré-conformando-a no seu desenvolvimento, e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério e à autonomia dos respectivos órgãos e agentes, ou antes pré-ocupando-o (preferência de lei)», que assiste ao legislador).
Sendo por último de assinalar que a doutrina não se afasta de tal entendimento - achando, porventura, que o Tribunal deveria ter ido mais longe na negação de uma reserva da Administração. Em anotação a um dos acórdãos citados, o Acórdão 24/98, Gomes Canotilho realça (cf. «Anotação», Revista de Legislação e Jurisprudência, 131.º ano (1998/1999), n.os 3.887 e 3.888, p. 91), que continua «a considerar tendencialmente correta a ideia de que, entre nós, a lei é um ato de conteúdo aberto», mas que julga da mesma forma «correto o entendimento de que é muito difícil recortar com rigor na nossa ordem jurídico-constitucional reservas de administração vedadas à intervenção legislativa».
Com o que se conclui, de forma evidente, dever afastar-se a ideia de uma reserva geral de administração, bem como de reservas específicas da administração que possam ter relevo na resposta às questões formuladas no pedido.
12 - Movendo-se os contornos do pedido e, por consequência, da apreciação da (in)constitucionalidade das normas sindicadas, essencialmente no âmbito do princípio da separação e interdependência dos poderes, é forçoso que nos debrucemos sobre a jurisprudência deste Tribunal sobre o tema. Na sequência do que a Comissão Constitucional já havia feito - entre muitos outros, no citado Parecer 16/79 - há múltiplos acórdãos do Tribunal Constitucional sobre a matéria, sendo relevante convocar aqueles que mais diretamente se relacionam com as questões em apreço, em especial por terem por objeto normas com similitudes assinaláveis com aquelas sob o escrutínio do Tribunal neste processo - e que têm simultaneamente merecido uma atenção muito particular por parte da doutrina. Assim, passaremos em revista alguns dos principais aspetos, na ótica da questão em análise, que emergem dos Acórdãos n.os 1/97, 24/98 e 214/2011.
12.1 - O Acórdão 1/97 foi proferido no contexto de um processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade que incidiu sobre as normas constantes do Decreto 58/VII, aprovado em 31 de outubro de 1996 pela Assembleia da República, relativo à «Criação de Vagas Adicionais no Acesso ao Ensino Superior». As disposições aí sindicadas estatuíam que os estudantes candidatos ao ingresso no ensino superior que, na sequência dos exames de setembro de 1996 (segunda fase de acesso), tivessem obtido nota de candidatura superior em cada par curso/estabelecimento ao último colocado para o mesmo par curso/estabelecimento na primeira fase, tinham direito ao ingresso pretendido no ano letivo de 1996/1997.
O Tribunal Constitucional viria a pronunciar-se pela inconstitucionalidade do artigo 1.º do referido decreto, por este contrariar, conjugadamente, o princípio da segurança jurídica resultante do artigo 2.º da Constituição e o princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, da Constituição. No entanto, afastou qualquer inconstitucionalidade decorrente de uma violação do princípio da separação e interdependência de poderes ou de uma esfera de atuação reservada ao Governo.
Com efeito, apreciando o pedido e os seus fundamentos, o Tribunal Constitucional entendeu que as normas em causa, consubstanciando uma alteração excecional e retroativa da regulamentação do concurso nacional de acesso ao ensino superior para o ano letivo de 1996/97, fixada pela Portaria 254/96, de 13 de julho - apesar de contrariarem o princípio da segurança jurídica e o princípio da igualdade, nos termos referidos - não violavam, no entanto, o princípio da separação e interdependência de poderes hoje plasmado no artigo 111.º da Constituição.
Pode ler-se nesse aresto que, «(...) apesar de o princípio da separação de poderes ter tido formulações históricas nem sempre associadas à ideia de Estado de direito democrático, aquele princípio veio a adquirir, em conexão com esta ideia, a natureza de um instrumento garantístico da esfera jurídico-subjetiva e, em última análise, de controlo democrático do poder (...)». Como vimos supra (11.5.2.), foram acolhidas neste aresto as ideias de não decorrer dos preceitos convocados (artigos 2.º e 114.º - atualmente 111.º - n.º 1 da CRP) uma reserva geral de administração, nem uma sobreposição material, por parte das normas sindicadas, ao poder regulamentar administrativo do Governo e, ainda, a recusa da existência de reservas administrativas funcionais específicas alicerçadas em torno das alíneas c), d) e g) do atual artigo 199.º da CRP.
O Tribunal Constitucional também repudiou neste Acórdão uma eventual inconstitucionalidade das normas em apreço alicerçada na violação do atual artigo 182.º (então, artigo 185.º) da Constituição, sustentando que «[a] caracterização constitucional do Governo como órgão de condução da política e órgão superior da administração pública não poderá significar, em caso algum, uma subtração de matérias ao poder legislativo nem retirar à Assembleia da República a decisão política, confinando-a à mera discussão e à crítica inconclusiva, sem possibilidade de levar a cabo um efetivo controlo do poder executivo», acrescentando: «(...) não será uma esporádica e excecional limitação do espaço de manobra do Governo, sem qualquer deliberada e reiterada substituição funcional pela Assembleia da República, que poderá violar o artigo 185.º [atual artigo 182.º] da Constituição (...).».
12.2 - Na mesma linha, o Acórdão 24/98, igualmente lavrado no âmbito de um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, apreciou a compatibilidade com a Lei Fundamental de várias normas do Decreto 196/VII que, no essencial, integravam transitoriamente o lanço de autoestrada Torres Vedras (Sul) - Bombarral da A 8 e ainda outros conexos no âmbito da concessão conferida à BRISA, eliminando ou extinguindo o direito à cobrança de portagens por parte da concessionária. A este efeito acrescia, no caso, a circunstância de estar então a decorrer um concurso público internacional para escolha de um novo concessionário da autoestrada do Oeste, que assim ficava praticamente privado do seu objeto, nomeadamente em virtude da proibição de cobrança de portagens (que constituía pressuposto da concessão visada por esse concurso).
Seguindo a linha - e sob a sua clara influência - do Acórdão 1/97, o Tribunal Constitucional aferiu a eventual inconstitucionalidade das normas impugnadas nesses autos, nomeadamente em face do princípio da separação e interdependência de poderes. Além de reiterar a doutrina expendida no Acórdão 1/97, o Tribunal entendeu que, sendo as normas em causa aprovadas no quadro de um processo de apreciação parlamentar de um decreto-lei do Governo, não haveria «(...) fundamento constitucional para restringir o âmbito do instituto da apreciação parlamentar dos decretos-leis, previsto no artigo 169.º da Lei Fundamental, à parte desses diplomas que seja inquestionável e necessariamente de natureza legislativa, e para excluí-lo quanto às determinações de natureza tão-só pretendidamente "administrativa" que os mesmos incluam». Pelo contrário, sendo a forma o critério decisivo, «(...) toda a matéria tratada num qualquer decreto-lei, e que o Governo versou, assim, sob "forma legislativoi", é passível de apreciação parlamentar (...)».
Em consequência, o Tribunal decidiu que «(...) as questionadas normas deste decreto parlamentar, ao disporem sobre a conservação e a exploração sem cobrança de portagem dos lanços de estrada em causa, alterando o que a esse respeito o Governo havia determinado por decreto-lei, não implicam uma intromissão ilegítima do legislador parlamentar na área da "administração", ou seja, não se traduzem em violação daquela nuclear "reserva funcional" desta que (...), sempre, ao menos, se há de retirar do princípio da separação e da interdependência dos poderes». No texto do acórdão que obteve vencimento, o exame da (não) violação do princípio da separação de poderes é sempre efetuado na perspetiva da reserva de função administrativa do Governo.
