Acórdão 64/91
Processo 117/91
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I
1 - De harmonia com o disposto nos artigos 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa e 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio o Presidente da República requerer a apreciação preventiva de constitucionalidade de todas as normas do decreto 302/V, da Assembleia da República, referente à «autorização legislativa sobre o regime jurídico do trabalho de menores, das férias, do trabalho em comissão de serviço, do período experimental, da duração do trabalho e da cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador e de salários em atraso», face às dúvidas colocadas sobre a conformidade das mesmas normas com o disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º, na alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º na alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º, no artigo 53.º e no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Tal decreto havia sido remetido para promulgação em 25 de Fevereiro de 1991.
A fundamentação aduzida pelo Presidente da República é a seguinte:
O decreto 302/V, da Assembleia da República, resultou da aprovação da proposta de lei 176/V, a qual, por seu turno, reflecte o resultado de um processo de negociações, em sede do Conselho Permanente de Concertação Social, que conduziu à assinatura, em 19 de Outubro de 1990, do Acordo Económico e Social.
Na exposição de motivos que acompanha a proposta de lei e na intervenção inicial do Ministro do Emprego e da Segurança Social no debate parlamentar existem referências ao consenso obtido entre o Governo e os parceiros sociais subscritores do Acordo no sentido da conveniência da subcomissão da matéria relativa à cessação do trabalho por inadaptação a fiscalização preventiva de constitucionalidade, invocada expressão de uma postura democrática, não só por revelar respeito pelos parceiros sociais que suscitaram dúvidas na matéria, mas também pela segurança susceptível de ser obtida por uma decisão judicial de carácter definitivo. Igualmente os Partidos Socialista e Comunista e a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses - Intersindical Nacional exprimiram publicamente dúvidas de constitucionalidade, solicitando a intervenção do Presidente da República.
Embora discordando «da ideia de atribuir efeitos obrigatórios gerais e definitivos a eventuais decisões negativas do Tribunal Constitucional», o Presidente da República refere ter optado pela apreciação preventiva da constitucionalidade de todas as normas do diploma, «tendo em conta a natureza e a importância das matérias em questão e a necessidade de ser aprofundada a doutrina que emana do Acórdão 107/88 do Tribunal Constitucional».
Começa a entidade requerente por manifestar a dúvida sobre «a correcção do procedimento legislativo que conduziu à aprovação do decreto da Assembleia da República acima identificado», em virtude de não ter sido submetido a apreciação pública prévia, nos termos dos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, não obstante se tratar de legislação do trabalho e de se poder entender que o disposto naquelas normas constitucionais é aplicável mesmo ao caso de propostas de lei de autorização legislativa.
Considerando já o conteúdo do diploma, entende o Presidente da República que podem suscitar-se dúvidas quanto à constitucionalidade da parte final da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º, visto aí se prever a admissibilidade de renúncia a uma parte de um direito irrenunciável [o direito a férias, contemplado na alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição]. É que em caso de encerramento total ou parcial das empresas ou estabelecimentos por tempo inferior ao tempo de férias a que o trabalhador tenha direito, é conferida a este a possibilidade de optar por gozar as férias do período excedente ao do encerramento ou, então, por receber a retribuição e o subsídio de férias correspondentes à diferença, desde que assegurado o gozo efectivo de 15 dias úteis de férias.
No que toca à alínea f) do n.º 2 do artigo 2.º, as dúvidas de constitucionalidade referem-se à permissão concedida à entidade empregadora de, unilateralmente, determinar a antecipação do gozo de férias pelo trabalhador para momento imediatamente anterior à data prevista para a cessação do contrato, nos casos em que esteja sujeita tal cessação a aviso prévio. Tal decisão unilateral do empregador é contrária às legítimas expectativas do trabalhador, podendo levar à inutilização ou frustração do direito a férias, «entendido como direito a um período mínimo de interrupção do quotidiano da vida e do trabalho, segundo um programa pessoal ou familiarmente estabelecido com um mínimo de antecedência». Põe-se, assim, a dúvida sobre a eventual violação do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
A parte final do segundo parágrafo da alínea d) do n.º 3 do artigo 2.º estabelece um regime legal mínimo embora supletivo, relativamente a algumas matérias atinentes à prestação de trabalho em comissão de serviço. Essa norma possibilita que o trabalhador veja extinto o próprio contrato de trabalho com a cessação da comissão de serviço, circunstância que autoriza dúvidas sobre o acatamento do princípio da proibição da cessação do contrato de trabalho sem justa causa: o «consentimento prévio pelo trabalhor da possibilidade de despedimento por mero efeito de cessação da comissão de serviço pode constituir disposição de direitos irrenunciáveis do trabalhador e a sua convenção pelas partes pode constituir a derrogação de normas inderrogáveis, parecendo violar-se o disposto no artigo 53.º da Constituição - que garante a segurança no emprego».
A alínea a) do n.º 4 do artigo 2.º (norma que possibilita a existência de períodos experimentais diferenciados em função da dimensão das empresas) é susceptível de padecer de inconstitucionalidade, por ofensa do princípio de igualdade, do artigo 18.º, n.º 2, e do artigo 53.º da lei fundamental.
Finalmente, o Presidente da República suscita dúvidas sobre a constitucionalidade das normas das alíneas a) e c) do n.º 6 do artigo 2.º, as quais enunciam genericamente as medidas a adoptar relativamente à cessação do contrato por inadaptação do trabalhador. Tais normas poderão, por falta ou insuficiência do princípio da tipicidade, não respeitar o princípio da proibição do excesso e atentar contra a garantia da segurança do emprego, violando eventualmente o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 53.º da Constituição.
2 - Em obediência ao disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, foi notificado o Presidente da Assembleia da República para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade. Na sua resposta, limitou-se a oferecer o merecimento dos autos, juntando exemplares do Diário da Assembleia da República relativos à discussão e aprovação da proposta de lei 176/V.
3 - Concluída a análise do memorando apresentado, ocorreu mudança de relator.
II
4 - Preliminarmente, importa abordar algumas questões que condicionam, total ou parcialmente, o conhecimento das dúvidas de constitucionalidade suscitadas no pedido do Presidente da República.
5 - Deverá começar por sublinhar-se que a entidade requerente afirma, de forma expressa e inequívoca, que solicita a fiscalização preventiva de constitucionalidade de «todas as normas do decreto da Assembleia da República n.º 302/V» (fl. 2), afirmação que é repetida duas vezes (a fl. 3 e na conclusão do requerimento a fl. 6). Há, assim, que precisar o objecto do processo.
Verifica-se, porém, que, além das «dúvidas sobre a correcção do procedimento legislativo que conduziu à aprovação do decreto da Assembleia da República» [dúvidas que resultam de não ter sido sujeita a apreciação pública prévia a proposta de diploma, de harmonia com o disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição], o Presidente da República põe em causa, apenas, seis normas do articulado [artigo 2.º, n.º 2, alínea c), parte final; alínea f) do n.º 2 do mesmo artigo; parte final do segundo parágrafo da alínea d) do n.º 3 do artigo 2.º; alínea a) do n.º 4 do mesmo artigo, e, por último, alíneas a) e c) do n.º 6 do artigo em causa].
Por outro lado, analisando o conteúdo do decreto, alcança-se que o diploma contém três artigos. No artigo 1.º concede-se autorização ao Governo para «legislar em matéria de trabalho de menores, trabalho em regime de comissão de serviço, período experimental, duração e organização do tempo de trabalho, de cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador e de salários em atraso», podendo revogar, em consequência, normas de seis diplomas legais aí identificados. No artigo 2.º estabelecem-se os princípios fundamentais em que assentará a legislação a editar pelo Governo nos domínios indicados no artigo anterior. Por último, o artigo 3.º determina que a autorização legislativa terá a duração de 90 dias.
O artigo 2.º do decreto 302/V estende-se por oito números, onde se indicam os sucessivos princípios fundamentais da futura legislação autorizada: o n.º 1, referente ao trabalho de menores, contém 12 alíneas, nenhuma das quais é objecto de dúvidas de constitucionalidade expressas pela entidade requerente; o n.º 2, relativo à matéria de férias, contém seis alíneas, duas das quais são objecto do pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade [alíneas c) e f)]; o n.º 3, respeitante ao regime de trabalho em comissão de serviço, abrange cinco alíneas, das quais apenas uma é objecto de pedido de apreciação de constitucionalidade [alínea d)]; o n.º 4 contém os princípios fundamentais sobre período experimental de trabalho em duas alíneas sendo suscitadas dúvidas de constitucionalidade apenas quanto à primeira; o n.º 5 refere-se ao regime de duração do tempo de trabalho, contendo 10 alíneas, nenhuma das quais é especificamente questionada no pedido do Presidente da República; o n.º 6, que diz respeito à cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador, tem 11 alíneas duas das quais são objecto do pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade. Os n.os 7 e 8 tratam de duas matérias restritas e não são abrangidos pelo pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade: o primeiro prevê a atribuição de competência ao juiz do trabalho para, em acções cíveis que perante si corram, aplicar as penas de multa previstas para as infracções apuradas; o último contempla a redução do período de mora do empregador no pagamento da retribuição, para efeitos de rescisão com justa causa ou suspensão do contrato de trabalho pelo trabalhador.
Ora, o artigo 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, dispõe que o pedido de apreciação da constitucionalidade ou da legalidade das normas jurídicas referidas nos artigos 278.º e 281.º da Constituição é dirigido ao Presidente do Tribunal Constitucional «e deve especificar, além das normas cuja apreciação se requer, as normas ou os princípios constitucionais violados».
Neste quadro normativo e da análise do requerimento subscrito pelo Presidente da República hão-de extrair-se os elementos que possibilitem a interpretação dos seus pedidos. Retira-se assim que a impugnação da constitucionalidade de todas as normas do decreto da Assembleia da República n.º 302/V só pode ter a ver com as dúvidas «sobre a correcção do procedimento legislativo», resultantes de não ter sido sujeita a apreciação pública prévia a proposta de diploma, de harmonia com o disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição. Quer dizer, a entidade requerente parte da consideração de que todas as normas do diploma enviado para promulgação constituem legislação de trabalho e, por isso, admite que as mesmas deveriam ter sido objecto de um processo de audição das comissões de trabalhadores e associações sindicais, sendo certo que tal audição consubstancia o direito de tais organizações de «participar na elaboração da legislação do trabalho».
O confronto da fundamentação aduzida para pôr em causa genericamente a constitucionalidade de todas as normas do diploma e para suscitar dúvidas concretas quanto à legitimidade constitucional de seis dessas normas confirma a correcção de tal interpretação quanto ao primeiro pedido formulado. Quer dizer, todas as normas do decreto constituem objecto do pedido de apreciação da constitucionalidade formal do diploma.
6 - Por outro lado, impõe-se realçar ainda que o Presidente da República justifica o seu pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade não só pela invocação da natureza e importância das matérias em questão, como pela «necessidade de ser aprofundada a doutrina que emana do Acórdão 107/88 do Tribunal Constitucional».
Entende-se que tal referência visa pôr de novo à consideração do Tribunal certas questões de constitucionalidade de especial importância já abordadas em 1988, nomeadamente a da necessidade de a Assembleia da República assegurar ou não a audição das organizações de trabalhadores relativamente a uma lei de autorização legislativa em matéria laboral ou de delimitação da noção constitucional de justa causa de despedimento.
Parece lógico começar por perguntar se as normas constantes de uma lei de autorização legislativa (ou, e mais correctamente, na fase anterior à promulgação, as normas constantes do correspondente decreto aprovado pela Assembleia da República) podem ser objecto de apreciação preventiva de constitucionalidade. De facto, só se se der resposta afirmativa a tal pergunta será possível indagar se as mesmas constituem ou não legislação do trabalho, tal como é aventado.
Em relação à primeira destas questões, entende o Tribunal Constitucional deixar referido que continua a perfilhar por inteiro o que se disse no citado Acórdão 107/88:
Como quer que seja, parece irrecusável que as normas de uma lei de autorização legislativa detêm a natureza e qualidade de normas, nomeadamente para os fins previstos no artigo 278.º da Constituição, legitimando-se assim que, quanto a elas, seja accionado o mecanismo de fiscalização preventiva de constitucionalidade.
Esta qualificação não é minimamente afectada pela circunstância de tais normas assumirem uma muito especial e particular vertente interna: o estabelecimento dos limites do exercício do poder delegado, expressando, por isso, uma relação de confiança entre a Assembleia da República (delegante) e o Governo (delegado).
Mas tais limites não exprimem apenas a essência de uma mera relação interorgânica irrelevante para o conjunto do ordenamento jurídico. São limites com eficácia externa, na medida em que, confrontáveis com a Constituição e actuando como parâmetros dos poderes delegados, estabelecem o quadro de alteração do ordenamento vigente, ao qual se há-de subordinar a legislação autorizada.
E, logo em seguida, após notar que a Constituição, ao tratar do instituto das autorizações legislativas, impõe a sua integração em leis que não se distinguem das demais quanto ao regime jurídico, salvo no facto de a mesma Constituição prescrever regras sobre o seu conteúdo obrigatório (artigo 168.º, n.º 2), explicita o citado acórdão o entendimento já acima avançado:
Estas normas, produzindo efeitos na esfera dos particulares apenas aquando da entrada em vigor do decreto-lei autorizado, aparecem como não sendo exequíveis por si próprias, mas, por isso, e tal como sucede com as normas programáticas, não perdem a sua imediata relevância externa e o seu valor de normas jurídicas.
As normas da lei de autorização são concebidas e pretendidas pela Constituição enquanto normas geradoras do processo legislativo das leis delegadas e, por tal circunstância, são aplicadas com a emissão destas, sem prejuízo de constituírem desde logo instrumento jurídico - normativo quanto à determinação do segmento do ordenamento em vias de modificação e quanto ao sentido genérico das alterações a introduzir. [In Diário da República, 1.ª série, n.º 141, de 21 de Junho de 1988, p. 2519.]
Fica assim assente que não existe nenhum óbice de natureza jurídico-constitucional a que todas as normas contidas no decreto 302/V, da Assembleia da República, sejam objecto de fiscalização abstracta preventiva de constitucionalidade.
III
7 - O primeiro pedido de apreciação de constitucionalidade formulado pelo Presidente da República tem por objecto todas as normas do decreto da Assembleia da República sub judicio. Já vimos em que sentido se devia interpretar este pedido. De seguida se verá se tais normas se podem qualificar como direito do trabalho, após o que, na eventualidade de uma resposta afirmativa, se deverá formular um juízo sobre a correcção do procedimento legislativo que conduziu à aprovação do decreto 302/V, à luz das normas constitucionais que estabelecem o direito de audição das organizações dos trabalhadores relativamente à legislação do trabalho.
O decreto 302/V, da Assembleia da República, teve na sua origem a proposta de lei do Governo n.º 176/V, relativa a autorização legislativa sobre os regimes jurídicos do trabalho de menores, das férias, do trabalho em comissão de serviço do período experimental, da duração do trabalho e da cessação do contrato de trabalho por inadaptação (in Diário da Assembleia da República, V Legislatura, 4.ª sessão legislativa - 1990-1991 -, 2.ª série A, n.º 20, de 23 de Janeiro de 1991, pp. 738 a 743).
Da exposição de motivos dessa proposta retira-se que o Acordo Económico e Social, subscrito em 19 de Outubro de 1990 no âmbito do Conselho Permanente de Concertação Social, definiu um conjunto de objectivos e princípios e também de medidas de política económica e social, algumas das quais dependem de instrumentos normativos. Sucede que «algumas dessas medidas versam sobre matéria da reserva relativa de competência da Assembleia da República, por respeitarem a direitos, liberdades e garantias. Por isso, a execução do Acordo, nessa parte, exige que o Governo seja habilitado pela Assembleia da República com a pertinente autorização legislativa». Na mesma exposição indica-se sumariamente o sentido das autorizações solicitadas relativamente a cada um dos domínios atrás referidos, explicando-se no final a técnica legislativa utilizada e a inserção da futura autorização legislativa no conjunto dos diplomas legais de execução do Acordo:
Na elaboração da presente proposta de lei procurou-se salvaguardar com rigor os objectivos identificados no Acordo e utilizar os próprios termos acordados sempre que tecnicamente adequados à elaboração legislativa, justificando-se este facto pela profundidade da discussão desenvolvida no processo de negociação que proporcionou um nível bastante detalhado quanto às matérias para as quais se necessita de formulação normativa.
Dado o carácter global e integrado do Acordo, foi assumido que o processo legislativo relativo aos projectos de decreto-lei que não carecem de autorização legislativa se desenvolva, particularmente nas fases de discussão pública e aprovação, em simultaneidade com o processo respeitante às matérias que carecem daquela autorização [...]
Realçando os termos do Acordo celebrado, em razão da defesa dos princípios e normas constitucionais e da segurança nas relações de trabalho, foi considerado que a matéria relativa à cessação do contrato de trabalho por inadaptação deveria ser submetida a apreciação preventiva de constitucionalidade, exprimindo-se nesta intervenção do Tribunal Constitucional a postura pela qual as partes realizam o objectivo de garantir a constitucionalidade. [In Diário da Assembleia da República, cit., p. 739.]
Ora, é manifesto que a disciplina normativa sobre regimes jurídicos do trabalho de menores, de férias no âmbito dos contratos individuais de trabalho, de prestação de trabalho subordinado em regime de comissão de serviço, do período experimental da duração do trabalho e da cessação do contrato individual de trabalho por inadaptação do trabalhador se deve qualificar como direito do trabalho, entendido este último como ramo do direito que regula o trabalho subordinado, heterodeterminado ou não autónomo (cf. António L. Monteiro Fernandes, O Direito do Trabalho - I - Introdução. Relações Individuais de Trabalho, 7.ª ed., Coimbra, 1991, pp. 14 e segs.; António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, 1991, pp. 15 e segs.).
8 - Sendo indiscutível que a proposta de lei de autorização legislativa versa sobre matérias de direito do trabalho, há-de perguntar-se depois se esta lei de autorização legislativa constitui já legislação do trabalho, a fim de se poder ajuizar sobre se teria ou não de observar-se quanto a ela o disposto sobre o direito de audição das organizações dos trabalhadores na própria Constituição.
O Tribunal Constitucional teve ocasião de tratarem diferentes ocasiões da problemática da legislação do trabalho e do referido direito de audição, tal como o tinha feito já antes dele a extinta Comissão Constitucional (remete-se para numerosas espécies tratadas na jurisprudência constitucional, destacando-se, além dos pareceres proferidos pela extinta Comissão Constitucional indentificados nos acórdãos que vão citar-se, os Acórdãos n.os 31/84, 117/86, 451/87, 15/88, 107/88, 185/89, 218/89, 201/90, 232/90 e 262/90, publicados no Diário da República, 1.ª série, n.os 91, de 17 de Abril de 1984, 114, de 19 de Maio de 1986, 286, de 14 de Dezembro de 1987, 28, de 3 de Fevereiro de 1988, 141, de 21 de Junho do mesmo ano, 56, de 8 de Março de 1989, e 57, de 9 do mesmo mês e ano; 2.ª série, n.os 17, de 21 de Janeiro de 1991, e 18, de 22 do mesmo mês e ano, e 1.ª série, n.º 292, de 20 de Dezembro de 1990; deve notar-se que o Acórdão 262/90 foi publicado por lapso na 1.ª série do Diário da República).
Importa, porém, pôr em destaque o Acórdão 107/88 deste Tribunal, já que ele incidiu também sobre um pedido de autorização legislativa formulado pelo Governo em matéria de direito do trabalho (revisão do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho, do contrato de trabalho a termo e do regime processual da suspensão e redução da prestação de trabalho). Neste acórdão, o Tribunal Constitucional decidiu, embora com votos de vencido, que as leis de autorização legislativa relativas a legislação laboral se deviam qualificar, elas também, como legislação de trabalho, para efeitos de assegurar a audição das organizações dos trabalhadores, pressuposto da sua participação na elaboração de tais leis.
Depois de recordar as formulações utilizadas pela jurisprudência constitucional para definir a noção de legislação de trabalho («a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores enquanto tais, e suas organizações»; «a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição»), ponderou-se naquele acórdão o seguinte:
No caso vertente, todas as normas que integram o objecto do pedido respeitam manifestamente à legislação laboral, como logo se extrai do seu mero enunciado, devendo como tal ser havidas sem que, para tanto, algum obstáculo represente o facto de integrarem uma lei de autorização legislativa (um decreto remetido para promulgação como lei).
