Acórdão 1/97 - Processo 845/96
I - O pedido
1 - O Presidente da República veio solicitar ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do decreto 58/VII, aprovado em 31 de Outubro de 1996 pela Assembleia da República e subordinado ao título «Criação de vagas adicionais no acesso ao ensino superior», cujo conteúdo é o seguinte:
«Artigo 1.º
Os estudantes candidatos ao ingresso no ensino superior que, na sequência dos exames de Setembro de 1996, tenham obtido nota de candidatura superior em cada par curso/estabelecimento ao último colocado para o mesmo par curso/estabelecimento na 1.ª fase têm o direito ao ingresso pretendido no ano lectivo de 1996-1997.
Artigo 2.º
O Ministério da Educação, em colaboração com os estabelecimentos públicos do ensino superior e com pleno respeito pela sua autonomia, deve tomar as medidas necessárias - nomeadamente as de natureza regulamentar, financeira e de autorização de contratação de pessoal docente - para assegurar a criação das vagas adicionais necessárias que permitam a matrícula dos estudantes referidos no artigo 1.ºArtigo 3.º
A criação pelo Ministério da Educação dessas vagas adicionais deve ser antecedida de consulta aos órgãos directivos das respectivas escolas, de forma a conhecer os meios de que careçam para a criação das vagas adicionais necessárias.
Artigo 4.º
As vagas a que se refere o artigo 2.º serão criadas por portaria, a publicar no prazo de 15 dias após a publicação da presente lei.
Artigo 5.º
1 - Nos casos em que o número de vagas adicionais a criar exceda em cada par curso/estabelecimento 10% do número de vagas inicialmente fixado para o ingresso no ano lectivo de 1996-1997 pode aplicar-se o disposto nos números seguintes.2 - Em casos excepcionais, devidamente justificados, em que não seja possível criar vagas adicionais em número superior ao previsto no número anterior, o Ministério da Educação deve abrir a possibilidade de ocupação, inteiramente voluntária, das vagas livres noutros pares curso/estabelecimento para os quais esses estudantes disponham de habilitação adequada.
3 - Em relação aos casos de não colocação que ainda subsistam, esgotadas as possibilidades de criação de vagas adicionais e de ocupação de vagas livres noutros cursos/estabelecimentos, deve ser assegurada a cada estudante a colocação extraconcurso, no próximo ano lectivo, no mesmo curso/estabelecimento em que se deveria ter matriculado no presente ano lectivo.
4 - As vagas a disponibilizar na colocação extraconcurso referida no número anterior deverão ser supranumerárias, de modo a não afectarem o número de vagas do concurso geral do próximo ano e a não prejudicarem a sua conveniente expansão.
Artigo 6.º
O presente diploma aplica-se exclusivamente à matrícula e inscrição no ensino superior dos candidatos ao concurso de ingresso no ano lectivo de 1996-1997.1 - A presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997.
2 - A entrada em vigor pode ser antecipada por decreto-lei.» 2 - As questões de constitucionalidade suscitadas radicam no entendimento de que os artigos 1.º e 2.º do referido decreto não são nem uma alteração legislativa do regime material de acesso ao ensino superior (uma vez que o Decreto-Lei 28-B/96, de 4 de Abril, não terá sido revogado, no todo ou em parte) nem uma alteração das competências administrativas (atribuídas ao Governo por aquele diploma legal).
As normas sindicadas consubstanciariam antes uma alteração excepcional e retroactiva da regulamentação do concurso nacional de acesso ao ensino superior para o ano lectivo de 1996-1997, fixada pela Portaria 254/96, de 13 de Julho. Efectivamente, tais normas determinam que os exames da 2.º fase dêem acesso a quaisquer cursos e estabelecimentos de ensino, desde que os candidatos tenham obtido notas superiores à do último candidato neles colocado na 1.ª fase, e promovem, por conseguinte, uma alteração do número de vagas definido por aquela portaria. As normas em crise implicariam, assim, a criação, pela Assembleia da República, de vagas determinadas, individualizáveis, visto que todas as alterações foram aprovadas já após a apresentação das candidaturas à 2.ª fase.
3 - O Presidente da República indicou como primeiro fundamento do seu pedido a violação do princípio da separação e interdependência de poderes pelas normas do decreto, com base em vários argumentos alternativos, que se podem sintetizar do seguinte modo:
a) Em primeiro lugar, poderá configurar-se uma decisão tomada no âmbito da função administrativa, embora sob a forma de lei, por o conteúdo das normas previstas nos artigos 1.º e 2.º do decreto 58/VII constituir, alegadamente, regulamentação e execução de actos legislativos e satisfação pontual de necessidades colectivas (não sendo alteração legislativa do regime material de acesso ao ensino superior nem alteração das competências administrativas anteriormente previstas, mas sim uma modificação excepcional e retroactiva, cuja validade se restringiria ao concurso do presente ano lectivo, quando o respectivo processo de candidaturas já se encontrava concluído). Haveria, pois, uma intrusão no que pode ser designado como núcleo essencial da função administrativa.
Em reforço de tal argumento, invoca-se a circunstância de aquelas normas se referirem a um domínio que está remetido, organicamente, para as competências administrativas do Governo e em que este já exerceu as suas competências através de actos típicos do exercício da função administrativa - as portarias.
Por fim, esclarece-se que este primeiro argumento é enunciado partindo do pressuposto de que «alguma doutrina e jurisprudência constitucionais» entendem que a Constituição Portuguesa «atribui ao Governo, relativamente à Assembleia da República, uma reserva de administração».
b) De acordo com o segundo argumento - e já independentemente do pressuposto da «reserva geral de administração» -, a Assembleia da República teria invadido uma área de competências administrativas especificamente atribuídas ao Governo, nos termos do artigo 202.º, alíneas c), d) e g), da Constituição. Tratar-se-ia da competência para a feitura dos regulamentos necessários à boa execução das leis [alínea c)], da competência para superintender na administração indirecta e exercer tutela sobre a administração autónoma [alínea d)] e da competência para a prática de todos os actos e providências necessários à satisfação das necessidades colectivas [alínea g)].
Em abono deste argumento, considera-se que se poderá verificar uma invasão dos domínios administrativos especificamente reservados ao Governo e a ultrapassagem consequente dos limites funcionais da Assembleia da República, que, «em última análise, poriam em causa a racionalidade dos próprios mecanismos políticos de controlo da actividade do Governo por parte do Parlamento e, consequentemente, a actual configuração constitucional da separação e interdependência entre os órgãos de soberania». Na verdade, conclui-se que se o Governo por impedido de aplicar a lei de acordo com uma avaliação de prognose própria e responsável não será possível ao Parlamento pedir-lhe contas pela execução da sua política (no caso, da sua política educativa).
Caracteriza-se então a inconstitucionalidade, de acordo com este segundo argumento, como uma violação do princípio da separação e interdependência dos poderes, enquanto este exprime, simultaneamente, uma garantia constitucional de reservas específicas de administração e a imposição de limites funcionais ao legislador parlamentar decorrentes daquelas reservas.
c) Como terceiro argumento, igualmente autónomo, refere-se que a Assembleia poderá ter violado o princípio da divisão e interdependência de poderes, na medida em que, «sem fundamento legal bastante e sem prévia habilitação legal, terá posto em crise a função constitucional do Governo como órgão superior da Administração Pública», nos termos do artigo 185.º da Constituição. De facto, a Assembleia da República teria vindo, retroactivamente, introduzir um critério excepcional no concurso de acesso ao ensino superior, revogando decisões administrativas que o Governo tomara, legitimamente, ao abrigo da lei em vigor.
Nesta perspectiva, a Assembleia da República, ao praticar actos da função administrativa sob a forma de lei, obrigaria o Governo, no caso de pretender alterá-los, a actuar sob a forma de decreto-lei. Ora, desse modo, por força do instituto da ratificação dos decretos-leis, a decisão final caberia sempre e exclusivamente à Assembleia da República, violando-se, assim, a posição do Governo como «órgão superior da Administração Pública».
4 - O Presidente da República invocou ainda, como fundamento alternativo de inconstitucionalidade, a eventual violação do princípio da igualdade pelas mesmas normas, mesmo que se entendesse que elas não violariam o princípio da separação e interdependência de poderes, configurando-se antes como integrantes de uma lei-medida. Os argumentos com que justifica a conclusão de que foi violada a igualdade pela criação de situações de vantagem e discriminações negativas, umas e outras não fundamentadas materialmente, são os seguintes:
a) Em primeiro lugar, o decreto da Assembleia da República alargou o regime destinado à compensação dos estudantes por deficiências ocorridas na 1.ª fase (época de Julho) a todos os candidatos que se apresentaram aos exames de Setembro - tivessem ou não sido vítimas de quaisquer perturbações nos exames de Julho. Assim, foi concedida uma vantagem aos estudantes que só se apresentaram aos exames de Setembro (que, manifestamente, não foram prejudicados por quaisquer irregularidades ocorridas nos exames de Julho), relativamente aos estudantes que só se apresentaram em Julho, sem que se vislumbre qualquer fundamento para esse benefício;
b) Em segundo lugar, o decreto discriminou negativamente os estudantes que, não tendo sido colocados no curso e estabelecimento de ensino da sua primeira opção na 1.ª fase do concurso, não realizaram exames de melhoria de nota em Setembro (os quais lhes poderiam permitir, em face do regime excepcional aprovado posteriormente pela Assembleia da República, o acesso a essa opção) porque já não havia vagas sobrantes a que se pudessem candidatar nos cursos e estabelecimento de ensino da sua primeira opção ou porque, embora existindo vagas, não podiam contar com o benefício que o decreto viria a criar;
c) Em terceiro lugar, o regime criado pelo decreto gerou uma desigualdade entre os estudantes que garantiram, no presente ano lectivo, o acesso a uma vaga no próximo ano (cf. artigo 5.º, n.º 3) e os estudantes que venham a obter, no concurso do próximo ano, notas superiores e aos quais não seja, no entanto, assegurada a entrada, em virtude de o número de vagas ser limitado.
Esta desigualdade não seria eliminada pela expressa qualificação como supranumerárias das vagas destinadas no próximo ano lectivo, aos estudantes que garantissem o ingresso no presente ano (artigo 5.º, n.º 4), visto que, de todo o modo, se registaria o aludido desfasamento entre as classificações de acesso exigíveis.
5 - O Presidente da República sustentou, por último, que pode ainda ter sido violado o princípio da protecção da confiança e das expectativas legítimas dos cidadãos (corolário do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição), na medida em que ouve uma aplicação retroactiva de regras excepcionais, após os estudantes terem apresentado as suas candidaturas e definido as suas estratégias opcionais em função do regime vigente à altura em que o concurso se realizou.
E o Presidente da República desenvolveu esta tese considerando que, sendo a retroactividade de leis «ampliativas» admissível quando se não faça à custa do princípio da igualdade nem induza prejuízos para outros cidadãos, na situação em apreço a igualdade pode ter sido afectada, por se verificar uma discriminação negativa dos não beneficiados e ainda eventuais perturbações no normal funcionamento das instituições universitárias no presente ano lectivo (com prejuízo, nomeadamente, para os respectivos alunos).
6 - Notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, para responder, querendo, ao pedido de fiscalização abstracta preventiva formulado pelo Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.
II - Fundamentação
A) Delimitação do objecto do processo
7 - A análise da constitucionalidade das normas do decreto 58/VII exige a consideração de todos os argumentos que colocam dúvidas plausíveis, de modo a concluir-se, em face das razões invocadas no pedido ou de outras que sejam configuráveis, tais normas contrariam quaisquer princípios ou normas constitucionais. Na verdade, o Tribunal Constitucional não está vinculado ao limitado confronto das normas em apreciação com os princípios e normas constitucionais invocados (cf. artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82).
Uma pronúncia do Tribunal a favor da não inconstitucionalidade dependerá da remoção de todos os argumentos (expressamente deduzidos ou simplesmente configuráveis) que põem em dúvida a constitucionalidade das normas do decreto. Todavia, uma vez atingido um fundamento de inconstitucionalidade, o Tribunal Constituiconal não está obrigado a esgotar todos os outros argumentos que, porventura, possam ainda pôr em causa a constitucionalidade das normas sub judicio.
Justifica-se, por tudo isto, que os argumentos formulados pelo Presidente da República sejam analisados em primeiro lugar, sendo bastante a sua ponderação - e dispensável a apreciação de outros eventuais fundamentos de inconstitucionalidade - se algum deles conduzir a uma pronúncia de inconstitucionalidade.
B) A questão da eventual inconstitucionalidade das normas do decreto
n.º 58/VII por violação do princípio da separação e interdependência dos
órgãos de soberania.
8 - A primeira objecção à constitucionalidade das normas do decreto 58/VII assinala que elas constituem uma decisão tomada no âmbito do núcleo essencial da função administrativa, violando uma reserva geral de administração decorrente do artigo 114.º, n.º 1, da Constituição. Tal objecção, porém, não é válida nem no plano da pura conexão entre as ideias de Estado de direito democrático e de separação e interdependência de poderes nem no âmbito da estrita interpretação do artigo 114.º, n.º 1, da Constituição.Com efeito, no que se refere ao primeiro plano, apesar de o princípio da separação de poderes ter tido formulações históricas nem sempre associadas à ideia de Estado de direito democrático, aquele princípio veio a adquirir, em conexão com esta ideia, a natureza de um instrumento garantístico da esfera jurídico-subjectiva e, em última análise, de controlo democrático do poder (é a dimensão negativa do princípio, de limite do poder ou de medida jurídica do poder a que alude K. Hesse - cf. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 16. ed., 1989, pp. 185 e 482, e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5. ed., 1991, p. 369).
Por isso, logo naquele plano, a reserva geral de administração surge como inadequada à função actual do princípio, na medida em que diminuiria possibilidades de efectivação do controlo democrático do Executivo, limitando as áreas de intervenção legislativa do Parlamento e excluindo-o da directa decisão política.
Por outro lado, não decorre seguramente do artigo 114.º, n.º 1, da Constituição, em conjugação com o próprio artigo 2.º, que consagra o princípio do Estado de direito democrático, uma reserva geral de administração. A separação e interdependência dos órgãos de soberania aí prevista exprime um esquema relacional de competências, funções, tarefas e responsabilidades dos órgãos do Estado, destinado a assegurar, simultaneamente, a referida medida jurídica do poder e um princípio de responsabilidade dos órgãos de soberania (a dimensão positiva do princípio da separação de poderes - cf. Gomes Canotilho, ob. cit. e loc. cit.).
Não se consubstancia, no texto constitucional, qualquer estrita correspondência entre separação de órgãos e separação de funções, de modo que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles. A interdependência dos órgãos do Estado a que o artigo 114.º, n.º 1, se refere exprime até uma lógica de colaboração e articulação funcional.
A própria atribuição de competência legislativa ao Governo (artigo 201.º) e de outras competências, para além da legislativa, à Assembleia da República (artigos 164.º, 165.º e 166.º) demonstra que a Constituição Portuguesa não adoptou um modelo de rígida sobreposição de órgãos a funções, em que se viesse a enquadrar uma reserva geral de administração.
Finalmente, e de modo decisivo, mesmo sendo constitucionalmente atribuído ao Governo o núcleo essencial da função administrativa, enquanto órgão superior da Administração Pública e com competência correspondente ao núcleo essencial da função administrativa (artigos 185.º e 202.º), isso não significa que matéria susceptível de ser objecto de actividade administrativa, como a regulamentação de leis, não possa, igualmente, ser objecto de lei da Assembleia da República.
Na realidade, de outro modo, a competência administrativa do Governo significaria, necessariamente, um limite de competência legislativa da Assembleia da República quanto a certas matérias, limite que a Constituição não permite deduzir, em face do artigo 164.º, alínea d), que expressamente se refere à competência da Assembleia da República para fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas ao Governo (e respeitantes à sua própria organização e funcionamento, nos termos do n.º 2 do artigo 201.º).
Neste mesmo sentido, o Tribunal Constitucional entendeu anteriormente, no Acórdão 461/87, de 16 de Novembro, que não é configurável, no ordenamento jurídico-constitucional português, qualquer reserva material de administração que inclua, nomeadamente, uma reserva de regulamento ou impeça a Assembleia da República de tornar objecto de lei matéria disciplinável administrativamente [cf. acórdão citado, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º vol., 1987, pp. 181 e segs., em que se afirmou que «[...] o legislador dispõe de uma omnímoda faculdade - constitucionalmente reconhecida - de programar, planificar e racionalizar a actividade administrativa, pré-conformando-a no seu desenvolvimento, e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério e à autonomia dos respectivos órgãos e agentes, ou antes preocupando-o (preferência de lei)»].