Assim, ainda que pareça poder aceitar a existência de uma reserva do núcleo essencial da função administrativa do Governo, o Tribunal Constitucional entendeu que tal reserva não era afetada, uma vez que a intromissão visada pelas normas sindicadas «(...) não retirou integralmente ao Governo a gestão administrativa da política rodoviária em matéria de auto-estradas (antes e apenas aplicou de modo distinto a respetiva classificação, com eliminação da cobrança de portagem em certos lanços rodoviários). Não há, assim, uma "pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua atividade normal, pelo Parlamento" (nas palavras do Acórdão 1 /97)». Como não se verifica, tão-pouco, «uma intromissão intolerável da Assembleia da República na esfera puramente administrativa do Governo, em domínios que são próprios da sua atividade executiva», não se mostra violado o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania.
12.3 - Por fim, com especial relevância para o caso dos autos, cabe referir o Acórdão 214/2011, onde o Tribunal Constitucional apreciou, ainda em sede de fiscalização preventiva, a constitucionalidade de todas as normas constantes de um decreto da Assembleia da República que procedia à suspensão do modelo de avaliação do desempenho de docentes então em vigor, revogando também o Decreto Regulamentar 2/2010, de 23 de junho. Sendo desde já relevante assinalar que a questão central deste aresto é a da revogação de um decreto regulamentar do Governo por parte da Assembleia da República sem, todavia, ter revogado a respetiva lei habilitante.
No artigo 1.º de tal Decreto determinava-se que «o Governo deve iniciar o processo de negociação sindical tendente à aprovação do enquadramento legal e regulamentar que concretize um novo modelo de avaliação do desempenho de docentes, produzindo efeitos a partir do início do próximo ano letivo». O Decreto estabelecia, ainda, um regime transitório nos termos do qual, até à entrada em vigor do novo modelo de avaliação, seriam aplicáveis à avaliação do desempenho de docentes os procedimentos previstos no Despacho 4913-B/2010, de 18 de março. As similitudes com o caso aqui em apreço, nomeadamente no que concerne à emanação de um comando ou injunção emitidos pela Assembleia da República tendo como destinatário o Governo, em matéria de organização da atividade docente ou de avaliação dos respetivos funcionários, são, assim, por demais evidentes.
O Tribunal Constitucional salientou neste aresto «(...) a posição do princípio da separação de poderes simultaneamente como um princípio fundamental do momento organizatório da Constituição e como um dos princípios definidores da comunidade política e do Estado», admitindo também que, modernamente, tal princípio «(...) não cumpre apenas o papel, com que entrou na história do constitucionalismo, de repartição orgânico-funcional dos poderes do Estado com vista à proteção das liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos. Desempenha uma pluralidade de funções constitucionais: função de medida, função de racionalização, função de controlo e função de proteção».
Mas foi, naturalmente, mais longe, destacando que «[a] maior virtualidade ou dimensão operativa do princípio, ao menos em termos de justiciabilidade - o que, num sistema de justiça constitucional como a portuguesa, releva pela via da apreciação de constitucionalidade de normas jurídicas - é a que respeita à sua dimensão de elemento de interpretação e de delimitação funcional das normas constitucionais de competência no sentido da racionalização do exercício das funções do Estado». E, tomando posição sobre a compatibilidade com a Constituição de uma das normas em apreço, entendeu que «(...) o Governo é "o órgão superior da administração pública" (artigo 182.º da CRP), nessa qualidade lhe competindo desempenhar uma série de funções constitucionais, designadamente, no exercício da função administrativa em matéria de direção dos serviços e da atividade da administração direta do Estado [artigo 199.º, alínea e) da CRP], praticar todos os atos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado [artigo 199.º, alínea d) da CRP] e fazer, para tanto, os regulamentos necessários à boa execução das leis [artigo 199.º, alínea c), da CRP]». A esta luz, assinalou que cabe ao Governo «(...) conduzir, de acordo com os princípios de precedência e prevalência da lei, as políticas públicas legalmente definidas e por cuja execução é responsável», incluindo-se aí a política de avaliação sistemática do desempenho na Administração Pública, extensível ao pessoal docente do ensino básico e secundário.
Contudo, defendeu-se neste aresto a posição segundo a qual «a Assembleia da República pode, mediante um ato legislativo, não só modificar essas opções fundamentais, como até pré-ocupar a regulação do procedimento através do qual se procede à avaliação (o modelo). Se assim proceder, o Governo no exercício do poder regulamentar, se ainda for necessário ou restar qualquer margem de complementação, de acordo com o princípio da prevalência de lei, e a Administração escolar, em obediência ao princípio da legalidade, estarão vinculados a agir em conformidade (artigo 266.º da CRP)».
Consequentemente, o Tribunal Constitucional viria a pronunciar-se pela inconstitucionalidade dessa norma por violação do princípio da separação e interdependência de poderes apenas por entender que, não tendo modificado a lei habilitante do regulamento revogado, a Assembleia da República desrespeitara a esfera de competência do Governo, pois «(...) no espaço não ocupado por ato legislativo, cabe ao Governo determinar qual o conteúdo do ato regulamentar exigido pela "boa execução da lei"».
Desta perspetiva, decidiu o Tribunal Constitucional que «[u]m ato legislativo do Parlamento que, mantendo intocados os parâmetros legais em função dos quais determinada atividade administrativa há de ser prosseguida e a atividade normativa derivada necessária há de ser desenvolvida, se limita a revogar a regulamentação produzida ao abrigo dessa mesma legislação que o Governo continua a ter de executar, priva este órgão de soberania dos instrumentos que a Constituição lhe reserva para prosseguir as tarefas que neste domínio lhe estão constitucionalmente cometidas [maxime artigos 182.º, última parte, 199.º, e), primeira parte, e 199.º, c) da CRP], quebrando toda a racionalidade do sistema de separação e interdependência entre órgãos de soberania».
Já quanto à outra norma também diretamente apreciada neste caso - que impunha ao Governo que iniciasse o processo de negociação sindical tendente à aprovação do enquadramento legal e regulamentar que concretizasse um novo modelo de avaliação do desempenho de docentes -, o Tribunal Constitucional afirmou, lapidarmente, que «(...) a decisão sobre o se e o quando da iniciativa de desencadear negociações com vista à alteração do ordenamento - com as associações sindicais ou com outros portadores de interesses que devam participar - é uma opção política que um órgão de soberania não pode impor ao outro, mesmo nos espaços onde ambos concorram no poder de regulação emergente, seja este equiordenado (lei - decreto-lei), seja escalonado (ato legislativo - ato regulamentar)» (12.).
Com efeito, fazendo eco do ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira - e como já foi mencionado supra (11.3. e 11.5.1.) - o Tribunal recordou que «as relações do Governo com a Assembleia da República são relações de autonomia e de prestação de contas e de responsabilidade; não são relações de subordinação hierárquica ou de superintendência, pelo que não pode o Governo ser vinculado a exercer o seu poder regulamentar (ou legislativo) por instruções ou injunções da Assembleia da República».
Parecendo ir mais longe do que fora na fundamentação da declaração de inconstitucionalidade da norma anteriormente apreciada no mesmo aresto, o Tribunal Constitucional esclareceu ainda, no mesmo Acórdão 214/2011 (12.), que «[d]entro dos limites da Constituição e da lei, o Governo é autónomo no exercício da função governativa e da função administrativa», pelo que «nas zonas de confluência entre atos de condução política e atos de administração a cargo do Governo a dimensão positiva do princípio da separação e interdependência de órgãos de soberania impõe um limite funcional ao uso da competência legislativa universal da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea c), da CRP], de modo que esse poder de chamar a si do Parlamento não transmude a forma legislativa num meio enviesado de exercício de competências de fiscalização com esvaziamento, pelo controlo democrático-parlamentar e pela regra da maioria, do núcleo essencial da posição constitucional do Governo enquanto órgão superior da administração pública (artigo 182.º da CRP), encarregado de dirigir os serviços da administração direta do Estado [artigo 199.º, alínea d) da CRP]».