É que, como já se viu e adiante mais detalhadamente se observará [...], as leis de autorização, pelo facto de não intervirem directamente no ordenamento jurídico, em termos de aplicabilidade directa, transportam, todavia, parâmetros normativos fundamentais (princípios e directivas) decisivamente condicionadoras da legitimidade do decreto-lei autorizado, em termos de se poder afirmar que o essencial do diploma delegado está predeterminado na lei delegante, a qual, aliás, no caso em presença, se espraia ao longo de 2 artigos e 18 alíneas contendo uma ampla, diversificada e minuciosa normação.
Não parece assim procedente a argumentação de as leis autorizadoras valerem apenas como normas de competência e de orientação, que em nada alteram a legislação efectivamente vigente.
E não parece porque a normação contida no diploma delegante, incidindo sobre matéria inscrita no âmbito da competência reservada da Assembleia da República, há-de condicionar duplamente a acção legislativa do Governo, dependente não só da autorização enquanto tal, mas também das directivas e critérios que esta contém. O decreto-lei autorizado representará obrigatoriamente uma mera tradução material daquelas directivas em termos de se poder afirmar que os seus enunciados essenciais (os que respeitam à competência reservada do Parlamento) se acham pré-definidos no texto autorizador.
Não colhe assim a objecção de que as leis de delegação não intervêm directamente no ordenamento jurídico, pois que isso apenas significa que elas não inovam, em termos de aplicabilidade directa, o sistema jurídico. [in Diário da República, cit., pp. 2520-2521; sobre esta solução veja-se o comentário de J. J. Gomes Canotilho e Jorge Leite, A Inconstitucionalidade da Lei dos Despedimentos, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia, 1984, Coimbra, 1988, pp. 59 e segs.
9 - Deve notar-se que, no início do procedimento legislativo na Assembleia da República respeitante à proposta de lei 176/V, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias elaborou parecer sobre o recurso interposto pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português do despacho do Presidente da mesma Assembleia que admitiu esta proposta de lei. Nesse parecer, a Comissão divergiu da doutrina do Acórdão 107/88, embora sem o citar, discordando abertamente do pressuposto de base do recurso do Partido Comunista, a saber, do entendimento de que «as leis de autorização legislativa são leis de natureza idêntica a quaisquer outras e, por isso, devem estar sujeitas a procedimentos similares quanto à sua elaboração e tramitação» (in Diário da Assembleia da República, 2.ª série A, n.º 22, de 30 de Janeiro de 1991, p. 762). Assim, nesse parecer conclui-se - depois de uma análise do teor da Lei 16/79 e das posições sustentadas nessa matéria por significativos constitucionalistas - que «uma lei de autorização legislativa não visa regular as relações de trabalho», não sendo, para esse efeito, legislação do trabalho, antes contendo a fixação do «sentido das leis que operem, efectivem aquela regulamentação (decreto-lei autorizado, que, sem dúvida, está sujeito a participação dos trabalhadores)». Ainda para a mesma Comissão, a lógica da participação das organizações de trabalhadores no procedimento conducente à discussão e aprovação de uma proposta de lei de autorização legislativa não poderia decorrer do interesse da Constituição da República, ao prever aquela participação. Tal interesse só faria sentido para o decreto-lei autorizado, uma vez que a participação implica «uma tomada de posição dos titulares desse direito em face de modelos de solução acabados, ou seja, soluções concretas e determinadas. Ora, ao teor de uma lei de autorização cujo conteúdo se destina apenas a balizar os limites de uma regulamentação posterior escapa aquela concreteza e determinação que permita uma opinião acabada de quem quer participar». Assim sendo, as «questões mais concretas que se possam ou devam levantar no domínio da legislação do trabalho que se pretende elaborar têm de ser colocadas a propósito do diploma final que o Governo produzir, e não no âmbito da autorização legislativa ora em causa» (ibid.; a Comissão acolhe, no essencial, os argumentos constantes das declarações de voto de vencido dos conselheiros Cardoso da Costa e Messias Bento e, em certa medida, da do conselheiro Martins da Fonseca, juntas ao referido Acórdão 107/88).
Durante o debate parlamentar foi discutida de novo a questão, quer no que toca ao recurso da admissibilidade da proposta de lei, quer no que toca ao recurso sobre o agendamento da mesma, tendo sido rejeitados ambos os recursos. Nessa discussão esteve sempre em causa a doutrina do Acórdão 107/88, pronunciando-se alguns deputados em sentido concordante (vejam-se as intervenções dos deputados Odete Santos, Laurentino Dias, Jerónimo de Sousa e Elisa Damião) e outros em sentido discordante, preferindo a tese dos votos de vencido (remete-se para as intervenções dos deputados Narana Coissoró, Guilherme Silva e Joaquim Fernandes Marques). O Ministro do Emprego e da Segurança Social pronunciou-se incidentalmente sobre a questão, afirmando que o Governo não recusava nenhum direito à participação dos trabalhadores, a qual teria «lugar na altura adequada, aquando da apreciação dos decretos-leis resultantes desta autorização legislativa», mas que, fosse como fosse, a Assembleia tinha «mecanismos para intervir nessa matéria», não obstante os parceiros sociais já se terem pronunciado largamente sobre toda esta questão, «dada a profundidade da análise» (in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 36, de 30 de Janeiro de 1991, p. 1209).
Daqui resulta, insofismavelmente, que todos os parlamentares estavam conscientes da eventualidade de o Tribunal Constitucional vir a assumir de novo a orientação da sua anterior jurisprudência, sendo claro, como aliás resulta do próprio texto do decreto, que a Assembleia da República não procedeu à audição das organizações dos trabalhadores relativamente à proposta de lei de autorização legislativa.
10 - Está assim o Tribunal confrontado com a necessidade de decidir de novo questão idêntica à tratada no Acórdão 107/88, tendo, por isso, a necessidade de reponderar a argumentação das duas posições opostas em presença e, assim, de abordar a doutrina que emana daquela decisão.
Sobre esta questão, entende o Tribunal que a sua anterior jurisprudência é inteiramente correcta, do ponto de vista jurídico-constitucional, e que deve ser mantida.
Por um lado, as leis de autorização legislativa não são meras leis formais, nem se esgotam no plano de ordenação do exercício da função legislativa, não podem considerar-se puras leis organizatórias da competência legislativa, situadas no domínio do direito constitucional. Elas contêm os parâmetros normativos fundamentais que estabelecem os limites de validade da legislação autorizada (cf. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, policopiado, pp. 471 e segs.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., Coimbra, 1986, pp. 629 e segs.).
Por outro lado e decisivamente, a imposição constitucional de que as leis de autorização legislativa definam «o sentido, a extensão e a duração da autorização» (artigo 168.º, n.º 2) implica que, em matéria de legislação laboral, as organizações dos trabalhadores devam ter a possibilidade de influenciarem, logo na fase parlamentar de apreciação da lei de autorização legislativa, os juízos políticos e de decisão jurídica da Assembleia da República sobre a futura legislação autorizada e, também, de opinarem sobre a vantagem de delegar no Governo a elaboração da tal legislação, sobre a oportunidade da autorização, sobre as directrizes, princípios ou orientações gerais da futura disciplina material e sobre a própria extensão da autorização, isto é, sobre a amplitude das inovações ou reformas a introduzir em matéria laboral. Acrescente-se que tal audição há-de ser realizada directa e autonomamente perante a Assembleia da República, devendo este órgão proceder à consulta das organizações dos trabalhadores, nos termos da Lei 16/79.
A posição agora reafirmada foi criticada com o argumento de que imporia uma despropositada ou excessiva concessão de uma «dupla audição» às organizações de trabalhadores. Não se crê que tal crítica seja procedente. Exige-se sempre que a audição ocorra na fase de discussão da proposta de lei de autorização legislativa perante a Assembleia da República.
No que se refere ao projecto do futuro diploma autorizado, entende-se que se justifica indubitavelmente nova audição sempre que este último se não limite a reproduzir integralmente a matéria constante da própria lei de autorização legislativa. Na hipótese de o decreto-lei autorizado se limitar a reproduzir as normas constantes da lei de autorização legislativa, poder-se-ia pôr em causa a necessidade de proceder a nova audição das organizações de trabalhadores. Todavia, não sente necessidade o Tribunal de dar resposta a tal dúvida, visto que a mesma sempre seria neste momento académica, por ser agora irrelevante para o conhecimento das questões de constitucionalidade objecto do presente processo.
11 - Uma vez considerada a proposta de lei de autorização legislativa que precedeu o decreto 302/V como legislação do trabalho, há-de perguntar-se se a Assembleia da República cumpriu o disposto na Constituição e na Lei 16/79, de 26 de Maio, isto é, se se achou assegurada a audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais, ou seja, se o órgão parlamentar cumpriu o dever de consulta constitucional.
Já atrás se viu que o decreto em causa omite qualquer referência à formalidade de audição das mesmas organizações e que tal sucedeu porque a maioria parlamentar entendeu que o dever de audição não existia quando estivessem em causa propostas de leis de autorização legislativa em matéria laboral. A resposta a tal pergunta é, assim, negativa.
Poderá, no entanto, perguntar-se se a circunstância de a proposta de lei de autorização 176/V conter medidas constantes do Acordo Económico e Social, subscrito no âmbito do Conselho Permanente de Concertação Social, não implicará, só por si, a necessária e prévia audição das organizações de trabalhadores sobre essas medidas, visto os parceiros sociais terem necessariamente conhecimento dos termos daquele Acordo e das medidas nele previstas.
A resposta a esta questão é negativa.
O Conselho Permanente de Concertação Social é um órgão consultivo, de composição tripartida, que funciona junto da Presidência do Conselho de Ministros. Nele estão representados, a nível confederativo, os trabalhadores e os empregadores, os quais têm a possibilidade, nessa instância, de dialogar com o Governo, procurando atingir a concertação das diferentes partes, «a fim de assegurar a sua participação no âmbito da política sócio-económico» (artigo 1.º do Decreto-Lei 74/84, de 2 de Março; este diploma foi sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis 8/86, de 16 de Janeiro e 336/87, de 21 de Outubro, reflectindo alterações na orgânica do Governo e modificações pontuais da sua organização burocrática).
Da composição do Conselho Permanente de Concertação Social, prevista no artigo 5.º do Decreto-Lei 74/84, fazem parte três representantes, a nível de órgãos de direcção, de cada uma das duas confederações ou centrais sindicais (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses e União Geral de Trabalhadores).
Ora, a Constituição garante a participação na elaboração da legislação do trabalho às comissões de trabalhadores e às associações sindicais. É manifesto que as comissões de trabalhadores não têm constitucionalmente qualquer ligação às associações sindicais (os plenários de trabalhadores das empresas, abrangendo trabalhadores filiados ou não filiados em associações sindicais, têm o direito de deliberar sobre a constituição das comissões de trabalhadores, sua organização e designação dos membros - artigo 54.º, n.os 1 e 2, da Constituição e Lei 46/79, de 12 de Setembro). Por outro lado, as associações sindicais são livremente constituídas pelos trabalhadores, tal como é livre a deliberação da formação de associações sindicais de nível superior pelas associações sindicais de base (artigo 55.º, n.os 1 e 2, da Constituição). Os trabalhadores são livres de pertencer ou não pertencer a organizações sindicais. Facilmente se conclui, por isso, que as duas confederações de associações sindicais (CGTP/IN e UGT) não representam, de forma alguma, as comissões de trabalhadores das empresas, bem como pode haver, e há de facto, associações sindicais que não fazem parte, directa ou indirectamente, daquelas confederações.
Por isso, conclui-se que o direito de audição garantido constitucionalmente às organizações de trabalhadores não pode ser exercido por todas e cada uma delas quando só as confederações representadas no Conselho Permanente de Concertação Social tiveram conhecimento e participaram de alguma forma na elaboração de legislação do trabalho. O dever de consulta há-de ser cumprido pela Assembleia da República, nos termos do artigo 4.º da referida Lei 16/79, sob pena de se verificar o vício de falta de audição.
Em conformidade com tal conclusão, considera-se que os artigos 1.º e 2.º do decreto da Assembleia da República n.º 302/V sofrem de inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento legislativo, mostrando-se violados os artigos 54.º, n.º 2, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, na medida em que aqueles contêm legislação do trabalho.
Ainda que de forma consequencial, também o artigo 3.º desse decreto (norma que estabelece a duração da autorização legislativa) se acha afectado por inconstitucionalidade.
Daí que se imponha a conclusão de que todas as normas do diploma sub judicio são inconstitucionais.
12 - Uma vez atingida esta conclusão e considerando, como se escreveu no Acórdão 107/88, que «o vício de procedimento encontrado naquele bloco normativo não pode deixar de se repercutir na materialidade injuntiva dos respectivos preceitos» (in Diário da República, cit., p 2521), poder-se-ia sustentar a desnecessidade de se prosseguir no conhecimento das restantes questões de constitucionalidade material suscitadas pelo Presidente da República.
À semelhança, porém, do que então se decidiu, considera-se existirem «razões de ordem prática e de economia processual, que se prendem com a celeridade do procedimento legislativo e com a própria natureza da fiscalização preventiva da constitucionalidade», as quais aconselham que se passe à apreciação dessas questões de constitucionalidade.
É o que se irá agora fazer.
IV
13 - Abordar-se-ão sucessivamente as cinco dúvidas concretas de constitucionalidade material, começando-se pela suscitada em primeiro lugar pela entidade requerente:
A) Artigo 2.º, n.º 2, alínea c), parte final, do decreto
Dispõe o preceito em causa:
Relativamente às férias, visa-se reforçar a garantia do gozo efectivo das mesmas e contribuir para uma maior eficácia da organização do trabalho, pela via das seguintes medidas:
...
c) Admissibilidade do encerramento, total ou parcial, das empresas ou estabelecimentos para férias, durante pelo menos 15 dias consecutivos entre 1 de Maio e 31 de Outubro, ou por tempo inferior e fora deste período, quando estipulado em convenção colectiva ou mediante parecer favorável das estruturas sindicais representativas dos trabalhadores, sem prejuízo, em qualquer caso, do gozo efectivo do período de férias a que o trabalhador tenha direito, conferindo-se-lhe, no entanto, a faculdade de optar por receber a retribuição e o subsídio de férias correspondente à diferença, desde que assegurado o gozo efectivo de 15 dias úteis de férias, ou por gozar, no todo ou em parte, o período excedente de férias, prévia ou posteriormente ao encerramento. [Itálico a parte questionada.]
O Presidente da República considera a parte final da alínea referente a esta medida e afirma que podem suscitar-se dúvidas de constitucionalidade «face à admissibilidade da renúncia a uma parte de um direito irrenunciável - o direito a férias emergente da alínea g) do n.º 1 do artigo 59.º da lei fundamental».
Convém ver qual a origem desta medida. No Acordo Económico e Social (anexo n.º 9 «Regime jurídico das férias e da licença sem vencimento para formação», pp. 67 e segs. da publicação oficial) estabeleceram-se várias medidas em matéria de férias, fixando-se o período anual de férias em 22 dias úteis. Na sua alínea f) do n.º 1 contempla-se a solução traduzida na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do decreto em apreciação, a qual reproduz, no essencial, a solução existente no direito vigente desde 1976:
Quanto ao encerramento para férias, manter o regime actualmente em vigor, admitindo-se a possibilidade de encerramento pelo período de 15 dias, desde que não se prejudique o gozo de 21 dias consecutivos de férias (a não ser por vontade expressa do trabalhador), ou por período inferior ao fixado na lei, ou fora do período entre 1 de Maio e 31 de Outubro, quando assim for convencionado na negociação colectiva ou mediante parecer favorável das estruturas sindicais representativas dos trabalhadores.
O acima disposto não prejudica o regime previsto na parte final do artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei 874/76, de 28 de Dezembro.
No direito vigente é efectivamente o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei 874/76 (regime jurídico de férias, feriados e faltas) que regula o encerramento de estabelecimentos para gozo de férias dos trabalhadores. Aí se exige autorização do Ministério do Trabalho para a entidade patronal encerrar, total ou parcialmente, o estabelecimento durante, pelo menos, 21 dias consecutivos, período mínimo de férias consagrado na Convenção n.º 132 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual é expressamente referida no preâmbulo deste decreto-lei. Na lei vigente, os trabalhadores desses estabelecimentos têm o direito de gozar, no mínimo 21 dias consecutivos de férias, correspondentes ao período de encerramento legal mínimo.
Pode perguntar-se qual o preciso alcance da garantia de gozo efectivo de 15 dias úteis de férias contida no decreto 302/V, nos casos em que o estabelecimento venha a ser encerrado, total ou parcialmente, para férias e em que os trabalhadores hajam optado por receber a retribuição e o subsídio de férias correspondente à diferença do tempo de férias não gozadas. Com efeito, os dias de descanso semanal não coincidem para todos os trabalhadores, podendo alguns deles trabalhar nos dias de descanso semanal dos restantes. Para além do dia de descanso semanal, que é prerrogativa mínima da generalidade dos trabalhadores, reconhecida na alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, a alínea g) do n.º 5 do artigo 2.º do decreto refere «o dia de descanso complementar», que pode ser «gozado de forma repartida ou diferenciada nos termos a definir por convenção colectiva», sem esclarecer, aliás, se se pretende generalizar a todos os trabalhadores a semana de cinco dias úteis de trabalho, que é pressuposto da possibilidade de repartição ou diferenciação ressalvada na alínea. Mas é claro que, pelo menos para os trabalhadores a que se aplica a ressalva, a semana de trabalho pode repartir-se por mais de cinco dias úteis. Pode ainda haver dispensa da suspensão de laboração de um dia completo, dispensa que a alínea e) do mesmo n.º 5 se propõe alargar, e pode, para alguns trabalhadores, o dia de descanso semanal não coincidir com o domingo. São, assim pensáveis diversos entendimentos da expressão «dias úteis» e, por consequência, da garantia da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º Contudo, a autorização legislativa não pode deixar de ser interpretada tendo em conta o elemento sistemático resultante de a Convenção n.º 132 da OIT, sobre férias anuais remuneradas (Convenção aprovada, para ratificação, pelo Decreto 52/80, de 29 de Julho), determinar que «a duração das férias não deverá, em caso algum, ser inferior a três semanas de trabalho por cada ano de serviço» (artigo 3.º, n.º 3), não se contando «os dias feriados oficiais e tradicionais, quer se situem ou não dentro do período, de férias anuais» (artigo 6.º, n.º 1), e ainda que tais férias anuais mínimas são irrenunciáveis (artigo 12.º).
Nesta ordem de ideias, há que acentuar que a dita Convenção n.º 132 vigora na ordem interna enquanto vincular internacionalmente o Estado Português (artigo 8.º, n.º 2, da Constituição). Deve, por isso, interpretar-se a expressão «15 dias úteis», da norma questionada pelo Presidente da República, no sentido de que o sábado, o domingo e os dias feriados oficiais e tradicionais não se consideram dias úteis. O decreto terá, pois, tido em vista o caso paradigmático da chamada «semana americana» e não visou diminuir, em caso algum, as férias anuais mínimas garantidas por aquela Convenção da OIT, conclusão que igualmente se retira com segurança do artigo 4.º, n.º 5, do projecto de decreto-lei autorizado, já revelado publicamente, o qual tem a seguinte redacção:
Para os efeitos do presente diploma consideram-se dias úteis os dias de semana de segunda a sexta-feira, com a exclusão dos feriados. [Projecto de Decreto-lei Relativo ao Regime Jurídico das Férias e da Licença sem Vencimento para Formação Constante - Acordo Económico e Social. Propostas Legislativas, publicação, datada de Janeiro de 1991, da União Geral de Trabalhadores, junta aos presentes autos.]
Dada esta interposição sem que seja necessário determinar definitivamente de modo positivo qual seja o conteúdo indisponível constitucionalmente garantido do direito dos trabalhadores a férias periódicas pagas [artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição], deve considerar-se que a possibilidade de o trabalhador optar por não gozar as férias excedentes ao mínimo legal atrás determinado, recebendo antes a retribuição e o subsídio de férias correspondente, não atinge, em qualquer caso, o conteúdo do direito constitucional em causa e não é, assim, passível de censura constitucional.