Porém, mesmo que se reconheça que sempre será inerente ao princípio do Estado de direito democrático a reserva de um núcleo essencial da Administração ou do Executivo - como condição da limitação do exercício dos poderes pelos órgãos de soberania e da própria necessidade de responsabilização do Governo -, ainda assim a colisão com tal núcleo haveria de implicar uma pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua actividade normal, pelo Parlamento, sem qualquer justificação especial (cf., sobre a referida doutrina do «núcleo essencial», pareceres n.º 16/79 e 26/79, em Pareceres da Comissão Constitucional, 8.º vol., pp. 205 e segs., e 9.º vol., pp. 131 e segs., respectivamente).
As normas em crise, referindo-se aos critérios segundo os quais deveriam ser colocados nos cursos e estabelecimentos da sua opção os candidatos ao concurso da 2.ª fase para o ingresso no ensino superior, mediante a criação de vagas adicionais, absorvem na lei uma matéria de regulamentação que formalmente coincide com a competência regulamentar em matéria de criação de vagas exercida pelo Governo através das Portarias n.º 241/96, de 4 de Julho, e 254/96, de 13 de Julho. Todavia, por força da sua excepcionalidade, retroactividade e carácter inovatório, tal regulação legal representa, claramente, o exercício da faculdade de definir e pré-conformar o espaço de manobra dos órgãos da Administração, não se sobrepondo materialmente ao poder regulamentar, anteriormente conferido ao Governo pelo Decreto-Lei 28-B/96, de 4 de Abril.
A alegação de as normas referidas constituírem uma invasão, pela Assembleia da República, do âmago da função administrativa, ofendendo uma reserva geral de administração, não procede, pois, por uma dupla razão: tal reserva não é configurada na Constituição e as normas sindicadas, pela sua natureza, nem sequer são susceptíveis de invadir o núcleo essencial da função administrativa.
9 - A segunda objecção à constitucionalidade das normas em análise indica que elas violam reservas funcionais específicas, decorrentes do artigo 202.º, alíneas c), d) e g), da Constituição, as quais se imporiam independentemente de um imperativo de reserva geral de administração, ínsito no princípio do Estado de direito democrático.
Na verdade, tal argumento reduz a um plano meramente positivo a tese do núcleo essencial, lendo a atribuição pelo legislador constitucional de competência administrativa ao Governo como reserva efectiva. Contudo, é muito discutível que a delimitação da competência do Governo prevista no artigo 202.º corresponda, no sistema lógico-sistemático da Constituição Portuguesa, a qualquer reserva material de competência do Governo com a mesma natureza da reserva de lei (rejeitando essa possibilidade, cf. voto de vencido do Conselheiro Luís Nunes de Almeida no parecer da Comissão Constitucional n.º 16/79, citado, e Gomes Canotilho, ob. cit., p. 812, que identifica a «reserva de governo» como mero limite à reserva de lei, restringindo-a a um complexo de actos funcionalmente políticos cuja competência é atribuída directamente pela Constituição ao Governo).
Com efeito, o argumento, já considerado, da ausência de limites materiais à competência legislativa da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea d), da Constituição] impede, desde logo, o reconhecimento das aludidas reservas funcionais específicas. Por outro lado, o próprio artigo 202.º, não distinguindo entre o que pode ser entendido como competência originária e autónoma do Governo e competência meramente residual ou ainda concorrencial, não permite, por si mesmo, retirar a conclusão que sustenta a segunda objecção.
Devendo a tese das reservas funcionais específicas fundamentar-se, em última instância, no princípio do Estado de direito democrátito, então valem relativamente a ela as razões já invocadas contra a reserva material geral de administração. Na verdade, a necessidade de atribuir ao Executivo um domínio de actuação específico, como corolário da divisão e interdependência dos órgãos de soberania, não implicará uma reserva originária e absoluta relativamente a determinadas matérias, mas, tão-só, a competência para escolher entre alternativas de decisão, no espaço não delimitado previamente pela lei parlamentar. E isto há-de significar apenas a reserva de um poder formal de regulamentação, de poderes formais para praticar actos de organização da Administração e de poderes políticos gerais, nos termos do artigo 202.º, alíneas c), d) e g), respectivamente.
De um ponto de vista substancial ou material, estará seguramente vedada à Assembleia da República a competência para regular a organização e o funcionamento do próprio Governo - artigo 201.º, n.º 2, da Constituição (sobre a questão, cf., em tese geral, Ossenbühl, «Der Vorbehalt des Gesetzes und seine Grenzen», Die öffentliche Verwaltung zwischen Gesetzgebung und richterlicher Kontrolle, 1985, pp. 30 e segs., e Gomes Canotilho, interpretando a Constituição Portuguesa, ob. cit., pp. 810-813).
Faltará, por tudo isto, a premissa fundamental de que decorreria uma violação, pelas normas em análise, das reservas funcionais contempladas no artigo 202.º da Constituição: a própria natureza originária, absoluta e material das mesmas reservas.
Mas, independentemente de qualquer tomada de posição definitiva na interpretação do texto constitucional quanto à natureza das reservas de administração, e mesmo que se admitisse uma reserva constitucional de regulamento (cuja rejeição se reafirma), o certo é que as normas do decreto 58/VII nem têm natureza materialmente regulamentar nem correspondem a uma substituição funcional do poder executivo na sua competência para organizar e orientar a Administração Pública, exercer tutela sobre a administração autónoma ou praticar os actos necessários à satisfação de necessidades colectivas.
Tais normas, pela sua inovação, excepcionalidade e retroactividade, não são configuráveis como mero regulamento. Elas criam, para uma situação excepcional - derivada das vicissitudes da realização das provas da 1.ª fase e dos eventuais prejuízos delas resultantes para os candidatos ao ensino superior -, critérios inovadores e dotados de uma eficácia temporal restrita, relativamente aos decorrentes da lógica da combinação do número de vagas disponíveis, previamente avaliadas pelas universidades e definidas pelo Governo, com as classificações obtidas (artigos 3.º, 5.º, 15.º e 37.º, n.º 3, do Decreto-Lei 28-B/96). Em substituição deste regime geral, pretende introduzir-se um critério de condicionamento da existência de vagas pela nota obtida.
Haverá, assim, uma verdadeira derrogação implícita do regime legal anterior para aquela situação específica, subordinada a uma lógica autónoma de lei temporária, e não uma expropriação, pela Assembleia da República, das normais competências regulamentares do Governo, exercíveis a partir do critério geral. Consequentemente, a alínea c) do artigo 202.º da Constituição nem sequer é convocável neste caso.
Por outro lado, também não se está a cobrir com a forma de lei uma pura actividade administrativa, porque o fundamento legal para uma tal «actividade administrativa» não existia (a criação deste tipo de vagas adicionais não estava prevista anteriormente). O facto de o decreto da Assembleia da República incorporar eventualmente actos administrativos - não se reduzindo a eles - apenas significa que, pela natureza dos critérios que propugna, a lei dispensa a prática subsequente de um acto administrativo.
Nem, tão-pouco, é decisivo que um critério se aplique estritamente a um conjunto fechado de destinatários, determinável a priori, para que o seu conteúdo se caracterize como próprio da actividade administrativa. Com efeito, a aludida determinabilidade prévia dos destinatários e das situações jurídicas também está presente nas leis de amnistia e, mais genericamente, em todas as leis retroactivas que, por definição, regem para um conjunto fechado de casos verificados no passado.
O que aqui é decisivo, como se disse, é que o decreto em análise cria critérios de valoração dos resultados de um concurso inovadores, excepcionais e aplicáveis retroactivamente, dos quais resultará uma total conformação ou vinculação da Administração. Reduz, assim, o espaço previamente concedido à Administração na determinação das vagas disponíveis e sobrantes e promove, precisamente desse modo, uma derrogação da legislação anterior para uma situação concreta. Por tudo isto, não é legítimo concluir que as normas em apreço implicam a substituição do Governo pela Assembleia da República, em violação do disposto na alínea d) do artigo 202.º da Constituição.
Por fim, a competência governamental prevista na alínea g) do artigo 202.º permanece incólume, porque as normas em causa, embora consubstanciem critérios inovadores na avaliação dos resultados de um concurso público, não impedem o prosseguimento pelo Governo da sua «actividade de providência».
O carácter excepcional da regulação legal proposta e a falta de intenção de esvaziamento continuado do espaço de actuação governamental pela Assembleia da República não permitem divisar com clareza, mesmo pondo entre parênteses o referido e aqui absolutamente nítido carácter residual da competência governamental, qualquer violação do artigo 202.º, alínea g), da Constituição.
10 - A outra objecção constante do pedido aponta para a violação pelas normas em causa da posição constitucional do Governo, enquanto órgão de condução da política geral do País e órgão superior da Administração Pública (artigo 185.º da Constituição). A Assembleia da República, depois de aceitar a remissão legal de competências para o Governo, teria vindo introduzir novos critérios, revogando decisões administrativas que o Governo já havia tomado ao abrigo da legislação em vigor.O argumento é reforçado pela perspectiva de as competências previstas no artigo 202.º, alíneas c) e d), da Constituição nem sequer poderem ser exercidas em perfeita concorrência pelo Governo e pela Assembleia da República. Na verdade, o instituto da ratificação dos decretos-leis implica que qualquer alteração de uma lei da Assembleia da República por um decreto-lei do Governo está sujeita a ratificação. Por conseguinte, a atribuição da forma de lei a actos da função administrativa redundaria num impedimento de o Governo manter a sua posição constitucional de órgão superior da Administração Pública.
Todavia, nenhuma das duas partes do argumento é decisiva para concluir pela inconstitucionalidade das normas sub judicio. Com efeito, há desde logo uma contradição interna entre os pressupostos em que assentam as duas partes do argumento, de modo que elas não são sustentáveis conjuntamente.
Enquanto a primeira parte se baseia na residualidade da competência do Governo, admitindo inteiramente a predeterminação legislativa de toda a actividade executiva (regime de acesso ao ensino superior e regulamentação dos concursos nacionais, incluindo a fixação de vagas), a segunda parte radica no carácter concorrencial das competências do Governo e da Assembleia da República, não admitindo, todavia, as consequências necessárias da residualidade, ou seja, o primado do poder legislativo.
A segunda parte do argumento elege um pressuposto já refutado - a consagração constitucional de uma reserva material de administração, de executivo e até de decisão política, como limite da competência legislativa da Assembleia da República. A caracterização constitucional do Governo como órgão de condução da política e órgão superior da Administração Pública não poderá significar, em caso algum, uma subtracção de matérias ao poder legislativo nem retirar à Assembleia da República a decisão política, confinando-a à mera discussão e à crítica inconclusiva, sem possibilidade de levar a cabo um efectivo controlo do poder executivo (cf., claramente nesse sentido, Maunz/Dürig/Herzog, Grundgesetz Kommentar, 1978, § 20).
O papel do Governo como órgão de condução da política e órgão superior da Administração Pública postula actuações legalmente fundamentadas e o exercício de uma discricionariedade dentro do espaço legalmente consentido - o que terá de depender dos necessários apoios parlamentares e não de qualquer reserva de executivo. Por outro lado, não será uma esporádica e excepcional limitação do espaço de manobra do Governo, sem qualquer deliberada e reiterada substituição funcional pela Assembleia da República, que poderá violar o artigo 185.º da Constituição (cf., no sentido de uma distinção entre intromissões esporádicas e excepcionais de um órgão na competência de outro e verdadeiras usurpações de competência, Hugo Hahn, «Über die Gewaltenteilung in der Wertwelt des Grundgesetzes», Zur heutigen Problematik der Gewaltentrennung, 1969, pp. 462-463).
A segunda parte do argumento também não procede porquanto, admitindo-se o primado da Assembleia da República e a residualidade das competências do Governo, se faz depender de um formalismo a legitimidade para o exercício parlamentar de uma originária competência legislativa. Ora, o facto de o legislador parlamentar vir a referir-se de um modo diverso a matérias já regulamentadas pelo Governo sempre deverá indiciar uma vontade revogatória de uma anterior delegação de competências no Governo [cf. Nuno Piçarra, «A reserva de administração», separata de O Direito, ano 122.º (1990), pp. 17 e segs., admitindo sempre uma revogação implícita como bastante para não ferir a separação de poderes].
11 - Finalmente, subsistirá o argumento, não formulado autonomamente pelo Presidente da República, segundo o qual as normas do decreto 58/VII não podem ser qualificadas como normas legais em sentido material, porque regulariam retroactivamente um conjunto de situações jurídicas determináveis à partida, sem a generalidade e a abstracção características da lei. Tais normas não ultrapassariam, por conseguinte, a dimensão de uma decisão sobre casos individualizados previamente, não estabelecendo critérios generalizáveis e não alcançando, por isso, a medida de igualdade contida na abstracção e na generalidade características da lei (sobre um conceito material de lei, cf. Gerhard Zimmer, Funktion-Kompetenz-Legitimation, 1979, pp. 335 e segs., Gomes Canotilho, ob.cit., p. 836, e Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, 1982, pp.
603 e segs.).
Mas também este último argumento não revela uma inconstitucionalidade no caso concreto, na medida em que as leis reguladoras de casos individuais não ferem, pelo seu âmbito de aplicação, as exigências de universalidade próprias da norma jurídica. As chamadas leis-medidas, tais como, por exemplo, certas leis de emergência, não contendem necessariamente, por razões de forma - falta de generalidade e abstracção -, com a separação de poderes. Nada impede que se venha a obter através da regulação do caso individual o próprio efeito de igualdade, a coerência valorativa ou uma dimensão generalizadora.
Tais leis podem ser, à semelhança de todas as outras, violadoras da igualdade. Em todo o caso, os possíveis vícios destas leis não radicam no confronto com as características conceptuais da abstracção e da generalidade - ou seja, com os limites da competência legislativa -, desde que lhes presida uma intencionalidade generalizadora, apta a uma renovação dos mesmos critérios perante situações futuras semelhantes (cf., sobre as condições de admissibilidade das leis-medidas, entre outros, Jorge Miranda, «Sentido e conteúdo da lei como acto da função legislativa», Nos Dez Anos da Constituição, 1987, pp. 175 e segs., e Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 821-822).
12 - Em suma, do conjunto das objecções aduzidas não se retira qualquer argumento decisivo a favor da inconstitucionalidade das normas em crise, pelo que o Tribunal Constitucional entende que elas não contrariam o princípio da separação e interdependência de poderes.
Uma vez afastada a inconstitucionalidade das normas do decreto 58/VII por violação do princípio da separação e interdependência de poderes, o Tribunal Constitucional deverá apreciar a constitucionalidade das referidas normas na óptica dos princípios da igualdade e da confiança jurídica, como resulta do pedido de fiscalização preventiva. Nesta análise, o Tribunal centrar-se-á na consideração do artigo 1.º do referido decreto, dado o carácter instrumental e concretizador das restantes normas, que não colocam problemas autónomos em face dos referidos princípios constitucionais.
C) A questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 1.º do decreto
n.º 58/VII por violação do princípio da igualdade
13 - As alterações introduzidas pelo artigo 1.º do decreto da Assembleia da República nos critérios de acesso ao ensino superior (definidos anteriormente pelo Decreto-Lei 28-B/96) para os candidatos que realizaram os exames de Setembro poderão produzir discriminações - positivas e negativas - inaceitáveis em face do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição? A objecção à constitucionalidade salienta, em primeiro lugar, a falta de fundamentação razoável para que os candidatos que fizeram os exames da época de Setembro sejam beneficiários de um critério de acesso não condicionado pelo número de vagas, mas só pela classificação, diferentemente dos que apenas realizaram as suas provas em Julho. Em segundo lugar, invoca uma discriminação negativa dos candidatos que somente foram opositores à 1.ª fase e não vieram a ser colocados no curso e estabelecimento de ensino da sua 1.ª opção.
É verdade, porém, que a classificação que assegura, nos termos do artigo 1.º do decreto 58/VII, o direito de ingresso no ensino superior aos candidatos à 2.ª fase relativamente a cada par curso/estabelecimento de ensino é necessariamente superior à do último candidato colocado no mesmo par curso/estabelecimento de ensino na 1.ª fase. Não se registaria, por isso, um manifesto privilégio dos candidatos à 2.ª fase, ponderando apenas o factor classificação.