Consequentemente, o Tribunal Constitucional declarou também inconstitucional esta segunda norma, por violação do n.º 1 do artigo 111.º da Constituição, tal como declarou feridas de inconstitucionalidade consequencial todas as demais normas sindicadas.
13 - A importância dos três acórdãos cujos conteúdos decisórios passamos brevemente em revista vai muito para lá das decisões propriamente ditas, na medida em que foram lavradas, em qualquer um deles, diversas declarações de votos de conselheiros vencidos ou que não acompanharam totalmente as decisões. E, para além disso, a doutrina não se mostrou indiferente a tais arestos, submetendo duas das decisões a um notável exame crítico, razão pela qual se produziu um apreciável manancial de opiniões, de grande profundidade analítica e dogmática, cuja influência se projeta para a decisão relativa às normas que agora nos ocupam. Importa, então, abordar com alguma atenção o que foi dito em relação a estes arestos, sendo de assinalar que as vozes discordantes, no interior e no exterior do Tribunal, se fizeram sentir de forma mais ou menos severa, assinalando entre outros pontos que, no que respeita ao princípio da separação e interdependência dos poderes ou dos órgãos de soberania - o ponto que nos interessa - o Tribunal podia e devia ter ido mais longe do que foi. Para assinalar a heterogeneidade das opiniões, traduzidas nos votos dos conselheiros responsáveis pela prolação do Acórdão 1/97, Gomes Canotilho alude mesmo a uma «sentença estranha», na qual «não se vislumbra claramente uma communis opinio quanto às razões dos votos "concordantes" e dos "votos dissidentes"» (cf. «Anotação», Revista de legislação e Jurisprudência, 130.º ano (1997/1998), n.os 3873-3885).
Para aquilatar do reforço da relevância destes arestos, do ponto de vista que nos guia, deve lembrar-se, em jeito de síntese, que o Acórdão 214/2011 decidiu pela «violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania»; no Acórdão 1/97, apesar de não se ter considerado a violação de tal princípio como fundamento da decisão de inconstitucionalidade a que se chegou, houve quatro conselheiros que divergiram, tendo lavrado os respetivos votos de vencido; e no Acórdão 24/98, não obstante o Tribunal não se ter pronunciado pela inconstitucionalidade das normas sindicadas, nomeadamente «em confronto com o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania», houve também quatro conselheiros no entender de quem tal princípio tinha sido violado. Vejamos então melhor o que se disse nessas (e sobre essas) «estranhas sentenças», na perspetiva do princípio da separação dos poderes.
13.1 - Em relação ao Acórdão 1/97 são de evidenciar alguns dos aspetos salientados nos respetivos votos de vencido. O Conselheiro Alberto Tavares da Costa considerou que o Decreto sindicado contrariava o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania em função do «tópico de equilíbrio que deve assistir à interação entre os vários órgãos de soberania e que decorre daquele princípio organizatório fundamental das relações estaduais» considerando «excessiva» a injunção dada pela Assembleia da República ao Governo através do diploma sindicado, uma vez que ela «é suficientemente relevante para afetar a moderação que é a raiz e essência da "separação e interdependência" dos órgãos de soberania e da "autonomia" destes». Também Messias Bento considera violado o princípio em apreciação, pondo em evidência os riscos do «chamado governo de assembleia, em que o Parlamento exerce a sua competência sem os limites que resultam da existência (e da competência) dos outros órgãos de soberania, maxime da do Governo», pelo que a intromissão da Assembleia da República no processo de candidaturas de ingresso no ensino superior afeta a ação do Governo, ao perturbar «o equilíbrio que vai implicado na ideia de gouvernement moderé». Opinião análoga é expressa por Alves Correia, para quem há violação do princípio da separação de poderes: não devido a uma invasão por parte da Assembleia da República de uma pretensa área reservada da Administração Pública que, no caso, não existe, mas em função do momento e do modo de atuação do Parlamento. Maria da Assunção Esteves, por último, salienta a violação do princípio sob a nossa análise o qual, ao nível dos princípios supra-positivos reconhecidos pelo constitucionalismo, é uma «essência constitucional» (Rawls).
Em face deste dissídio, não são de estranhar os reparos feitos por Gomes Canotilho na citada «Anotação», advertindo que «se não se recortarem com rigor os limites funcionais do legislador numa perspetiva constitucionalmente adequada do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, parece-nos que os riscos de um "governo de assembleia" não ficam decididamente arredados», para, logo em seguida, adiantar que o Tribunal Constitucional não lidara «de uma forma convincente» com a argumentação constante do requerimento de fiscalização preventiva, que era «forte no plano jurídico-dogmático e forte no plano metódico-principial» (p. 81). Naquilo que mais nos interessa, enfatiza o Autor que as razões conducentes à pronúncia de inconstitucionalidade (violação dos princípios da igualdade e da proteção da confiança) lhe parecem as menos pertinentes, uma vez que «o cerne da questão está na densificação do princípio da separação e interdependência» de poderes, impondo-se uma distinção entre uma «tentativa doutrinária de recortar uma categoria dogmática - a reserva da administração - para a colocar (ou contrapor) em paralelo à reserva de lei e à reserva de jurisdição» e outra realidade, muito diferente, que «é a procura de limites jurídico-constitucionais à atividade dos órgãos de soberania de forma a manter imperturbado o esquema constitucional de separação e interdependência de poderes» (ibidem, p. 82).
No essencial Gomes Canotilho conclui que a posição vertida no aresto em causa lhe suscita dúvidas, afirmando, de forma bem clara, que «[a] escolha de uma forma legislativa está, no ordenamento português, vinculada à conformação e ordenação funcional dos órgãos de soberania constitucionalmente estabelecida» e que «no caso em apreço o que se verifica é que o "desvio da forma" indicia um desvio de competências e de funções», de tal forma que através de uma "nova lei" a Assembleia da República «arvora-se em "governo"» (ibidem, pp. 82-83). Em suma, e na linha dos votos de vencido elencados, a razão decisiva para a inconstitucionalidade é, para o insigne constitucionalista, a violação do princípio da separação e interdependência de poderes.
13.2 - Centrando-nos agora no Acórdão 24/98, também aqui houve diversas declarações de voto e, de novo, quatro conselheiros que expressamente consideraram verificar-se violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania. Na linha da declaração aposta ao Acórdão 1/97, Alberto Tavares da Costa assinala a violação do citado princípio, detetando na norma sindicada uma «afetação na moderação devida na observância da separação e interdependência de poderes». Também o Conselheiro Messias Bento retoma, pelo menos em parte, a argumentação aduzida na declaração anterior, alertando de novo para os riscos do «governo de Assembleia», resultante da intromissão do Parlamento na ação governativa que, também neste caso, em sua opinião, ultrapassa as exigências de moderação impostas pelo princípio da separação e interdependência de poderes. O voto de vencido dos conselheiros Armindo Ribeiro Mendes e Maria Fernanda Palma terá um peso particular, uma vez que o primeiro signatário tinha sido responsável pela elaboração de um primeiro memorando, como primitivo relator, que, todavia, não obteve vencimento no Plenário, e para o qual são remetidas parte fundamental das considerações feitas nesta declaração. Embora antes de mais centradas na violação da esfera de competências administrativas do Governo - o que, como veremos, não é o que acontece nas normas que ora nos ocupam - interessam-nos, como é evidente, as considerações que apontam para a violação do princípio da separação de poderes, em virtude, nomeadamente, daquilo que os signatários consideram ser «uma intromissão intolerável da Assembleia da República na esfera puramente administrativa do Governo, não respeitando um campo ou espaço bem delimitado da sua atividade executiva», aludindo, naquilo que mais nos interessa, ao facto de a opção pela forma legislativa não poder penalizar o Governo, no exercício da sua atividade administrativa e, sobretudo, à «coligação negativa» das oposições parlamentares, a qual «vai constranger a ação administrativa do Governo num domínio económico-social altamente sensível». São sobretudo de sublinhar, em nosso entender (pela proximidade com a situação ora em apreço), as limitações da opção parlamentar projetadas no futuro: «está-se aqui perante uma intencional intromissão da Assembleia da República no espaço funcional da ação governativa», sendo «a continuidade da política futura do Governo (...) que é posta em causa pela Assembleia da República» (itálico nosso); a explicação da atitude da maioria dos deputados não se encontra na «mera intenção de correção de situações passadas (...), antes se configura como absolutamente voltada para o futuro e desprovida de qualquer justificação especial» (itálico nosso). Sendo ainda convocado o argumento de que o facto de o Governo manter a competência legislativa na matéria não pode afastar a objeção de inconstitucionalidade.
