Acórdão 6/95
Processo 43490
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
António Avelino Teixeira Pereira, arguido, com os sinais dos autos, requereu, ao abrigo do artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a fixação de jurisprudência relativamente ao ponto de se saber se a declaração de perda de mercadoria apreendida a favor do Estado, à sombra dos artigos 107.º e 109.º do Código Penal, pressupõe ou não a prática de um crime.
Este Supremo Tribunal, por seu Acórdão de 16 de Março de 1995, concluiu pela oposição de julgados entre os Acórdãos da Relação do Porto de 22 de Janeiro de 1992, processo 299/90 (acórdão fundamento), e 1 de Julho de 1992, processo 356/92 (acórdão recorrido), restrita à questão da manutenção ou não da declaração judicial de perda (negada no primeiro e declarada no segundo) a favor do Estado de mercadoria relacionada com infracção criminal declarada amnistiada quando o processo ainda não fora submetido a julgamento, questão essa decidida em ambos apenas na base do artigo 107.º do Código Penal, depois de se ter aplicado a amnistia concedida pela Lei 23/91, de 4 de Julho.
Ouvido o requerente, pronunciou-se no sentido de que os «artigos 101.º e 107.º do Código Penal só são aplicáveis no caso da existência de um crime comprovado por sentença transitada em julgado» (a fl. 38 v.º, sic).
Em seu douto parecer, o Ministério Público defende que «extinto o procedimento criminal por efeito da aplicação da amnistia, deverão, apesar disso, ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos». (A fl. 55.)
Colhidos os vistos.
Decidindo.
1 - Nada obsta ao prosseguimento do recurso.
É em relação ao normativo aplicado e não àquele que o deveria ter sido que este Supremo Tribunal tem de se pronunciar no recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.
2 - Amnistia é uma medida de clemência que o Estado concede, através da qual não descriminaliza nem despenaliza um tipo legal de crime, mas que consiste em, estabelecendo uma data limite, anular, fazer esquecer os concretos preenchimentos de determinado(s) tipos(s) legal(ais) de crime(s) cometidos(s) até essa data, rectius, enquanto na própria se extingue a infracção, na imprópria extingue-se a execução da pena principal e das penas acessórias, executando-se a decisão em tudo o mais (Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado, 7.ª ed., p. 321), o que releva, por exemplo para efeitos de reincidência (Código Penal de 1982, artigo 76.º, n.º 4). É uma abolição com carácter geral, impessoal, não se dirige ao indivíduo A ou B e sim a, em princípio (pois, além da indicação do crime, pode-lhe fazer acrescer causas a excluir, como, por exemplo, reincidência, delinquentes por tendência), todos os que se encontram naquelas condições, pelo que tem natureza objectiva, abstracta.
Nesta abolição que se pretendem, restituindo-se o arguido nos direitos de que disfrutava antes da condenação, caso a tenha havido entretanto, abrangem-se as consequências que a prática do crime desencadeia (pena principal, penas acessórias, medidas de segurança, efeitos das penas, responsabilidade civil). No dizer de Cavaleiro Ferreira - «a amnistia tem por efeito a abolitio criminis e anula por isso o próprio crime» (in Lições, vol. II, p. 207). Esquece-se o facto e, com ele, apagam-se os seus efeitos (lato sensu).
Há que ter presente não só que há imperatividade nesta extensão reconhecida à dita medida e que, porque medida com um carácter mais político que judicial, o legislador goza de plena maleabilidade na sua definição (conformando-se com a lei penal geral e, por isso, nada dizendo ou remetendo expressamente para ela, alterando os efeitos aí previstos, ampliando-os, restringindo-os).
Convém ainda ter presente que o Código Penal de 1982, contrariamente ao seu projecto, estabelece distinção entre a amnistia própria (anterior à condenação) e imprópria (posterior à condenação), o que não obstaria a que o legislador da medida de clemência o não pudesse fazer para efeitos do concreto diploma, mas tal não se verifica.