E, aliás, o problema nem sequer se colocaria se não estivesse em causa uma situação de retroactividade inautêntica ou retrospectividade. Com efeito, uma vez que todos os candidatos puderam ser opositores à 2.ª fase, eles estariam numa óbvia posição de paridade desde que as regras de colocação houvessem sido previamente definidas. A circunstância de as regras de colocação na 2.ª fase terem sido determinadas já depois de os candidatos terem realizado as respectivas provas e, sobretudo, terem manifestado as suas preferências por cursos e estabelecimentos de ensino é que gera, potencialmente, um tratamento discriminatório dos candidatos que não concorreram à 2.ª fase e até mesmo daqueles que, tendo-o feito, não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino que, em absoluto, preferiam, por saberem que não tinham sobrado vagas da 1.ª fase.
Estes candidatos foram, na realidade, surpreeendidos por uma mudança de regras superveniente. O tratamento discriminatório não resulta apenas de um favorecimento dos opositores à 2.ª fase (ou, de entre eles, dos que se candidataram a cursos e estabelecimentos sobrelotados, por ter sido essa a sua primeira candidatura ou por terem investido na possibilidade remota de surgimento de novas vagas por desistência de candidatos colocados na 1.ª fase). Esse tratamento discriminatório resulta, outrossim, de um prejuízo dos outros candidatos (não opositores à 2.ª fase ou opositores à 2.ª fase que não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino da sua absoluta preferência).
Assim configurado, este é um problema constitucional de violação da segurança jurídica e da igualdade, conjugadamente, abrangendo uma dimensão de discriminação negativa de uns e o reflexo favorecimento de outros. Na realidade, não é possível deixar de considerar que, para os candidatos não colocados na 1.ª fase no curso e estabelecimento de ensino da sua 1.ª opção, o leque de perspectivas de colocação no curso e estabelecimento de ensino da sua preferência seria diferente se o concurso da 2.ª fase não fosse restrito às vagas sobrantes.
Com efeito, perante cursos e estabelecimentos de ensino em que as vagas sobrantes são inexistentes ou exíguas, a realização do exame da 2.ª fase para melhoria de nota e a candidatura a tais cursos e estabelecimentos de ensino (jogando fora uma das seis opções) não é uma aposta natural e exigível aos candidatos. E, por outro lado, os candidatos à 2.ª fase acabam por beneficiar de possibilidades de acesso acrescidas em função do aumento das vagas, desaparecendo a lógica instituída e com que os candidatos podiam contar - a do carácter mais vantajoso de uma candidatura à 1.ª fase em conexão com os riscos de uma candidatura circunscrita à 2.ª fase.
14 - Mas não será justificável a discriminação positiva dos candidatos à 2.ª fase, anteriormente sublinhada? A resposta tem de ser negativa, porquanto a razão invocada - compensar as deficiências dos exames da 1.ª fase - não se verifica adequadamente. Na realidade, uma compensação efectiva exigiria uma regulamentação prévia à realização dos exames da 2.ª fase. Só assim os candidatos atingidos pelos problemas da 1.ª fase poderiam equacionar devidamente o seu interesse em concorrer à 2.ª fase e obter, por essa via, a reparação de prejuízos sofridos anteriormente. Além disso, não se compreende como poderá funcionar como compensação de anteriores prejuízos um sistema que também abrange os candidatos que apenas foram opositores à 2.ª fase e ainda aqueles que, tendo concorrido à 1.ª fase, não foram vítimas das deficiências das provas ou beneficiaram da 2.ª chamada.
O sistema delineado pelo decreto 58/VII da Assembleia da República institui, deste modo, um favorecimento dos candidatos à 2.ª fase carecido de razoabilidade e adequação ao fim de compensação de prejuízos, ao abranger candidatos que não sofreram qualquer prejuízo anterior e, sobretudo, ao ser editado num momento em que os efectivamente prejudicados - ou, pelo menos, parte deles - não puderam já aproveitar as novas possibilidades oferecidas.
15 - A discriminação negativa dos candidatos à 1.ª fase que não foram opositores da 2.ª fase do concurso nacional será uma discriminação lesiva da igualdade? Poder-se-á pensar que neste caso, como em outros que foram anteriormente objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade não será violado quando apenas um grupo de sujeitos é abrangido por um benefício enquanto outra categoria não o é. O benefício de uns (se não justificado) não seria verdadeiramente o prejuízo de outros, mas corresponderia somente a um não benefício (cf., nesse sentido, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 609/94, Diário da República, 2.ª série, de 4 de Janeiro de 1995, 563/96, Diário da República, 1.ª série-A, de 16 de Maio de 1996, e 713/96, Diário da República, 2.ª série, de 9 de Julho de 1996).
Todavia, as normas em apreço não geram exclusivamente um não benefício de um grupo de indivíduos, mas redundam numa efectiva diminuição das possibilidades de acesso ao ensino superior daqueles que, segundo as suas expectativas razoáveis, não teriam nada a ganhar com a candidatura à 2.ª fase.
O facto de os estudantes que se candidataram à 1.ª fase (e não foram colocados no curso e estabelecimento da sua 1.ª opção) não poderem prever as possibilidades de colocação em cursos e estabelecimentos de ensino sem vagas ou com um número exíguo de vagas sobrantes, qualquer que fosse a classificação obtida na 2.ª fase - possibilidades que, todavia, passaram a existir retroactivamente, no sistema do decreto 58/VII - , corresponde a uma comparativa subtracção de possibilidades de acesso a um grupo de candidatos, precisamente aqueles que se justificaria beneficiar. E isto acontece numa matéria em que a Constituição exige do Estado uma promoção da igualdade (condições de acesso ao ensino superior - artigo 76.º, n.º 1) e não lhe atribui apenas um papel de guardião da igualdade formal, numa matéria, em suma, em que estão em causa projectos de vida dos jovens portugueses.
16 - Em face do anteriormente exposto, conclui-se que as normas em apreço contradizem o princípio da igualdade, consagrado, genericamente, no artigo 13.º e, no que se refere à igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, no artigo 76.º, n.º 1, da Constituição.
Esta conclusão radica no pressuposto de que aquelas normas criaram retroactivamente um quadro legal que, se fosse conhecido anteriormente, teria modificado a representação das possibilidades de acesso ao ensino superior pelos candidatos à 1.ª fase. Deste modo, a violação da igualdade é determinada por uma violação da segurança jurídica, que a modificação retroactiva das regras de avaliação dos resultados de um concurso público implica.
D) A questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 1.º do decreto
n.º 58/VII por violação do princípio da confiança decorrente do princípio
do Estado de direito democrático.
17 - Poder-se-á ainda considerar que as normas agora fiscalizadas também atingem, em si mesmo, o princípio da confiança emanado do artigo 2.º da Constituição? A uma resposta afirmativa opor-se-á o entendimento de que não merecem protecção expectativas meramente negativas, isto é, no caso concreto, as expectativas dos candidatos à 1.ª fase (que não realizaram os exames da 2.ª fase) de que não teriam acesso ao ensino superior os candidatos à 2.ª fase que, pelo sistema retroactivo das vagas adicionais, o viriam a ter.Porém, se é verdade que uma tal protecção de expectativas não decorre do princípio do Estado de direito democrático, não será de modo algum correcto afirmar-se que não há nenhumas outras expectativas afectas pelas alterações das condições de acesso instituídas pelas normas do decreto 58/VII. São ainda postas em causa as expectativas que se referem ao conhecimento prévio das regras de um concurso público e à manutenção de tais regras até à produção de todos os efeitos legais desse concurso. Não são as expectativas negativas, relativamente a benefícios alheios, ou positivas, relativamente a benefícios próprios com que não se poderia contar, mas as expectativas associadas à manutenção do quadro legal em que se opera um concurso público até ao seu termo, que decorrem da própria segurança jurídica característica do Estado de direito democrático.
18 - Deslocada a questão da violação da confiança para a referida dimensão da segurança jurídica, não tem qualquer cabimento a objecção de que não terá de se verificar qualquer tutela da confiança, porque já se prefigurava a alteração legislativa antes da realização dos exames da 2.ª época, em virtude das recomendações feitas ao Governo pela Assembleia da República.
A confiança em que um concurso realizado segundo um determinado quadro legal obedecerá, até ao apuramento dos candidatos, a esse quadro não é uma mera expectativa, abalável por factos sociológicos ou políticos, mas corresponde a uma dimensão concreta do direito à segurança jurídica. Não seria, assim, exigível a ninguem que não confiasse na manutenção do quadro legal e que esperasse uma alteração retroactiva das regras, critérios e finalidades do concurso nacional de acesso ao ensino superior.
19 - A questão da violação do princípio da confiança é, deste modo, transposta para a dimensão da segurança jurídica derivada do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), devendo entender-se, nesses termos, que as normas questionadas do decreto 58/VII violam o artigo 2.º da Constituição.
Assim, há-de concluir-se que os princípios da igualdade e da segurança jurídica, em conjugação, são abalados imediatamente pelo artigo 1.º do decreto 58/VII da Assembleia da República, decorrendo da inconstitucionalidade desta norma a inconstitucionalidade consequencial de todas as restantes normas do mesmo decreto, que têm uma função concretizadora e instrumental relativamente à primeira.
III - Decisão
20 - Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide:a) Não se pronunciar no sentido de que as normas do decreto 58/VII, aprovado em 31 de Outubro de 1996 pela Assembleia da República e subordinado ao título «Criação de vagas adicionais no acesso ao ensino superior», contrariam o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do artigo 1.º do referido decreto, por este contrariar, conjugadamente, o princípio da segurança jurídica derivado do artigo 2.º da Constituição e o princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, da Constituição;
c) Pronunciar-se, por isso, pela inconstitucionalidade consequencial das restantes normas do mesmo decreto.
Lisboa, 8 de Janeiro de 1997. - Maria Fernanda Palma - José de Sousa e Brito - Armindo Ribeiro Mendes - Antero Alves Monteiro Dinis - Alberto Tavares da Costa [vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração junta] - Messias Bento [vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto junta] - Fernando Alves Correia [vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto junta] - Maria da Assunção Esteves [vencida quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto junta] - Vítor Nunes de Almeida [vencido em parte, quanto à fundamentação da alínea b)] - Luís Nunes de Almeida [vencido, em parte, quanto à fundamentação da alínea b), nos termos da declaração de voto junta] - Guilherme da Fonseca [vencido quanto às alíneas b) e c), conforme declaração de voto junta] - Bravo Serra [vencido quanto às decisões constantes das alíneas a), b) e c), conforme declaração de voto que junto] - José Manuel Cardoso da Costa [vencido quanto às alíneas b) e c), conforme declaração de voto junta].
Declaração de voto
1 - Votei vencido quanto à matéria que integra a alínea a) da decisão por entender que a normação proposta pelo decreto 58/VII, se fosse recebida no ordenamento jurídico, contrariaria, também, o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, acolhido no n.º 1 do artigo 114.º da Constituição da República Portuguesa, em articulação com o princípio do Estado de direito democrático, a que se refere o artigo 2.º do mesmo texto.2 - Não está em causa, obviamente, a função legiferante do Parlamento - que, nesta área, detém competência legislativa concorrente com o Governo e pode não só legislar como ratificar os decretos-leis ou revogá-los - nem se torna necessário enfrentar a debatida problemática ligada à concepção de uma reserva geral da Administração, à existência de reservas funcionais específicas ou a própria reserva de regulamento.
O que parece ser de sublinhar, neste ponto, é o tópico de equilíbrio que deve assistir à interacção entre os vários órgãos de soberania e que decorre daquele princípio organizatório fundamental das relações estaduais - e que, de resto, quer a Comissão Constitucional, quer o Tribunal Constitucional tiveram oportunidade, já, de considerar em diversos momentos.
Assim, por exemplo, o parecer 16/79 daquela Comissão teve o ensejo de, citando Konrad Hesse, ver no princípio citado não só uma frenagem e um balanceamento dos reais factores do poder mas igualmente, e sobretudo, uma «questão de determinação e ordenação adequadas das funções do Estado e dos órgãos aos quais tais funções são confiadas, assim como as forças reais que se corporizam em tais órgãos» (cf. Pareceres da Comissão Constitucional, 8.º vol., pp. 205 e segs.; a essa tónica apelam Acórdãos como os n.º 317/86 e 461/87, publicados no Diário da República, 1.ª série, de 14 de Janeiro de 1987 e 15 de Janeiro de 1988, respectivamente; cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5. ed., Coimbra, p. 369).
3 - Ora, nesta perspectiva de conjugação harmoniosa das relações (de paridade) entre dois órgãos de soberania, a injunção dada pela Assembleia da República ao Governo através do diploma sindicado representa-se excessiva.
Na verdade, a Assembleia da República, através da Lei 46/86, de 14 de Outubro - Lei de Bases do Sistema Educativo -, atribuiu ao Governo (a «um ministério especialmente vocacionado para o efeito») a coordenação da política relativa ao sistema educativo (n.º 5 do seu artigo 1.º), nesse mesmo texto dispondo, além do mais, sobre o acesso ao ensino superior (artigo 12.º), que terá em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do País, podendo ainda o acesso ser condicionado pela necessidade de garantir a qualidade do ensino, sendo o Decreto-Lei 28-B/86, de 4 de Abril - que estabelece o regime de acesso ao ensino superior-, desenvolvimento e concretização dessa lei de bases. E é ao Governo que compete, através do respectivo departamento, exercer, designadamente, o poder de tutela sobre as universidades, como responsável pelo sector da educação, «tendo em vista, fundamentalmente, a garantia da integração de cada universidade no sistema educativo e a articulação com as políticas nacionais de educação, ciência e cultura», de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 28.º de outra lei da Assembleia da República, a Lei 108/88, de 24 de Setembro, que define a autonomia das universidades. A essa instância tutelar compete, designadamente, «aprovar, tendo em vista a respectiva adequação à política educativa, quando tal se justifique, o número máximo de matrículas anuais, sob proposta das universidades» [cf. a alínea b) do n.º 2 desse artigo 28.º].
Ou seja, a Assembleia da República, no exercício de uma competência própria, terá entendido desconsiderar os limites das competências por ela própria atribuídas ao Governo, não obstante o reflexo directo na política educativa da responsabilidade deste, permitindo colocar a questão equacionada pelo Presidente da República: se o Governo for impedido de aplicar e executar a lei, de acordo com uma avaliação de prognose própria e responsável, como poderá posteriormente o Parlamento pedir-lhe contas pela execução de uma política educativa? 4 - É nesta medida que, independentemente de tudo o mais susceptível de ser ponderado nesta matriz, se me afigurou ser excessivo: a injunção ao Governo, mediante a criação de regras para além das já existentes e a imposição de determinada actuação, à revelia da responsabilidade legislativa e política deste órgão no sector, é suficientemente relevante para afectar a moderação que é a raiz e essência do princípio da «separação e interdependência» dos órgãos de soberania e da «autonomia destes», para se utilizar o fio discursivo do Acórdão 461/87, já citado.
Dito de outro modo, o diploma violaria também o disposto no n.º 1 do artigo 114.º, articuladamente com o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa: a divisão de poderes ínsita no princípio consagrado no primeiro destes preceitos deve harmonizar-se com o princípio acolhido por este último, como um dos seus elementos essenciais, o que, salvo melhor opinião, não se verifica no texto analisado. - Alberto Tavares da Costa.
Declaração de voto
Entendi, contrariamente à opinião que fez vencimento, que, no caso, existe também violação do artigo 114.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.As razões do meu voto são as que seguem:
1 - A Constituição da República Portuguesa é a constituição de um Estado de direito democrático (cf. artigo 2.º).
Uma das essentialia do Estado de direito é o princípio da divisão de poderes, pois ali onde não exista tal divisão não pode falar-se em Estado democrático, nem em Constituição: «toute société dans laquelle la garantie des droits n'est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée n'a point de constitution» - escreveu-se no artigo 16.º da Déclaration des droits de l'homme et du citoyen de 1789.
A divisão de poderes é, com efeito, necessária ao exercício moderado (proporcionado, equilibrado) e concertado do poder, já que este, para respeitar a dignidade das pessoas e os direitos que dela emergem, há-de conter-se dentro de justos limites: «il faut que par la disposition des choses le pouvoir arrête le pouvoir» - escreveu Montesquieu no seu Esprit des Lois. E acrescentou: «l'excés même de la raison n'est pas toujours désirable».