Também este aresto foi anotado criticamente por Gomes Canotilho (cf. «Anotação», Revista de Legislação e Jurisprudência, 131.º ano (1998/1999), n.os 3887 e 3888, pp. 89 e segs.)., assinalando as suas «dúvidas quanto ao acerto metódico e dogmático da posição defendida pelo Tribunal Constitucional» (cf. p. 91). A tese que saiu vencedora neste Acórdão é sintetizada por Gomes Canotilho, em tom de censura, de forma impressiva: «o raciocínio da tese vencedora é simples: não há uma matéria que se furte ou seja possível retirar à competência legislativa da Assembleia da República, assim como não há uma reserva de administração (ou reservas de administração) que constituam coutadas imunes à intervenção parlamentar. Os parlamentos teriam os poderes do rei Midas: tudo o que tocam podem converter em ato legislativo da assembleia, mesmo que a outros pertença a tarefa de arranjar a matéria (fundos, receitas, reais ou virtuais) para a Assembleia a poder transformar em ouro» (ibidem, p. 91).
O caminho que deveria ter sido trilhado pelo Tribunal, na opinião de Gomes Canotilho, deveria ter sido outro, centrado numa «teoria da adequação funcional de órgãos e tarefas constitucionais», tendo em vista «não tanto captar as relações de poderes como relações de limites e de proibições de ingerência nos núcleos essenciais de cada uma das funções, mas sim compreender uma ordem constitucional de competências onde se descubra uma legitimação para cada órgão desempenhar as atribuições e tarefas relativamente às quais ele surja como o mais idóneo, adequado e eficaz no plano de competências e funções» - ibidem, p. 95. Tudo porque uma ordem constitucional estruturada segundo o princípio da separação e interdependência de poderes «deve deixar imperturbados os esquemas constitucionais de poderes, responsabilidade e controlo dos titulares dos órgãos de soberania» - ibidem, p. 96.
13.3 - Por último, também no Acórdão 241/2011 se revela decisivo olhar com detença para os votos de vencido lavrados por alguns conselheiros. Sempre na perspetiva que nos anima, isto é, da violação do princípio da separação de poderes. Assim, e apesar de a decisão do Tribunal Constitucional, como vimos, ter sido no sentido da inconstitucionalidade das normas sindicadas por violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, nalgumas declarações de voto defende-se que poderia o Tribunal ter ido mais longe. Foi o que aconteceu com a Conselheira Maria Lúcia Amaral que acentuou - numa argumentação que, como veremos, pode e deve ser transposta para a norma ora sindicada - não estar em causa, no Decreto da Assembleia da República, um problema de hierarquia de normas nem, tão-pouco, um problema de distinção substancial das funções do Estado, mas antes de mais as relações entre dois diferentes Poderes do Estado, cada um deles dotado de estatuto constitucional próprio. Pelo que a pergunta substancial que naquela situação se deveria colocar era «a de saber quanto, em relação ao Governo, pode o Parlamento». Isto é, estava em causa um «conflito de competências entre dois poderes do Estado, para se saber se o poder parlamentar invadiu ou não o campo próprio do poder governativo». Como tal, foi Maria Lúcia Amaral mais longe do que a maioria, pois se concorda que a decisão parlamentar violou o princípio da separação de poderes, a razão não se cinge à caracterização do Governo enquanto órgão superior da Administração Pública entendendo, ao contrário da maioria, que a razão assenta no facto de a Assembleia da República ter invadido «o núcleo essencial do poder do executivo enquanto poder governativo». Catarina Sarmento e Castro trilha, em parte, o mesmo caminho, acompanhando o acórdão quanto à violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, mas sublinhando o respeito, imposto pela CRP, «por um espaço mínimo e essencial de atribuições e responsabilidade próprio do Governo», uma vez que «o Parlamento não pode tudo, em todas e quaisquer circunstâncias». Assim, a violação do princípio resulta de ter sido «subtraído ao Governo o exercício de funções que não podem deixar de configurar um seu espaço mínimo e essencial na ordenação constitucional de funções.». Por último, merece uma chamada de atenção o voto do Conselheiro João Cura Mariano a propósito do artigo do Decreto sindicado que determinava que o Governo iniciasse um processo de negociação com as associações sindicais tendente à aprovação do novo regime, quando sublinha que as relações entre a Assembleia da República e o Governo não são de subordinação hierárquica ou superintendência, mas de mera sujeição a fiscalização e controlo, pelo que «não pode o Governo ser vinculado normativamente a exercer o seu poder regulamentar (ou legislativo) por instruções ou injunções da Assembleia da República.» (itálicos nossos).
14 - Em função do enquadramento que foi feito das normas sindicadas e dos diversos elementos carreados para este acórdão, o eixo da análise para a apreciação final sobre a compatibilidade de tais normas com a Constituição situa-se no plano da delimitação das esferas de competência da Assembleia da República e do Governo em razão da matéria especificamente considerada. Assim, neste momento, deve-se começar por afastar várias linhas argumentativas que foram já exploradas, mas que acabam por não relevar para dilucidar a concreta questão de constitucionalidade que o Tribunal é chamado a apreciar.
É isso que se passa, desde logo, com uma possível violação de uma eventual reserva (geral ou específica) de administração. Para além das inúmeras dúvidas em torno do reconhecimento de uma tal reserva de administração, patentes na jurisprudência deste Tribunal, mesmo que se reconhecesse tal reserva, não é isso que está em causa nestes autos: a vinculação gerada pelas normas sindicadas excede, como se viu, o exercício de poderes típicos da função administrativa, uma vez que abrange as competências legislativas do Governo. Também por esta razão - mas não apenas por ela, uma vez que a operatividade da distinção material entre as funções do Estado, em termos jurídico-constitucionais, está historicamente esbatida e desprovida, em larga medida, de relevo prático concreto - deve ser afastado neste momento o papel da separação material ou substancial entre a função administrativa e a função legislativa ou político-legislativa, da qual dificilmente resultam efeitos em termos do direito constitucional positivo e que, em qualquer caso, não relevam na situação em apreço. Muito próxima destas duas exclusões, há ainda uma outra, a qual tem efeitos muito relevantes no que toca aos dois pedidos formulados, como veremos melhor: também como resultado de não estar em jogo a articulação entre a função legislativa e a função administrativa, a questão de constitucionalidade que enfrentamos não passa pela forma como a Constituição constrói as relações entre a lei e o regulamento administrativo.
Por último, a própria noção de núcleo essencial, apesar de poder ter uma importância indireta da dilucidação da questão de constitucionalidade que enfrentamos, não terá um relevo autónomo na sua resolução, nomeadamente em face das dificuldades conceptuais e operativas que suscita e que foram já explanadas neste acórdão, em especial quando se concluiu que tal núcleo apenas pode ser preenchido caso a caso e, em abstrato, não se pode traduzir em muito mais do que um simples critério orientador (cf. 11.5.1.).