Assim sendo, torna-se desnecessário e inadequado averiguar se ainda seria conforme com a Constituição qualquer interpretação da garantia de férias anuais irrenunciáveis e intransaccionáveis que as fixasse abaixo dos limites resultantes da interposição agora dada pelo Tribunal.
Não se verifica, nestes termos, qualquer violação do preceito constitucional referido pela parte final da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do decreto sub judicio.
B) Artigo 2.º, n.º 2, alínea f), do decreto
14 - Transcreve-se o preceito objecto de dúvidas de constitucionalidade:
Relativamente às férias, visa-se reforçar a garantia do gozo efectivo das mesmas e contribuir para uma maior eficácia da organização do trabalho, pela via das seguintes medidas:
...
f) Possibilidade de, nos casos em que a cessação do contrato está sujeita a aviso prévio, a entidade empregadora determinar que o seu gozo seja antecipado para o momento imediatamente anterior à data prevista para a cessação do contrato.
O Presidente da República admite que a norma transcrita pode violar o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, na medida em que, «por decisão unilateral do empregador e contra as legítimas expectativas do trabalhador, esta norma pode possibilitar a inutilização ou frustação do direito a férias, entendido como direito a um período mínimo de interrupção do quotidiano da vida e do trabalho, segundo um programa pessoal ou familiarmente estabelecido com um mínimo de antecedência».
A origem deste preceito encontra-se na alínea p) do n.º 1 do anexo n.º 9 ao Acordo Económico e Social, a qual está redigida de modo praticamente idêntico.
Segundo a lei vigente, «a marcação do período de férias deve ser feita por mútuo acordo entre a entidade patronal e o trabalhador» (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 874/76), cabendo à entidade patronal, na falta de acordo, a elaboração do mapa de férias, ouvindo, para o efeito, a comissão de trabalhadores ou a comissão sindical ou intersindical ou os delegados sindicais, pela ordem indicada. No caso de falta de acordo, a entidade patronal «só pode marcar o período de férias entre 1 de Maio e 31 de Outubro, salvo parecer favorável em contrário das entidades nele referidas e o disposto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho» (artigo 8.º, n.º 3, do mesmo diploma). Além disso, impõe-se que o mapa de férias definitivo deva estar elaborado e afixado nos locais de trabalho até ao dia 15 de Abril de cada ano. Acautela ainda a lei vigente a alteração da marcação do período de férias e a interrupção do gozo das mesmas por «exigências imperiosas do funcionamento da empresa» e ainda a alteração do período de férias «sempre que o trabalhador, na data prevista para o seu início, esteja temporariamente impedido por facto que lhe não seja imputável» (artigo 9.º, n.º 3, do Decreto-Lei 874/76).
Em caso de cessação do trabalho por qualquer forma, a lei vigente confere ao trabalhador o direito «a receber a retribuição correspondente a um período de férias proporcional ao tempo de serviço prestado no ano da cessação, bem como ao respectivo subsídio» (artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 874/76). O n.º 2 do mesmo artigo prevê a situação de o contrato de trabalho cessar antes de gozado o período de férias vencido nesse ano e, neste ponto, não admite, em caso algum, a antecipação por decisão unilateral da entidade patronal, antes confere ao trabalhador o direito a receber, na impossibilidade do gozo efectivo de férias, o direito à retribuição correspondente a esse período, bem como o respectivo subsídio.
O diploma de autorização legislativa visa criar um regime inovador para os casos de cessação de contrato de trabalho sujeitos a aviso prévio. No direito vigente, a cessação de contrato com aviso prévio abrange os casos de rescisão sem justa causa do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, seja ele a termo (artigo 52.º, n.º 5, do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, aprovado pelo Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro), seja por tempo indeterminado (artigo 38.º do citado regime jurídico da cessação), e ainda os casos de despedimento colectivo e de despedimento por extinção do posto de trabalho (artigos 21.º e 28.º do mesmo regime jurídico). No futuro, no caso de virem a ser publicados os decretos-leis autorizados sobre os regimes de trabalho em comissão de serviço e de cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador, a cessação da comissão de serviço em certos casos e a cessação do contrato por inadaptação implicarão o aviso prévio da entidade patronal [vejam-se as alíneas d) do n.º 3 e f) do n.º 6 do artigo 2.º do decreto em apreciação].
Poder-se-á dizer que a norma questionada viola a garantia constitucional do direito dos trabalhadores a gozarem de férias periódicas pagas ou, mesmo, a garantia do direito ao repouso e aos lazeres, de que o direito a férias é uma concretização?
Crê-se que a resposta a tal questão deve ser negativa.
Não se ignora a evolução havida no conceito de férias, tendo em conta a legislação sucessivamente publicada antes da Constituição de 1976, evolução que culminou com a entrada em vigor desta última. Tendo começado por ser encarada como uma recompensa devida pela prestação de «bom e efectivo serviço» de certos trabalhadores em determinadas empresas de maior dimensão (concepção adoptada pela legislação de 1937), o direito a férias periódicas pagas passou a ser encarado como uma consequência do estatuto contratual de trabalhador subordinado, implicando a suspensão da prestação de trabalho num período, a qual não se limita a permitir a restauração do gasto de energias físicas e psíquicas do trabalhador e, portanto, a garantir a restauração da capacidade para o trabalho. Como escreve Monteiro Fernandes, todos os «créditos de repouso» dos trabalhadores assumem hoje «um significado mais amplo do que se contém na mera regeneração da capacidade para o trabalho: as paragens obrigatórias de actividade permitem, em suma, que o trabalhador disponha de si próprio, sem por isso ficar privado de emprego» (Direito do Trabalho, cit., I, p. 304). É assim que a lei vigente estabelece o princípio geral de que o direito a férias «deve efectivar-se de modo a possibilitar a recuperação física e psíquica dos trabalhadores e a assegurar-lhes condições mínimas de disponibilidade pessoal, de integração na vida familiar e de participação social e cultural» (artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 874/76), tal como estabelece o princípio da irrenunciabilidade do direito a férias (artigo 2.º, n.º 4, do mesmo diploma).
A ideia de indispensabilidade de períodos de autodisponibilidade do trabalhador, que possibilitem a realização pessoal, a integração na vida familiar e a participação social e cultural, aponta para que o trabalhador possa, na medida do possível, ter uma palavra na escolha dos seus períodos de férias de harmonia com a conveniência pessoal e que, uma vez feita e aceite pela entidade patronal tal escolha, a mesma goze de tendencial inalterabilidade. A verdade é que, no plano do direito vigente, a época de gozo de férias é normalmente fixada pela entidade patronal, embora dentro de certos meses do ano, podendo esta prescindir do acordo do trabalhador, nomeadamente quando a mesma entidade haja de dirimir potenciais conflitos entre trabalhadores da empresa, decorrentes do desejo de gozarem férias na mesma altura, em detrimento dos interesses da eficaz laboração da própria empresa, interesses que gozam de primazia nos termos da lei.
A norma questionada confere à entidade patronal o poder de antecipar unilateralmente o gozo de férias do trabalhador, no caso de ocorrer a cessação do contrato de trabalho e após ter sido emitido o respectivo aviso prévio. Nessa medida, afecta indiscutivelmente a programação pessoal e familiar e a previsibilidade decorrentes de uma eventual marcação de férias. Entende-se, porém, que a cessação do contrato de trabalho constitui uma alteração excepcional de circunstâncias atendível e que, pela própria extinção do vínculo laboral, se tornará impossível conseguir que o gozo das férias na época considerada no respectivo mapa corresponda efectivamente a uma interrupção da prestação de trabalho sem perda de remuneração. A única alternativa possível à antecipação do gozo de férias será o pagamento de uma indemnização compensatória (cf. artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 874/76), mas a verdade é que em tal solução ocorre uma derrogação, embora prevista na lei, ao princípio da irrenunciabilidade do gozo de férias e da salvaguarda desse gozo (artigo 2.º, n.º 4, do mesmo diploma).
A garantia constitucional do repouso e dos lazeres do trabalhador, concretizada no direito a férias periódicas pagas, não confere um direito absoluto a gozar férias numa época determinada, nem um direito à inalterabilidade do período de gozo de férias, sendo constitucionalmente legítimo que, designadamente em casos determinados de cessação do contrato de trabalho, a lei possa dispor sobre a antecipação imposta unilateralmente pela entidade patronal do período de férias do trabalhador, ainda que em detrimento das expectativas deste. É que, mesmo assim, fica garantido o direito irrenunciável a férias, podendo mesmo conceber-se que, em certos casos, o gozo de um período de autodisponibilidade possa não ser possível de outro modo, no caso de o trabalhador celebrar um novo contrato de trabalho com início no dia seguinte ao do termo do anterior vínculo laboral, situação em que, normalmente, não poderá gozar férias, nesse ano, na nova empresa.
Nestes termos, considera-se que a norma questionada não viola o disposto no artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição.
c) Artigo 2.º, n.º 3, alínea d), segundo parágrafo, parte final, do decreto
15 - Estabelece a alínea d) do n.º 3 do artigo 2.º do decreto em apreciação, no parágrafo questionado:
Relativamente ao regime de trabalho em comissão de serviço visa-se assegurar, para funções que pressuponham uma especial relação de confiança, soluções adequadas à salvagurada da elevada e constante lealdade, dedicação e competência em que assenta tal confiança, pela via das seguintes medidas:
...
d) Fixação de um regime legal mínimo e, nesse sentido, supletivo quanto às seguintes matérias:
...
Assegurar ao trabalhador, em caso de cessação da comissão de serviço, o direito à categoria que antes detinha ou às funções que vinha exercendo, quando estas confiram direito a categoria ou nível remuneratório previsto em convenção colectiva de trabalho aplicável, ou ainda ao que entretanto tenha sido promovido ou, quando tenha sido contratado para o efeito, à colocação na categoria constante do acordo, salvo se, neste, as partes tiverem convencionado a extinção do contrato com a cessação da comissão de serviço;
...
...
[Sublinhada a parte questionada da norma.]
O Presidente da República põe em causa, no que toca ao regime legal mínimo, embora supletivo, da prestação de trabalho em comissão de serviço, a possibilidade de as partes convencionarem a extinção do «próprio contrato de trabalho com a cessação da comissão de serviço». De harmonia com o pedido apresentado ao Tribunal, tal solução «pode colocar dúvidas sobre o respeito do princípio da proibição da cessação do contrato individual de trabalho sem justa causa. O consentimento prévio pelo trabalhador da possibilidade de despedimento por mero efeito de cessação da comissão de serviço pode constituir disposição de direitos irrenunciáveis do trabalhador e a sua convenção pelas partes pode constituir a derrogação de normas inderrogáveis, parecendo violar-se o disposto no artigo 53.º da Constituição - que garante a segurança no emprego» (a fl. 5 dos autos).
16 - O desempenho de funções em comissão de serviço, no âmbito de um contrato de trabalho subordinado, não está previsto no direito do trabalho vigente (A. L. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I, p. 152). Não se trata, porém, de figura desconhecida na prática portuguesa, no que toca ao exercício de funções de chefia ou funções próprias das «categorias dirigentes». Como refere Menezes Cordeiro, a problemática da prestação de serviços das categorias dirigentes tem vindo a ser autonomizada no direito do trabalho. Em traços largos, o pessoal dirigente distingue-se «dos restantes por desfrutar de privilégios funcionais e remuneratórios, por ser destinatário de deveres mais intensos, por carecer de menor protecção e por implicar uma maior confiança por parte da entidade empregadora. Este último aspecto, que tem sido frequentemente enfocado na jurisprudência [...], deve ser sublinhado: o trabalhador dirigente, como delegado da entidade empregadora, deve colocar-se, perante esta, numa posição de lealdade e de confiança, cuja falta, a ocorrer, compromete com gravidade os canais hierárquicos da empresa» (Manual de Direito do Trabalho, p. 672). O mesmo autor dá nota da estipulação em instrumentos laborais colectivos de regimes diferenciados para o pessoal dirigente, muito embora, por imperativos legais, tais instrumentos não tenham podido até agora estabelecer esquemas novos de cessação do contrato de trabalho. Tais instrumentos colectivos dispõem que, «sem quebra na estabilidade do emprego, as funções dirigentes sejam desempenhadas a título precário ou por um horizonte temporalmente limitado por trabalhadores não dirigentes, os quais, terminado esse período de direcção, regressam à posição base que detinham» (ob. cit., p. 673). De um modo geral, os tribunais do trabalho não têm considerado que o desempenho dessas funções a título transitório viole os princípios jurídico-laborais do tratamento mais favorável do trabalhador e da irreversabilidade da categoria [vejam-se os artigos 21.º, n.º 1, alínea d), e 23.º da lei do regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei 49408, de 24 de Novembro de 1969]. Aparece na contratação colectiva, assim, de forma nominada ou inominada, a figura da comissão de serviço, para o exercício temporário de cargos de direcção e chefia, inspirada no instituto típico do direito administrativo designado pelo mesmo nome e que é conhecido entre nós desde 1913. A figura do provimento em comissão de serviço é aplicada hoje a todo o pessoal dirigente dos serviços e organismos do Estado (vejam-se os artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei 323/89, de 26 de Setembro, e o artigo 7.º do Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro), sendo certo que desde 1974 a lei prevê a possibilidade de os trabalhadores por conta de outrem manterem todos os direitos anteriormente adquiridos face à respectiva entidade patronal, enquanto estiver suspensa a prestação de trabalho por força do desempenho, a título transitório, de funções de administração ou de gestão ou, ainda, de fiscalização nas próprias empresas a que pertencem ou em outras, de natureza pública ou privada, sejam ou não designados pelo Estado (artigo 1.º do Decreto-Lei 729/74, de 20 de Dezembro, norma que inspirou o artigo 32.º, n.º 1, das bases gerais do estatuto das empresas públicas, Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril; estas disposições, por seu turno, influenciaram o disposto no artigo 398.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais de 1986).
17 - No Acordo Económico e Social indicam-se, no anexo n.º 11, os objectivos visados pelos parceiros sociais signatários com a criação do regime de trabalho em comissão de serviço:
1 - Assegurar, relativamente a certas funções que pressuponham uma especial relação de confiança, solução adequada à salvaguarda da elevada e constante lealdade, dedicação e competência em que assenta tal confiança.
2 - Preservar, em termos de gestão, a eficácia exigida no desempenho de certas funções que pressuponham uma elevada relação de confiança.
3 - Contribuir para a negociação de estatutos profissionais compatíveis com a especial responsabilidade inerente ao desempenho de tais funções.
4 - Incentivar o preenchimento de certos lugares de confiança por pessoal já vinculado à entidade empregadora.
5 - Prevenir situações de desconfiança precursoras de marginalização e de discriminação profissional, bem como desgastantes processos disciplinares, independentemente de a decisão final neles proferida ser ou não de despedimento. [P. 75 da publicação oficial.]
O decreto em apreciação estabelece as directrizes sobre o regime de trabalho em comissão de serviço, admitindo-o para o exercício de «cargos de administração, de direcção directamente dependentes da administração e, bem assim, das funções de secretariado pessoal relativas aos titulares desses cargos e a outras previstas em convenção colectiva», e prevendo que a comissão de serviço possa ser exercida «quer por trabalhadores da empresa, quer por trabalhadores admitidos do exterior, dando-se preferência, em igualdade de condições, aos trabalhadores da empresa».
O acordo respeitante ao exercício de funções em regime de comissão de serviço pressupõe a sua redução a escrito «na parte relativa à especificidade» daquele regime, pode cessar a todo o tempo por decisão de qualquer das partes e terá um «regime legal mínimo e, nesse sentido, supletivo» quanto ao prazo de pré-aviso para a cessação da comissão, quanto às garantias de estatuto profissional no caso de cessação, quanto à atribuição do direito à rescisão do contrato de trabalho preexistente pelo trabalhador que viu terminada a sua comissão de serviço por decisão da entidade patronal de natureza não disciplinar e, por último, quanto à atribuição de um direito de indemnização em certos casos ao trabalhador.
O Presidente da República só manifesta dúvidas de constitucionalidade quanto à regulamentação que possibilita que trabalhadores especialmente contratados para exercer funções em regime de comissão de serviço possam celebrar acordo com a entidade patronal estabelecendo que, uma vez cessada a mesma, se extinguirá o próprio contrato.
Deve notar-se que esta última situação não se achava expressamente contemplada no anexo n.º 11 do Acordo Económico e Social, antes se prevendo aí tão somente o direito «à colocação em funções compatíveis com a categoria que o trabalhador antes detinha ou à correspondente às funções que vinha exercendo, quando a estas corresponda categoria ou nível remuneratório previsto em convenção colectiva de trabalho aplicável, ou ainda a que entretanto tenha sido promovido, ou no caso de trabalhador contratado para o efeito, com a categoria constante do acordo» (p. 76 da publicação oficial).
A prestação de trabalho em regime de comissão de serviço não se afigura globalmente susceptível de censura jurídico-constitucional, correspondendo à já apontada autonomização do estatuto do pessoal dirigente, ampliado de forma a abranger os trabalhadores de secretariado pessoal dos cargos dirigentes. A inovação visada corresponde e uma evolução ocorrida em outras ordens jurídicas da Europa Ocidental no sentido de serem contrariadas tendências niveladoras anteriores, de tal forma que seja acentuado o elemento fiduciário de tais categorias, verificando-se ainda que a subordinação do pessoal dirigente aparece «articulada com uma posição de poder na organização do trabalho», características estas susceptíveis de justificarem, por exemplo, regimes privativos no tocante ao despedimento, à duração do trabalho, à admissibilidade do contrato a termo» (A. L. Monteiro Fernandes, ob. cit., p. 152).
Analisando a regulamentação constante do decreto em apreciação, verifica-se que o acordo celebrado para preenchimento de um cargo em comissão de serviço pode ser celebrado quer com trabalhadores da empresa, quer com pessoas admitidas do exterior, devendo dar-se preferência como se viu, aos trabalhadores da própria empesa em igualdade de condições.
No caso de o acordo ter sido celebrado com um trabalhador da empresa, uma vez determinada a cessação da comissão de serviço por decisão unilateral de qualquer das partes, é assegurado a esse trabalhador o direito à categoria que antes detinha ou às funções que vinha desempenhando, quando as últimas confiram direito a categoria ou nível remuneratório previsto em convenção colectiva de trabalho aplicável, ou ainda à que entretanto tenha sido promovido [artigo 2.º, n.º 3, alínea d), segundo parágrafo, primeira parte]. Neste caso, existe plena garantia de segurança de emprego, não havendo violação do artigo 53.º da Constituição.
Na hipótese de ter sido contratada para o exercício de funções, em regime de comissão de serviço, uma pessoa estranha à empresa, podem as partes acordar na colocação do contratado num lugar e numa categoria existente ou a criar, uma vez cessada a comissão de serviço [artigo 2.º, n.º 3, alínea d), segundo parágrafo, segunda parte). Neste caso é evidente que não se verifica qualquer violação da garantia constitucional prevista no artigo 53.º da Constituição, visto ocorrer, pelo contrário, a criação de um novo posto de trabalho.
A parte final do segundo parágrafo da alínea d) do n.º 3 do artigo 2.º deste decreto contém uma ressalva que mostra estar prevista uma terceira hipótese: a de, no caso de celebração de acordo para desempenho de funções em comissão de serviço com pessoas estranhas à empresa, as partes convencionarem a extinção do contrato com a cessação da comissão de serviço.
Ora, é em relação a esta hipótese específica que é colocada uma questão de constitucionalidade, podendo perguntar-se, de facto, se não ocorre aí violação do princípio da proibição de cessação do contrato individual de trabalho sem justa causa e a disposição de um direito irrenunciável - o direito à segurança no emprego.
A resposta a esta questão foi afirmativa para a maioria do Tribunal, posição não partilhada pelo ora relator. Foi entendido que os cargos dirigentes ou a eles equiparados se revestem de um evidente carácter fiduciário, de tal forma que, pela sua própria natureza, são exercidos pelos titulares de forma precária, estando subjacente sempre uma ideia de que a todo o tempo pode cessar a comissão, por decisão de qualquer das partes no contrato. Não está legalmente excluído que as partes possam apor um termo a este contrato. Em algumas dessas funções, nomeadamente nas funções de administração, tem-se predominantemente entendido que se não está perante um contrato de trabalho, mas antes perante um contrato de mandato ou de prestação de serviço em regime liberal, como, aliás, foi aventado durante o debate parlamentar desta proposta de lei.