Essencial é - dizia ainda - um gouvernement modéré.
A divisão de poderes postula, pois, uma ideia de moderação no exercício do poder (balance of power) e de interdependência da actividade dos vários poderes. Por isso, nenhum poder (órgão de soberania) se pode conceber como entidade isolada, nem agir indiferente ao actuar dos outros poderes. Ao contrário, os poderes (órgãos de soberania) devem ser potestates coordinatae, «vocacionalmente sujeitas a uma contínua conjugação» - para nos expressarmos com António Barbosa de Melo (Democracia e Utopia, Reflexões, Porto, 1980, p. 45). Dizendo como Montesquieu: os poderes (órgãos de soberania) devem sempre aller de concert.
No princípio da divisão e interdependência de poderes «vai necessariamente implicada uma ideia de equilíbrio, de checks and balances», como se escreveu no Acórdão 317/86 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 14 de Janeiro de 1987).
A distribuição de competências por vários centros de poder constitui, de facto, um obstáculo aos atropelos, pois que as forças contrapostas sempre tendem a equilibrar-se.
2 - Seja, pois, qual for o exacto alcance do princípio da separação e interdependência, que o artigo 114.º, n.º 1, da Constituição consagra («os órgãos de soberania devem observar a separação e interdependência estabelecidas na Constituição»), há nele uma ideia que pode enunciar-se assim: ao Parlamento compete, em princípio, a função de fazer leis (a legis latio); a função executiva (a legis executio) - isto é, o governar e administrar - cabe, em princípio também, ao Governo; a função judicial (a juris dictio), essa cabe aos tribunais. Ao que acresce que os órgãos do legislativo, do executivo e do judicial se controlam ou limitam mutuamente, por forma que o poder do Estado resulte limitado (moderado) e a liberdade das pessoas defendida.
Daqui resulta - como acentuou a Comissão Constitucional no parecer 16/79 (publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, 8.º vol., pp. 205 e segs.) - que deverá concluir-se que há inconstitucionalidade, por violação do artigo 114.º, n.º 1 (isto é, do princípio constitucional da divisão e repartição de funções entre os diferentes órgãos de soberania), «sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão».
Será, por isso, inconstitucional o chamado governo de assembleia, em que o Parlamento exerce a sua competência sem os limites que resultam da existência (e da competência) dos outros órgãos de soberania, máxime da do Governo.
3 - Face ao que vem de dizer-se, já se vê que, ainda que o decreto aqui sub iudicio seja uma lei-medida e que, tendo em conta a matéria sobre que ele versa, este tipo de lei seja no caso constitucionalmente admissível, ainda assim o referido princípio da divisão de poderes foi violado.
O decreto, com efeito, versa matéria que estava ocupada pelo Governo, a quem cumpria abrir (como efectivamente abriu), nos termos definidos pela lei e pelo regulamento, o concurso de ingresso no ensino superior - concurso que, quando o decreto foi aprovado (31 de Outubro de 1996), já se achava, de resto, encerrado, pois que as candidaturas da 2.ª fase decorreram de 30 de Setembro a 4 de Outubro de 1996.
O que, pois, a Assembleia da República veio fazer foi determinar a reabertura de um concurso encerrado, para o qual definiu novas regras, ao mesmo tempo que exigiu do Governo a prática de uma série de actos subsequentes de natureza regulamentar, administrativa e financeira (cf. artigos 2.º, 3.º e 4.º).
Ora, há-de convir-se que esta intromissão da Assembleia da República no processo de candidaturas de ingresso no ensino superior (um processo administrativo) se apresenta como altamente perturbadora da acção do Governo. Não cumpre, por isso, as exigências de moderação que são feitas pelo princípio da separação e interdependência de poderes. Passa a justa medida e, ao exceder os limites que lhe são próprios, perturba o equilíbrio que vai implicado na ideia de gouvernement modéré.
Há, aqui, pois, um desvio (se não mesmo um abuso) na utilização da forma legislativa - e, assim, da função de legislar. E, com isso, viola-se o mencionado princípio da divisão de poderes. - Messias Bento.
Declaração de voto
O decreto 58/VII da Assembleia da República foi votado na especialidade na 6. Comissão (Comissão de Educação, Ciência e Cultura), tendo a respectiva votação final global ocorrido, de harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 171.º da Constituição, na reunião plenária da Assembleia da República de 31 de Outubro de 1996 (cf. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 7, de 2 de Novembro de 1996), isto é, numa data em que o procedimento do concurso público de acesso ao ensino superior no ano lectivo de 1996-1997 já estava concluído. De facto, como decorria do anexo I do Regulamento do Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior Público para a Matrícula e Inscrição no Ano Lectivo de 1996-1997, aprovado pela Portaria 241/96, de 4 de Julho, e veio a verificar-se na realidade, os resultados da 1.ª fase de candidatura àquele concurso foram publicados em 16 de Setembro de 1996, tendo a afixação dos resultados da 2.ª fase da candidatura sido feita em 29 de Outubro do mesmo ano.Estando, no momento em que a Assembleia da República formou a sua vontade (através da aprovação final global do decreto acima referido), encerrado o procedimento administrativo do concurso de acesso ao ensino superior público para a matrícula e inscrição no ano lectivo de 1996-1997, tanto na 1.ª fase da candidatura, como na 2.ª fase - na qual, de acordo com o n.º 2 do artigo 34.º do mencionado Regulamento, só foram colocados a concurso as vagas sobrantes da 1.ª fase do concurso, as vagas sobrantes dos concursos a que se refere o capítulo V do Decreto-Lei 28-B/96, de 4 de Abril (os chamados concursos especiais, destinados a candidatos em situações habilitacionais específicas) e as vagas ocupadas na 1.ª fase do concurso em que não se concretizou a matrícula e inscrição -, o decreto submetido à fiscalização preventiva da constitucionalidade veio a traduzir-se numa autêntica alteração dos resultados de um concurso público, concretamente dos resultados finais de 2.ª fase do concurso de acesso ao ensino superior público para a matrícula e inscrição no ano lectivo de 1996-1997.
Na verdade, a norma constante do artigo 1.º do decreto 58/VII - a qual atribui aos candidatos à 2.ª fase do concurso de ingresso no ensino superior que tiverem realizado na época de Setembro de 1996 um ou mais exames nacionais do ensino secundário e que tenham obtido nota de candidatura superior em cada par curso/estabelecimento ao último colocado para o mesmo par curso/estabelecimento na 1.ª fase do concurso o direito ao ingresso pretendido - e, bem assim, a norma do artigo 2.º do mesmo decreto - que impõe ao Ministério da Educação, «em colaboração com os estabelecimentos públicos do ensino superior e com pleno respeito pela sua autonomia», a criação das vagas adicionais necessárias para garantir a efectivação daquele direito - têm como consequência a substituição do conteúdo de actos administrativos perfeitos e eficazes. As referidas normas do decreto em apreço, devido ao momento em que surgiram, assumem, ao cabo e ao resto, a natureza de verdadeiros actos administrativos de segundo grau, isto é, de actos que operam sobre actos administrativos precedentes (cf. R.
Ehrhardt Soares, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, pp. 125-129), já que vão modificar, pela via da sua reforma, o conteúdo de alguns actos administrativos que traduziram a situação final de alguns candidatos à 2.ª fase do concurso.
Ora, numa situação, como sucede in casu, em que a Assembleia da República, no exercício da sua função legislativa, emana um diploma que, mais do que modificar as regras jurídicas de um concurso público já a decorrer, tem como efeito típico a alteração do conteúdo de decisões do órgão da Administração Pública para o efeito competente, adoptadas na sequência de um complexo procedimento administrativo, entendo que se verifica uma violação do princípio da separação de poderes, condensado no artigo 114.º n.º 1, da Constituição.
É sabido que o princípio da separação de poderes (ou da divisão de poderes, como alguns preferem chamar-lhe) constitui um princípio essencial da estruturação do Estado democrático. A sua importância (antiga e actual) reside na filosofia antiabsolutista e de moderação que ele, clara e lapidarmente, encerra. Como sublinha A. Barbosa de Melo (cf. Democracia e Utopia, Porto, 1980, p. 42), a ideia mais elementar contida naquele princípio «consiste em distribuir as funções públicas por diferentes órgãos, separados e autónomas entre si, de forma que a suprema auctoritas não apareça total e exclusivamente hipostasiada em nenhum deles nem em qualquer das suas singulares manifestações. A auctoritas inerente à communitas civium manifestar-se-á apenas na conjugação de todos os órgãos e do povo, resultando, em cada momento, do equilíbrio dinâmico entre todos os elementos da comunidade política (`balance of power')». Recordando as palavras de Montesquieu, «tout serait perdu si le même homme, ou le même corps des principaux, ou des nobles, ou du peuple exerçait ces trois pouvoirs:
celui de faire les lois, celui d'éxécuter les resolutions publiques et celui de juger les crimes ou les différends des particuliers» (cf. De l'Esprit des Lois, XI).
O princípio da separação de poderes, tal como está previsto no artigo 114.º, n.º 1, da lei fundamental, veda, por um lado, que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão e, do outro lado, que um determinado órgão de soberania se arrogue competências em domínios para os quais não foi concebido, nem está vocacionado (cf., neste sentido, os pareceres da Comissão Constitucional n.º 16/79 e 1/80, in Pareceres da Comissão Constitucional, vols. VIII e XI, pp. 205 e segs. e 23 e segs.; os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 26/84 e 195/94, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Abril de 1984 e de 12 de Maio de 1994, respectivamente; J. J.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3. ed., Coimbra, Coimbra Editora, p. 497, e Nuno Piçarra, A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pp. 247-165).
Tendo como ponto de referência o sentido e alcance do princípio da separação de poderes e tendo em conta a natureza das normas dos artigos 1.º e 2.º do decreto 58/VII da Assembleia da República, sou de opinião que elas implicam uma invasão por parte deste órgão de soberania do núcleo essencial da competência administrativa do Governo, o qual abrange, seguramente, a competência exclusiva para modificar, total ou parcialmente, o conteúdo de actos administrativos por si praticados ou por órgãos administrativos dele hierarquicamente dependentes. Uma tal violação do núcleo essencial da competência administrativa do Governo resulta, fundamentalmente, do momento e do modo de actuação da Assembleia da República e não de uma invasão por parte deste órgão de soberania de uma pretensa zona ou área reservada da Administração Pública, que, no caso, não existe, uma vez que dúvidas não se me oferecem em que a matéria da regulamentação jurídica do concurso nacional de acesso ao ensino superior público para a matrícula e inscrição no ano lectivo de 1996-1997 cabia perfeitamente no âmbito da competência legislativa da Assembleia da República. Questão é que, como resulta do anteriormente exposto, uma tal regulamentação tivesse ocorrido num momento e por um modo constitucionalmente adequados.
Eis, em termos muito breves, as razões pelas quais dissenti da maioria do Tribunal e considerei que as normas do decreto da Assembleia da República n.º 58/VII, em especial as constantes dos seus artigos 1.º e 2.º, infringem o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, plasmado no artigo 114.º, n.º 1, da lei fundamental. E é em consequência da violação deste princípio, nos termos anteriormente assinalados, ou, pelo menos, estreitamente conexionada com ela, que, na minha óptica, as referidas normas violam também, conjugadamente, o princípio da segurança jurídica derivado do artigo 2.º da Constituição e o princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidade no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, da Constituição. - Fernando Alves Correia.
Declaração de voto
1 - A metódica do acórdão, na parte que se refere à alínea a), não lê a Constituição segundo o «constitucionalismo», lê a Constituição segundo o «positivismo constitucional». Segundo o constitucionalismo, a Constituição reconhece princípios suprapositivos, garante os direitos individuais e a separação de poderes. Realiza o ideal de Estado limitado, em nome desses direitos. A separação de poderes é aí uma «essência constitucional» (Rawls), pois que constitui a Constituição verdadeira e justa. O positivismo constitucional dilui a Constituição material na positividade da Constituição formal: corresponde a uma «concepção legalista» do sistema jurídico que se contrapõe a uma «concepção constitucionalista», do mesmo modo por que se contrapõem «norma e valor», «subsunção e ponderação» (Alexy).A meu ver, nem mesmo na perspectiva do positivismo constitucional o acórdão realiza a melhor interpretação: a sistemática da Constituição e o jogo de complementações implicado nessa sistemática fazem que na alínea a) se devesse concluir no sentido da inconstitucionalidade.
2 - A Constituição separa os órgãos de poder e faz-lhes corresponder uma distribuição de competências funcionalmente orientada. E, como é claro, a separação dos órgãos de poder liga-se indelevelmente ao modelo de democracia representativa por que optou a Constituição.
É verdade que o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania não existe com abstracção da posição constitucional desses órgãos. A centralidade do Parlamento no sistema e a ausência de uma regra constitucional delimitadora de uma «reserva de administração» permite afirmar que o Parlamento pode tomar para si a regulação de uma matéria funcionalmente adequada à intervenção do Governo (e, aqui, sem ponderar os casos em que a «reserva de administração» resulte da «natureza das coisas» e sem ponderar se existe um núcleo essencial de competências do Governo que pudesse ser atingido por uma actuação sistemática do Parlamento naquele sentido).
À partida, pois, a Constituição não impede a intervenção do Parlamento na regulação de matéria da competência administrativa do Governo.
3 - Só que o problema não é, em boa verdade, o de saber se o Parlamento pode intervir na regulação de matéria da competência administrativa do Governo! O problema - que não ficou claramente definido no requerimento do Presidente da República nem no acórdão do Tribunal Constitucional - é o de saber se o Parlamento pode decidir para o mesmo universo de casos, no mesmo processo, em matéria de uma competência que o Governo actuou.
Este problema não é um problema de limite de conteúdo das leis da Assembleia da República, é um problema de procedimento e de efeito que o procedimento tem sobre esse conteúdo. E também não pode resolver-se com uma qualquer assimilação à produção de leis-medida, porque o decreto 58/VII, que aqui se aprecia, não tem a «novidade temática» destas leis.
Com este problema, a separação de funções ordena-se em primeira linha ao princípio do Estado de direito democrático (Constituição da República Portuguesa, artigos 2.º e 114.º).
De proceder como procedeu, o Parlamento criou a «perversão» que é demonstrada no pedido do Presidente da República e reconhecida pelo Tribunal Constitucional: a de se formarem planos de vida sobre pressupostos jurídicos que não permanecem, a de se impor às universidades uma ordenação a regras imprevistas, a de abrir espaço à desigualdade.
Será assim sempre que se verifique um tal procedimento! Por isso, é de um vício de procedimento que se trata, dogmaticamente autónomo, indisfarçável na «des-garantia» de direitos de que é causa. A decisão do caso à luz das estruturas subjectivas da Constituição, a confiança e a igualdade, não pode iludir que a esfera dos direitos é atingida em resultado de um vício congénito no processo de produção de normas.
4 - A conjunção do princípio do Estado de direito democrático (Constituição da República Portuguesa, artigo 2.º) com o princípio da separação dos órgãos de soberania (Constituição da República Portuguesa, artigo 114.º) exige a regularidade de procedimentos em ordem à garantia dos direitos, constitui um postulado de racionalidade jurídica e política, é uma essência da democracia constitucional e representativa. A interacção de funções não é permitida aí onde ela cria a incerteza do direito. O procedimento que a concretiza é um procedimento inconstitucional.
A metódica do acórdão rompe a unidade sistemática da separação de poderes com o princípio do Estado de direito quando o sentido da norma constitucional do artigo 114.º devia ser concretizado com recurso à força directiva da norma constitucional do artigo 2.º Esta metódica não internaliza verdadeiramente os desideratos de uma democracia representativa, racionalizada e liberal, que é a democracia que está na Constituição. Internaliza, antes, os desideratos de uma democracia convencional e monocrática. Dá ao Parlamento a indemnidade de uma actuação, que é, afinal, o contrário da razão de ser do Parlamento. Pensa a «legitimidade» sem a ligar à liberdade.
Com isto, o acórdão não põe verdadeiramente «ordem nas coisas», que é de «ordem nas coisas» que trata o sistema constitucional-democrático de poderes, enquanto sistema de controlo e responsabilidade. - Maria da Assunção Esteves.