Numa análise pela positiva, deverá ter-se como certo que, não estando em causa a separação material das funções do Estado, a resposta pela (in)conformidade constitucional das normas sindicadas deverá centrar-se, assim, na separação organizatória dos poderes ou dos órgãos de soberania, tal como acolhida na Constituição, em especial no seu artigo 111.º
Apesar de o Tribunal ter optado, nos termos peticionados, pela apreciação do pedido na sua globalidade, isso não significa que a resposta à questão de constitucionalidade deva ser a mesma para todas as normas sindicadas. Na verdade, há apenas uma norma que, de acordo com o pedido, visa condicionar o exercício de um poder administrativo: a contida no n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, na qual se impõe ao Governo a abertura de «(...) um concurso para a vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino». Pelo contrário, o n.º 6 deste mesmo artigo 2.º, ao determinar a abertura de «(...) um processo negocial com as estruturas sindicais para aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais», visa condicionar o exercício de uma competência legislativa, pois tal processo negocial não é mais do que o primeiro passo do exercício de tal competência, revestindo por isso natureza político-legislativa - o mesmo valendo para todas as demais normas impugnadas (artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho), as quais (i) determinam «a abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário estabelecido pelo Decreto-Lei 132/2012, de 27 de junho» (artigo 1.º); (ii) estabelecem um prazo para o início dessa negociação (artigo 2.º); e (iii) prescrevem os critérios materiais a adotar na «revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário prevista na presente lei» (artigo 3.º). E a resposta à questão de constitucionalidade suscitada por estes dois diferentes tipos de normas não deverá ser a mesma, razão pela qual as trataremos em termos autónomos.
14.1 - No que respeita, em primeiro lugar, ao n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho e ao alegado condicionamento de um poder administrativo, há que recordar o que já foi diversas vezes dito sobre não relevar para o caso dos autos uma eventual questão de delimitação material das funções estaduais. Quanto à norma sindicada, em concreto, ela não consubstancia uma invasão de competências constitucionalmente reservadas ao Governo, por a determinação da abertura do concurso não ser, à luz da CRP, uma matéria necessariamente administrativa. Na matéria disciplinada neste artigo afigura-se perfeitamente legítima a intervenção do legislador (no caso, da Assembleia da República), não invadindo tal determinação as competências previstas nas alíneas d) e e) do artigo 199.º da CRP. Sendo fundamental ter presente que a norma ora em apreciação não implica, de per se, a abertura do concurso: apesar de haver uma pré-ocupação do espaço pelo legislador parlamentar, essa pré-ocupação não esgota a margem de discricionariedade da Administração (no caso, do Governo, no exercício de competências administrativas), a qual é compatível com este mesmo artigo 2.º Ou seja: ainda que se reconheça a existência de uma injunção da Assembleia da República ao Governo para abrir o concurso, este concurso não é aberto pela norma sindicada. O prazo previsto, de 30 dias, é um prazo meramente ordenador, e não se fixam as regras nem os parâmetros a que tal concurso há de obedecer, não se podendo considerar que haja uma invasão da esfera de competências (administrativas) reservadas ao Governo. Esta norma posiciona-se no âmbito dos limites da lei face ao poder regulamentar, mas tais limites não foram ultrapassados, razão pela qual não resta senão concluir pela sua não inconformidade constitucional.
14.2 - Os contornos da questão são outros no que toca às restantes normas sindicadas e, pode desde já adiantar-se, a resposta à questão de constitucionalidade terá também de ser outra. E são outros uma vez que têm de ser posicionados em relação à competência legislativa do Governo embora, mais uma vez, não seja uma questão de separação material das funções do Estado que está em jogo, mas antes um problema de repartição de competências constitucionais entre dois órgãos de soberania, no exercício da mesma função estadual, a político-legislativa. E o postulado básico para uma tomada de posição final sobre a questão dos autos, no que a estas normas se refere, é o de que - e como foi já posto em evidência - «(...) a nenhum órgão de soberania podem ser reconhecidas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais específica e principalmente atribuídas a outro órgão», o que significa que «(...) nenhum dos órgãos de soberania pode intrometer-se no núcleo essencial das funções pertencentes a outro órgão» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., vol. II, p. 46). Apesar das críticas que foram feitas à noção de «núcleo essencial» e de termos em larga medida afastado a sua operatividade, não negámos que ela pode ser um critério orientador, sendo isto que aqui sucede.
Assim, no que se refere às supra citadas normas - o n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, e os artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho - há um denominador comum: em todas elas se verifica um condicionamento ou balizamento do exercício de um poder legislativo do Governo, isto é, todas visam condicionar o Governo no exercício de competências legislativas. Condicionamento esse que se configura como violador da Constituição, nos termos que passaremos a ver de seguida com maior atenção.
Neste percurso argumentativo final, deve começar por sinalizar-se que não está - nem poderia estar - nunca em causa negar ou afastar a «supremacia legislativa da Assembleia da República sobre o Governo» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., cit., vol. II, p. 61), espelhada, nomeadamente, (i) no vasto domínio reservado à competência legislativa da Assembleia da República (cf. artigos 161.º, 164.º e 165.º da CRP), que contrasta com a apertada reserva de competência legislativa do Governo (cf. artigo 198.º, n.º 2), (ii) na reconhecidamente amplíssima competência legislativa genérica da Assembleia da República (cf. alínea c) do artigo 161.º) e (iii) no instituto da apreciação parlamentar de decretos-leis (cf. artigo 169.º da CRP). Nem sequer, não é pouco acentuá-lo, lançar qualquer interrogação sobre a «omnímoda faculdade», constitucionalmente reconhecida ao legislador, «de programar, planificar e racionalizar a atividade administrativa, pré-conformando-a no seu desenvolvimento, e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério e à autonomia dos respetivos órgãos e agentes, ou antes preocupando-o (preferência de lei)», reconhecida por este Tribunal no Acórdão 461/87 e posteriormente reafirmada, em múltiplos arestos.
No entanto, apesar desse protagonismo da Assembleia da República, a que se junta a primariedade, essencialidade e precedência normativa da lei no nosso sistema jurídico-constitucional, a verdade é que a Constituição reconhece competências legislativas ao Governo que, no caso, são concorrentes com as da Assembleia da República, uma vez que não estão a esta reservadas (cf. alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP). Ora, em tais matérias a Constituição tem de garantir ao Governo as condições institucionais que lhe assegurem uma auto-responsabilidade pelas políticas que conduz e pelas medidas que toma - isto é, e como salienta Reis Novais, impõe-se «recortar, na totalidade do âmbito funcional genericamente atribuído pela Constituição ao Executivo, um núcleo juridicamente protegido da hétero-determinação parlamentar, onde, sob pena de inversão dos critérios constitucionais de repartição de competências e de violação do princípio da divisão de poderes, deva ser o Executivo a determinar exclusivamente o sentido e o conteúdo das suas competências constitucionais» (cf. ob. cit., p. 59).
E é perante este quadro jurídico-constitucional que uma intrusão da Assembleia da República em relação a um decreto-lei do Governo não se pode justificar. Nas normas sindicadas ora sob apreciação, há um comando ou injunção da Assembleia da República em relação ao Governo-legislador que contende com uma esfera de autonomia do Governo constitucionalmente tutelada. E a lei não pode ser usada pelo Parlamento para constranger outro órgão constitucional a exercer em determinados moldes competências atribuídas pela própria Constituição.