Em outros, porém, especialmente nos de secretariado pessoal, existe prestação de serviços ou de trabalho, embora com regime próprio. Mas também então se verifica aquela modificação no conteúdo ou na essencialidade do dever de lealdade, que Monteiro Fernandes (ob. cit., p. 190) considera típica dos «cargos de direcção ou de confiança»: «a obrigação de lealdade constitui uma parcela essencial, e não apenas acessória, da posição jurídica do trabalhador». Não necessita este Tribunal de dirimir a questão de saber se o carácter fiduciário (e, portanto, a diferente ponderação em que a fidelidade pessoal e adequação funcional objectiva determinam o conteúdo dos deveres do prestador de serviços) implica a constituição de um tipo contratual distinto do contrato de trabalho. Bastará ao Tribunal reconhecer que, nestes casos, há fundamento material para um regime de cessação do contrato, restrito ao contrato ou acordo de comissão de serviço, que o fará terminar com a cessação da relação de confiança considerada essencial. Nestes casos, a quebra de relação fiduciária torna absolutamente impossível o serviço comissionado, como se de impossibilidade objectiva se tratasse, não tendo sentido falar-se de derrogação de normas inderrogáveis a este propósito.
Assim se conclui que, para todas estas hipóteses, não vale o princípio de segurança do emprego consagrado no artigo 53.º da Constituição. Daí o juízo de que a norma questionada não está afectada de inconstitucionalidade material.
D) Artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do decreto
18 - Transcreve-se todo o n.º 4 do artigo 2.º do decreto em apreciação:
Relativamente ao período experimental, visa-se proporcionar uma apreciação mais objectiva da aptidão do trabalhador em função da sua qualificação, pela via das seguintes medidas:
a) Fixação da duração do período experimental em 60 dias para a generalidade dos trabalhadores ou, se a empresa tiver 20 ou menos trabalhadores, em 90 dias, em 180 dias em relação a cargos de complexidade técnica, elevado grau de responsabilidade ou funções de confiança e em 240 dias em relação a pessoal de direcção e quadros superiores;
b) Possibilidade de redução dos prazos atrás referidos, por convenção colectiva de trabalho ou contrato individual de trabalho. [Sublinha-se a norma impugnada.]
O Presidente da República suscita a dúvida de constitucionalidade no que toca à parte da norma que «possibilita a existência de períodos experimentais diferenciados em função da dimensão das empresas», considerando que tal diferenciação é susceptível de implicar violação do princípio da igualdade e do n.º 2 do artigo 18.º e artigo 53.º da Constituição.
No direito vigente não se estabelece qualquer diferenciação nesta matéria em função da dimensão da empresa. A matéria é regulada em geral no artigo 55.º do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, de 1989, aprovado pelo Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro. O período experimental corresponde aos primeiros 60 dias de execução do contrato (de 1975 até 1989 tal período tinha a duração-regra de 15 dias), mas essa duração pode ser reduzida por instrumento de regulamentação colectiva ou contrato individual de trabalho, podendo ser alargada, através desses meios, «até seis meses relativamente a postos de trabalho em que, pela sua complexidade técnica ou grau de responsabilidade, a aptidão do trabalhador para as funções contratadas não possa apurar-se com segurança no prazo referido no número anterior» (n.º 3 do referido artigo 55.º). Nos contratos a termo, o período experimental tem a duração de 30 dias, sendo reduzido a metade no caso de contrato com prazo não superior a seis meses e no caso de contratos a termo incerto cuja duração se preveja não vir a ser superior àquele limite (artigo 43.º do mesmo regime). Durante o período experimental, salvo acordo escrito em contrário, qualquer das partes pode rescindir o contrato sem aviso prévio e sem necessidade de invocação de justa causa, não havendo direito a qualquer indemnização.
No anexo n.º 13 ao Acordo Económico e Social indicam-se os objectivos visados com as alterações acordadas:
1 - Proporcionar um suficiente período de experiência adequado às exigências da função e às características do posto de trabalho, contribuindo para a salvaguarda da competitividade da empresa e da realização profissional do trabalhador.
2 - Prevenir situações de desocupação precursoras de marginalização e de discriminação profissional.
3 - Contribuir para desincentivar o recurso à contratação a termo, à utilização de trabalho temporário e à adopção do trabalho independente ou autónomo, quando se sobreponha a preocupação de assegurar uma experiência suficiente para adequação às exigências da função e características do posto de trabalho. [P. 83 da publicação oficial.]
19 - O Presidente da República suscita a dúvida de constitucionalidade em relação à parte da norma que amplia o prazo de duração do período experimental apenas relativamente às pequenas empresas, isto é, aquelas que empregam 20 ou menos trabalhadores. De facto, embora questione a possibilidade de «existência de períodos diferenciados em função da dimensão das empresas» - o que poderia levar a considerar alternativamente ou o caso das empresas com mais de 20 trabalhadores, em que a duração do período experimental é de 60 dias, ou então o caso das empresas menores, em que a duração do período experimental tem um acréscimo de 50% -, a verdade é que a indicação das normas constitucionais eventualmente violadas aponta para a conclusão de que só está questionada a solução da ampliação do prazo para as pequenas empresas. A alusão aos artigos 18.º, n.º 2, e 53.º da Constituição só tem sentido porque se considera que a ampliação do período em que não é reconhecida a segurança de emprego aos trabalhadores é susceptível de restringir de forma constitucionalmente ilegítima este direito fundamental dos trabalhadores, pois, como é evidente, a existência de um período experimental mais reduzido nos contratos de trabalho sem prazo é, na generalidade dos casos, mais favorável para os trabalhadores.
Durante o debate parlamentar da proposta de lei de autorização legislativa, a ampliação do período experimental, neste caso, foi muito discutida, havendo deputados que afirmaram que faltava qualquer lógica à solução, visto que nas empresas pequenas a própria natureza das coisas implicava que as qualidades do trabalhador fossem mais rapidamente conhecidas da entidade patronal, dada a sua proximidade. Para alguns desses deputados, a medida visaria apenas desincentivar o recurso à contratação a prazo, evitando às entidades patronais a necessidade de celebração por escrito de contratos a termo. Contra estas objecções foi afirmado pelo membro do Governo responsável que tal solução correspondia ao estipulado no Acordo Económico e Social por proposta da parte patronal, sendo reversível o argumento da proximidade, visto que qualquer pessoa poderia sempre «argumentar com o exemplo de que uma empresa com mais trabalhadores» poderia, pelo contrário, «ter determinados tipos de esquema de observância e de avaliação muito mais profícuos e eficazes do que uma empresa com menos trabalhadores» (in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 30 de Janeiro de 1991, p. 1209).
20 - Cabe, assim, perguntar se esta diferenciação viola os artigos 18.º, n.º 2, e 53.º da Constituição.
Começar-se-á por acentuar que a existência de um período experimental nos contratos de trabalho é constitucionalmente legítima, ainda que nesse período não haja segurança de emprego. Como refere Menezes Cordeiro, «o contrato de trabalho implica a constituição de uma situação jurídica, de natureza duradoura e que, tendencialmente, vai acompanhar o trabalhador durante toda a sua vida profissional activa. Uma vez consubstanciado, vários esquemas tornam difícil a sua cessação. Por isso, os diversos ordenamentos impõem ou admitem que, celebrado um contrato de trabalho, decorra primeiro um período experimental que possibilite às partes ponderar a viabilidade da situação laboral criada e a sua própria vontade, agora já esclarecida por uma experiência real do trabalho» (ob. cit., p. 577). O direito comparado mostra que tal necessidade prática de criar períodos de experiência é conseguida através da criação de um tipo especial de contrato preliminar, o contrato de trabalho à prova, ou através da previsão na lei de uma fase inicial do contrato de trabalho, destinada à prova ou à experiência recíprocas de empregador e trabalhador, em que o vínculo é precário e qualquer das partes pode livremente denunciar o mesmo, presumindo a lei que a denúncia é devida à inaptidão do trabalhador ou à inconveniência das condições de trabalho dadas pela empresa. No fundo, trata-se de uma «situação jurídica preliminar, destinada a sedimentar a decisão das partes de contratar» (Menezes Cordeiro), só se equacionando a questão da segurança do emprego para além do período experimental.
Em seguida há-de referir-se que o legislador goza de liberdade de conformação no estabelecimento da duração do período experimental, embora tal liberdade seja limitada: a duração não pode ser fixada em período de tal forma prolongado que resulte desvirtuado o princípio da segurança no emprego, como sucederá, indiscutivelmente, nos casos em que a duração se estendesse por tempo tão longo (dois ou três anos, por exemplo) que se teria de considerar estar-se perante uma fixação fraudulenta, forma encapotada de permitir o despedimento sem justa causa. Neste último caso poder-se-ia falar de uma violação do princípio da proporcionalidade.
No caso sub judicio, a ampliação do prazo da lei vigente de 60 dias para 90 dias, no que toca à duração do período experimental, não indicia o propósito de defraudar a garantia de segurança no emprego, nem se afigura desproporcionada ou excessiva.
21 - Por último, tal diferenciação não viola o princípio constitucional da igualdade, no entender da maioria do Tribunal, diferentemente do que sustenta o ora relator. Não pode, por isso, afirmar-se que essa diferenciação seja constitucionalmente ilegítima.
É indiscutível que o legislador estabeleceu dois regimes diversificados de duração do período experimental, consoante se trata de empresas que empregam 20 ou menos trabalhadores ou empresas que empregam um número superior. Não se poderá dizer que, ao aumentar o prazo nas empresas de menor dimensão, a norma questionada cria para os trabalhadores destas empresas uma desigualdade de tratamento, sem fundamento razoável ou material bastante, violando dessa forma o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição?
A resposta a tal questão é negativa.
De facto, o princípio da igualdade não veda o estabelecimento de distinções, antes proíbe as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante. No presente caso, os parceiros sociais signatários do Acordo convieram em que tal distinção se justificava, atentas as peculiaridades das empresas de pequena dimensão. O legislador, por seu turno, aceitou a diferenciação, não criando com isso uma distinção arbitrária.
Com efeito, haverá de reconhecer-se que a proporção em que a empresa - a sua funcionalidade e a sua eventual eficácia - depende de cada trabalhador é, em princípio, maior nas pequenas do que nas grandes empresas. Portanto, são, também em princípio, nas pequenas empresas maiores os custos da pior integração do trabalhador na unidade funcional da empresa. Por outro lado, quanto mais pequena a empresa mais importância relativa têm a confiança pessoal e, portanto, o dever de lealdade do trabalhador. Poderá justificar-se assim um grau mais elevado de exigência, quer quanto à eficácia funcional, quer quanto ao entendimento pessoal, que necessitará de um mais elevado tempo de apreciação. Do mesmo modo, tendo em vista os custos relativos acrescidos das faltas de funcionalidade de cada trabalhador, justifica-se que a lei proteja durante mais tempo o empregador na pequena empresa - muitas vezes também economicamente mais frágil - dos custos que a garantia de segurança de emprego para ele implica.
Acresce que é conhecido serem os trabalhadores das pequenas empresas frequentemente chamados a desempenhar tarefas diversificadas, agindo de forma polivalente, podendo essa diversificação resultar da necessidade de substituir outros trabalhadores em incertos intervalos de tempo, o que justificará uma mais complexa e demorada avaliação. Também se reconhece alguma relevância ao argumento, invocado pelo Ministro do Emprego e da Segurança Social no debate parlamentar, segundo o qual uma empresa com mais trabalhadores poderá ter «esquemas de observância e de avaliação - e, dir-se-á, logo à partida, de selecção e admissão - mais profícuos e eficazes do que uma empresa com menos trabalhadores» (in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 30 de Janeiro de 1991, p. 1209), sem desconhecer que a maior proximidade entre avaliador e avaliado tenderá a contrabalançar qualquer falta de meios técnicos específicos de avaliação.
É certo que a diferente dimensão não era até agora um factor de desigualdade de regime do período experimental. Mas não é caso único de relevância das diferenças estruturais ou de funcionamento das empresas - que não raro estão ligadas à dimensão do factor trabalho - no regime da relação laboral. Um caso semelhante, neste aspecto, é precisamente o anteriormente tratado, da relevância de ser uma empresa que encerra para férias - quiçá por necessidade imposta pela dimensão - para o efeito de o regime das mesmas férias poder ser alterado no interesse do empregador. Outro caso, porventura mais nítido, é o da dispensa de certas formalidades no processo disciplinar em empresas com um número de trabalhadores não superior a 20, prevista no artigo 15.º, n.º 1, da lei dos despedimentos de 1989.
Conclui-se, assim, que a mesma norma questionada não está afectada de inconstitucionalidade material, não se mostrando violados os artigos 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 53.º da Constituição.
E) Artigo 2.º, n.º 6, alíneas a) e c), do decreto
22 - Dispõe as alíneas a) e c) do n.º 6 do artigo 2.º do decreto 302/V:
Relativamente à cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador nos casos em que forem introduzidas modificações tecnológicas no seu posto de trabalho, visa-se acautelar a eficácia da reestruturação das empresas como instrumento essencial de competitividade no mercado e, nessa medida, de segurança do emprego dos respectivos trabalhadores, bem como proteger a posição do trabalhador, garantindo-lhe, nomeadamente, prévia formação profissional e um período de adaptação suficiente no posto de trabalho, pela via das seguintes medidas:
a) Admissibilidade da cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador quando se verifiquem reduções reiteradas de produtividade ou de qualidade, avarias reiteradas nos meios afectos ao posto de trabalho ou riscos para a segurança e saúde do trabalhador ou dos restantes trabalhadores ou de terceiros ou não tenham sido cumpridos os objectivos previamente fixados e formalmente aceites no caso de cargos de complexidade técnica ou de direcção e qualquer destas situações seja determinada pelo modo de exercício de funções e torne praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho;
b)...
c) Tratando-se da situação prevista na parte final da alínea a) relativa a cargos de complexidade técnica ou de direcção, a possibilidade de cessação do contrato de trabalho fica condicionada a que tenha sido posta à disposição do trabalhador a compensação devida e a que a inadaptação não tenha sido determinada pela falta de condições de higiene e segurança no trabalho imputável à entidade empregadora;
...
O Presidente da República indica que as alíneas a) e c) do n.º 6 do artigo 2.º deste decreto suscitam dúvidas de constitucionalidade porque as medidas genéricas a adoptar relativamente à cessação do contrato por inadaptação do trabalhador denotam falta ou insuficiência do princípio da tipicidade, em virtude de não respeitarem o princípio da proibição do excesso e de atentarem contra a garantia da segurança do emprego, constituindo eventualmente violações dos artigos 18.º, n.º 2, e 53.º da Constituição.
A questão da admissibilidade constitucional de cessação do contrato por «justa causa» não disciplinar, isto é, de natureza objectiva, através do despedimento do trabalhador pela entidade patronal, não é colocada agora a este Tribunal pela primeira vez. De facto, no Acórdão 107/88 debateu-se a questão da constitucionalidade da norma de um decreto da Assembleia da República que autorizava o Governo a alargar o «conceito de justa causa para despedimento individual a factos, situações ou circunstâncias objectivas» que inviabilizassem a relação de trabalho e estivessem ligados à aptidão do trabalhador ou fossem fundados em «motivos económicos, tecnológicos, estruturais ou de mercado, relativos a empresa, estabelecimento ou serviço» [artigo 2.º, alínea a), do decreto 81/V]. No projecto de decreto-lei autorizado, que deveria ser publicado uma vez aprovada a lei de autorização, passavam a constituir justa causa de despedimento individual o comportamento culposo do trabalhador de natureza disciplinar e de gravidade tal que tornasse imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho e, paralelamente, os factos, situações e circunstâncias que inviabilizassem a relação de trabalho e decorressem de certas razões objectivas (inaptidão do trabalhador para desempenhar as suas funções; inadaptação às modificações tecnológicas; necessidade de extinguir o posto de trabalho por razões económicas, tecnológicas, estruturais ou de mercado; desaparecimento de especial confiança, requerida para funções de alta direcção e representação - cf. A. Menezes Cordeiro, Manual, cit., p. 812). O Tribunal Constitucional pronunciou-se então, por maioria, no sentido da inconstitucionalidade dessa concreta ampliação do conceito de justa causa, atendendo ao sentido que a expressão tinha na data da elaboração da Constituição de 1976 e à circunstância de o novo texto constitucional ter suprimido como causa de despedimento pela entidade patronal ou gestor público o motivo especial atendível, previsto na versão original do Decreto-Lei 372-A/75, aí definido como «[...] o facto, situação ou circunstância objectiva, ligado à pessoa do trabalhador ou à empresa, que, dentro dos condicionalismos da economia de empresa, torne contrária aos interesses desta e aos interesses globais da economia a manutenção da relação de trabalho» (artigo 14.º, n.º 1). Sobre esta questão afirmou o Tribunal que, tal como relativamente a qualquer outro conceito indeterminado utilizado pela Constituição, era seguro que existia «uma determinada margem de liberdade de configuração legislativa concreta de justa causa». Simplesmente, o legislador não teria, em caso algum, a possibilidade de «transfigurar o conceito, de modo a fazer com que ele cubra dimensões essenciais e qualitativamente distintas daquelas que caracterizam a sua intenção jurídico-normativa», sucedendo que o alargamento do conceito de justa causa a «factos, situações ou circunstâncias objectivas de todo alheias a qualquer comportamento culposo do trabalhador» não deixaria de «envolver a sua transmutação substancial». E, mais à frente, a decisão retomava esta ideia e reafirmava que o legislador não estava «impedido de delimitar no plano concreto o âmbito e as formas de funcionamento da figura [de justa causa], precisando e tipificando os seus motivos e pressupostos. Mas já lhe é vedado alterar o seu critério de definição e transfigurar o seu conteúdo essencial, de modo a alargá-lo a situações qualitativamente distintas [...]», considerando ainda que a ampliação concretamente proposta de conceito de justa causa se traduzia na sua adulteração, violando, em consequência, o disposto no artigo 53.º da Constituição. O Acórdão 107/88 teve, porém, o cuidado de deixar em aberto a questão de saber «se à proibição constitucional do despedimento sem justa causa corresponde, necessariamente, a exclusiva legitimidade constitucional do despedimento com justa causa ou se, pelo contrário, ainda seria igualmente lícita a previsão de despedimentos fundados em causas objectivas não imputáveis a culpa do empregador e que, em cada caso concreto, tornem praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho». No mesmo acórdão deixou-se a prevenção de que, se se seguisse esse último entendimento (o da legitimidade constitucional de despedimentos fundados em causas objectivas não imputáveis a culpa do empregador), tais despedimentos nunca poderiam ser configurados, face à Constituição, «como verdadeiros despedimentos com justa causa, pelo que a sua regulamentação substantiva e processual sempre exigiria um tratamento distinto daquele por que se regem estes últimos». E logo de seguida afirmava-se que o texto constitucional não admitia, de forma alguma, «o renascimento da figura do despedimento com base em motivo atendível, contemplada na versão originária do Decreto-Lei 372-A/75 e suprimida pelo Decreto-Lei 84/76, supressão essa depois confirmada pelos diplomas que ulteriormente versaram sobre esta matéria», chamando-se a atenção para a diferença de redacção entre o artigo 4.º, n.º 2, de versão primitiva da lei dos despedimentos de 1975, a qual proibia a entidade patronal de «promover o despedimento sem justa causa nem motivo atendível», e o artigo 52.º, alínea b), da Constituição de 1976 (versão original), que veio afastar o motivo atendível, incumbindo o Estado de garantir o direito ao trabalho, assegurando «a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos». A garantia de emprego, independentemente da proibição transcrita, postulava, desde logo, «a garantia da estabilidade da posição do trabalhador na relação de trabalho e de emprego e a sua não funcionalização aos interesses da entidade patronal» (in Diário da República, 1.ª série, pp. 2525-2526; sobre a doutrina deste acórdão, neste ponto, e dos votos de vencido pronunciaram-se J. J. Gomes Canotilho e Jorge Leite, estudo citado, pp. 72 e segs.; A. Menezes Cordeiro, Manual, cit., pp. 813 e segs.; António L. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I, pp. 450 e segs.).