Declaração de voto
O presente acórdão toma como ponto de referência do juízo de censura nele formulado a situação criada pelo decreto aprovado pela Assembleia da República e em que se encontrarão «os candidatos que não concorreram à 2.ª fase e até mesmo aqueles que, tendo-o feito, não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino que, em absoluto, preferiam, por saberem que não tinham sobrado vagas da 1.ª fase».Na minha perspectiva, a medida legislativa aprovada deveria ter sido encarada como uma providência que vem acrescentar-se a um processo de candidatura já fechado e concluído, que comportou duas fases com vista ao preenchimento das vagas existentes. Os candidatos formaram as suas opções de acordo com as regras iguais para todos, ou seja, de acordo com os critérios conjugados da classificação obtida e das vagas existentes. Os candidatos formularam sempre e em qualquer caso as suas opções com pleno conhecimento das respectivas hipóteses de colocação, ou seja, com conhecimento da repercussão das suas opções em função da classificação obtida e das vagas existentes.
Não será demais salientar este aspecto: as opções de todos, sublinho de todos os candidatos, incluindo aqueles que saem beneficiados pelo regime criado pelo decreto, foram formuladas em termos de rigorosa igualdade e condicionadas pelo número de vagas publicitadas. Esse aspecto é para mim decisivo. É que, quando no acórdão se invoca «a circunstância de as regras de colocação na 2.ª fase [que, na minha perspectiva e no contexto, equivale à 3.] terem sido determinadas já depois de os candidatos terem realizado as respectivas provas e, sobretudo, terem manifestado as suas preferências por cursos e estabelecimentos de ensino» para condenar a solução, vejo aí precisamente o quid que a exime à censura.
Neste contexto, o decreto sindicado, abrindo, como que em termos ideais, uma 3.ª fase de colocação, vem efectivamente modificar as regras de colocação mas apenas em termos de beneficiar aqueles candidatos que, embora tenham formulado as suas opções tendo em conta as vagas disponíveis, acabariam por não ser colocados em consequência do preenchimento das vagas apurado no fim da 2.ª fase.
Com a medida aprovada não se diminuíram expectativas existentes no momento da candidatura tal como não se criaram expectativas novas. O comportamento dos particulares, os cálculos e previsões que terão feito em matéria de colocação, em nada foram afectados, influenciados ou muito menos determinados pelo decreto, tanto mais que foi manifesta e inequívoca a transparência de todo o processo, dada a publicidade que suscitou nos media, sendo bem conhecidas as posições sobre a matéria, quer do Governo quer da oposição. Não colhe assim o argumento de que foram subtraídas «possibilidades que, todavia, passaram a existir retroactivamente». Essas possibilidades nunca existiram, nunca puderam ser antecipadas por quem quer que seja. E será pelo menos bizarro considerar que um candidato admitido em função do critério das vagas se poderá considerar prejudicado por ver ao seu lado nos bancos da escola outros candidatos que aí não esperaria ver.
Quando muito poderá dizer-se que terá sido afectada uma abstracta e genérica expectativa que assiste a todos os cidadãos no sentido da permanência do enquadramento normativo existente em cada momento. Mas uma expectativa desta natureza, despida de radicação subjectiva, não se vê que seja tutelável perante o legislador que resolve agir para fazer face a circunstâncias supervenientes, geradora de graves lapsos, alguns erros e que levou à atribuição de uma majoração das notas, tão difícil foi o percurso do processo de concretização de acesso ao ensino superior neste conturbado ano de 1996.
Sendo assim, a questão haveria de ser encarada tendo em conta aquilo que foi introduzido, por puro acréscimo, pelo legislador e em resultado da sua vontade. Ou seja, perguntando pelo sentido desse «mais» insuscepível de ter influenciado comportamentos.
São admitidos todos os candidatos atrabiliariamente e independentemente do mérito demonstrado? Não é tal. Ingressam apenas aqueles candidatos que tenham obtido, segundo o artigo 1.º, nota de candidatura superior ao último colocado na 1.ª fase.
Quer isto dizer que, porque se não quis pôr em causa a colocação obtida na 1.ª fase (se assim fosse estaria criada uma violação do princípio da confiança), o legislador, tendo em conta as perturbações verificadas, quis colocar os candidatos, excluídos na 2.ª fase, a que todos puderam concorrer, não em posição totalmente nova mas na posição que teriam obtido na 1.ª fase se a esta tivessem concorrido e se esta tivesse decorrido em plena normalidade.
Mesmo que não tivessem concorrido na 1.ª fase, mesmo que não tivessem sido prejudicados pela forma como ela decorreu, com o novo método de colocação não obtiveram nem mais nem menos direitos, obtiveram os mesmos. Ou seja, aquela que denomino 3.ª fase não vem colocar no ensino superior candidatos que não poderiam ter sido admitidos na 1.ª E essa fase constitui efectivamente o padrão a ter em conta na óptica de um legislador que quer sanar eventuais prejuízos porque a 2.ª é complementar e de recurso, visando como visa vagas meramente sobrantes e de existência aleatória.
Apontar uma violação do princípio da igualdade, pese embora os esforços argumentativos desenvolvidos pela tese vencedora, não me parece possível neste caso.
A solução legislativa encontrada pode não ser a melhor, pode nem sequer ser a mais justa, mas daí a dizer-se que é inconstitucional vai um passo que o Tribunal deu, correndo o risco de converter o juízo de constitucionalidade em juízo sobre a justiça da lei.
Por último, dir-se-á quanto ao princípio da segurança apenas que, uma providência legislativa que apenas vem trazer benefícios a todos os interessados, sem afectar - como se julga ter demonstrado - os direitos de quaisquer candidatos, não pode considerar-se, nesta medida, violadora do princípio da confiança, na vertente do princípio da segurança jurídica.
Daí o sentido divergente do meu voto quanto à alínea b) da decisão. - Vítor Nunes de Almeida.
Declaração de voto
Subscrevi integralmente o acórdão que obteve vencimento na parte em que se pronuncia pela não violação, por banda das normas impugnadas, do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania.Em contrapartida, só votei - e com motivação algo diversa, por mais restrita, da que consta no acórdão - a pronúncia de inconstitucionalidade da norma do artigo 1.º do diploma em análise com fundamento na violação do princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º da Constituição da República Portuguesa e não já com fundamento na ofensa do princípio da segurança jurídica, este derivado do artigo 2.º da mesma lei fundamental.
Com efeito, tendo em conta que:
A todos os estudantes que concluíram os respectivos exames na 1.ª época - e puderam, assim, concorrer à 1.ª fase - foi concedida a faculdade de repetirem esses exames, para melhoria de nota, na 2.ª época e concorrerem à 2.ª fase;
Os exames da 2.ª época (Setembro) ocorreram em momento anterior ao da publicitação dos resultados da 1.º fase do concurso e das vagas sobrantes para a 2.ª fase;
A norma impugnada condiciona o direito a vaga adicional à obtenção de nota de candidatura superior à do último colocado na 1.ª fase;
entendo dever concluir-se, por um lado, e ao contrário do que se afirma no acórdão, que a realização de exame na 2.ª época, para melhoria de nota, era «uma aposta natural e exigível aos candidatos», uma vez que este exame ocorreu em momento em que ainda se não conheciam nem as colocações da 1.ª fase, nem as vagas sobrantes para a 2.ª fase, e, por outro lado, que não existe qualquer alteração da «lógica instituída e com que os candidatos podiam contar», já que o diploma em apreço não modifica as regras de colocação na 1.ª ou na 2.ª fase, apenas criando vagas adicionais, sem prejudicar seja quem for nas colocações já obtidas.
No entanto, uma situação me parece indubitavelmente geradora de violação do princípio da igualdade: a que conduz a que certos estudantes possam, em virtude do funcionamento global do sistema instituído, ser preteridos, nas almejadas colocações, por outros que hajam obtido notas de candidatura inferiores às por eles obtidas.
Ora, como o diploma não abriu candidaturas específicas para as vagas adicionais, valendo as opções manifestadas na 1.ª ou na 2.ª fase, e como as candidaturas à 2.ª fase foram apresentadas já depois de se conhecerem as vagas sobrantes, é manifesto que os estudantes que só concorreram a esta 2.ª fase ficam discriminados, quanto à colocação nas vagas adicionais, relativamente aos que concorreram à 1.ª fase. É que o estudante que concorreu apenas à 2.ª fase e, obviamente, não optou pelos pares curso/estabelecimento da sua preferência para os quais não havia vagas sobrantes ou só as havia em muito reduzido número, não pode beneficiar das vagas adicionais, relativamente a essas opções, porque não teve oportunidade prática de as manifestar; mas, pelo contrário, o estudante com idênticas preferências que obteve igual - ou mesmo inferior - nota de candidatura e, consequentemente também não manifestou essas opções na 2.ª fase, pode prevalecer-se das opções declaradas na 1.ª fase, apesar de só beneficiar da vaga adicional na sequência do exame efectuado na 2.ª época.
Este circunstancialismo bastou-me para considerar atingido o princípio da igualdade. - Luís Nunes de Almeida.
Declaração de voto
1 - Vencido quanto às alíneas b) e c) da decisão, por entender que o Tribunal Constitucional deveria ter-se pronunciado pela constitucionalidade de todas as normas do decreto 58/VII, aprovado em 31 de Outubro de 1996 pela Assembleia da República e subordinado ao título «Criação de vagas adicionais no acesso ao ensino superior», por não contrariarem «conjugadamente, o princípio da segurança jurídica derivado do artigo 2.º da Constituição e o princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, da Constituição», divergindo, assim, e neste ponto, da decisão do acórdão.Não acompanho, pois, o discurso e a linguagem do acórdão às suas alíneas C) e D), ao tratar-se da «questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 1.º daquele decreto 58/VII, por violação do princípio da igualdade» e «do princípio da confiança decorrente do princípio do Estado de direito democrático».
2 - Duas notas preâmbulares impõem-se aqui:
2.1 - A primeira é a de que parece quase atrevimento falar-se singelamente, numa lógica de pura juridicidade, na violação daqueles princípios numa matéria e num sector em que estão certamente presentes as desigualdades, as diferenciações, as discriminações entre os alunos do ensino secundário vocacionadas para o acesso ao ensino superior (num universo de 140 000 alunos que realizaram exames nacionais no final do ensino secundário em Portugal no ano de 1996).
O próprio Ministro da Educação reconhece que «o sistema é iníquo», referindo que «a inequidade do processo está na variedade imensa de formas como se termina o ensino secundário» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 98, de 19 de Julho de 1996, p. 3353).
Desde logo a real desigualdade radica num sistema de ensino verdadeiramente doente, sobretudo se se atender à grande heterogeneidade que se verifica no País com aqueles alunos (e propositadamente esquece-se a desigualdade de base que é o sistema numerus clausus como sistema de restrição global no acesso ao ensino superior).
Por um lado, o desfasamento das escolas entre o litoral e o interior do País, apesar de teoricamente serem os mesmos os programas das disciplinas a leccionar (e programas constantemente postos em crise), pois é sabido que a vários níveis - v. g., professores, condições materiais, técnicas e humanas escolares, deslocação de casa para a escola, preparação antecedente dos alunos, predisposição dos alunos para o estudo - não é exactamente a mesma a situação do aluno de uma escola secundária de Coimbra e o aluno de uma escola secundária de Mogadouro. («Não há apenas um país a duas velocidades, há um país a várias velocidades» - expressão do Ministro da Educação, Diário, citado, p. 3332).
Por outro lado, o desfasamento dos estratos sociais donde provêm os alunos (a nível, por exemplo, de condições familiares, incluindo os interesses culturais, de habitação, de condições financeiras e de saúde, de hábitos alimentares e ocupação dos tempos livros) em estabelecimentos escolares de uma mesma cidade como, por exemplo, Lisboa, sobretudo se se tratar de uma zona residencial degradada, onde se localiza a escola, revela que não é exactamente a mesma a situação do aluno da Escola Secundária de Camões e de uma escola secundária da zona de Chelas.
Todo este quadro, que é conhecido e consabido por todos nós, e não interessa descrever pormenorizadamente, mas a que o acórdão se imunizou, mostra que as condições em que os alunos se dispõem a fazer exames - agora os exames globais, no plano nacional, com o significado de alteração radical do anterior sistema - são profundamente díspares de escola para escola e mesmo dentro da mesma escola. E sem esquecer a situação desigual dos alunos autopropostos nesses exames, desligados da escola. De modo que é pura ficção a garantia de «igualdade de oportunidades» exigida no n.º 1 do artigo 79.º da Constituição, para o regime de acesso à universidade, meta que não foi conseguida, nem foi tentada conseguir com o tal sistema de ensino verdadeiramente doente, sendo que o legislador constitucional, com a revisão de 1989, até abandonou o programa primitivo de favorecimento da «entrada de trabalhadores e de filhos de trabalhadores», exactamente aqueles que, à partida, são mais discriminados.
2.2 - A segunda nota é a de que o acórdão passou ao largo de todo um processo mediático e de cariz político que envolveu o órgão de soberania que é a Assembleia da República durante alguns meses, a partir de Julho de 1996, e que preocupou os deputados de todas as bancadas e o próprio Governo, que todavia, e no essencial, se postou à margem de tais preocupações.
O acórdão, pois, ignorou pura e simplesmente a vontade histórica do legislador do decreto 58/VII, que quis, face à atitude negativa de cooperação do Governo, resolver o problema dos alunos que sempre ficariam afastados de acesso à universidade, editando as normas minimamente indispensáveis para se chegar a uma solução possível desse problema no corrente ano lectivo de 1996-1997 (vontade bem revelada nos debates parlamentares, nas deliberações n.º 18-CP/96 e 21-CP/96 e nos pareceres da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e da Comissão de Educação, Ciência e Cultura).
Mas, se há hipóteses em que é necessário trazer à colação tais elementos, facilmente contactáveis através da consulta do Diário da Assembleia da República, que ajudam a perceber a razão da normatividade, esta é verdadeiramente uma delas, não podendo operar-se, como faz o acórdão, com o puro raciocínio lógico-jurídico, para se decidir o problema que no acórdão se qualifica como «um problema constitucional de violação da segurança jurídica e da igualdade, conjugadamente».
Saber se são ou não «inaceitáveis em face do princípio da igualdade» as discriminações - positivas e negativas - que eventualmente poderiam derivar das alterações introduzidas pelo artigo 1.º do decreto da Assembleia da República, é uma questão que não pode ser debatida e resolvida com desconsideração total do aludido processo mediático e de cariz político.
O acto de julgar carrega pré-compreensões, comportamentos culturais, e, assim, é também ele um acto de política, só que umas vezes, como é o caso, é um acto de política de maior intensidade, correspondendo a um processo fundamentalmente político.
Tal processo está desde logo bem revelado nas notas justificativas dos projectos de lei apresentadas pelos grupos parlamentares que se mostraram interessados em resolver a situação do acesso ao ensino superior, o que foi ampla notícia pública e largamente divulgada por todos os meios de comunicação social.
Assim, no projecto de lei 208/VII, assinado pelo deputado do PSD Sérgio Vieira, dá-se conta dos erros que afectaram a 1.ª fase dos exames nacionais no final do ensino secundário, cujas notas «são determinantes para o acesso ao ensino superior», pesando mais de 70% na nota de candidatura ao ingresso nesse ensino (erros de concepção, erros de execução e distorções na avaliação, com a «bonificação de 2 valores decidida pelo Governo»), e regista-se a preocupação de salvaguardar os interesses dos estudantes prejudicados nesse processo de exames, fundamentalmente os que «fizeram a melhoria de nota em Setembro e obtiveram classificações mais elevadas do que aquelas que permitiram a entrada no ensino superior na 1.ª fase de candidaturas», mas não dispuseram de vagas.
No projecto de lei 209/VII, assinado pelo deputado do PP Jorge Ferreira, também se alude aos «erros e omissões ocorridos com a realização dos exames nacionais do 12.º ano de escolaridade» e anuncia-se o propósito de «tão-só, proceder à correcção das injustiças e desigualdades geradas pela tragédia pedagógica que foram os exames nacionais do 12. ano».