É pertinente a este propósito assinalar, com Gomes Canotilho (cf. Direito Constitucional..., cit., p. 247), que o princípio da supremacia da constituição se exprime através da chamada reserva de constituição (Verfassungsvorbehalt), com o significado «que determinadas questões respeitantes ao estatuto jurídico do político não devem ser reguladas por leis ordinárias mas sim pela constituição». E esta reserva da constituição concretiza-se, sobretudo, através de dois princípios: para além do princípio da constitucionalidade de restrições a direitos, liberdades e garantias, o princípio da tipicidade constitucional de competências, implicando este último que, «[n]a definição do quadro de competências, as funções e competências dos órgãos constitucionais do poder político devem ser exclusivamente constituídas pela constituição, ou, por outras palavras, todas as funções e competências dos órgãos constitucionais do poder político devem ter fundamento na constituição e reconduzir-se às normas constitucionais de competência», pelo que «os órgãos do Estado só têm competência para fazer aquilo que a constituição lhes permite (cf. art. 111.º/2)» (id., ibidem, p. 247).
O artigo 111.º da CRP dispõe que «[o]s órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição», resultando de tal disposição a proibição, aqui quanto a competências legislativas não reservadas constitucionalmente à Assembleia da República (por estarmos no âmbito da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP) de intromissão no e condicionamento do exercício do poder de legiferação do Governo, incluindo as audições ou processos negociais que devam preceder esse exercício.
Perante este contexto jurídico-constitucional assistimos, nas normas sindicadas ora sob a nossa apreciação, à imposição de um processo negocial que, como primeiro passo do processo legislativo, limita ou delimita o espaço negocial do Governo. Trata-se de uma injunção da Assembleia da República ao Governo para que este inicie tais negociações que implica uma imposição de legislação, pondo em causa a autonomia do Governo num domínio de competência legislativa concorrente. Uma limitação da atuação deste órgão constitucional num contexto de separação de poderes que não pode ser aceite como legítimo por consubstanciar uma injunção que coarta a competência legislativa do Governo, órgão autónomo no exercício da função político-legislativa, dentro dos limites da lei e da Constituição.
Ora, como este Tribunal Constitucional já disse, porventura da forma mais enfática no Acórdão 214/2011, «(...) a decisão sobre o se e o quando da iniciativa de desencadear negociações com vista à alteração do ordenamento - com as associações sindicais ou com outros portadores de interesses que devam participar - é uma opção política que um órgão de soberania não pode impor ao outro, mesmo nos espaços onde ambos concorram no poder de regulação emergente, seja este equiordenado (lei - decreto-lei), seja escalonado (ato legislativo - ato regulamentar)». Entendimento reforçado pela circunstância posta em evidência pela doutrina e pela jurisprudência deste Tribunal (ambas amplamente citadas neste acórdão) quando assinala que as relações entre a Assembleia da República e o Governo são relações de autonomia e de prestação de contas, mas não são relações de subordinação hierárquica ou de superintendência, pelo que não pode o Governo ser vinculado ou constrangido a exercer o seu poder legislativo por instruções ou injunções da Assembleia da República. Foi nesse vício que o legislador incorreu (tanto no n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, como nos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho) violando o supracitado princípio de equiordenação entre órgãos de soberania, o que não pode deixar de conduzir a um juízo de inconstitucionalidade de tais normas.
Em conclusão: em termos jurídico-constitucionais é indispensável que haja um domínio de atuação do Governo que não seja objeto de intrusão parlamentar - particularmente importante, em termos político-constitucionais, no caso de governos minoritários, como se verificava in casu. Essa indispensabilidade mostra-se reforçada quando o Executivo está a exercer uma função político-legislativa, devendo ser ele a decidir, politicamente, se procede ou não à elaboração de um decreto-lei, não sendo a Assembleia da República a impor-lhe tal opção. Como ficou plasmado no diversas vezes citado Acórdão 214/2011, «nas zonas de confluência entre atos de condução política e atos de administração a cargo do Governo a dimensão positiva do princípio da separação e interdependência de órgãos de soberania impõe um limite funcional ao uso da competência legislativa universal da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea c), da CRP], de modo que esse poder de chamar a si do Parlamento não transmude a forma legislativa num meio enviesado de exercício de competências de fiscalização com esvaziamento, pelo controlo democrático-parlamentar e pela regra da maioria, do núcleo essencial da posição constitucional do Governo (...)».
Por estas razões, o n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, e os artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, padecem de inconstitucionalidade, uma vez que envolvem uma grosseira violação da posição equiordenada e do regime jus-constitucional a que obedece o exercício do poder legislativo pelo Governo, violando o artigo 111.º, n.º 1, da CRP (por se tratar de uma de separação organizatória entre diferentes poderes ou órgãos de soberania do Estado), interpretado em articulação com o disposto no artigo 198.º, alínea a), da Lei Fundamental, ao comprimirem, intoleravelmente, a liberdade ou autonomia do Governo nesse exercício.
III - Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não declarar a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 13 de julho, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho, por violação do disposto no artigo 111.º, n.º 1 e na alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º, ambos da Constituição da República.
Atesto o voto de conformidade do Senhor Conselheiro José António Teles Pereira e o voto de parcial conformidade do Senhor Conselheiro Lino Ribeiro, que votou vencido quanto à alínea a) do dispositivo e apresenta declaração de voto.
Lisboa, 11 de outubro de 2022. - José Eduardo Figueiredo Dias - Pedro Machete - Joana Fernandes Costa - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão [vencido quanto à alínea b), nos termos da declaração de voto junta] - José João Abrantes (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Mariana Canotilho [vencida quanto à alínea b), nos termos da declaração de voto junta] - Maria Benedita Urbano (parcialmente vencida, nos termos da declaração de voto junta) - António José da Ascensão Ramos [vencido quanto à alínea b), conforme declaração da Conselheira Mariana Canotilho, para a qual remeto] - João Pedro Caupers - Lino Rodrigues Ribeiro.
Acórdão retificado pelo Acórdão 696/22, de 25 de outubro de 2022.
Declaração de voto
1 - Acompanho o juízo de não inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 23 de julho, pelas razões constantes dos pontos 14. e 14.1. da fundamentação.
2 - Vencido quanto à declaração de inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 23 de julho, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021, de 23 de julho.
A argumentação que fez vencimento assenta na ideia segundo a qual, ao determinar a abertura de processos negociais com as estruturas sindicais, a Assembleia da República invadiu a esfera de competência legislativa do Governo: «Trata-se de uma injunção da Assembleia da República ao Governo para que este inicie tais negociações que implica uma imposição de legislação, pondo em causa a autonomia do Governo num domínio de competência legislativa concorrente». Considerou a maioria, pois, que a Assembleia da República, através das normas fiscalizadas, obriga o Governo a legislar, o que se entendeu violador do princípio da separação dos poderes (n.º 1 do artigo 111.º da Constituição).
Não acompanho este entendimento. Não se descobre naquelas normas qualquer injunção para legislar; mas, apenas, a determinação de abertura de um procedimento de negociação sobre as matérias elencadas pelo legislador democrático.
Impondo-se a participação das associações sindicais na revisão ou aprovação dos regimes jurídicos em causa (por imperativo do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição), o legislador parlamentar toma a opção de cometer ao Governo, à partida mais habilitado para o efeito, a abertura do processo negocial, atribuindo-lhe a responsabilidade pela respetiva realização e pela definição dos seus termos - de modo paralelo ao que se prescreve no artigo 351.º da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas. Trata-se de procedimento preliminar a uma intervenção legislativa que o Parlamento visa realizar.
Com efeito, além de não se inferir das normas fiscalizadas a obrigação de chegar a um acordo, delas não decorre que caiba ao Governo a revisão ou aprovação de quaisquer regimes jurídicos, no caso de a negociação ter sucesso. Até porque, se é verdade que, em princípio, se estará em matéria da competência legislativa concorrente, é possível que o consenso alcançado nas negociações envolva uma intervenção legislativa em domínios da reserva de competência da Assembleia da República. Tornando claro que o legislador parlamentar, antes do exercício da sua competência legiferante, se limitou a fixar o âmbito da negociação e a determinar ao Governo a respetiva realização.