23 - No Acordo Económico e Social de Outubro de 1990 foi aceite a criação de um novo caso de cessação do contrato de trabalho, o despedimento por inadaptação do trabalhador, decorrente da introdução de inovações tecnológicas no posto de trabalho. São indicados no seu anexo n.º 16 os sete objectivos do novo instituto:
1) Contribuir para a modernização do tecido empresarial, garantindo maior eficácia à reestruturação das empresas;
2) Proporcionar maior eficácia em relação à introdução de novos processos de fabrico, de novas tecnologias ou equipamentos baseados em diferente ou mais completa tecnologia;
3) Proporcionar a racionalização e adequação dos recursos humanos no quadro de uma situação favorável de emprego;
4) Prevenir desequilíbrios estruturais, económicos e financeiros da empresa decorrentes da perda de competitividade por inadaptação do trabalhador;
5) Prevenir situações de desocupação, precursoras de marginalização e discriminação profissionais;
6) Promover a qualificação dos recursos humanos, incentivando a formação profissional na empresa;
7) Estimular a observância das condições de segurança e saúde no trabalho. [P. 95 da publicação oficial.]
24 - Importa preliminarmente estabelecer o alcance do pedido formulado pelo Presidente da República.
A redacção do requerimento é relativamente vaga nesta parte. As dúvidas são formuladas quanto às alíneas a) e c) do n.º 6 do artigo 2.º do decreto 302/V, quando «enunciam genericamente as medidas a adoptar relativamente à cessação do contrato por inadaptação», e decorrem de uma invocada «falta ou insuficiência do princípio da tipicidade, na medida em que não respeitem o princípio da proibição do excesso e atentem contra a garantia da segurança do emprego».
Na verdade, a alínea a) distingue duas situações divesas de cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhor, consoante as funções exercidas pelo visado. Por um lado, quanto ao comum dos trabalhadores, tal cessação pode ocorrer «quando se verifiquem reduções reiteradas de produtividade ou de qualidade, avarias reiteradas nos meios afectos ao posto de trabalho ou riscos para a segurança e saúde do trabalhador ou dos restantes trabalhadores ou de terceiros». Por outro lado, quanto aos trabalhadores que desempenham «cargos de complexidade técnica ou de direcção» tal cessação só pode ocorrer quando «não tenham sido cumpridos os objectivos previamente fixados e formalmente aceites». Em qualquer destes dois casos, a situação de inadaptação tem de ser «determinada pelo modo de exercício de funções» e a mesma deve tornar «praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho». Do corpo do n.º 6 do artigo 2.º consta que, com a cessação do contrato por inadaptação do trabalhador, «nos casos em que forem introduzidas modificações tecnológicas no seu posto de trabalho, visa-se acautelar a eficácia da reestruturação das empresas, como instrumento essencial de competitividade no mercado e, nessa medida, de segurança do emprego dos respectivos trabalhadores, bem como proteger a posição do trabalhador, garantindo-lhe, nomeadamente, prévia formação profissional e um período de adaptação suficiente no posto do trabalho».
A entidade requerente não suscita dúvidas de constitucionalidade quanto à alínea b), a qual diz respeito às situações de inadaptação do comum dos trabalhadores e onde se estabelecem os condicionamentos desta nova causa de cessação do contrato de trabalho. Suscita-as, porém, quanto à alínea c) conjugada com o alínea a), sendo certo que aquela diz respeito exclusivamente à inadaptação dos trabalhadores que desempenham «cargos de complexidade técnica ou de direcção» {«tratando-se da situação prevista na parte final da alínea a), relativa a cargos de complexidade técnica ou de direcção [...]»}, estabelecendo-se para tais casos os condicionamentos específicos para a cessação do contrato de trabalho: atribuição ao trabalhador da compensação devida e verificação de que «a inadaptação não tenha sido determinada pela falta de condições de higiene e segurança no trabalho imputável à entidade empregadora».
Poderia mesmo concluir-se que o Presidente da República não suscita dúvidas de constitucionalidade quanto à cessação do contrato de trabalho por inadaptação do comum dos trabalhadores, mas tão-somente quanto aos trabalhadores que desempenham cargos de complexidade técnica ou direcção. A verdade, porém, e que há-de reconhecer-se que tal conclusão não é segura e, por isso, não deve o Tribunal interpretar o pedido formulado de forma restritiva, impondo-se analisar as situações que afectam as diferentes categorias de trabalhadores.
25 - A delimitação do pedido de apreciação de constitucionalidade feita nos termos atrás apontados implica, assim, que este Tribunal tenha de pronunciar-se quanto à constitucionalidade desta nova figura de cessação do vínculo laboral em termos gerais de qualquer contrato de trabalho subordinado, abrangendo as duas situações atrás indicadas do comum dos trabalhadores e de trabalhadores que desempenham cargos de complexidade técnica ou de direcção. A expressão «cargos de complexidade técnica» há-de ser entendida no sentido de abranger, grosso modo, os quadros técnicos da empresa.
Este Tribunal perfilha o entendimento de que não é constitucionalmente ilegítima esta nova figura de cessação de contrato de trabalho, nos precisos termos em que está regulada no decreto em apreciação, desenvolvendo assim a problemática que se deixara em aberto no Acórdão 107/88, isto é, a questão da admissibilidade de despedimentos individuais fundados em «causas objectivas não imputáveis a culpa do empregador que, em cada caso concreto, tornem praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».
Em abono da constitucionalidade da figura agora prevista no diploma sub judicio poderá desde logo argumentar-se, num primeiro entendimento, que o conceito constitucional de justa causa é susceptível de cobrir factos, situações ou circunstâncias objectivas, não se limitando à noção de justa causa disciplinar, que está aceite no nosso direito do trabalho desde 1976 (artigo 10.º do Decreto-Lei 372-A/75, na redacção do Decreto-Lei 841-C/76: «comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho»; noção esta repetida no artigo 9.º, n.º 1, da nova lei dos despedimentos de 1989, aprovada pelo Decreto-Lei 64-A/89). Partindo da ideia de que a Constituição, «quando proíbe os despedimentos sem justa causa, coloca-se noutra perspectiva: a da defesa do emprego e da necessidade de não consentir denúncias imotivadas. Não fez apelo aos casos excepcionais da antiga 'justa causa', que legitimava uma rescisão imediata sem indemnizações; a proibição constitucional tem uma explicação diversa, pois pretende atingir os despedimentos arbitrários, isto é, sem motivo justificado» (Bernardo da Gama Lobo Xavier, «A recente legislação dos despedimentos», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXIII, 1976, p. 161, passo transcrito na declaração de voto conjunta dos conselheiros Cardoso da Costa e Messias Bento, anexa ao Acórdão 107/88), é assim possível defender que a Constituição não veda formas de despedimento do trabalhador com fundamento em motivos objectivos, «tais como o despedimento tecnológico ou por absolutas necessidades da empresa». Isto sem prejuízo de o despedimento por estes últimos motivos dever obedecer a uma regulamentação específica, rodeada de adequadas garantias.
Mas, ainda quando se não partilhe o ponto de vista acabado de referir, quanto ao preenchimento do conceito constitucional indeterminado de justa causa, continuar-se-á a sustentar, agora num segundo entendimento, o juízo de legitimidade constitucional desta regulamentação. É que, mesmo partindo-se de uma «densificação semântica» do conceito constitucional de justa causa que privilegie a história dos trabalhos preparatórios e a preocupação do legislador constituinte de proscrever os despedimentos com base em motivo atendível, previstos na lei dos despedimentos de 1975 (vejam-se J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., I, Coimbra, 1984, p. 291), deve entender-se que, ao lado da «justa causa» (disciplinar), a Constituição não vedou em absoluto ao legislador ordinário a consagração de certas causas de rescisão unilateral do contrato de trabalho pela entidade patronal com base em motivos objectivos, desde que as mesmas não derivem de culpa do empregador ou do trabalhador e que tornem praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral. Já se não estará perante situações de despedimento com base em justa causa quando se permite a cessação do contrato de trabalho pela causa objectiva de o trabalhador não conseguir adaptar-se a uma alteração tecnológica do seu posto de trabalho, inadaptação que, sem culpa do empregador, torne praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral e justifique, por isso, a respectiva caducidade. Não pode admitir-se que baste a conveniência da empresa, por razões objectivas, para ser constitucionalmente legítimo pôr-se termo ao contrato de trabalho. Há-de considerar-se que tem de verificar-se uma prática impossibilidade objectiva e que tais despedimentos hão-de ter uma regulamentação substantiva e processual distinta da dos despedimentos por justa causa (disciplinar), de tal forma que fiquem devidamente acauteladas as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, não podendo através desse meio conseguir-se, em caso algum, uma «transfiguração» da regulamentação que redunde na possibilidade, mais ou menos encapotada, de despedimentos imotivados ou ad nutum ou de despedimentos com base na mera conveniência da empresa.
Ainda segundo este ponto de vista mais restritivo na densificação semântica da noção constitucional de justa causa, considera-se que a verdadeira impossibilidade objectiva de subsistência da relação laboral é que justifica a legitimidade constitucional dos despedimentos colectivos, regulamentados pelo Decreto-Lei 84/76, de 28 de Janeiro, já depois de aprovado o texto do que viria a ser o artigo 52.º, alínea b), da versão original da Constituição de 1976, correspondente ao actual artigo 53.º da Constituição. Ora, é uma impossibilidade objectiva análoga que há-de justificar também os despedimentos individuais com base em motivos de inadaptação por evolução tecnológica («despedimentos tecnológicos»), a que se referia o deputado Francisco Marcelo Curto no debate da Assembleia Constituinte com o deputado Mário Pinto, na sessão em que foi aprovado o texto da referida norma constitucional (remete-se para o Diário da Assembleia Constituinte, n.º 48, de 18 de Setembro de 1975, p. 1388, para o texto do Acórdão 107/88 e para as declarações de voto dos conselheiros Raul Mateus, Cardoso da Costa e Messias Bento), pois não se vê por que há-de ser constitucionalmente legítimo o despedimento colectivo de dois trabalhadores numa empresa de, por exemplo, 40 trabalhadores com base em motivos tecnológicos e já passe a ser ilegítimo o despedimento individual de um trabalhador na mesma empresa por inadaptação decorrente de introdução de modificações tecnológicas no seu posto de trabalho (vejam-se os artigos 13.º, n.º 2, da lei dos despedimentos de 1975, na redacção introduzida pelo citado Decreto-Lei 84/76, e 16.º da lei dos despedimentos de 1989). Ponto fundamental é que a regulamentação substantiva e processual seja distinta da prevista para os despedimentos com justa causa, que os conceitos utilizados não sejam vagos ou demasiado imprecisos (como se entendeu no Acórdão 107/88 que sucedia com o diploma então em apreço) e que as garantias concedidas ao trabalhador, quer no plano da fiscalização (por entidade estranha ao vínculo) da existência de uma situação de impossibilidade objectiva, quer no que toca à indemnização a conceder-lhe, estejam asseguradas.
Determinante neste juízo de constitucionalidade foi, pois - para qualquer das posições em presença -, o regime traçado em concreto no diploma em apreciação, constante das 11 alíneas do n.º 6 do seu artigo 2.º, quer no que toca à caracterização da causa de despedimento e da finalidade visada, quer no que toca aos seus elementos integrantes e aos condicionalismos ligados à sua efectivação, quer, por último, às significativas garantias do trabalhador que aí estão previstas.
Impõe-se, por isso, uma análise da regulamentação globalmente traçada no decreto 302/V.
Do corpo do n.º 6 do artigo 2.º retira-se que a cessação do contrato de trabalho por inadaptação nos casos em que forem introduzidas modificações tecnológicas no posto de trabalho há-de visar «acautelar a eficácia da reestruturação das empresas como instrumento essencial da competitividade no mercado e, nessa medida, de segurança do emprego dos respectivos trabalhadores, bem como proteger a posição do trabalhador, garantindo-lhe, nomeadamente, prévia formação profissional e um período de adaptação suficiente no posto de trabalho». Os elementos integradores desta causa constam das três primeiras alíneas do referido número, e nas alíneas d) e e) prevê-se um aviso prévio fundamentado obrigatoriamente comunicado ao trabalhador e à estrutura representativa dos trabalhadores, assegura-se a intervenção desta estrutura na apreciação dos motivos invocados e reconhece-se um direito de oposição do próprio trabalhador quanto à cessação. Além disso, garantem-se os direitos a aviso prévio, a crédito de horas durante esse período a uma compensação pecuniária proporcional à duração do contrato e até a rescisão do contrato pelo trabalhador durante o prazo de pré-aviso, sem perda do direito à compensação.
No plano das garantias processuais da protecção do emprego, o decreto em apreciação tutela as consequências da ilicitude do despedimento, confere carácter urgente às acções judiciais destinadas a declarar a mesma ilicitude, bem como prevê a instituição de providência cautelar de suspensão desta causa de cessação do contrato de trabalho. Impõe-se à entidade patronal a manutenção do nível de emprego permanente, bem como a obrigação de informação e consulta das estruturas representativas dos trabalhadores quanto às modificações nos postos de trabalho decorrentes da reestruturação ou alterações tecnológicas. Por último, estabelece-se um «adequado regime punitivo» relativo às infracções cometidas pela entidade empregadora na matéria.
Há-de, assim, concluir-se que não se mostram violados os artigos 53.º ou 18.º, n.º 2, da Constituição, visto que a cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador nos casos de introdução de modificações tecnológicas no posto de trabalho é ainda compatível com o princípio constitucional da proibição dos despedimentos sem justa causa, funcionando como ultima ratio, verificação de uma situação de impossibilidade objectiva, mostrando a regulamentação proposta que fica afastado o risco de transfiguração ou desvirtuamento do instituto, de forma que a sua aplicação não permita, na prática, os despedimentos imotivados ou ad nutum ou com base na mera conveniência da empresa.
Obtida esta conclusão e de harmonia com a metodologia atrás indicada, tem este Tribunal de analisar mais de perto a dúvida de constitucionalidade formulada pelo Presidente da República, consistente em saber se a enunciação das «medidas a adaptar relativamente à cessação do contrato por inadaptação do trabalhador» não é feita de forma tão genérica que, «por falta ou insuficiência do princípio da tipicidade», não respeitem «o princípio da proibição do excesso e atentem contra a garantia da segurança no emprego».
Haverá falta ou insuficiência do princípio da tipicidade relativamente à caracterização das causas que dão lugar à cessação do contrato de trabalho por inadaptação?
Responde-se negativamente a tal pergunta.
De facto, e desde logo, no caso não se está perante matéria constitucionalmente submetida a um princípio de tipicidade. A Constituição (recte, o princípio da proibição de despedimentos sem justa causa) apenas exige que os casos de cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador sejam tipificados pela lei em termos de se fornecerem ao juiz critérios seguros de decisão. Dizendo de outro modo: o que a lei não pode é entregar inteiramente à decisão do juiz a determinação dos pressupostos de facto da cessação do contrato por inadaptação do trabalhador.
A isto acresce que se está perante uma lei de autorização legislativa, à qual a Constituição só exige que nela se fixe o objecto, o sentido e a extensão da futura legislação autorizada, determinando os critérios, princípios ou directrizes primariamente vinculativos dessa futura legislação.
Importa dizer que a regulamentação em análise é suficientemente detalhada, ultrapassando o mínimo de determinabilidade exigível para afastar o risco de subjectivismo na aplicação judicial futura.
Para além disso, deve notar-se que a inadaptação, no que toca aos encargos de complexidade técnica e de direcção, pressupõe especificamente que não tenham sido cumpridos os objectivos previamente fixados e formalmente aceites, sendo tal ocorrência determinada pelo modo de exercício de funções, de tal forma que se venha a ter como praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, impossibilidade prática que tem de ser aferida em termos de razoabilidade. Pode dizer-se, por isso, que se encontram suficientemente determinadas, também quanto a estes trabalhadores, as situações em que pode ocorrer esta causa de cessação ou despedimento, a qual fica ainda condicionada a que não se haja verificado por «falta de condições de higiene e segurança no trabalho imputável à entidade empregadora» e a que haja sido posta à disposição do visado a compensação devida.
Sendo manifesto que as condições de cessação do contrato de trabalho previstas nesta alínea c) são menos apertadas do que as previstas na alínea b), ainda aqui não pode considerar-se que haja violação do princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou da proibição do excesso, que se esteja perante uma medida desnecessária, inapropriada ou desproporcionado para salvaguarda dos outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos e que estão em causa em todos os casos de cessação do contrato de trabalho por inadaptação. De resto, a diferenciação de regimes de cessação de trabalho por inadaptação entre o aplicável ao comum dos trabalhadores e o aplicável aos cargos de complexidade técnica ou de direcção não se configura como arbitrária ou irrazoável, pois que encontra fundamento nas características particulares e nas exigências específicas dos cargos desempenhados pelos trabalhadores deste último grupo.
Não é, assim, possível detectar qualquer violação do princípio de igualdade ou, ainda, dos artigos 18.º, n.º 2, e 53.º da Constituição.
V
26 - Nesta conformidade, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade de todas as normas do decreto 302/V, da Assembleia da República, por violação do disposto nos artigos 54.º, n.º 2, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
Lisboa, 4 de Abril de 1991. - Armindo Ribeiro Mendes (com declaração de voto) - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - António Vitorino - Antero Alves Monteiro Dinis (com a declaração de voto agora junta) - Luís Nunes de Almeida [com a declaração de que entendi que a norma do artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do decreto, enquanto permite o alargamento do período experimental nas empresas com 20 ou menos trabalhadores, viola o princípio da igualdade consignado no artigo 13.º da Constituição, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Ribeiro Mendes, cujo teor, nessa parte, inteiramente perfilho] - Mário de Brito (com a declaração de voto junta) - Fernando Alves Correia (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Messias Bento (vencido, por entender que as normas sub judicio não padecem de qualquer inconstitucionalidade. Acompanhei, assim, o primeiro relator, Exmo. Conselheiro Alves Correia. Continuo, na verdade, a ter por inteiramente procedente tudo quanto, no que ora importa, consta da declaração de voto aposta ao Acórdão 107/88, que subscrevi com o Exmo. Conselheiro Cardoso da Costa) - Vítor Manuel Neves Nunes de Almeida (vencido, pelos fundamentos constantes do voto de vencido do Exmo. Conselheiro Alves Correia, a que adiro na íntegra) - Bravo Serra [vencido quanto à decisão, pois que entendo não haver, no procedimento de formação do decreto da Assembleia da República n.º 302/V, infracção dos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, adoptando, no facto, com vénia, os fundamentos constantes da declaração de voto produzida pelo Exmo. Conselheiro Alves Correia] - Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa [vencido quanto à decisão, ou seja, quanto à existência de violação dos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, em conformidade com a posição já assumida, a esse propósito, em declaração de voto aposta ao Acórdão 107/88 e subscrita conjuntamente com o Exmo. Conselheiro Messias Bento - declaração para cujos termos, na parte pertinente, se remete e cujo sentido é retomado agora nas declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Alves Correia e Assunção Esteves].
Declaração de voto
1 - Relativamente às questões de (in)constitucionalidade material das normas especificamente postas em causa pelo Presidente da República, não acompanhei a maioria do Tribunal em dois pontos. Passo a indicar as razões da minha discordância quanto à posição que fez vencimento.
2 - Primeiro ponto: artigo 2.º, n.º 3, alínea d), segundo parágrafo, parte final, do decreto 302/V.
Como se salienta no texto do acórdão, os signatários do Acordo Económico e Social não previram a possibilidade de o regime de comissão de serviço ser aplicável a trabalhadores contratados para funções dirigentes ou de secretariado pessoal de cargos dirigentes, os quais ficarão desvinculados da empresa no momento da cessação da comissão de serviço por decisão da entidade patronal, tendo apenas direito a indemnização. Trata-se de uma inovação com origem na proposta de lei de autorização legislativa apresentada pelo Governo. É óbvio que a circunstância de a norma impugnada conter solução não prevista naquele acordo não acarreta, em si, qualquer inconstitucionalidade. É, todavia, significativo que a inovação não tenha provindo da concertação entre Governo, confederações patronais e sindicais. Impõe-se, por isso, analisar qual a credencial constitucional susceptível de justificar esta manifesta derrogação do princípio constitucional da segurança no emprego, acolhido no artigo 53.º da Constituição.