Os acórdãos em oposição partem do princípio da susceptibilidade de a amnistia provocar a extinção dos efeitos das penas, divergindo, todavia, sobre o modelo que o legislador de 1982 adoptou nesta matéria.
Importa conhecer como a define, a amnistia, com que extensão a define e onde o faz.
3 - Tem constituído uma constante já desde o Código Penal de 1886 e mantida no domínio do de 1982 que, em caso de amnistia, os chamados «efeitos das penas» são regulados pela regra geral que o diploma geral penal disponha sobre estes, rectius, por esta, se a legislação penal extravagante que prevê o crime amnistiado nada dispuser especificamente sobre este instituto.
E assim é que, para não se estar a recuar a data anterior, os Decretos-Leis n.os 204/70, de 12 de Maio, 607/73, de 14 de Novembro, 173/74, de 26 de Abril, 180/74, de 2 Maio, 259/74, de 15 de Junho, 560/74, de 31 de Outubro, 338/75, de 22 de Julho, 727/75, de 22 de Dezembro, e 758/76, de 22 de Outubro, e as Leis 74/79, de 23 de Novembro, 3/81, de 13 de Março, 31/81, de 25 de Agosto e 17/82, de 2 de Julho, 11 de Junho, nada dispõem sobre a matéria (todavia, em campos diversos do daqueles chamados «efeitos da penas», já havia uma tradição - referimo-nos à restituição do imposto de justiça ao assistente - artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 259/74, artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei 727/75, artigo 3.º n.º 2, do Decreto-Lei 758/76, artigo 6.º da Lei 3/81, artigo 12.º da Lei 17/82, artigo 11.º da Lei 16/86, artigo 11.º da Lei 23/91, de 4 de Julho, e artigo 5.º da Lei 15/94, de 11 de Maio - e à responsabilidade civil - artigo 3.º do Decreto-Lei 204/70, artigo 3.º do Decreto-Lei 603/73, artigo 2.º do Decreto-Lei 194/74 de 10 de Maio, artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 259/74, artigo 2.º do Decreto-Lei 532/74, artigo 2.º do Decreto-Lei 89/75, de 28 de Fevereiro, artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 727/75, artigo 3.º do Decreto-Lei 758/76, artigo 5.º da Lei 3/81, artigo 11.º da Lei 17/82, artigo 12.º, n.º 1, da Lei 16/86, artigo 12.º, n.º 1, da Lei 23/91 e artigo 7.º, n.º 1, da Lei 15/94).
Quebrando com esta maneira tradicional na elaboração dos diplomas de amnistia e de perdão, surgem as Leis n.os 23/91, artigo 8.º, e 15/94, artigo 4.º (não representa romper com esta tradição o que consta dos Decretos-Leis n.os 532/74, de 9 de Outubro, artigo 3.º, n.º 2, e 194/74, artigo 2.º, e da Lei 17/82, artigo 10.º, pois que ali, ao falar-se na anulação dos efeitos das penas em virtude do perdão, e aqui, ao falar-se de idêntica anulação mas em virtude da amnistia, apenas se visaram os efeitos determinados em relação à integração, movimentação e graduações dos militares).
Desta enumeração, uma primeira constatação surge - o esquecimento dos efeitos (lato sensu) dos factos amnistiados pode conhecer diversa extensão, sendo preciso conhecer a vontade da lei - não tem de ser total a eliminação dos efeitos.
Por isso é preciso captar o sentido de um e de outro dos diplomas.
No n.º 1 do artigo 8.º da Lei 23/91, o legislador referiu-se aos utensílios e material caracterizadamente destinados à prática de jogos de fortuna ou de azar e numerário e demais valores pecuniários destinados à mesma prática.