Finalmente, no projecto de lei 215/VII, assinado por quatro deputados do PCP, concretiza-se deste modo «uma das muitas iniquidades resultantes da desastrosa política seguida pelo Ministério da Educação em relação aos exames nacionais do 12. ano e ao acesso ao ensino superior»:
«Trata-se da possibilidade de haver estudantes candidatos ao ingresso no ensino superior no ano lectivo de 1996-1997 que não sejam colocados, apesar de terem obtido nos exames da 2.ª fase do concurso nacional uma nota de candidatura num par curso/estabelecimento igual ou superior ao último colocado para o mesmo par curso/estabelecimento na 1.º fase.» Com tudo isto, iluminando o espírito do legislador e podendo ajudar à compreensão das soluções que ele quis alcançar, não se quis confrontar o acórdão, que erigiu em centro de atenções a situação de «retroactividade inautêntica ou retrospectividade» (nem sequer se colocaria o problema, não se registando «um manifesto privilégio dos candidatos à 2.ª fase, ponderando apenas o factor classificação», se não «estivesse em causa uma situação de retroactividade inautêntica ou retrospectividade» - é como se posiciona ipsis verbis o acórdão).
3 - Feito o desabafo, não posso deixar de acompanhar a declaração de voto do Ex. Sr. Conselheiro Bravo Serra, na parte em que, depois de feita uma pormenorizada análise do regime legal de acesso ao ensino superior público (n.º 1.8 da declaração de voto) - matéria que não mereceu a mesma atenção no acórdão -, se abordam as questões de eventual inconstitucionalidade que conduziram ao juízo negativo do acórdão (n.º 2 e 3 da mesma declaração).
Nessa declaração de voto está tudo dito - e dito da melhor forma - e não interessa, portanto, estar a reproduzir aqui o mesmo tipo de argumentação, a que, aliás, adiro inteiramente.
Acrescentarei apenas o que se segue:
É na intervenção parlamentar do deputado Cláudio Monteiro (PS) que se refere como «questão fundamental» do regime especial depois vazado no decreto em causa aquela que se prende - «daí haver uma violação do princípio da igualdade de acesso ao ensino superior» - «com o facto de o mesmo ser criado não entre a 1.ª fase e a 2.ª fase mas após a conclusão da 2.ª fase, não dando oportunidade, nomeadamente, àqueles que foram colocados em cursos que não eram a sua prioridade inicial mas que correspondiam a uma 3.ª, 4.ª ou 5.ª escolha» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 105, de 3 de Outubro de 1996, p. 3552).
É também este o universo de alunos detectado no acórdão quando aí se fala no «tratamento discriminatório dos candidatos que não concorreram à 2.ª fase e até mesmo daqueles que, tendo-o feito, não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino que, em absoluto, preferiam, por saberem que não tinham sobrado vagas da 1.ª fase» (acrescentando-se ainda: «Na realidade, não é possível deixar de considerar que, para os candidatos não colocados na 1.ª fase no curso e estabelecimento de ensino da sua 1.ª opção, o leque de perspectivas de colocação no curso e estabelecimento de ensino da sua preferência seria diferente se o concurso da 2.ª fase não fosse restrito às vagas sobrantes.») Só que se esquece, por um lado, o próprio mecanismo do concurso de acesso ao ensino superior, ficando tudo na mesma e não se tendo atingido com o regime em causa os candidatos já colocados na 1.ª fase e que se deram por satisfeitos (os que foram colocados na sua 1.ª opção e os que não foram colocados nessa 1.ª opção, mas também não tentaram uma melhoria de nota, apresentando-se aos exames finais nacionais na 2.ª época).
E esquece-se, por outro lado, a realidade retratada nos debates parlamentares e de que se transcreve o seguinte:
Pela voz do deputado Sérgio Vieira (PSD):
«Foi por tudo isto que a Comissão Permanente da Assembleia da República, reunida em 18 de Julho, deliberou, por unanimidade - sublinhe-se, com a concordância de todos os partidos políticos com assento na Assembleia da República -, recomendar ao Governo, entre outras disposições, o seguinte:
permitir a todos os estudantes, que o desejem, e para efeitos de melhoria de nota, uma última oportunidade, por forma a minorar as consequências dos erros verificados, e adaptar em conformidade o calendário do concurso de ingresso no ensino superior.
Lamentavelmente, o Governo não deu cumprimento integral à recomendação parlamentar.Assim, em vários cursos e estabelecimentos de ensino, os estudantes que fizeram a melhoria de nota em Setembro, confiantes na deliberação da Assembleia da República, e que obtiveram classificações mais elevadas do que aquelas que permitiram a entrada no ensino na 1.ª fase da candidatura não têm a oportunidade de ingressar no curso a que se candidatavam, porque as vagas foram preenchidas na 1.ª fase.
[...] Muitos foram os estudantes que tentaram a melhoria de nota convencidos de que, após a deliberação que esta Assembleia aprovou, recorde-se, por unanimidade, essa melhoria não deixaria de ter relevância para efeitos de ingresso no ensino superior.» [Citado Diário, 1.ª série, n.º 106, de 4 de Outubro de 1996, p. 3579.] Pela voz do deputado José Calçada (PCP):
«[O] Governo agiu, e age, à revelia das legítimas expectativas criadas nos alunos e nas famílias, na sequência da aprovação das recomendações, uma vez que não passava pela cabeça de ninguém que ele as não tivesse na devida conta.» [Mesmo Diário, p. 3585.] Ora, ao arrepio dessa realidade, reflectindo uma expectativa legítima decorrente das deliberações aprovadas antes da realização dos exames da 2.ª época, o acórdão prefere a afirmação de que «perante cursos e estabelecimentos de ensino em que as vagas sobrantes são inexistentes ou exíguas, a realização do exame da 2.ª fase para melhoria de nota e a candidatura a tais cursos e estabelecimentos de ensino (jogando fora uma das seis opções) não é uma aposta natural e exigível aos candidatos» (pelo contrário, só não foi «uma aposta natural e exigível» para aqueles candidatos que, no final de contas, se deram por satisfeitos com as suas candidaturas e que, por isso, não se podem considerar «efectivamente prejudicados», por não terem aproveitado «as novas possibilidades oferecidas», como é a linguagem do acórdão).
Aliás, no citado parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, e no mesmo plano da «eventual violação dos princípio constitucionais da igualdade de oportunidades (artigo 76.º, n.º 1) e da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa)», pode ler-se algo que também não mereceu a atenção do acórdão:
«De entre os candidatos ao ensino superior nas várias fases em que se processa o concurso de acesso para o próximo ano lectivo, facilmente se verifica que os únicos excluídos da aplicação do regime proposto são precisamente os candidatos já colocados na 1.ª fase do concurso. Todos os demais - incluindo os candidatos não colocados na 1.ª fase, os estudantes que, embora reunindo condições de candidatura no prazo de apresentação das candidaturas da 1.ª fase, a não apresentaram e os estudantes que só reuniram as condições de candidatura após o fim do prazo de apresentação das candidaturas da 1.ª fase - podem apresentar-se à 2. fase do concurso.
Assim é neste ano lectivo como tem sido, aliás, nos anteriores. A novidade constante do regime proposto consiste em determinar que, de entre os candidatos na 2.ª fase, têm acesso assegurado todos aqueles que se apresentem com uma nota de candidatura igual ou superior à nota do último colocado no mesmo curso na 1.ª fase. Trata-se afinal de considerar tal nota como um limiar mínimo de ingresso, a garantir, se necessário, através da criação de vagas adicionais.
Assim, nenhum dos candidatos ao ensino superior já colocados na 1.ª fase vê a sua situação de alguma forma preterida. Quanto aos candidatos na 2.ª fase, é-lhes atribuída uma garantia de acesso condicionada à obtenção de determinada nota, não como situação de privilégio mas como reparação decorrente do reconhecimento de que a classificação que obtiveram na 1.ª fase de candidatura pode ter sido afectada negativamente por erros e deficiências dos exames nacionais do ensino secundário realizados na 1.ª época.
E não se afirme que a instituição de um regime como o proposto viria instituir privilégios com que os estudantes já colocados na 1.ª fase não poderiam contar. Ao contrário. A falta de instituição de um regime destinado a reparar injustiças criadas pelos erros dos exames nacionais do ensino secundário é que seria susceptível não apenas de manter tais injustiças como de gorar legítimas expectativas quanto à sua reparação.» [Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 65, de 4 de Outubro de 1996.] Mas, ainda que se queira, em última instância, encontrar um sector residual de candidatos ao ensino superior eventualmente preteridos com a aplicação das soluções do decreto em causa (cf. a declaração de voto do Ex. Sr.
Conselheiro Luís Nunes de Almeida), sempre fica por demonstrar que se está perante uma violação intolerável do princípio da igualdade e do princípio da segurança jurídica, tal como deles se serve o acórdão. Pois que é sabido que só podem relevar as pretensas desigualdades se elas forem arbitrárias, se não se descortinar um fundamento material para essas desigualdades, plano que o acórdão não chama à discussão.
Enfim, e para não alongar mais o discurso, resta-me repetir a frontal dissensão do julgamento de inconstitucionalidade das normas do decreto 58/VII. - Guilherme da Fonseca.
Declaração de voto
Tendo dissentido de todas as decisões tomadas no acórdão de que esta declaração faz parte integrante, cumpre-me, embora de um modo tanto ou quanto sintético, indicar as razões da minha discordância.Assim:
1 - No tocante à questão, invocada pelo requerente, consubstanciando a eventual inconstitucionalidade das normas do decreto da Assembleia da República n.º 58/VII por violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania. - No presente aresto foi entendido que nenhum dos encadeados argumentos sustentados pelo Presidente da República, no sentido das dúvidas sobre a conformidade constitucional das normas em apreço no que tange ao ponto agora em análise, merecia acolhimento.
Não é esse, porém, o meu entendimento.
1.1 - Na verdade, a expressão «divisão de poderes» ou «separação de poderes» constitui, no fundo e como é sabido, um conceito que advém de um conglomerado de ideias que têm, historicamente, raízes diversas, quando não contrárias, tendo-se instituído como concepção jurídico-política que, posteriormente, veio desembocar numa principiologia constitucional definidora de um modelo de Estado.
Não é, obviamente, este o momento asado para, na vertente declaração, tentar a efectivação, ainda que muito perfunctória, da história das doutrinas jurídico-políticas e, mais tarde, das doutrinas constitucionais, da «separação de poderes» (cf., contudo, sobre o tema, Marques Guedes, in Introdução ao Estudo do Direito Político, 1969, e Teoria Geral do Estado, 1982, pp. 70 e segs., e Nuno Piçarra, in A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional. Contributo para o Estudo das Suas Origens e Evolução, 1985).
Penso, contudo, que se não pode deixar de sublinhar que, segundo uma perspectiva dogmático-constitucional, a procura da existência concreta do princípio da «separação de poderes» e das vertentes com que ele se nos depara deve ter como referente, quanto a um dado Estado, a lei fundamental que o rege, não se olvidando que, com a crescente função social cometida ao Estado - que implica acentuadamente a tomada de medidas de conformação nos mais variados domínios -, é quiçá possível não pôr em causa determinadas críticas de índole neoliberal que apontam no sentido de uma tal actividade levar, ao menos, a diluir tal princípio, mormente se se tiver em conta que a conformação social muitas vezes exige a adopção de «leis-medida» (cf., sobre o conceito de «leis-medida» e alguns problemas que, com a respectiva aceitação, se podem levantar, Jorge Miranda no estudo «Sentido e conteúdo da lei como acto da função legislativa», Nos Dez Anos da Constituição, pp. 175 e segs., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6. ed., pp. 821 e 822, Manuel Afonso Vaz, Lei e Reserva da Lei - A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, 1992, pp. 205 e segs., 356 e segs. e 510 e segs.).
No nosso diploma básico consagrou-se (artigo 114.º) que [o]s órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição, nenhum deles podendo delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei, o que, inquestionavelmente, aponta para que ele não deixou de contemplar uma forma de «separação de poderes» horizontalmente estruturada e que se concretiza, por entre o mais, nos princípios da tipicidade enunciativa dos órgãos de soberania e da reserva constitucional no que à sua formação, composição e competência tange (cf. artigo 113.º e notas a este preceito efectuadas por Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3. ed., pp. 492 a 495).
Poderá também dizer-se que o princípio da «separação de poderes» estruturado na Constituição pela forma a que já se fez alusão, não deixa, ele mesmo, de, pelo menos, pressupor uma determinada postura ou caracterização face à teoria dos poderes materiais do Estado, pois que não deixa a lei fundamental de referir-se a funções legislativas, de fiscalização, jurisdicionais e administrativas (note-se, porém, que em passo algum se reporta ela às «funções executivas»).
Neste circunstancialismo, poder-se-ia, à primeira vista, ser levado a pensar (como, tudo o indica, se fez na Comissão Constitucional, no seu parecer 16/79, tirado por maioria e publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, 8.º vol., pp. 205 a 226, ideia retomada no parecer 26/79, idem, 9.º, vol., pp. 131 a 144) que, tendo em conta que a ideia da divisão de poderes «foi, é, e por certo continuará a ser um dos essentialia do conceito de Estado de direito democrático e a sua violação sinal de tentativa ilegítima de reabilitação do princípio da concentração de poderes» (palavras desse mesmo parecer), ocorreria inconstitucionalidade, por ofensa do n.º 1 do artigo 114.º, sempre que um órgão de soberania se atribuísse competência para o exercício de funções essencialmente cometidas a outro órgão, fora dos casos em que a Constituição o permitisse de modo expresso.
1.2 - Todavia, mesmo para quem não perfilhe o entendimento segundo o qual o miticismo do princípio da «separação de poderes» já não é hodiernamente de considerar, ao menos em toda a sua plenitude e com as consequências que o parecer 16/79 daí retirou (cf. voto de vencido aposto no mencionado parecer), não se pode deixar de reconhecer que uma posição porventura extrema como aquela não parece ter em devida conta que, de um lado, a nossa Constituição comete ao Parlamento e ao Governo o exercício da função política (e, concorrentemente, legislativa, afora os casos de reserva legislativa parlamentar absoluta - artigos 164.º e 165.º - e de reserva legislativa governamental - n.º 2 do artigo 202.º, porquanto a legislação é, sem dúvida, instrumento da função política) e, de outro, que não parcas vezes se depara a prática de actos de índole administrativa sob a forma de lei (não se podem, nesses casos, abarcar, como evidente é, os actos legislativos referentes a direitos, liberdades e garantias, tendo presente o que se comanda no n.º 3 do artigo 18º.; cf., sobre o ponto, Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, pp. 97 e segs., porventura perfilhando já um ponto de vista diferente do que exprimiu na edição de 1984 da Ciência Política.] Atente-se até que, para a lei fundamental, e porque esta consagra, ao fim e ao resto, um Estado de direito democrático que também é um Estado social, o conceito de «lei» arranca, pelo menos segundo alguns autores, não de um conceito doutrinário ancorado nas suas características de generalidade e abstracção, mas sim de uma caracterização como acto jurídico-político, sujeito a determinado procedimento e revestindo uma dada forma [cf. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, I.º vol., 1982, Nuno Piçarra, «A separação dos poderes na Constituição de 1976. Alguns aspectos», in Nos Dez Anos da Constituição, 1986, p. 167, e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5. ed., p. 836; em contrário, Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, 1983, pp. 603 e segs., e Bernardo Ayala, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, 1995, pp. 45 e segs.].
Sublinha Nuno Piçarra (A Separação), citada., p. 168, que, impondo o Estado democrático-social de direito, porque interventor e conformador, a «tomada de medidas concretas sem mediação normativa geral e abstracta, que pela sua impregnação por critérios políticos e até pela sua importância para os destinatários e para a sociedade em geral», há-de ela ser da autoria do legislador democraticamente legitimado por esse Estado e, porque é o Parlamento e não a Administração Pública o órgão constitucionalmente escolhido para aquela tomada, «então, sempre que não estiver em posição de regular os termos gerais e abstractos de questões que, por natureza, se não deixam regular nesses termos, há-de o legislador intervir mediante actos sem conteúdo geral e abstracto, no respeito pelos princípios constitucionais relevantes para a disciplina dessas questões», o que - continua o autor - «acarreta a progressiva perda de sentido da contraposição da lei clássica ou jurídica à lei-medida ou lei providência», caracterizando-se hoje a lei pela sua «dimensão primordial e irredutivelmente política, decorrente de critérios políticos e de ponderações de interesse geral que a impregnam».