A norma em causa permite que haja trabalhadores contratados para exercer funções dirigentes na empresa (ou cargos de secretariado pessoal), em que o próprio contrato de admissão prevê que, a qualquer momento, a entidade patronal pode denunciá-lo unilateralmente, mediante indemnização, sem ter de invocar justo causa ou uma qualquer causa de caducidade do contrato. Parece manifesto que se está perante um mecanismo que possibilita que estes trabalhadores possam em qualquer momento ser despedidos, sem que a entidade patronal tenha de invocar uma causa legalmente atendível para tal atitude. Parece, assim, indesmentível que a entidade patronal tem o direito de, com base num acordo passado, pôr termo, sem motivo, ou até arbitrariamente, ao contrato, sem haver possibilidade de controlo judicial da decisão de despedimento.
Como se diz no texto do acórdão, este regime encontrou inspiração no instituto da comissão de serviço, regulado pelo direito administrativo. Simplesmente, a transposição do regime do direito administrativo para o plano juslaboral não pode ser feita sem adaptações. Na verdade, na relação de emprego público e relativamente aos cargos dirigentes acentuou-se, a partir de 1979, a tendência para tornar precário o vínculo desses altos funcionários, os quais podiam ver terminada a todo o tempo a respectiva comissão, por mera «conveniência de serviço» (era a motivação exigida pelo Decreto-Lei 356/79, de 31 de Agosto, revogado pelo Decreto-Lei 502-E/79, de 22 de Dezembro, repristinado pelo Decreto-Lei 10-A/80, de 18 de Fevereiro; sobre as questões de constitucionalidade suscitadas pelo primeiro dos diplomas e que deram origem a numerosas espécies jurisprudenciais, veja-se o Acórdão 266/87 deste Tribunal, in Diário da República, 1.ª série, n.º 197, de 28 de Agosto de 1987). A solução de tornar os cargos dirigentes da função pública cargos de confiança política consolidou-se com a recente legislação sobre estatuto do pessoal dirigente (artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei 323/89, de 26 de Setembro). Esta solução tem credencial constitucional, visto a própria Constituição estabelecer o princípio do renovação dos cargos políticos, vedando o respectivo carácter vitalício (artigo 121.º): «[s]em dificuldades se concede que não está constitucionalmente vedada à lei a possibilidade de, em relação a certos agentes do Estado, criar estatutos de total dependência, de pura confiança política, livremente exoneráveis a todo o tempo, sem necessidade de nenhuma fundamentação (nem sequer da famigerada confiança política)» (formulação do Acórdão 78/86 deste Tribunal, in Diário da República, 2.ª série, n.º 134, de 14 de Junho de 1986). Verifica-se assim uma extensão do regime de renovação periódica dos cargos políticos e da sua precariedade até domínios em que não era indispensável que assim sucedesse.
No plano do direito do trabalho, os cargos dirigentes não podem ser concebidos como cargos de confiança política. Os seus titulares são trabalhadores por conta de outrem, embora com um estatuto especial derivado da circunstância de desempenharem «actividades de coordenação e orientação de outros trabalhadores, envolvendo delegações de poder do empregador e a inerência de responsabilidades na gestão da empresa» (A. L. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I, 7.ª ed., Coimbra, 1991, p. 151). Enquanto trabalhadores por conta de outrem, mesmo que vinculados por uma especial relação fiduciária, gozam da garantia constitucional de segurança no emprego, não podendo ser despedidos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos (artigo 53.º da Constituição). A presente autorização legislativa vai ao ponto de precarizar totalmente a relação de trabalho nesta matéria, admitindo os despedimentos arbitrários ou ad nutum. Como foi posto em evidência no debate parlamentar, cria-se uma nova causa de despedimento, que faz renascer a solução do pacote laboral de 1988, que previa como justa causa o despedimento por meras razões de confiança. O próprio Ministro do Emprego e da Segurança Social considerou que os trabalhadores que ocupam cargos dirigentes são trabalhadores por conta de outrem que têm constitucionalmente o direito ao lugar. Admitiu, porém, que, havendo acordo entre as partes, esse princípio poderia eventualmente ser afastado. Mas, em sua opinião, o acordo das partes implicava que não houvesse nenhuma violação relativamente a esta matéria. Só que esta visão não pode ser aceite no plano jurídico-constitucional: de outro modo, a vontade das partes poderia sempre derrogar preceitos constitucionais ou legais imperativos e, por isso, inderrogáveis.
Tão-pouco se pode aceitar, para contornar a proibição do artigo 53.º da Constituição, que se esteja perante contratos de prestação de serviço, e não perante contratos de trabalho subordinado. Os trabalhadores dirigentes são trabalhadores por conta de outrem subordinados aos poderes de direcção e disciplinar da entidade patronal, sendo as suas funções objecto de normas específicas nos instrumentos colectivos de trabalho. Não são meros prestadores de serviços ou profissionais liberais, não são partes de um qualquer, e mais ou menos nebuloso, contrato misto, cuja natureza ficaria sempre por esclarecer. Quanto a eles, não pode acolher-se a tentativa de explicação avançada no debate parlamentar pelo deputado Narana Coissoró, de que seriam titulares de cargos de confiança que, pela sua própria natureza, reclamariam uma relação de «íntima confiança e lealdade», a qual «quase» elevaria estes trabalhadores à categoria de profissionais liberais. Ainda que admitindo a especificidade destes cargos, há-de convir-se que o tímido «quase» usado por este parlamentar não chega para afastar o regime do artigo 53.º da Constituição. E o que acaba de dizer-se para os cargos dirigentes há-de valer, por maioria de razão, para os trabalhadores que desempenham funções de secretariado pessoal de cargos dirigentes ...
Igualmente excluo que para justificar esse regime se invoquem certos exemplos de direito comparado, visto os mesmos surgirem em ordenamentos em que não está constitucionalmente consagrado o princípio de segurança no emprego.
Daí que se impusesse, para mim, como inevitável a conclusão de que a norma impugnada é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 53.º da Constituição, não bastando manifestamente, para salvar a constitucionalidade da solução, dizer que a mesma se estende ao desempenho de cargos de administração, visto que no comum dos casos de administração de sociedades de capitais se está totalmente fora do domínio do direito do trabalho.
3 - Segundo ponto: o artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do decreto 302/V.
A minha discordância com a tese que fez vencimento situa-se exclusivamente no ponto em que entendeu que a solução constante da norma em apreciação não violava o princípio constitucional da igualdade.
Entendo, diferentemente do que foi decidido, que a criação de uma diferenciação na duração do período experimental, para as empresas de pequena dimensão (de 20 ou menos trabalhadores) constitui solução arbitrária, desprovida de fundamento material bastante e, por isso, violadora do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.
Basta ler o debate parlamentar para se alcançar que a única justificação avançada para a diferenciação foi a de que a mesma foi objecto de negociação entre os parceiros sociais e, como se exprimiu o Ministro do Emprego e da Segurança Social, «pode dizer-se que foi uma matéria em que os empregadores insistiram muito neste tipo de divergência» (in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 30 de Janeiro de 1991, p. 1209).
Entendo, por isso, que a razão estava com o deputado Narana Coissoró quando, no mesmo debate parlamentar, denunciou como ilógica a solução de estender o período de trabalho experimental em 50% da duração-regra para as pequenas empresas, atendendo às finalidades que justificam a existência de um período experimental no contrato de trabalho:
Pensemos, por exemplo, nas empresas com menos trabalhadores. Ora, a lógica levaria a que, nestes casos, o período experimental fosse menor porque numa empresa com este número de trabalhadores o empregador conhece-os pessoalmente, no dia-a-dia, como os dedos da mão.
Porém, já o mesmo não acontece numa empresa de 2000 ou 4000 trabalhadores, onde as relações são impessoais, passam através do computador ou da ficha mecânica.
Assim, numa empresa de 20 ou menos trabalhadores, em que o patrão os trata quase por tu-cá-tu-lá e em que ambos convivem dia-a-dia, V. Ex.ª, em vez de diminuir o período experimental, porque as partes sabem mutuamente com quem estão a lidar, vai aumentá-lo ainda mais 30 dias, até fazer uma sucessão de períodos experimentais de 90 dias, para deste modo o empregador ter sempre à mão o trabalhador, numa espécie, digamos, de coacção moral sobre ele, no sentido de, a qualquer momento, o poder mandar embora sem qualquer indemnização. [In Diário, cit., p. 1207.]
Independentemente da origem «contratual» da norma, parece-me claro que falta aqui «um mínimo de justificação social e humana para a dignificação do trabalho», de que falava o mesmo deputado.
Quer dizer, embora a lei constitucional não proíba, em sede do princípio de igualdade, o estabelecimento de distinções pelo legislador ordinário, a verdade é que proíbe as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante.
Ora, a tese vencedora não demonstrou, salvo o devido respeito, que esta distinção não era arbitrária. Invocou em seu favor considerações sobre o peso económico de uma má escolha de um trabalhador pelas empresas de pequena dimensão, considerações que não relevam no domínio das finalidades alcançáveis com a instituição do período experimental. Tão-pouco se pode argumentar com o aligeiramento previsto na lei das formalidades do processo disciplinar para as pequenas empresas, visto que tal aligeiramento corresponde a uma menor sofisticação, que existe, em regra, nas pequenas empresas, de recursos mais reduzidos e que, muitas vezes, não têm possibilidade de recorrer a consultores jurídicos em matéria juslaboral, sendo, assim, materialmente fundado.
Os objectivos visados com a medida não têm a ver com as finalidades do período experimental. Visam facilitar a vida às pequenas empresas, libertando-as da necessidade de recorrer à celebração por escrito de contratos de trabalho a termo certo. Não se encontra, por isso, para esta diferenciação de tratamento um fundamento material bastante, uma qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Esta desigualdade de tratamento de situações idênticas (por exemplo, a de um trabalhador contratado para uma empresa com 18 trabalhadores e a de um trabalhador contratado para outra empresa do mesmo ramo com 22 trabalhadores) revela-se como discriminatória, baseando-se num motivo constitucionalmente impróprio (o de evitar o recurso a contratos de trabalho a termo). O legislador não respeitou, assim, os limites à sua liberdade de conformação ou constitutiva. Este Tribunal estava assim em condições de censurar este caso de flagrante e intolerável desigualdade. Daí que tivesse considerado ocorrer violação do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição. - Armindo Ribeiro Mendes.
Declaração de voto
Não acompanhei o acórdão relativamente às questões que a seguir se enunciam, fazendo-o por força das razões que, a propósito de cada uma delas, se deixam agora assinaladas.
A) A questão da parte final do segundo parágrafo da alínea d) do n.º 3 do artigo 2.º, que estabelece um regime legal mínimo, embora supletivo, quanto a algumas matérias relativas à prestação de trabalho em comissão de serviço.
1 - No entendimento do Presidente da República, «a parte final do segundo parágrafo da alínea d) do n.º 3 do artigo 2.º - ao estabelecer um regime legal mínimo, embora supletivo, quanto a algumas matérias relativas à prestação de trabalho em comissão de serviço - possibilita que o trabalhador, quando assim tenha sido convencionado, veja extinto o próprio contrato de trabalho com a cessação da comissão de serviço. Essa solução pode colocar dúvidas sobre o respeito do princípio da proibição de cessação do contrato individual de trabalho sem justa causa. O conhecimento prévio pelo trabalhador da possibilidade de despedimento por mero efeito da cessação da comissão de serviço pode constituir disposição de direitos irrenunciáveis do trabalhador, e a sua convenção pelas partes pode constituir a derrogação de normas inderrogáveis, parecendo violar-se o disposto no artigo 53.º da Constituição - que garante a segurança no emprego».
Em conformidade com a primeira parte daquela norma, a cessação da comissão de serviço não envolve a extinção do contrato de trabalho, regressando o trabalhador, após aquela cessação, à categoria ou às funções que vinha exercendo ou à categoria a que, entretanto, tenha sido promovido.
Todavia, na situação contemplada na parte final da mesma norma - aquela a que se reporta o pedido do Presidente da República -, à cessação da comissão de serviço corresponde, sem mais, a perda do emprego do trabalhador, pois que àquela cessação se liga automaticamente o efeito da extinção do contrato de trabalho, se as partes nisso tiverem convencionado.
Entendi que o segmento da norma posto em causa no pedido, ao consentir que as partes acordem na extinção do contrato como efeito automático da cessação da comissão de serviço equivale a permitir que elas acordem na possibilidade de, a todo o tempo, dele disporem livremente ou, dito de outro modo, equivale a permitir que as partes acordem na faculdade de o empregador poder, a todo o tempo, despedir sem justa causa o trabalhador, acarretando assim a sua inconstitucionalidade por afrontamento do disposto no artigo 53.º da Constituição.
2 - Como é sabido, a figura do provimento em comissão de serviço é originária do direito administrativo, a ela se referindo já a Lei de 14 de Junho de 1913, ao permitir a qualquer funcionário exercer comissões transitórias de serviço público fora do respectivo quadro.
Após uma lenta evolução conceitual que foi concedendo ao instituto contornos cada vez mais amplos, foi editado o Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro, dispondo que a relação jurídica de emprego na Administração Pública se constitui por nomeação e contrato de pessoal, podendo aquela revestir as modalidades de nomeação por tempo indeterminado e de nomeação em comissão de serviço, sendo certo que uma e outra se reportam ao preenchimento de um lugar do quadro, visando assegurar, de modo profissionalizado, o exercício de funções do próprio serviço público que revistam carácter de permanência.
Esta forma de constituição da relação jurídica de emprego é aplicável não só ao pessoal dirigente e equiparado, mas também aos casos expressamente previstos na lei, e durante o período probatório, quando o funcionário a nomear em lugar de ingresso já estiver nomeado definitivamente em outra carreira.
Pode assim dizer-se que a nomeação em comissão de serviço constitui, actualmente, uma das formas típicas de formação da relação jurídica de emprego na Administração Pública, dirigida a lugares do quadro e visando assegurar o exercício de funções do serviço público que revistam carácter de permanência.
Será que o regime de trabalho em comissão de serviço, contemplado na norma sob apreciação, reflecte de algum modo, na sua estrutura conceitual, não obstante o diferente plano em que se inscreve, a matriz genética que lhe terá servido de inspiração?
3 - No entendimento do acórdão, «os cargos dirigentes ou a eles equiparados revestem-se de um evidente carácter fiduciário, de tal forma que, pela sua própria natureza, são exercidos pelos titulares de forma precária, estando subjacente sempre uma ideia de que a todo o tempo pode cessar a comissão, por decisão de qualquer das partes no contrato», ponderando-se a seguir que «em algumas dessas funções, nomeadamente nas funções de administração, tem-se predominantemente entendido que se não está perante um contrato de trabalho, mas antes perante um contrato de mandato ou de prestação de serviço em regime liberal, como, aliás foi aventado durante o debate parlamentar desta proposta de lei. Em outros, porém, especialmente nos de secretariado pessoal, existe prestação de serviços ou de trabalho, embora com regime próprio».
Simplesmente, entendeu o Tribunal não necessitar de «dirimir a questão de saber se o carácter fiduciário - e, portanto, a diferente ponderação em que a fidelidade pessoal e adequação funcional objectiva determinam o conteúdo dos deveres do prestador de serviço - implica a constituição de um tipo contratual distinto do contrato de trabalho», bastando-lhe reconhecer, como reconheceu, que «nestes casos há fundamento material para um regime de cessação do contrato, restrito ao contrato ou acordo de comissão de serviço, que o fará terminar com a cessação da relação de confiança considerada essencial. Nestes casos, a quebra de relação fiduciária torna absolutamente impossível o serviço comissionado, como se de impossibilidade objectiva se tratasse, não tendo sentido falar-se de derrogação de normas inderrogáveis a este propósito».
O acórdão deixou assim em aberto, ao menos explicitamente, a questão da natureza jurídico-contratual do regime de trabalho em comissão de serviço, acabando, porém, por admitir que, seja qual for essa natureza, existe fundamento material para a cessação do «contrato ou acordo de comissão de serviço» sempre que deixa de existir a relação de confiança considerada como essencial à sua subsistência.
Não pode acompanhar-se esta visão das coisas.
Tem-se por seguro que o trabalho prestado em regime de comissão de serviço não pode deixar de estar sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, enquanto se traduz na prestação de certa actividade, mediante retribuição, a outra pessoa, sob a sua autoridade e direcção.
O regime geral aqui atribuído à prestação de trabalho em comissão de serviço, como, aliás, também sucede no caso da nomeação em comissão de serviço constitutiva da relação jurídica de emprego na Administração Pública, contempla lugares não transitórios ou precários da estrutura ou quadro empresarial, através dos quais é assegurado o exercício de conteúdos funcionais que correspondem a necesidades permanentes da empresa e do serviço.
Não parece possível sustentar-se existir ali um contrato de prestação de serviços (em regime liberal nos casos das funções de administração, e com regime próprio nos casos das funções de secretariado pessoal), porquanto, no contrato de trabalho, ao contrário do que sucede na prestação de serviços, presta-se uma actividade e não se proporciona apenas certo resultado de trabalho e, por outro lado, o prestador de serviços, ao contrário do que acontece com o trabalhador contratado, não fica sujeito à autoridade e direcção da pessoa ou entidade servida, exercendo a actividade conducente ao resultado pretendido como melhor entender, de harmonia com o seu querer e saber e a sua inteligência (cf., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 1985, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 350, pp. 292 e segs.).
Ora, a norma sob sindicância permite a aponibilidade ao contrato de trabalho em regime de comissão de serviço de uma cláusula, nos termos da qual cada uma das partes pode, sem justa causa, pôr termo ao contrato a todo o tempo.
Deste modo, o direito à segurança no emprego e à proibição do despedimento sem justa causa passa a não dispor de qualquer sentido e eficácia, pois que, ao consentir-se, antecipadamente, a possibilidade de o empregador dar por findo, em qualquer altura, o contrato de trabalho, consente-se simultaneamente na eliminação daquele direito fundamental dos trabalhadores.
E não se encontra qualquer suporte para a conclusão extraída pelo acórdão a propósito da existência de «fundamento material para um regime de cessação do contrato, restrito ao contrato ou acordo de comissão de serviço, que o fará terminar com a cessação da relação de confiança considerada essencial», na justa medida em que a cessação do contrato de trabalho em regime de comissão de serviço há-de subordinar-se às garantias constitucionais constantes do artigo 53.º da Constituição, as quais, como se viu, resultam, no caso, manifestamente violadas. E não vale contra esta conclusão o que se alega no acórdão a respeito do facto de «a quebra da relação fiduciária tornar absolutamente impossível o serviço comissionado, como se de impossibilidade objectiva se tratasse», tornando-se assim lícito o despedimento ordenado pelo empregador. Em verdade, o despedimento operado em tais circunstâncias não dispõe de justa causa e atenta contra a segurança no emprego nos termos que a Constituição garante e assegura.
B) A questão da norma da alínea a) do n.º 4 do artigo 2.º, que possibilita a existência de períodos experimentais diferenciados em função da dimensão das empresas.
1 - Segundo o juízo de avaliação do Presidente da República, esta norma, ao possibilitar a existência de períodos experimentais diferenciados em função da dimensão das empresas, «pode suscitar dúvidas no tocante ao respeito do princípio da igualdade e à conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º e no artigo 53.º da lei fundamental».
Acompanha-se o acórdão na parte em que se circunscreve, quanto a esta questão, o âmbito do pedido ao segmento normativo que amplia o prazo de duração do período experimental apenas relativamente às pequenas empresas, isto é, aquelas que empregam 20 ou menos trabalhadores.
E do mesmo modo se sufraga a decisão no tocante ao não reconhecimento, por parte daquele normativo, da violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 53.º da Constituição.
Dele se dissentiu, porém, quando não considerou a norma em causa como afrontadora do princípio da igualdade.
Sustentou-se no acórdão, a este respeito, que o princípio da igualdade não veda o estabelecimento de distinções, antes proíbe as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante. Ora, acrescenta-se depois, «os parceiros sociais signatários do Acordo convieram em que tal distinção se justificava, atentas as peculiaridades das empresas de pequena dimensão. O legislador, por seu turno, aceitou a diferenciação, não criando com isso uma distinção arbitrária».
Como é sabido, o conteúdo jurídico-constitucional do princípio da igualdade abrange, além do mais, a proibição do arbítrio - sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais - e a proibição de discriminação - não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias. As medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não podendo basear-se em qualquer motivo constitucionalmente impróprio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 149 e 150).