Considero, pois, que competência legislativa do Governo se mantém intacta. Razão pela qual se não violou, de modo algum, o n.º 1 do artigo 111.º da Constituição. - Afonso Patrão.
Declaração de voto
Votei vencido o presente acórdão, pelas razões que, de forma sucinta, passo a enunciar.
Comecei por entender que o Tribunal deveria não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas em apreciação, face à inutilidade processual dessa eventual declaração de inconstitucionalidade - pela simples razão de que essas normas haviam perdido a sua eficácia, visto reportarem-se a efeitos a serem produzidos para o ano letivo de 2020-21, já ultrapassado. O fim que, em primeira linha, se visa atingir com tal declaração - expurgar o ordenamento das normas viciadas - fora já atingido, pois, através da sua cessação de efeitos, pelo que, em meu entender, a apreciação da sua constitucionalidade não manteria utilidade (não havendo igualmente um interesse jurídico relevante no conhecimento, até face à jurisprudência consolidada da Tribunal Constitucional no que toca à definição daquele).
Tendo o Plenário optado pelo conhecimento do pedido, e face à que fora aquela minha posição inicial, reconhecendo embora que se está face a uma situação muito complexa e de fronteira, pronunciei-me então pela não inconstitucionalidade - até porque acresce, de algum modo, a circunstância da natureza programática das normas em apreciação (aspeto, aliás, referido pelo Presidente da República aquando da promulgação, dizendo serem situações "em que o Parlamento aprovou soluções de caráter programático, na fronteira da delimitação de competências administrativas"). - José João Abrantes.
Declaração de voto
Vencida, quanto à alínea b) da decisão, afastando-me, também, de várias das considerações tecidas ao longo de todo o ponto 11, não sendo estas, todavia, indispensáveis à resolução da causa.
A declaração de inconstitucionalidade constante da alínea b) do presente Acórdão funda-se numa premissa fundamental: o entendimento de que o conjunto de normas objeto da decisão tem por efeito "um condicionamento ou balizamento do exercício de um poder legislativo do Governo, isto é, todas visam condicionar o Governo no exercício de competências legislativas". No meu entender, essa premissa de base não é verdadeira, o que inquina, naturalmente, o juízo sobre a conformidade constitucional das normas questionadas.
Efetivamente, o comando normativo dirigido ao Governo pelo n.º 6 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 23 de julho, consiste em abrir um processo negocial com as estruturas sindicais, para aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico. Por seu turno, os artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei 47/2021 impõem, também ao Governo, a abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário (artigo 1.º), a iniciar no prazo de 30 dias (artigo 2.º), devendo a revisão de tal regime ter por objetivo a valorização da carreira docente nos termos definidos no artigo 3.º da lei em causa. Assim, creio que resulta bastante claro que a Assembleia da República não visou, ao aprovar estas normas, interferir na competência legislativa do Governo, ordenando o seu exercício ou condicionando-a. Nem tal intenção faria qualquer sentido, do ponto de vista lógico, posto que o Parlamento tem competência legislativa geral, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da CRP.
Neste quadro, o propósito das normas ora declaradas inconstitucionais deve ser encontrado através de uma interpretação mais simples, e mais próxima da sua literalidade: o que a Assembleia da República pretendeu foi vincular o Governo a negociar com as estruturas sindicais. Ou seja, o Parlamento quis garantir, por via de lei, o exercício efetivo de competências exclusivas no Governo, enquanto órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública (artigo 182.º da CRP), no que respeita a uma questão particular. Recorde-se que o objetivo primordial da negociação coletiva é obter um acordo sobre as matérias que integram o estatuto dos trabalhadores em funções públicas, a incluir em atos legislativos ou regulamentos administrativos aplicáveis a estes trabalhadores (artigo 347.º, n.º 3, alínea a) da Lei 35/2014, de 20 de junho, Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, LTFP). Deste modo, pretendendo a Assembleia da República uma revisão dos regimes jurídicos de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico, por um lado, e de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário, por outro, resulta evidente que não a quis levar a cabo sem acordo prévio com as organizações sindicais representativas do setor. Ora, a legitimidade para levar a cabo tais negociações não é sua, mas do Governo; é o que resulta quer da repartição de competências operada pela Constituição, quer da lei (veja-se o artigo 349.º, n.º 4, da LTFP).
Negociar não implica, por força, chegar a acordo, e muito menos verter esse acordo em legislação do trabalho. São fases distintas de um processo complexo, que se sucederão em caso de evolução favorável das negociações, mas não necessariamente. No meu entender, é isto que o presente Acórdão parece não compreender. Afastada a premissa que sustenta a decisão, não se vê como possam as normas sub iudice constituir uma "imposição de legislação, pondo em causa a autonomia do Governo num domínio de competência legislativa concorrente". Tanto mais assim, quanto se subscrevam, no essencial, as considerações e dúvidas explanadas no presente Acórdão relativamente à noção de 'núcleo essencial' ou de reserva da administração. Por essa razão, votei no sentido da não inconstitucionalidade. - Mariana Canotilho.
Declaração de voto
Vencida quanto à alínea a) da decisão, não a acompanhando, na medida em que não declara a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º, da Lei 46/2021, de 23 de julho. Em meu entender, a norma em apreço, que determina a abertura de um concurso extraordinário de vinculação de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado nos "30 dias subsequentes à publicação da presente lei", merece censura constitucional pelas razões que seguidamente serão brevemente expostas.
O ponto de partida do nosso raciocínio é o de que o n.º 1 do artigo 2.º contém o ato concreto de abertura do concurso, chegando ao ponto de estabelecer a própria data em que ocorrerá.
Admitimos que é mais fácil afirmar a existência de um esquema organizatório-competencial na Constituição do que concretizar com rigor e segurança esse esquema, o que resulta particularmente difícil quando estão em causa matérias que envolvem esferas de competências transversais e, mais ainda, matérias em que o Governo pode intervir em distintas vestes (como Governo-legislador, como Governo-órgão executivo, e como Governo-órgão máximo ou superior da Administração). Admitimos, também, a inexistência, na nossa Constituição, de uma reserva material geral da Administração - sendo certo que o facto de não existir uma reserva de Administração não significa que o legislador possa fazer tudo o que lhe aprouver nem que o parlamento possa dispor da sua própria competência -, e, de igual forma, estamos conscientes das dúvidas e reticências que suscita na doutrina a tese da existência, no seu texto, de reservas específicas de administração. Não obstante, perante uma disposição legal em que se executa parte de uma disciplina jurídica previamente estabelecida sem que se vislumbre qualquer justificação válida e legítima para o fazer, tal disposição não pode deixar de ser considerada uma intromissão intolerável do legislador numa atividade que, ontologicamente, tem mais que ver com a função administrativa do que com a legislativa e cuja atribuição à Administração assenta indubitavelmente em critérios de adequação e eficiência. - Maria Benedita Urbano.
Declaração de voto
Vencido quanto à alínea a) do dispositivo do Acórdão.
Voto pela inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 23 de julho, por violação do disposto nos artigos 111.º, n.º 1, e 182.º e nas alíneas d) e e) do artigo 199.º da Constituição. Considero que, ao determinar a abertura pelo Governo, em prazo certo e num contexto histórico concreto, de um concurso para a vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino - cf. n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, de 23 de julho - , a Assembleia da República socorreu-se da forma de lei para, enviesadamente e em termos constitucionalmente ilegítimos, intrometer-se no núcleo essencial da posição constitucional do Governo enquanto órgão superior da administração pública (artigo 182.º da Constituição), especificamente incumbido das atribuições ou competências vertidas naquelas alíneas d) e e) do artigo 199.º da Constituição, tal como se entendera já no Acórdão 214/2011.