1.3 - Seja qual for a óptica que, neste campo, se perfilhe, a «separação de poderes» tem, assim (e sempre tendo como parâmetro a Constituição que rege o Estado), no caso português, de ser visualizada de modo a se apurar qual a forma como são optimizadas as funções do Estado ou, como esclarece Nuno Piçarra (ibidem, p. 172), qual «o princípio de adequação de cada função estadual à estrutura, legitimação, procedimento e responsabilidade do órgão a que for atribuída», deste modo se desembocando na questão de saber qual - se o houver - o núcleo essencial da competência exclusiva do Governo, atentas as disposições ínsitas nos artigos 165.º, alínea a), 185.º, 200.º, n.º 1, alínea j), e 202.º, alíneas c), d) e g), ou, vistas as coisas de um outro ângulo, se pode o Parlamento - e até que ponto - interferir legislativamente, assim as controlando, em actividades de regulamentação necessárias à boa execução das leis, de direcção de serviços e de administração directa do Estado ou superintendência na administração indirecta e exercício de tutela sobre a administração autónoma, e na prática dos actos e tomada de providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas (Afonso Queiró, inclusivamente - cf. «A função administrativa», publicada na Revista de Direito e Estudos Sociais, 1977, pp.
45 e segs., parece defender que, atendendo à preeminência e preexistência de lei a que se deve sujeitar a função administrativa, existe, por banda da Administração Pública, uma «reserva de administração» mesmo perante o Governo; cf., sobre a definição de «reserva de administração», Gomes Canotilho, Direito Constitucional, citado, p. 803, e 6. ed., p. 810, e Bernardo Ayala, citado, p. 39, - que, quanto ao modo de dar resposta à questão de saber se num concreto Estado se deve ou não falar de «reserva de administração», se não aparta substancialmente de Nuno Piçarra; quanto a este último autor, além da obra citada neste parágrafo, v. também «A reserva de Administração», separata da revista O Direito, ano 122., pp. 17 e segs.).
Ou, e ainda dito de outro modo, se deve haver por parte do Parlamento um mero controlo político ou jurídico-político da Administração (aqui se incluindo, como resulta claro, o Governo-Administração) exercido tão-só de harmonia com os critérios de controlo político posterior, ou se pode haver «substituição» dela pelo órgão parlamentar, dessa arte tomando as medidas que, objectivamente e sem concretização específica fundada num determinado modelo constitucional, em princípio, deveriam ser prosseguidas pela mesma Administração.
1.4 - Não quero com isto dizer que vou ao ponto, neste particular, de defender que esteja vedado à Assembleia da República, uma vez que não rejeita o Programa do Governo, tomar medidas que se incluam numa daquelas actividades que a Constituição comete ao Governo o «cometimento» aqui referido não tem o significado de uma atribuição exclusiva fundada no princípio estruturante da «divisão de poderes»). E não vou, justamente pela razão, já acima aflorada (cf. supra n.º 1.3), ao que até adito que o diploma fundamental não deixa, na elencação da competência política e legislativa da Assembleia da República, de lhe conferir o desempenho de «demais funções» que lhe sejam atribuídas por ele e «pela lei» (cf. o já citado voto de vencido no parecer 16/79).
Tenho para mim - e, por isso, neste passo não me afasto do que é dito no acórdão - que não é de deixar passar em claro que a Constituição não fornece critérios dos quais seja possível liquidamente extrair o que deva considerar-se como uma actividade administrativa e, o que é mais e ora releva primordialmente, se existe uma «reserva de administração», (e, logo, qual o seu conteúdo essencial; cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 775, que referem expressamente que «a Constituição deixa em aberto saber se a ordenação de funções por ela estabelecida tem subjacente uma teoria material de funções do Estado»; cf., ainda, p. 780, cf., também, G. Canotilho, Direito Constitucional, citado, 5. ed., para o qual, perante aquilo que a Administração hoje prossegue - uma multiplicidade e heterogeneidade de actividades - torna-se impossível a caracterização precisa do que constitua o núcleo essencial da «reserva de administração», sendo certo que já é descortinável, face às suas disposições, extrair que a mesma prevê as designadas «reserva de parlamento» e «reserva de juiz» (a contrario, reconhecendo embora não haver na Constituição uma expressa e específica menção de «reserva de administração», esta decorre de determinados fundamentos constitucionais, Bernardo Ayala, ob. cit., pp. 51 e segs.).
Nem se diga, neste particular, aliás como não faz o aresto a que esta declaração se encontra apendiculada, que o estatuído no n.º 2 do artigo 202.º encerra e fornece um critério determinativo da «reserva de administração», pois que o que aí se consagra é, precisamente, uma «reserva governamental de legislação», problema a que deve ser estranha a questão de que nos ocupamos (cf. o que, a propósito, é referido no Acórdão deste Tribunal n.º 461/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 15 de Janeiro de 1988).
1.5 - Perante o imediatamente acima exposto e, primacialmente, à míngua de qualquer critério directa ou indirectamente extraível da Constituição de onde resulte a consagração - também directa ou indirecta - de uma «reserva de administração», não afasto liminarmente a tese segundo a qual a lei fundamental não optou por essa consagração como um dos seus princípios estruturantes (cf. a posição contrária de Marcelo Rebelo de Sousa aquando da elaboração do estudo «10 questões sobre a Constituição, o Orçamento e o Plano», em Nos Dez Anos da Constituição, pp. 139 e segs.), ou, o mesmo é dizer, não repudio desde logo a doutrina da defesa da não existência de uma «reserva absoluta de administração», designadamente fundada no princípio da «separação de poderes», por via da qual seria vedado ao legislador parlamentar agir nessa qualidade, interferindo, quer no balizar concreto e específico da independência dos meios de actuação adequados à prossecução dos fins que a actividade administrativa visa prosseguir, quer por uma demasiadamente acentuada ou densificada regulamentação normativa.
Essa não rejeição, como é bom de ver, atentos os fundamentos que a ela podem conduzir, não tem, na minha óptica, de ter, como ponto de partida, o acolhimento de uma posição doutrinária (como, v. g. a defendida por Norbert Arhterberg - veja-se a sua obra Verwaltungsrecht, 1986, pp. 351 e 352) que parte de uma concepção político-constitucional de primazia parlamentar, por efeito da sua directa representação popular, que desaguará, dado que a função administrativa se há-de subordinar à lei, na consideração de que, em última análise, os demais «poderes» (recte, as demais funções), máxime os regulamentares e os administrativos, mais não são do que «delegações» do «poderes» (função) legislativo(a) (e, indo mais além, com a consequência de ser, por isso, permitida a «avocação»).
Nessa postura, não deixarei de referir que, porque há quem perfilhe o entendimento de que, muito embora não seja de acolher a tese da «reserva absoluta de administração» (e no caso presente interessa-nos a vertente de uma «reserva de execução», não enquanto tradução de margem de livre decisão quanto aos actos administrativos, mas enquanto o prosseguimento de regulamentação legislativa, a fim de se obter a sua boa execução), ainda se podiam descortinar casos de «reservas específicas de administração» - impor-se-ia enfrentar a subquestão consistente em saber se, mesmo assim, se não depararia, in casu, uma das situações que, em abstracto, seria possível incluir numa dessas «reservas específicas».
Para quem essa postura defende, porque a Constituição consagra específicas normas de competência, designadamente ao Governo [e não interessam agora as ligadas à sua função política e legislativa, devendo, em primeira linha, focar-se a competência deferida pela alínea b) do artigo 202.º], consagrando, por outro lado, competência de controlo ao Parlamento, seriam das mesmas que se haveriam de recolher indicações sobre pontos especiais de «reserva de administração». E, na sequência - diz quem isso sustenta -, impondo lei fundamental que compete ao Governo, no exercício de funções administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis, se o «poder legislativo» tiver aprovado uma lei geral, não poderá ele, sem mais, nomeadamente em lei posterior, vir a executá-la através da edição de normas regulamentares, sob pena de ferir a distribuição de competências conferida pela Constituição.
De idêntico modo - diz-se -, as competências deferidas pelas alíneas d) e f) do mesmo artigo 202.º vão, constitucionalmente, vedar a prática, por banda do «poder legislativo», de actos concretos, de um lado, por exemplo, de direcção dos serviços e da actividade da administração directa do Estado ou de tutela sobre a administração autónoma e, de outro, de execução ou aplicação da lei estatuidora das bases e do âmbito da função pública, lei essa, aliás, cuja edição está, no diploma básico, reservada a um concreto órgão legislativo (situações elencadas por Nuno Piçarra, A Reserva da Administração, citada, pp. 35 e segs.).
1.6 - Um outro deferimento, finalmente, se não deverá também ocultar. É ele (note-se que, em direitas contas, o mesmo não é substancialmente divergente ou afastado daquele que ficou expresso no antecedente número), o que repousa na consideração de que, não se aceitando a consagração constitucional do princípio de «reserva absoluta da administração» (alicerçada, essencialmente, no princípio da «separação de poderes») - e mesmo para quem uma tese de admissibilidade de «reservas específicas» ou de «reservas especiais» não representa algo imune a críticas e, o que é mais, não leva a que o órgão (ou os órgãos) legislativo(s) se vejam impedidos de «predefinir ou predeterminar o exercício daqueles poderes administrativos» (palavras de Nuno Piçarra, idem, p. 39) - sempre subsistiria a necessidade de ponderação quanto aos casos em que uma lei, ao prescrever para um determinado regime administrativo, confiou ao «Executivo» o encargo de a regulamentar e executar em concreto.
Ora, nessas situações (voltamos a citar aquele autor), «o legislador não poderá substituir-se ao Governo sem pelo menos revogar implicitamente a norma de competência contida na lei», acrescentando que um argumento de harmonia com o qual «o legislador estará então apenas a derrogar singularmente a lei que fez, para o que tem toda a legitimidade, é partir de uma `omnipotência legislativa' pouco compatível com o Estado de direito e a separação de poderes» (afinal, o autor que vem sendo transcrito não deixa, todavia, de expressar o reconhecimento de que, tratando-se de uma reserva relativa de execução, por determinação da Constituição, a circunstância de o também ser por força da lei não a torna absoluta).
1.7 - É esta a posição que perfilho, pois que é ela que, na minha perspectiva, é a mais consonante com os «princípios da separação e a interdependência dos órgãos de soberania» e do «Estado de direito democrático», sob pena de, defendendo-se o que se defende no acórdão, ao menos o primeiro daqueles princípios, na prática, se revelar, no meu modo de ver, quase vazio de conteúdo, ao que acresce que posição contrária vai dar inequivocamente ao órgão parlamentar - e isto num regime republicano como o português, cuja caracterização não pode, creio, ser assente num estrito parlamentarismo - uma mais do que prevalência meramente política sobre o outro órgão de soberania também dotado de poderes legislativos e sobre o qual recai, em princípio, a feitura da regulamentação necessária à boa execução das leis.
Neste posicionamento, e procedendo à análise do decreto sub specie, fui levado a concluir que o mesmo não veio, expressa ou implicitamente, a prescrever a revogação da competência de regulamentação que, ex ante e legislativamente, se encontrava atribuída ao Governo, antes interferindo, com uma alteração pontual, naquela competência já deferida.
1.8 - De facto, o ingresso nos estabelecimentos de ensino superior público (e é este que agora releva) está, legislativamente, sujeito a um regime que, de entre o mais, se vê condicionado pela fixação anual de determinado número de vagas (fixação que se opera, consoante os casos, por portaria do Ministro da Educação ou por portaria conjunta dos ministros da tutela), cujo preenchimento é feito por concurso nacional, a regulamentar por portaria daquele Ministro.
Efectivamente, por intermédio do Decreto-Lei 28-B/96, de 4 de Abril, emitido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, estabeleceu-se um regime de acesso ao enisno superior público, particular e cooperativo para a frequência de cursos de bacharelato e de licenciatura (cf. seus artigos 1.º e 2.º), cujo ingresso, em cada par estabelecimento/curso, ficou sujeito a limitações quantitativas decorrentes do número de vagas anualmente fixadas.
De acordo com aquele diploma, tais vagas, se reportadas aos cursos ministrados pelas instituições de ensino superior público universitário tuteladas exclusivamente pelo Ministério da Educação, são fixadas pelos órgãos de cada instituição legal ou estatutariamente competentes, podendo o Ministro daquela pasta determinar a sua mera divulgação ou fixá-las após um processo de aprovação com alterações, se entender que tal se justifica, tendo em vista a adequação à política educativa (artigo 5.º). Já no que respeita às outras instituições (de ensino superior público não universitário tuteladas exclusivamente pelo Ministério da Educação, de ensino superior público sujeito a dupla tutela e de ensino superior particular e cooperativo), as vagas são fixadas, nos primeiros e últimos casos, por portaria do Ministro da Educação e, no segundo, por portaria conjunta dos ministros da tutela (cf. artigo 6.º, n.º 1).
O regime de acesso ao ensino superior estabelecido no Decreto-Lei 28-B/96, que o respectivo preâmbulo apelida de transitório e logo aplicável à candidatura para o ano de 1996, assentou «exclusivamente em resultados obtidos no ensino secundário» (palavras daquele preâmbulo), sendo as até aí designadas «provas específicas» substituídas por «exames nacionais do ensino secundário» em «matérias específicas escolhidas pelos estabelecimentos de ensino superior» (do mesmo preâmbulo), com uma ou duas (ainda que fixadas sob a forma de elencos alternativos) disciplinas para cada par estabelecimento/curso (cf. artigo 11.º, n.º 1 e 2), cujo elenco é fixado por portaria do Ministro da Educação (cf. artigo 10.º).
Caso os concorrentes se candidatem sendo titulares de um curso de ensino secundário em cujo âmbito se efectuem exames nacionais, os exames das disciplinas específicas serão realizados, obrigatoriamente, no ano da candidatura, de entre os exames nacionais daquele curso (cf. artigos 12.º, n.º 1, e 13.); já os concorrentes que, sendo titulares de um curso de ensino secundário em cujo âmbito não se efectuem exames nacionais (ou titulares de uma equivalência aos cursos secundários), terão de realizar os exames das disciplinas específicas de entre os exames nacionais de qualquer curso de ensino secundário constantes do elenco fixado por portaria do Ministro da Educação (cf. artigo 12.º, n.º 2).
Tocantemente aos cursos ministrados pelos estabelecimentos de ensino superior público exclusivamente tutelados pelo Ministério da Educação ou sujeitos a dupla tutela (para cujo acesso se não exijam aptidões vocacionais específicas ou não estando em causa cursos de formação militar ou policial ministrados por aqueles últimos estabelecimentos), as respectivas vagas são objecto de concurso nacional, cuja regulamentação é fixada por portaria do Ministro da Educação (cf. artigos 21.º e 23.º), não podendo os candidatos aos mesmos apresentarem-se aos concursos especiais destinados a candidatos em situações habilitacionais específicas (estes regulados por portaria do Ministro da Educação), requerer o ingresso em regimes especiais de acesso (fixados também por portaria daquele Ministro), ou requererem o reingresso, mudança de curso ou transferência (cf. artigos 22.º e 41.º a 46.º).
Os candidatos aos concursos nacionais haverão de indicar, por ordem decrescente de preferência, um número máximo de seis pares estabelecimento/curso de ensino superior que pretendam frequentar (cf. artigo 24.º), sendo a seriação deles, relativamente a cada par, obtida através da nota de candidatura (cf. artigo 26.º), a qual resulta de uma classificação de 0 a 200 calculada de harmonia com determinada fórmula e critérios (cf. artigos 27.º e 28.º e, também, quanto à seriação, em caso de empate, o artigo 33.º).
Em 4 de Julho de 1996 foi editada, pelo Ministro da Educação, a Portaria 241/96, por meio da qual foi aprovado o Regulamento do Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior Público para a Matrícula e Inscrição no Ano Lectivo de 1996-1997.Respiga-se de entre o que consta desse Regulamento que o concurso nacional (válido apenas para o ano em que se realiza) se organizará em duas fases, sendo as vagas para a 2.ª fase (e só estas poderiam ser ocupadas em tal fase) constituídas pelas sobrantes da 1.ª fase, pelas sobrantes dos concursos especiais, pelas ocupadas na 1.ª fase mas não concretizadas pelas matrícula e inscrição, e pelas libertadas na sequência da recolocação de candidatos colocados na 1.ª fase e que não obtiveram colocação na sua primeira opção, tendo apenas concorrido às opções anteriores àquela em que obtiveram colocação, desde que o par estabelecimento/curso a que respeitam tenha vagas a concurso na 2.ª fase.