À luz destes princípios, e contrariamente à solução encontrada no acórdão, ao permitir que nas pequenas empresas - com 20 ou menos trabalhadores - a duração do período experimental seja superior em 30 dias relativamente ao fixado para as médias e grandes empresas - com mais de 20 trabalhadores -, a norma sob apreciação acaba por estabelecer para os trabalhadores das pequenas empresas uma desigualdade de tratamento, que se traduz num acréscimo do período de ausência ou suspensão da garantia de estabilidade do emprego e que não dispõe de fundamento material bastante, infringindo assim o princípio da igualdade.
Não parece possível sustentar-se a legitimidade daquela diferenciação de tratamento com base nas condições de empregabilidade e de desempenho de funções nas pequenas empresas (inexistência de estruturas ou recursos humanos preparados para a gestão do pessoal, ausência de implementação de sistemas de controlo da produção ao nível da qualidade e da produtividade, falta de uma estrutura directiva com presença permanente, mais frequente polivalência dos trabalhadores), as quais, por serem distintas das verificadas nas empresas de média e grande dimensão, justificariam ali a consagração de um período experimental mais alargado.
Com efeito, respeitando a diferenciação em casusa à generalidade dos trabalhadores, isto é, a trabalhadores indiferenciados, não integrados em carreiras ou categorias correspondentes a cargos de complexidade técnica, elevado grau de responsabilidade ou exercício de funções de confiança, e pessoal de direcção e quadros superiores, o juízo de avaliação a formular sobre as suas capacidades profissionais e respectiva adequação às necessidades da empresa poderá ser atingido com relativa facilidade, mesmo quando não exista uma sofisticada estrutura técnica de selecção e avaliação de mérito no desempenho, nestes casos substituída por uma presença directiva permanente e pessoalizada, que aquela, com vantagem, acabará por suprir.
O tratamento diferenciado do período experimental fundado apenas na diversa dimensão das empresas, para além de nunca ter sido até agora um factor de desigualdade na definição do seu respectivo regime (cf. Decretos-Leis 372-A/75, de 16 de Julho e 64-A/89, de 27 de Fevereiro), não se apresenta como razoável e fundadamente justificado, carecendo assim de suporte constitucional bastante. - Antero Alves Monteiro Dinis.
Declaração de voto
1 - Ao autorizar o Governo a legislar, entre outras matérias, sobre «férias» (artigo 1.º do decreto 302/V), a Assembleia da República, no n.º 2 do artigo 2.º do mesmo diploma, condicionou a «legislação a estabelecer pelo Governo» à observância de alguns princípios fundamentais, entre os quais:
Admissibilidade do encerramento, total ou parcial, das empresas ou estabelecimentos para férias, durante pelo menos 15 dias consecutivos entre 1 de Maio e 31 de Outubro ou por tempo inferior e fora deste período quando estipulado em convenção colectiva ou mediante parecer favorável das estruturas sindicais representantivas dos trabalhadores, sem prejuízo, em qualquer caso, do gozo efectivo do período de férias a que o trabalhador tenha direito, conferindo-se-lhe, no entanto, a faculdade de optar por receber a retribuição e o subsídio de férias correspondente à diferença, desde que assegurado o gozo efectivo de 15 dias úteis de férias, ou por gozar, no todo ou em parte, o período excedente de férias, prévia ou posteriormente ao encerramento [alínea c)]; e
Possibilidade de, nos casos em que a cessação do contrato de trabalho está sujeita a aviso prévio, a entidade empregadora determinar que o seu gozo seja antecipado para o momento imediatamente anterior à data prevista para cessação do contrato [alínea f)].
Segundo o Presidente da República, podem suscitar-se dúvidas acerca da constitucionalidade da parte final da alínea c) e da alínea f):
Quanto à primeira norma, por ela admitir a «renúncia a uma parte de um direito irrenunciável - o direito a férias emergente da alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º da lei fundamental»;
Quanto à segunda, porque, por decisão unilateral do empregador e contra as legítimas expectativas do trabalhador, ela «pode possibilitar a inutilização ou frustração do direito a férias, entendido como direito a um período mínimo de interrupção do quotidiano da vida e do trabalho, segundo um programa pessoal ou familiarmente estabelecido com um mínimo de antecedência».
1.1 - A alínea c) prevê o encerramento, total ou parcial, das empresas ou estabelecimentos para férias em dois casos:
1.º Durante pelo menos 15 dias consecutivos entre 1 de Maio e 31 de Outubro;
2.º Por tempo inferior e fora deste período:
a) Quando estipulado em convenção colectiva;
b) Mediante parecer favorável das estruturas sindicais representativas dos trabalhadores.
Em qualquer dos casos, e para não prejudicar o «gozo efectivo» do período de férias a que tenha direito, concede a mesma alínea ao trabalhador a faculdade de optar por:
Gozar, no todo ou em parte, o período excedente de férias, prévia ou posteriormente ao encerramento;
Receber a retribuição e o subsídio de férias correspondente à diferença, desde que assegurado o gozo efectivo de 15 dias úteis de férias.
É aqui que poderá haver inconstitucionalidade, já que, sendo o período anual de férias de 22 dias úteis [alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º], se está a admitir a «renúncia a uma parte de um direito irrenunciável», como se diz no requerimento do Presidente da República.
Na verdade, já o Prof. Manuel Alonso Olea dizia, no seu livro Introdução ao Direito do Trabalho, tradução de Guilherme de Vasconcelos, Coimbra, 1968, capítulo V «As fontes do direito do trabalho», n.º 7, B):
Geralmente, todas as normas de Direito do Trabalho, tanto as estaduais como as pactuadas, dentro dos respectivos âmbitos, são normas de Direito necessário, mas, ainda em termos gerais, referindo o muito peculiar sentido de que, na medida em que impõem obrigações ou encargos sobre o empresário e, correspondentemente, conferem direitos ou benefícios ao trabalhador, são obrigatórias para aquele e irrenunciáveis para este; tal princípio de irrenunciabilidade, assim entendido, costuma elevar-se à categoria de princípio geral (com as consequentes funções interpretativas ou integradoras) do Direito do Trabalho, frente ao princípio civil geral, que é justamente o contrário, o da renunciabilidade dos direitos. O chamado princípio pró-operário não é senão, em, boa medida, uma versão da irrenunciabilidade, como o é também o entendimento de que, relativamente ao contrato individual de trabalho, a regulamentação estadual e, por sua vez, a pactuada contêm para o trabalhador condições mínimas de trabalho, que podem ser superadas ou melhoradas mas não pioradas ou reduzidas.
E, em conformidade com estas ideias, estão os nossos autores de acordo em que o direito a férias é indisponível. Assim: António de Lemos Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I. Introdução, Relações Individuais de Trabalho, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 1987, § 20, 4.IX; Messias de Carvalho e Vítor Nunes de Almeida, Direito do Trabalho e Nulidade do Despedimento, Livraria Almedina, Coimbra, 1984, I parte, cap. I, n.º 6.2; Jorge Leite e F. Jorge Coutinho de Almeida, Colectânea de Leis do Trabalho, Coimbra Editora, Lda., 1985, parte II, [10], cap. II, III, e Prof. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1991, n.º 193, IV. Aliás, o próprio Decreto-Lei 874/76, de 28 de Dezembro, que define o regime jurídico de férias, feriados e faltas, é expresso em dizer - no n.º 4 do artigo 2.º - que «o direito a férias é irrenunciável e o seu gozo efectivo não pode ser substituído, fora dos casos expressamente previstos na lei, por qualquer compensação económica ou outra, ainda que com o acordo do trabalhador».
O segmento da norma aqui questionado é, pois, inconstitucional, por ofensa do artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, na parte em que esta consagra o direito dos trabalhadores «ao repouso e aos lazeres [...] e a férias periódicas pagas».
1.2 - A alínea f) permite à entidade empregadora, nos casos em que a cessação do contrato de trabalho está sujeita a aviso prévio, determinar que o gozo de férias seja antecipado para o momento imediatamente anterior à data prevista para a cessação do contrato.
A cessação do contrato com aviso prévio, promovida pela entidade empregadora, está prevista no regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, aprovado pelo Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro, em dois casos: despedimento colectivo (artigo 21.º) e cessação por extinção de postos de trabalho não abrangida por despedimento colectivo (artigo 31.º, com referência ao artigo 21.º).
Como dizem Jorge Leite e Coutinho de Almeida, ob. cit., parte II, [10], cap. II, I, o direito a férias não se traduz apenas na «interrupção do trabalho», mas também na «ruptura com o quadro da vida social quotidiana». É que - continuam esses autores - «as férias não respondem apenas à preocupação de o trabalhador se retemperar do desgaste físico e nervoso provocado pelo ritmo e condições a que o sujeitam os actuais modelos de organização do trabalho, mas também à necessidade de evasão do quadro a que se circunscreve a vida quotidiana de cada um, mais ou menos rotineiramente repetida nos dias que se sucedem ao longo do ano».
As férias exigem, assim, um mínimo de previsibilidade e de programação. E para responder a essa exigência tornou-se obrigatória a elaboração de um mapa de férias e a sua afixação com certa antecedência.
Ora, a antecipação permitida por esta norma, nos casos aí previstos, pode inutilizar o gozo das férias segundo o programa previamente estabelecido pelo trabalhador.
Daí que me tenha pronunciado pela sua inconstitucionalidade, por ofensa do preceito constitucional atrás citado.
2 - No n.º 3 do artigo 2.º do decreto fixam-se os princípios por que se há-de reger o trabalho em comissão de serviço.
Segundo a alínea a), admite-se a comissão de serviço relativamente a cargos de administração e de direcção directamente dependentes da administração e ainda a funções de secretariado pessoal relativas aos titulares desses cargos e outras funções previstas em convenção colectiva, esclarecendo-se que esse regime deve ser aberto quer a trabalhadores da empresa, quer a trabalhadores vindos do exterior.
Em caso de cessação da comissão, assegura a alínea d) ao trabalhador o direito à categoria que antes detinha ou àquela a que entretanto tenha sido promovido ou, «quando tenha sido contratado para o efeito, à colocação na categoria constante do acordo, salvo se, neste, as partes tiverem convencionado a extinção do contrato com a cessação da comissão de serviço».
É esta parte da norma que o Presidente da República põe em causa, na medida em que ela «possibilita que o trabalhador, quando assim tenha sido convencionado, veja extinto o próprio contrato de trabalho com a cessação da comissão de serviço».
Também me parece, como se conclui no acórdão, que a norma em questão, na parte transcrita, se dirige tão-somente aos trabalhadores que vêm «do exterior».
Mas é evidente que, nesse caso - isto é, no caso de admissão na empresa de um trabalhador vindo de fora -, se permite a cessação do contrato de trabalho, com a cessação da comissão de serviço, se tiver havido consentimento prévio do trabalhador. Por outras palavras: admite-se o despedimento por acordo do trabalhador.
Ora, isto vai contra o artigo 53.º da Constituição (proibição dos despedimentos sem justa causa).
3 - No n.º 4 fixam-se directrizes quanto ao período experimental.
De acordo com a alínea a), esse período é fixado:
1.º Para a generalidade dos trabalhadores - em 60 dias ou, se a empresa tiver 20 ou menos trabalhadores, em 90 dias;
2.º Para os cargos de complexidade técnica, elevado grau de responsabilidade ou funções de confiança - em 180 dias;
3.º Para o pessoal de direcção e quadros superiores - em 240 dias.
Diz-se no requerimento do Presidente da República que esta alínea, na medida em que possibilita a existência de períodos experimentais diferenciados «em função da dimensão das empresas», pode suscitar dúvidas «no tocante ao respeito do princípio da igualdade e à conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º e no artigo 53.º da lei fundamental».
O que está em causa é, portanto, tão-só a parte da norma que, fixando o período experimental para a generalidade dos trabalhadores em 60 dias, fixa esse mesmo período para as empresas que tiverem 20 ou menos trabalhadores em 90 dias.
Não vejo que haja aí qualquer restrição de direitos e, por isso, fica afastada a violação do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. E também se não pode falar, a meu ver, na ofensa do princípio da segurança no emprego (artigo 53.º).
Mas há, com certeza, ofensa do princípio da igualdade, por não haver fundamento bastante - eu direi, por não haver qualquer fundamento - para a fixação do período experimental dos trabalhadores das empresas de 20 ou menos trabalhadores em número de dias superior ao fixado para os trabalhadores das empresas de mais de 20 trabalhadores.
4 - O n.º 6 do artigo em apreciação (artigo 2.º do decreto) trata da cessação do contrato de trabalho «por inadaptação do trabalhador nos casos em que forem introduzidas modificações tecnológicas no seu posto de trabalho».
O Presidente da República não questiona a possibilidade de o contrato de trabalho cessar por esse motivo, isto é, por «inadaptação do trabalhador» às modificações tecnológicas que vierem a ser introduzidas no seu posto de trabalho. Prova disso está no facto de não pôr em causa todo esse n.º 6.
Duvida, sim, da constitucionalidade das suas alíneas a) e c), por as medidas a adoptar relativamente à cessação do contrato com esse fundamento estarem enunciadas de forma «genérica», com violação, portanto, do princípio da tipicidade.
Segundo essas alíneas, a cessação do contrato exige o concurso dos seguintes requisitos:
a) Para os trabalhadores em geral:
1.º Reduções reiteradas de produtividade ou de qualidade, avarias reiteradas nos meios afectos ao posto de trabalho ou riscos para a segurança e saúde do trabalhador, dos restantes trabalhadores ou de terceiros;
2.º Ser qualquer dessas situações determinada pelo modo de exercício de funções;
3.º Tornar qualquer dessas situações praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho;
b) Para os cargos de complexidade técnica ou de direcção:
1.º Falta de cumprimento dos objectivos previamente fixados e formalmente aceites;
2.º Não ser a inadaptação determinada por falta de condições de higiene ou segurança no trabalho imputável à entidade empregadora;
3.º Ser a situação determinada pelo modo de exercício de funções;
4.º Tornar essa situação praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Tratando-se de cargos de complexidade técnica ou de direcção, a alínea c) obriga ainda a entidade empregadora a pôr «à disposição do trabalhador» a «compensação devida».
O acórdão não se limita a conhecer da questão posta pelo Presidente da República, ou seja, a questão da constitucionalidade das alíneas a) e c) do n.º 6. Começa por conhecer da própria legitimidade constitucional da cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador. E conclui pela não inconstitucionalidade quer da norma (geral) que autoriza a cessação do contrato de trabalho com esse fundamento, quer das normas daquelas alíneas, que estabelecem requisitos (os que ficaram expostos) de que depende, nesse caso, o despedimento do trabalhador.
Por mim, entendo que a Constituição, ao proibir os despedimentos sem justa causa (artigo 53.º), quer significar que só são permitidos os despedimentos com justa causa e que a justa causa tem de ser um «comportamento culposo, censurável, do próprio trabalhador» (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed. revista e ampliada, 1.º vol., 1984, nota VI ao citado artigo), que o mesmo é dizer que «a justa causa constitucional de despedimento [...] só pode ser, em termos de justiça, a justa causa disciplinar, ou seja, a infracção disciplinar de tal modo grave que torne inevitável, no caso concreto, o despedimento» [José Joaquim Gomes Canotilho e Jorge Leite, A Inconstitucionalidade da Lei dos Despedimentos, 1988, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia, 1984, apêndice - «Comentário ao Acórdão 107/88», III, b), 1)].
Ora, partindo deste entendimento, não poderia concluir senão pela inconstitucionalidade das normas submetidas à apreciação do Tribunal. - Mário de Brito.
Declaração de voto
Como primitivo relator, fiquei vencido numa questão decisiva, a qual ditou uma pronúncia de inconstitucionalidade de todas as normas do decreto da Assembleia da República n.º 302/V, por violação dos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
Nas restantes questões, o acórdão acolheu as soluções constantes do memorando que apresentei para discussão no plenário do Tribunal Constitucional, bem como uma boa parte dos tópicos de fundamentação que as sustentavam.
Manifestei, de facto, o entendimento de que o decreto submetido à apreciação deste Tribunal não enfermava de qualquer vício de inconstitucionalidade formal (rectius: de qualquer inconstitucionalidade por vício de procedimento), uma vez que a proposta de lei que esteve na sua origem - a proposta de lei 176/V (cf. Diário da Assembleia da República, 2.ª série A, n.º 20, de 23 de Janeiro de 1991, pp. 738 e segs.) - não carecia de ser submetida a discussão pública, para o efeito de sobre ela se pronunciarem as comissões de trabalhadores e as associações sindicais.
São os fundamentos desta opinião que, com a desejável brevidade, passo a expor:
1 - As leis de autorização legislativa e, naturalmente, os decretos da Assembleia da República, que constituem a sua antecâmara, são, sem sombra de dúvidas, leis em sentido próprio e, como tais, são susceptíveis de controlo jurisdicional da constitucionalidade - inclusive, preventivo, tendo este por finalidade impedir que, com elas, se autorize a produção de normas que, substancialmente, afrontem a Constituição. Com efeito, deve considerar-se ultrapassada a concepção de lei correspondente à ideologia do Estado de direito liberal, que entendia que uma lei, para o ser em sentido rigoroso e próprio, precisava de reger imediatamente relações intersubjectivas «stricto sensu» (cf. A. M. Barbosa de Melo, «Discussão pública pelas organizações de trabalhadores de leis de autorização legislativa», in RDES, ano XXXI, n.os 3/4, pp. 531 e 532), isto é, relações jurídicas entre os particulares ou entre estes e o Estado (cf., neste sentido, António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. policopiada, vol. II, Lisboa, 1985, pp. 348 e 349), e, em particular, as relações tocantes à «liberdade e propriedade dos cidadãos» (cf. R. Ehrhardt Soares, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955, pp. 71 e 72).
Mas se a leis de autorização legislativa devem ser hoje entendidas como verdadeiras e próprias «leis», elas distanciam-se, sob o ponto de vista da sua eficácia jurídica, de outras leis. As leis de autorização, emanadas no âmbito do artigo 168.º da Constituição, não produzem efeitos jurídico-materiais no domínio social sobre que o Governo pretende legislar. Limitam-se a produzir efeitos instrumentais, criando condições para que possa verificar-se uma mudança do direito material aí vigente levada a efeito pelo Governo. As leis de autorização habilitam o Governo a exercer o poder legislativo que a Constituição abstracta e genericamente lhe atribui [cf. o artigo 201.º, n.º 1, alínea b)] sobre matérias que fazem parte da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, podendo ser consideradas como «condição de validade» do exercício daquele poder (cf. C. Lavagna, Istituzioni di diritto pubblico, 5.ª ed., Turim, Utet, 1982, p. 295).
Elas assumem, pois, a natureza de normas de competência (cf. a declaração de voto dos Exmos. Conselheiros Cardoso da Costa e Messias Bento aposta ao Acórdão 107/88, in Diário da República, 1.ª série, n.º 141, de 21 de Junho de 1988, e A. M. Barbosa de Melo, ob. cit., p. 533), entendida esta expressão não no sentido de que elas visam transferir para o Governo um poder legislativo que este ainda não possuía, mas antes remover um obstáculo constitucional ao exercício de um poder legislativo que o Governo virtualmente já detinha (cf. P. Virga, Diritto costituzionale, 9.ª ed., Milão, Giuffrè, 1979, pp. 289 e 290, e C. Mortati, Istituzioni di diritto pubblico, II, 9.ª ed., Pádua, Cedam, 1976, pp. 764 e 765).
A insusceptibilidade de as leis de autorização legislativa disciplinarem, por si mesmas, as matérias que constituem o seu objecto parece não ser rejeitada por Gomes Canotilho quando afirma que «a lei de autorização não intervém directamente no ordenamento jurídico, limitando-se a autorizar tal intervenção» {cf. Direito Constitucional, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 1986, p. 632. Cf., no mesmo sentido, Gomes Canotilho/Jorge Leite, A Inconstitucionalidade da Lei dos Despedimentos, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A. A. Ferrer Correia, 1984, Coimbra, 1988, p. 18: «[...] elas [as leis de autorização] não inovam, em termos de aplicabilidade directa, o sistema jurídico»}. De igual modo, António Vitorino, apesar de defender que «a lei de autorização não pode deixar de ser considerada como produzindo imediatamente 'efeitos externos', por estar sujeita ao mesmo regime das demais leis em termos de sindicabilidade constitucional», não deixa de reconhecer que «a relação que se estabelece na delegação legislativa é uma relação interorgânica que não se afirma predominantemente pela produção de efeitos externos imediatos, mas pela circunstância de constituir um acto habilitante da produção legislativa delegada. Com efeito, as normas da lei de delegação não têm, por via de regra, a função de produzir efeitos externos imediatos: tal não resulta do facto de a lei de delegação ter uma particular natureza face às demais leis parlamentares, mas sim do facto de as normas da lei de delegação serem pretendidas pelo seu autor - o Parlamento - como normas destinadas a serem aplicadas com a entrada em vigor da legislação delegada» (ob. cit., p. 349).