Discordo do ponto 14.1 do Acórdão, quando se diz que a determinação da abertura de um concurso para preenchimento de lugares do quadro da função pública não é, à luz da CRP, uma matéria necessariamente administrativa; e quando se refere que, apesar de haver uma pré-ocupação do espaço pelo legislador parlamentar, essa pré-ocupação não esgota a margem de discricionariedade da Administração.
O sentido normativo da norma sindicada vem referido em diversas passagens do Acórdão como traduzindo «imposição», «comando ou mandato», ou «injunção» dirigida ao Governo, a que fica adstrito, para emanação do ato inicial ou propulsivo de um procedimento concursal - um típico aviso de abertura de concurso de pessoal - destinado à vinculação extraordinária no ensino público de docentes do ensino artístico especializado nas áreas visuais e audiovisuais. Ora, o tipo de ato que o Parlamento pretende que o Governo pratique engloba inescapavelmente um tipo de poder que a Constituição integra na «função administrativa» do Governo: «praticar todos os atos exigidos por lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado» (alínea e) do n.º 1 do artigo 199.º).
O princípio da separação de poderes, na vertente negativa de divisão de poderes e na dimensão positiva de reserva de poderes, não impede que outros órgãos constitucionais (Parlamento e Tribunais) também exerçam a função administrativa. Dada a fluidez das funções estaduais, não existe uma correlação rígida entre determinada categoria de competências e um órgão típico de determinada função. Mas não se pode desconsiderar a densificação que a Constituição faz do princípio da separação de poderes, pois o problema da «reserva da administração» só se pode colocar para além das competências constitucionalmente estabelecidas. No que se refere à prática de atos administrativos em matéria de execução orçamental, relativos a órgãos e pessoas coletivas inseridas na administração direta, indireta e autónoma, e sobre funcionários e agentes do Estado e de outras pessoas coletivas pública, as alíneas b), d) e e) do artigo 199.º da CRP atribuem competência exclusiva ao Governo, enquanto órgão superior da Administração Pública. Embora sujeitos a regulação legal primária, o seu exercício é insuscetível de apropriação total pelo órgão legislativo. Por isso, as decisões de gestão, organização e direção, concretamente ao nível de recrutamento, nomeação, classificação, promoção e execução de competências disciplinares, a praticar no âmbito do estatuto da função pública definido pelo legislador, são tomadas pelo Governo no exercício de uma competência exclusiva conferida pela alínea e) do artigo 199.º da CRP.
Não obstante a norma sindicada não consubstanciar o ato inicial do procedimento concursal, existe uma apropriação legislativa da atividade administrativa extraprocedimental necessária ao exercício da competência governamental exclusiva fixada naquela norma constitucional. O eventual exercício daquela competência depende de uma atuação preparatória que avalie as necessidades de recrutamento, a existência dos lugares no quadro de pessoal dos estabelecimentos de ensino e os meios financeiros disponíveis. Ora, o desenvolvimento dessa atividade cognitiva, valorativa e organizatória, ainda que não se exprima através de atos administrativos, pertence ao órgão que tem o poder de praticar o ato inicial do procedimento de abertura do concurso. Mas quem atuou para o exercício dessa competência, condicionando o respetivo exercício, foi o Parlamento através da ordem ou comando extraído da norma sindicada.
O Parlamento pode fiscalizar os atos da Administração (artigo 162, º, alínea a) da CRP), em concretização do princípio da interdependência de poderes. Mas, nos casos em que o legislador constituinte enuncia em termos expressos e taxativos a exclusividade competencial do Governo, a emanação de ordens em forma de lei da AR para o exercício dessa competência perverte o sentido normativo da separação de poderes. Como se referiu no Acórdão 214/2011, «as «[a]s relações do Governo com a Assembleia da República são relações de autonomia e de prestação de contas e de responsabilidade; não são relações de subordinação hierárquica ou de superintendência». Assim, não pode o Governo ser vinculado a exercer o seu poder administrativo (regulamentar ou legislativo) por instruções ou injunções da Assembleia da República. Como se refere no mesmo Acórdão, o poder de «chamar a si» do Parlamento não pode transmudar «a forma legislativa num meio enviesado de exercício de competências de fiscalização com esvaziamento, pelo controlo democrático-parlamentar e pela regra da maioria, do núcleo essencial da posição constitucional do Governo enquanto órgão superior da administração pública (artigo 182.º da CRP), encarregado de dirigir os serviços da administração direta do Estado [artigo 199.º, alínea d) da CRP]». - Lino José Batista Rodrigues Ribeiro.
115841457
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5120633.dre.pdf .
Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
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1982-11-15 -
Lei
28/82 -
Assembleia da República
Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.
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1986-10-14 -
Lei
46/86 -
Assembleia da República
Aprova a lei de bases do sistema educativo.
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1988-01-15 -
Acórdão
461/87 -
Tribunal Constitucional
Não declara a inconstitucionalidade de várias normas da Lei n.º 49/86, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1987, e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de alguns preceitos da mesma lei.
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1990-04-28 -
Decreto-Lei
139-A/90 -
Ministério de Educação
Aprova e publica em anexo o estatuto da carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário.
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1996-04-04 -
Decreto-Lei
28-B/96 -
Ministério da Educação
ESTABELECE O REGIME DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR, APLICANDO-SE AO INGRESSO NOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO SUPERIOR PÚBLICO, PARTICULAR E COOPERATIVO PARA A FREQUÊNCIA DE CURSOS DE BACHARELATO E DE LICENCIATURA. CRIA A COMISSAO NACIONAL DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR, O CONSELHO NACIONAL DOS EXAMES DO ENSINO SECUNDÁRIO, COMO ÓRGÃO CONSULTIVO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, E A COMISSAO DE AVALIAÇÃO E CONSULTA DO REGIME DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR. ESTABELECE A COMPOSICAO, MODO DE FUNCIONAMENTO E COMPETENCIAS DESTE (...)
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1996-07-13 -
Portaria
254/96 -
Ministério da Educação
Fixa e divulga os pares estabelecimento/curso e as vagas para o concurso nacional de acesso ao ensino superior público para a matrícula e inscrição no ano lectivo de 1996-1997 a que se refere o n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 28-B/96, de 4 de Abril.
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2006-01-31 -
Decreto-Lei
20/2006 -
Ministério da Educação
Revê o regime jurídico do concurso para selecção e recrutamento do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, bem como da educação especial, revogando o Decreto-Lei n.º 35/2003, de 27 de Fevereiro.
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2009-02-27 -
Decreto-Lei
51/2009 -
Ministério da Educação
Altera (2ª alteração) o Decreto-Lei n.º 20/2006, de 31 de Janeiro (reviu o regime jurídico do concurso para selecção e recrutamento do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, bem como da educação especial, e que revogou o Decreto-Lei n.º 35/2003, de 27 de Fevereiro) e procede à sua republicação em anexo.
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2010-06-23 -
Decreto Regulamentar
2/2010 -
Ministério da Educação
Regulamenta o sistema de avaliação do desempenho do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário.
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2011-12-29 -
Decreto-Lei
125/2011 -
Ministério da Educação e Ciência
Aprova a Lei Orgânica do Ministério da Educação e Ciência bem como os mapas de dirigentes superiores da administração directa e indirecta do MEC.
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2012-06-27 -
Decreto-Lei
132/2012 -
Ministério da Educação e Ciência
Estabelece o novo regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário e de formadores e técnicos especializados.
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2014-06-20 -
Lei
35/2014 -
Assembleia da República
Aprova a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, LTFP.
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2018-03-07 -
Decreto-Lei
15/2018 -
Educação
Aprova o regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado da música e da dança
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2021-07-13 -
Lei
46/2021 -
Assembleia da República
Concurso de vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino
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2021-07-23 -
Lei
47/2021 -
Assembleia da República
Revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário
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