A essa 2.ª fase podem apresentar-se os candidatos não colocados na 1.ª fase, os que, embora reunindo condições de candidatura no prazo de apresentação das candidaturas da 1.ª fase, a não apresentaram, os estudantes que só reuniram as condições de candidatura após o fim do prazo de apresentação das candidaturas da 1.ª fase e os estudantes que, colocados na 1.ª fase, não obtiveram colocação na sua 1.ª opção e apenas concorreram às opções anteriores àquela em que obtiveram colocação.
Se os estabelecimentos de ensino superior, após a 2.ª fase, ainda dispuserem de vagas (em moldes idênticos às que sobraram da 1.ª para a 2.ª fases), poderão decidir realizar uma 3.ª fase, indicando os pares estabelecimentos/cursos cujas vagas são colocadas a concurso e fixando os prazos em que decorre a candidatura, a afixação dos resultados e a matrícula, a essas vagas se podendo candidatar os estudantes que se encontrarem em condições semelhantes às que se encontram estabelecidas para os concorrentes às vagas abertas para a 2.ª fase.
De acordo com o artigo 41.º do Regulamento, quando, por erro não imputável directa ou indirectamente ao candidato, não tenha havido colocação, ou tenha havido erro na colocação, é ele colocado no curso e estabelecimento em que teria sido colocado na ausência do erro, mesmo que para esse fim seja necessário criar uma vaga adicional, podendo a rectificação ser accionada pelo candidato ou por iniciativa de um estabelecimento de ensino superior ou do Departamento do Ensino Superior.
Os prazos para as diversas acções concernentes às candidaturas ficaram estabelecidos no anexo I do Regulamento (a apresentação de candidaturas da 1.ª fase ocorreria em Julho e em Agosto, e a respeitante à 2.ª fase em Setembro), cujo item 1 veio a sofrer alteração por intermédio da Portaria 254-A/96, de 13 de Julho.
Pela Portaria 254/96, de 13 de Julho, foi fixado, para o ano lectivo de 1996-1997, o número de pares estabelecimento/curso abrangidos pelo concurso nacional de acesso ao ensino superior público e referente aos estabelecimentos tutelados pelo Ministério da Educação ou sujeitos a dupla tutela (com excepção dos cursos de formação militar ou policial nos termos já acima indicados) e, bem assim, o número de vagas para cada um daqueles pares.
1.9 - Ora, de harmonia com o que se dispõe nos artigos 1.º a 4.º do decreto, veio-se a consagrar um diverso sistema relativamente a quem se apresentou à 2.ª fase do concurso nacional, no ponto em que, em execução desse sistema, os candidatos terão de ser colocados em vagas que, de acordo com o Regulamento, não eram previstas ser colocadas a concurso nessa fase.
Significa isto que, perante o conteúdo daquelas disposições, relativamente ao «direito» de ocupação de vagas por banda dos candidatos que se apresentassem à 2.ª fase, o mesmo, no fundo, veio a ser «alterado» tão-somente no ponto em se intentou que os mesmos pudessem ocupar, para além das vagas sobrantes já destinadas a essa fase pela regulamentação vigente, outras vagas, criadas ad hoc (vagas adicionais).
Houve, desta sorte, no meu entender, a introdução de uma pontual alteração a uma dada regulamentação de legislação preexistente que, nos termos dessa mesma legislação, estava cometida ao Governo e sem que, minimamente que fosse, quer de modo expresso, quer de modo implícito (contrariamente à ideia que deflui do acórdão), se tivesse revogado aquele cometimento, ou seja, se tivesse retirado ao Governo a competência para proceder à execução regulamentativa do concurso nacional de acesso ao ensino superior público ou, no mínimo, retirar essa competência (e a aceitar-se ser isso possível) quanto a uma específica parte dessa regulamentação (precisamente a que concerne à indicação abstracta das vagas que são colocadas a concurso na 2.ª fase).
A regulamentação do concurso quanto à 1.ª fase ficou exactamente na mesma, competindo e continuando a competir ao Governo a sua definição e execução. E, quanto à 2.ª fase, igualmente tudo se manteve nos mesmos termos, excepção feita à, pelo decreto, pretendida colocação dos candidatos que a ela se apresentaram e obtiveram notação superior ao último dos candidatos da 1.ª fase colocados num dado par curso/estabelecimento, para os quais haveriam, por acção do próprio Governo, de ser criadas vagas específicas.
Essa actuação parlamentar, constante do que se desejou normatizar por intermédio dos artigos 1.º a 4.º do decreto, representou, pois, na minha óptica, uma imoderada actuação da Assembleia da República violadora do artigo 114.º, n.º 1, em conjunção com a alínea c) do artigo 202.º, um e outro da Constituição, pois que, de todo o modo, não se pretendeu retirar ao Governo qualquer anterior competência regulamentar que já detinha e lhe foi cometida pelo Parlamento.
Constituindo as demais disposições do decreto meras decorrências daqueles artigos, cuja subsistência nunca se justificaria sem os normativos constantes desses mesmos artigos, o vício de desconformidade constitucional que descortino em relação aos seus artigos 1.º a 4.º haveria de acarretar a desconformidade consequente daquelas demais disposições.
2 - Quanto à questão da eventual inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, do artigo 1.º do decreto. - Não tendo procedido, segundo a maioria subscritora do acórdão, a opinião que nesta declaração sustento e que defendi no memorando que elaborei, veio neste aresto a concluir-se no sentido de que se vislumbrava na norma do artigo 1.º do decreto ofensa do princípio da igualdade. E, assim, num primeiro passo, foi entendido que, uma vez que todos os candidatos puderam, em princípio, ser opositores à 2.ª fase do concurso, e tendo em atenção que no regime desejado instituir pelo decreto o «direito» ao ingresso no ensino superior nas vagas adicionais a serem criadas para o efeito sempre estava, em cada par curso/estabelecimento, condicionado à obtenção de nota superior à detida pelo último dos candidatos colocados no mesmo par curso/estabelecimento na 1.ª fase, nem sequer se colocaria um problema de manifesto privilégio dos candidatos à 2.ª fase, não fora a circunstância de aqui ocorrer uma situação de retroactividade inautêntica ou de retrospectividade.
Concordo com a primeira parte de um tal entendimento, sendo que, todavia, já não anuo o que a situação de retrospectividade venha, neste particular, a alterar os dados da questão.
De facto, tenho para mim que a partir do momento em que se concedeu a «abertura» da possibilidade de todos os candidatos poderem concorrer à 2.ª fase, mesmo em relação àqueles que, concorrendo à 1.ª fase, se não viram colocados na sua 1.ª opção - «abertura» essa que, tendo em consideração o sistema instituído, poderia permitir (v. g., no caso de uma vaga atribuída na 1.ª fase não vir efectivamente a ser ocupada pelo candidato a quem ela foi atribuída) uma eventual colocação, nessa 2.ª fase num lugar de 1.ª opção -, e isto com base na prevalência do mérito, não se poderá falar numa solução que surpreendeu os candidatos da 1.ª fase em face de uma mudança superveniente das regras existentes.
No meu entendimento [e agora somente colocado numa situação em que se não ponha a questão de ofensa das disposições combinadas dos artigos 114º.
e 202.º, alínea c), da Constituição], bem vistas as coisas, o regime pretendido implementar pelo decreto não veio a «tocar» nos candidatos já colocados na 1.ª fase e que com essa colocação se satisfizeram (pois que, ainda que não traduzindo a sua 1.ª opção, não tentaram uma melhoria da nota apresentando-se aos exames finais nacionais da 2.ª época), colocação essa que decorreu de harmonia com as regras que se encontravam em vigor. O decreto intentou, isso sim, consagrar um favorecimento relativamente àqueles que, apresentando-se às provas dos exames finais nacionais ocorridas em Junho/Julho, foram «vítimas» das «vicissitudes» devidas a erros de concepção e execução de algumas provas e em alguns estabelecimentos de ensino, e de distorção nas avaliações, «vicissitudes» que, como é notório, tiveram acentuada repercussão da opinião pública e levaram, inclusivamente, a Comissão Permanente da Assembleia da República a tomar as deliberações n.º 18-CP/97 e 21-CP/96 (publicadas no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de, respectivamente, 3 de Agosto e 20 de Setembro de 1996).
Não se posta, pois, na minha perspectiva, qualquer discriminação negativa relativamente a quem foi colocado na 1.ª fase do concurso e, pelo que concerne ao favorecimento dos candidatos à 2.ª fase, é ele razoavelmente justificado.
Efectivamente, não se pode olvidar que quem realizou provas que apresentaram erros de concepção, de realização prática das mesmas em alguns estabelecimentos, e de distorções na avaliação, não pôde, à partida, obter notação tão elevada como aqueles que realizaram provas semelhantes, mas que não padeciam daqueles erros ou não foram alvo das ditas distorções.
Como essa notação é um dos factores, com suficiente peso, para a classificação do concurso nacional a que há-de obedecer a seriação dos candidatos, torna-se para mim claro que a situação daqueles primeiros candidatos que se submeteram a provas eivadas de erros de concepção e realização ou que foram alvo de distorções de avaliação não é, nem pode ser, considerada igual ou semelhante às dos que desses erros não foram «vítimas».
E não sendo iguais as situações, um tratamento de favor concedido a eles como o pretendido consagrar pelo decreto não pode, na minha óptica, considerar-se injustificado, irrazoável, inadequado ou arbitrário, não vendo, por consequência, como se possa falar «numa efectiva diminuição das possibilidades de acesso ao ensino superior por parte daqueles que, segundo as suas expectativas razoáveis, não teriam nada a ganhar com a candidatura à 2.ª fase».
Não houve, para mim, qualquer prejuízo para os candidatos que obtiveram colocação na 1.ª fase, quer relativamente aos que não foram «vítimas» das aludidas «vicissitudes», quer relativamente aos que foram colocados em lugar que não foi a sua 1.ª opção, mas que, contentando-se com ela, não tentaram obter melhoria de nota apresentando-se aos exames finais nacionais que ocorreram na 2.ª fase.
3 - No respeitante à questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 1.º do decreto por violação do princípio da confiança decorrente do princípio do Estado de direito democrático. - O presente acórdão, quanto à questão da eventual violação do princípio da confiança, deslocou-a para a dimensão da segurança jurídica, na qual, nas suas palavras, «não tem qualquer cabimento a objecção de que não terá de se verificar qualquer tutela da confiança, porque já se prefigurava a alteração legislativa antes da realização dos exames da segunda época, em virtude das recomendações feitas ao Governo pela Assembleia da República».
Não pretendo discutir (o que não significa aceitar, sem mais) se, numa dada situação, a tutela da segurança jurídica não imporá, para que a respectiva violação vá implicar o vício de inconstitucionalidade, que as expectativas na não alteração de um determinado quadro legal sejam fundadas e que, dessa arte, as alterações introduzidas no ordenamento jurídico hajam de ser inesperadas no sentido de, razoavelmente, não poderem os cidadãos com as mesmas contar, ao menos na vertente de deixarem intocadas determinadas situações jurídicas já consolidadas no domínio da regulamentação anterior.
Mas, mesmo aceitando essa posição, creio que o desiderato que presidiu à elaboração das normas ora em apreço teve suficiente justificação.
É que, ainda para quem convenha que com a normação sub iudicio houve, tocantemente aos candidatos que foram colocados na 1.ª fase, uma alteração retroactiva das regras jurídicas do concurso que essa fase iluminaram ou, ao menos, uma retrospectividade definitivamente influenciadora de situações com que se contava em prisma de normalidade assente na não modificação de um regime preexistente, não se poderá, no meu entender, deixar de fazer aqui uma ponderação de valores entre a «cega» manutenção daquelas regras e aquela outra manutenção de uma situação de flagrante «injustiça» por que passaram os candidatos que, na 1.ª fase, foram «vítimas» das «vicissitudes» a que acima aludi.
Perante esta dualidade, e ainda que pensasse de modo similar aos que se encarreiram no sentido de que houve uma alteração retroactiva das regras anteriores que teve repercussão nos candidatos já colocados na 1.ª fase do concurso e que não desejaram obter melhoria de nota apresentando-se à 2.ª fase dos exames finais nacionais, não deixaria de efectuar uma ponderação de valores entre uma e outra situação, ponderação essa que me levaria a sustentar que a mencionada alteração não teve, confrontadamente com a reparação de injustiça que se quis implementar, uma «carga» negativa de tal sorte acentuada que fosse susceptível de ser fulminada com esteio na violação de segurança jurídica.
Na realidade, a intentada criação de vagas adicionais, num número estimado de 1788, reportadamente às vagas ocupadas na 1.ª fase, que atingiram o número 32 873, não pode, no meu modo de ver, dar uma perspectiva de criação de uma nova situação acentuadamente negativa para aqueles candidatos, relativamente ao concurso e fase a que se submeteram e em que foram colocados, e isso ponderando a desejada tentativa de reparação acima mencionada. - Bravo Serra.
Declaração de voto
1 - Se - tal como se sustenta no precedente acórdão - considero que não pode falar-se, no nosso quadro constitucional, de uma qualquer «reserva geral» da Administração, de contornos «materiais», é, todavia, meu entendimento (como resulta da posição que assumi no Acórdão 461/87, de que fui relator, e, em particular, da declaração de voto que juntei a esse aresto) que o legislador, no uso dos seus amplos «poderes de conformação» (ou da sua «liberdade constitutiva»), não pode ir ao ponto de pôr em causa aquele mínimo de «autonomia» que há-de ser reconhecido ao Governo no exercício da função administrativa que tipicamente lhe cabe (enquanto «órgão superior da Administração Pública»: artigo 185.º da Constituição). Há-de haver aí, na verdade, algum limite «funcional», o qual decorrerá do princípio da «separação e interdependência dos órgãos de soberania» (que outra coisa não é, do meu ponto de vista, que o princípio da divisão dos poderes, consignado no artigo 114.º, n.º 1, também da Constituição).Simplesmente, não creio que no caso se tenha ultrapassado (ou mesmo atingido) tal limite. Em meu juízo (também aqui convergente, de resto, com o do precedente acórdão), do que nele se trata, na verdade, é ainda da emissão de «regras de direito», que consubstanciam uma alteração, de âmbito e efeitos limitados, ao regime jurídico do acesso ao ensino superior no ano lectivo de 1995-1996 - só que, com a particularidade de ocorrer já no decurso da aplicação desse regime, abrangendo, em consequência, um círculo «determinável» de destinatários e revestindo-se inclusivamente, em alguma medida, de eficácia «retroactiva» (ou similar). Quando muito, pois, estaríamos aqui perante uma «lei-medida» (num certo entendimento deste conceito).
Vendo as coisas assim, e tendo em conta também que não ocorre qualquer proibição constitucional genérica de leis desse tipo, votei naturalmente a alínea a) da decisão do acórdão que antecede.
2 - Normas legais, com a peculiar natureza das agora em causa, deverão, porém, ser objecto de um qualificado escrutínio, no tocante à observância de certos princípios constitucionais gerais - que são, decerto, critérios orientadores e limitadores de toda a produção legislativa, mas que assumem, quanto a elas (quanto a essas normas) particular acuidade. Entre tais princípios estarão, nomeadamente, o da segurança jurídica e o da igualdade.
Ora, procedendo a um tal escrutínio, concluiu a maioria do Tribunal que as normas sub judicio violam justamente os princípios acabados de referir, entre si conjugados. Pela minha parte, porém, não acompanho essa conclusão.
Louvo-me a tal respeito - o que me dispensa de mais considerações - na análise da situação tal como feita na declaração de voto do Ex. Conselheiro Vice-Presidente, Luís Nunes de Almeida, declaração que só não acompanho na consequência jurídica que nela se retira, a partir daquela análise, quanto ao princípio da igualdade. Efectivamente, reduzida à dimensão considerada nessa declaração (como também entendo que deve sê-lo) a potencial diferença de tratamento contida nas normas em apreço, penso que a mesma - consistindo tão-só na impossibilidade de aproveitamento, por alguns, de um novo benefício, que não na «eliminação» de uma vantagem, e representando, bem vistas as coisas, não mais do que o «preço» a pagar pela introdução, dentro do pragmaticamente possível, daquele «benefício» - se reveste de um carácter «secundário» e puramente «residual», pelo que não dispõe, a meu ver, de consistência bastante para gerar uma violação (a qual implica sempre um juízo «normativo» e não simplesmente «fáctico») do princípio da igualdade.
Eis porque fiquei vencido quanto à alínea b) e, consequentemente, à alínea c) da decisão; e porque, em conclusão, votei no sentido de o Tribunal não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas submetidas à sua apreciação. - José Manuel Cardoso da Costa.