Esta mesma ideia é também claramente assumida pela doutrina italiana mais representativa. Assim, V. Crisafulli salienta que «às disposições da lei de delegação que contêm os princípios deve reconhecer-se [...] carácter e natureza de legislação em sentido material, embora estando a eficácia [sob este aspecto] subordinada à entrada em vigor das normas delegadas». Segundo este mesmo autor, as normas da lei de delegação legislativa são normas de eficácia diferida (cf. Lezioni di diritto costituzionalle, II, 5.ª ed., Pádua, Cedam, 1984, p. 86). Por sua vez, A. Cervati realça que «é exacto considerar que as estatuições programáticas contidas nas disposições da lei delegante, em regra, não modificam directamente as disposições preexistentes, mas para chegar a esta conclusão não é necessário pressupor um particular conteúdo substancialmente não legislativo das normas postas pela lei delegante. Se esta última não está em condições de revogar antes de entrarem em vigor as normas delegadas, as leis preexistentes em contradição como os novos 'princípios e critérios directivos', isso resulta apenas do facto de se estar perante estatuições programáticas, insusceptíveis de imediata aplicação, e que se referem ao exercício de uma competência que deve ser ainda exercida» (cf. «Legge di delegazione e legge delegata», in Enciclopedia del diritto, XXIII, Milão, Giuffrè, 1973, p. 947). Noutra obra, aquele publicista transalpino vinca que «tais estatuições [as da lei de delegação] parecem insusceptíveis de uma aplicação imediata, não tanto porque a lei que as contém tenha uma 'natureza' diferente das outras leis, quanto muito, mais simplesmente, porque, tal como foram formuladas pelo Parlamento, contêm normas que são destinadas a aplicação apenas depois da entrada em vigor da lei delegada» (cf. La delega legislativa, Milão, Giuffrè, 1972, p. 112).
De acordo com esta linha de raciocínio, parece-me correcto afirmar que o decreto 302/V, ou a lei de autorização legislativa que dele viria a resultar, na qual se autorizava o Governo a legislar «em matéria de trabalho de menores, férias, trabalho em regime de comissão de serviço, período experimental, duração e organização do tempo de trabalho, de cessação do contrato de trabalho por inadaptação do trabalhador e de salários em atraso», ainda não é legislação do trabalho, já que se limita a indicar «o objecto, a extensão e a duração», bem como o «sentido», da autorização, através da indicação dos «princípios base», das «directivas gerais» ou dos «critérios rectores» (cf. os Acórdãos n.os 267/88 e 473/89, in Diário da República, 1.ª série, n.º 293, de 21 de Dezembro de 1988, e 2.ª série, n.º 222, de 26 de Setembro de 1989, respectivamente) do decreto-lei ou decretos-leis que o Governo vier (se vier) a aprovar.
Uma lei de autorização legislativa que habilite o Governo a legislar sobre matérias laborais não altera o ordenamento jurídico: só a legislação delegada, «se o Governo usar e até onde usar a autorização concedida», é que tem idoneidade para modificar o ordenamento jurídico-laboral existente. Para se concluir que assim é basta pensar no facto de a lei de autorização legislativa não produzir quaisquer efeitos jurídico-materiais, sempre que a legislação autorizada não chegue a ver a luz do dia, como sucede, por exemplo, quando o Governo não utilize a autorização legislativa dentro do período de duração da sua validade ou todas as vezes que ela caduque, em consequência da demissão do Governo (o que significa que as autorizações são feitas intuitu personae), do termo da legislatura ou da dissolução da Assembleia da República, ou seja, sempre que desapareça o órgão delegante ou o órgão delegado, como flui do disposto no artigo 168.º, n.º 4, da lei fundamental (sobre este tema, cf., A. R. Queiró, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1976, pp. 350 e 351).
2 - A caracterização que vem de fazer-se da lei de autorização legislativa não pode deixar de reflectir-se na resposta - que se adianta, desde já, negativa - à questão de saber se no procedimento de aprovação do decreto apreciado - que encerra uma autorização ao Governo para legislar sobre as matérias de natureza laboral elencadas no corpo do seu artigo 1.º - se devia enxertar a audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais [artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição].
É inquestionável que as matérias que constituem o objecto da autorização legislativa constante do decreto 302/V se integram na extentio do conceito constitucional de «legislação do trabalho», inserto nos preceitos acabados de mencionar, e que a sua aprovação pela Assembleia da República teve lugar sem ter sido desencadeado o processo de audição das comissões de trabalhadores, bem como das associações sindicais, nos termos dos artigos 3.º a 8.º da Lei 16/79, de 26 de Maio, como se alcança do recurso interposto pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português contra a decisão do Presidente da Assembleia da República que fixou para a ordem do dia de 29 de Janeiro de 1991 o debate da proposta de lei de autorização legislativa n.º 176/V (cf. Diário da Assembleia da República, 2.ª série A, n.º 22, de 30 de Janeiro de 1991, pp. 763 e 764), do parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre aquele recurso (ibid., pp. 762 e 763) e do relato da discussão e aprovação pela Assembleia da República do decreto 302/V (cf. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.os 36, de 30 de Janeiro de 1991, pp. 1201 e segs., e 40, de 8 de Fevereiro de 1991, pp. 1323 e segs.).
É seguro também que o Acordo Económico e Social, subscrito, no âmbito do Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS), pelo Governo, pela União Geral de Trabalhadores (UGT), pela Confederação do Comércio Português (CCP) e pela Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) em 19 de Outubro de 1990, em cujos princípios e objectivos se baseou a proposta de lei de autorização legislativa n.º 176/V, não pode ser visto como um sucedâneo (constitucionalmente válido) do processo de audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais [desde logo, porque daquele órgão não fazem parte representantes das comissões de trabalhadores, nem de todas as associações sindicais (ao menos, daquelas que não estão filiadas em nenhuma das duas centrais sindicais actualmente existentes), mas tão-só da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e da União Geral de Trabalhadores (UGT) (cf. o artigo 5.º do Decreto-Lei 74/84, de 2 de Março, sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis n.os 8/86 e 336/87, de 16 de Janeiro e 21 de Outubro, respectivamente)], não obstante ele traduzir uma participaçlão bem mais intensa ou profunda - através de uma negociação que, em relação a uma confederação sindical, atingiu o nível ou o grau de um consenso - na elaboração da «legislação do trabalho» do que aquela que é garantida por uma consulta - que, nalguns casos, acabará por ser meramente formal - das comissões de trabalhadores e das associações sindicais, nos termos do disposto nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
Só que, não contendo ainda a lei de autorização legislativa concedida ao Governo para legislar «em matéria de trabalho de menores, férias, trabalho em regime de comissão de serviço, período experimental, duração e organização do tempo de trabalho, de cessação do contrato por inadaptação do trabalhador e de salários em atraso» a disciplina jurídico-material destas áreas, não se apresenta constitucionalmente adequado exigir a participação das organizações representativas dos trabalhadores na sua elaboração. De facto, tendo a participação na elaboração da «legislação do trabalho» constitucionalmente reconhecida às comissões de trabalhadores e às associações sindicais como escopo assegurar aos trabalhadores, através das suas organizações representativas, «uma intervenção efectiva no processo laboral», de modo a possibilitar não apenas que «o órgão legislativo tome conhecimento das posições assumidas pelos trabalhadores, mas também e fundamentalmente a garantir que estes possam, com inteiro conhecimento de causa, exercer a sua influência sobre determinadas decisões políticas que, em especial, os afectam», «formulando críticas, dando sugestões, emitindo pareceres ou até fazendo propostas alternativas» em relação ao texto dos projectos de diploma legal (cf. os Acórdãos n.os 31/84 e 22/86, in Diário da República, 1.ª série, n.º 91, de 17 de Abril de 1984, e 2.ª série, n.º 98, de 29 de Abril de 1986, respectivamente), compreende-se facilmente que a aludida participação se apresenta muito mais útil e eficaz se incidir sobre os projectos de decretos-leis que o Governo vier a elaborar no exercício da autorização legislativa, nos quais as matérias são objecto de uma disciplina rigorosa e pormenorizada. Aliás, circunscrever a audição das organizações representativas dos trabalhadores do texto da proposta de lei de autorização legislativa, isto é, limitar a audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais aos «princípios base» constantes da lei de autorização da legislação laboral que o Governo irá aprovar - ainda que, no caso vertente, o decreto 302/V vá além do mínimo constitucionalmente exigido, estabelecendo uma disciplina que, em vários pontos, não se confina à determinação dos princípios gerais orientadores dos diplomas legislativos a emanar pelo Governo -, seria «reduzir drasticamente o conteúdo da garantia das organizações dos trabalhadores de participarem na legislação do trabalho» (cf. A. M. Barbosa de Melo, ob. cit., pp. 537 e 538).
É assim que entendi que a audição das organizações representativas dos trabalhadores devia ter lugar apenas na fase da elaboração do decreto-lei ou decretos-leis autorizados. Com efeito, por um lado, ela «vai ainda a tempo de influenciar as decisões da instância legislativa (no caso, o Governo)» - resultando, porventura, dessa audição um aperfeiçoamento e um aprofundamento das soluções que decorrem do «conjunto de objectivos, princípios e medidas de política económica e social» constantes do referido Acordo Económico e Social, subscrito, no âmbito do Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS), em 19 de Outubro de 1990, que estiveram na génese da proposta de lei 176/V (cf. a respectiva exposição e motivos), da qual viria a resultar o decreto 302/V - e, por outro lado, a audição, na referida fase de elaboração da legislação do trabalho, apresenta-se «mais alargada e completa, porquanto é feita já à vista das normas 'acabadas' que se pretende fazer inserir no corpus juris laboral» (cf. a citada declaração de voto dos Exmos. Conselheiros Cardoso da Costa e Messias Bento).
3 - Sendo esta, segundo creio, a solução que exala de uma hermenêutica correcta da Constituição e da Lei 16/79, que é que nos oferece, sobre este tema, a posição que fez maioria?
Na esteira do Acórdão 107/88 (in Diário da República, 1.ª série, n.º 141, de 21 de Junho de 1988) e na senda da opinião sufragada por um sector da doutrina (é o caso de Gomes Canotilho/Jorge Leite, A Inconstitucionalidade da Lei dos Despedimentos, cit., pp. 11-18; cf., também do primeiro autor, Direito Constitucional, cit., pp. 743 e 773), o Tribunal decidiu que a proposta de lei 176/V carecia de ser submetida a discussão pública, com a finalidade de sobre ela se pronunciarem as comissões de trabalhadores e as associações sindicais, devendo essa audição ser desencadeada directa e autonomamente pela Assembleia da República. Estribou-se, para tanto, no fundamento, retirado do Acórdão 108/88, de que, apesar de não intervirem directamente no ordenamento jurídico, em termos de aplicabilidade directa, as leis de autorização transportam «parâmetros normativos fundamentais (princípios e directivas) decisivamente condicionadores da legitimidade do decreto-lei autorizado, em termos de se poder afirmar que o essencial do diploma delegado está predeterminado na lei delegante», bem como na ideia segundo a qual «a imposição constitucional de que as leis de autorização definam 'o sentido, a extensão e a duração da autorização' (artigo 168.º, n.º 2) implica que, em matéria de legislação laboral, as organizações dos trabalhadores devam ter a possibilidade de influenciarem, logo na fase parlamentar de apreciação da lei de autorização legislativa, os juízos políticos e de decisão jurídica da Assembleia da República sobre a futura legislação autorizada e, também, de opinarem sobre a vantagem de delegar no Governo a elaboração de tal legislação, sobre a oportunidade da autorização, sobre as directrizes, princípios ou orientações gerai da futura disciplina material e sobre a própria extensão da autorização, isto é, sobre a amplitude das inovações ou reformas a introduzir em matéria laboral».
Todavia, o Tribunal não se limitou a dizer que a lei de autorização legislativa que habilitava o Governo a legislar sobre as matérias nela elencadas (rectius: a correspondente proposta de lei) deveria ter sido precedida da audição das organizações representativas dos trabalhadores. Deu um passo mais do que o Acórdão 107/88 e defendeu claramente que, uma vez publicada a lei de autorização, se deverá promover a audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais também em relação ao(s) projecto(s) de decreto(s)-lei(s) que o Governo vier a elaborar no uso da autorização legislativa, sempre que aquele(s) «se não limite(m) a reproduzir integralmente a matéria constante da própria lei de autorização legislativa» - situação esta, convenha-se, que se verifica na generalidade dos casos e também na hipótese do decreto apreciado (repare-se que o Acórdão 107/88 guardou sobre este assunto um prudente e expressivo silêncio). Quer dizer: a maioria do Tribunal entendeu que, no caso de aprovação pela Assembleia da República de uma lei de autorização que habilite o Governo a legislar sobre matérias enquadráveis no conceito de «legislação do trabalho», é, em geral, constitucionalmente exigida uma dupla audição das organizações representativas dos trabalhadores: primeiro, sobre a proposta de lei de autorização legislativa; depois, sobre o projecto de decreto-lei autorizado. Nem em relação aos casos - que não podem deixar de considerar-se pouco frequentes - em que a lei de autorização não deixe ao decreto-lei autorizado qualquer margem de regulamentação autónoma, isto é, naquelas hipóteses em que o «decreto-lei autorizado se limitar a reproduzir as normas constantes da lei de autorização legislativa», o Tribunal teve a audácia de afastar expressamente «a necessidade de proceder a nova audição das organizações de trabalhadores». Deixou esta questão sem resposta, com o argumento de que «a mesma sempre seria neste momento académica, por ser agora irrelevante para o conhecimento das questões de constitucionalidade objecto do presente processo».
Ora, a dupla audição, que o Tribunal adoptou como tese geral, é, no mínimo, constitucionalmente incongruente e excessiva.
Incongruente, sob o ponto de vista constitucional, na medida em que extrai da lei fundamental a exigência de uma dupla audição das organizações representativas dos trabalhadores, sempre que o procedimento adoptado para a elaboração de leis do trabalho que tenham a ver com direitos fundamentais dos trabalhadores for o da autorização legislativa concedida ao Governo, enquanto a Constituição, relativamente a outras matérias bem mais importantes, na medida em que fazem parte da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, impõe um só processo de audição das organizações interessadas. É o que sucede, por exemplo, com as bases do sistema de ensino [cf. o artigo 167.º, alínea i)], cujos projectos de lei não podem ser aprovados pela Assembleia da República sem que as associações de professores, de alunos e de pais, as comunidades e as instituições de carácter científico hajam tido a possibilidade de sobre eles se pronunciarem (cf. o artigo 77.º, n.º 2, da Constituição), onde, pela própria natureza das coisas, um só processo de audição é cabido, desde logo por ser um só o órgão legislativo competente.
Constitucionalmente excessiva, porque retira da Constituição, ao arrepio da sua letra e do seu espírito, uma imposição de duas audições, promovidas por dois órgãos de soberania distintos, sobre um mesmo e único procedimento legislativo - o qual, esclareça-se, se inicia com a aprovação pelo Governo da proposta de lei de autorização legislativa e termina com a publicação no Diário da República do decreto-Lei autorizado [note-se que a tese segundo a qual a lei de delegação legislativa e a lei delegada não se apresentam como actos correspondentes a dois procedimentos legislativos autónomos, mas, ao invés, como actos sucessivos, conexionados entre si, que integram um único procedimento legislativo, e claramente defendida, inter alia, por V. Crisafulli (ob. cit., p. 83) e por C. Lavagna (ob. cit., pp. 295 e 296)].
Uma dupla audição das organizações representativas dos trabalhadores não constitui uma exigência da garantia constitucional de participação daquelas entidades no procedimento de elaboração da «legislação do trabalho» ou algo que seja uma consequência necessária do «status activus processualis» (cf. P. Häberle, «Grundrechte im Leistungsstaat», in VVDStKL, 30, Berlim-Nova Iorque, 1972, pp. 43 e segs.), constitucionalmente reconhecido as organizações dos trabalhadores [cf. também Gomes Canotilho, Tópicos de Um Curso de Mestrado sobre Direitos Fundamentais, Procedimento, Processo e Organização, separata do vol. LXVI (1990) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990, pp. 7-10, 25 e 26]. Poderá, antes, ver-se nela uma «entorse» ao princípio constitucional da participação ou uma interpretação «desviante» deste princípio.
Estas as razões por que entendi não haver infracção no procedimento de formação do decreto da Assembleia da República n.º 302/V, dos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da lei fundamental. - Fernando Alves Correia.
Declaração de voto
Votei no sentido de o Tribunal se pronunciar pela não inconstitucionalidade das normas do decreto 302/V da Assembleia da República.
Entendo que não ocorre, no procedimento da elaboração do diploma em apreço, violação das normas dos artigos 54.º, n.º 2, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República (direito de as comissões de trabalhadores e as associações sindicais participarem na elaboração da legislação do trabalho).
Desde logo, porque não está afastada a caracterização das normas integrantes do decreto de autorização como normas de competência: «normas que defines e delimitam, material e temporalmente, uma certa com potência legislativa do Governo. Delas se poderá dizer por conseguinte, que, em razão do objecto, se situam não já no domínio do 'direito do trabalho', mas ainda, e só, no domínio (ou ao nível) do 'direito constitucional'» (voto dos Srs. Conselheiros Messias Bento e Cardoso da Costa aposto ao Acórdão 107/88).
A definição do «sentido» e «extensão» da autorização, imposta pela norma do artigo 168.º, n.º 2, da Constituição, seria ainda postulada pela lógica da delimitação dos poderes «transferidos», própria do mecanismo de delegação.
Mas, mesmo que se reconheça nas leis de autorização legislativa mais do que normas organizatórias ou normas de competência, então não pode deixar de admitir-se que o asseguramento da garantia dos trabalhadores de participação na legislação do trabalho não obtém aí plena realização.
A escassa densificação normativa dos parâmetros da competência conferida pela lei de autorização legislativa não oferece à «participação na legislação» o terreno adequado ao desenvolvimento da funcionalidade dessa mesma garantia: a de influenciar medidas políticas concretas que se projectam nos direitos dos trabalhadores.
Os princípios e directivas endereçados ao Governo na lei de autorização não esgotam o quadro das medidas de política laboral: constituem em si escassa informação a redundar em escassa participação, conduzem a um défice da realização do programa constitucional sobre os direitos dos trabalhadores ao «controlo» da legislação.
O momento adequado à participação será, pois, o da elaboração do decreto autorizado.
É aqui que se tornam realidade e desenvolvem os enunciados da lei de autorização, é aqui o lugar apropriado ao esclarecimento da vontade dos representantes dos trabalhadores e ao pleno exercício da sua influência.
A tese do acórdão conduz à dilemática situação de se optar entre uma realização deficitária da pretensão das normas dos artigos 54.º, n.º 2, alínea a), e 56.º n.º 2, alínea a), da Constituição e uma dupla participação (a nível da lei de autorização e do decreto autorizado), deste modo assentindo numa irracional complexificação do procedimento legislativo.
Finalmente, rejeita-se a formulação do acórdão segundo a qual «[...] as organizações dos trabalhadores devem ter a possibilidade de opinarem sobre a vantagem de delegar no Governo a elaboração de tal legislação, sobre a oportunidade da autorização [...]».
A interpretação das normas constitucionais atributivas do direito de audição dos trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho não pode comportar a admissibilidade de «corporativização» do sistema político.
A Constituição garante o aprofundamento da democracia através de formas de participação como aquela, mas proscreve a colonização do sistema representativo por grupos de interesses particulares.
É incontroversa a liberdade de conformação político-legislativa da Assembleia da República e o poder de escolha da oportunidade de decisão que lhe vai ligado. - Maria da Assunção Esteves.