Preceito específico que se quis retirar da regra que para o genérico se pretendeu fixar no n.º 2. Neste, o legislador reporta-se a toda e qualquer infracção («em geral») amnistiada pelo seu artigo 1.º («em geral, só não são restituídos os objectos apreendidos relacionados com as condutas abrangidas pela amnistia decretada no artigo 1.º quando não for lícita ou enquanto não se mostrar regularizada a respectiva posse por parte das pessoas a quem tenha sido efectuada a apreensão»).
Esta regra apenas é válida para efeitos desta concreta lei - houve necessidade de a expressar por se não pretender directamente aplicável o regime do Código Penal de 1982 (se doutro e contrário modo, a necessidade apenas estaria em estabelecer o preceito do n.º 1).
No artigo 4.º da Lei 15/94, o legislador veio confirmar o regime do artigo 107.º do Código Penal de 1982.
Prima facie, pode parecer que se trata de um preceito inútil, porque repetitivo do regime geral.
Embora repetitivo, tem a vantagem de desfazer dúvidas quanto ao entendimento a dar ao silêncio legislativo - a lei anterior dispusera sobre a matéria e em sentido contrário, rompendo com a tradição de tornar directamente aplicável o Código Penal e ao intérprete poderia colocar-se a dúvida sobre as vontades da lei e do legislador, tanto mais que o diploma respeita a matéria a que este confere um carácter de política criminal e de oportunidade, e em que a actividade que irá ser pedida aos tribunais é fiscalizadora e parajurisdicional. Tendo a lei anterior inovado, convinha que uma nova lei, face aos princípios que regem a interpretação de uma lei de amnistia e perdão, fosse clara e precisa.
Mas outra vantagem se lhe reconhece - embora tratando-se de institutos diferentes e não susceptíveis de confusão, o legislador não podia ignorar que, poucos anos antes, tomara uma atitude que, em certa medida, poderia ser invocada no seu reflexo sobre a declaração da perda de objectos e de mercadoria se relacionada com ilícitos outrora criminais -, autorizado a legislar a propósito de descriminação e despenalização e novo regime das infracções fiscais e aduaneiras (Lei 7/89, de 21 de Abril), ao fazê-lo (Decreto-Lei 376-A/89, de 25 de Outubro), quis nele consagrar um preceito específico (artigo 107.º), sem curar de perguntar da sua necessidade face ao artigo 107.º do Código Penal.
E a tendência para haver normas específicas, independentemente de reproduzirem ou não o regime geral dos artigos 107.º a 109.º do Código Penal, já vinha a fazer-se sentir (v. g., sobre armas, artigo 77.º, § 8.º, do Decreto-Lei 37313, de 21 de Fevereiro de 1949; sobre ilícito de mera ordenação social, artigo 25.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro; sobre tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, artigo 35.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, e, mais tarde, artigos 35.º a 39.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro).
Daí que não se possa ter como de todo inútil a existência daquele preceito - evitar a eventualidade de dúvidas nesta matéria, ser claro e incisivo, era-lhe na realidade pedido.
Mas daqui também se pode concluir que, na falta de preceito que especificamente disponha e de modo diverso, a nossa tradição legislativa é no sentido de deferir, se a legislação penal extravagante que prevê a categoria abstracta do crime que veio a ser amnistiado nada dispuser sobre o instituto, para o Código Penal o regime aplicável.
Daqui ainda a observação inicial - «é em relação ao normativo aplicado e não àquele que o deveria ter sido que este Supremo Tribunal tem de se pronunciar no recurso extraordinário de fixação de jurisprudência»; é que, na realidade, tendo ocorrido os factos em 1990, havia uma norma que, em qualquer dos acórdãos em oposição, deveria ter sido directamente aplicada (artigo 8.º, n.º 2, da Lei 23/91), mas o não foi e era na sua base que a questão, em qualquer deles, deveria ter sido decidida.
4 - Porque as decisões em oposição foram lavradas com base na interpretação que cada uma deu ao artigo 107.º do Código Penal, sobrevindo uma amnistia mas independentemente (não referindo o artigo 8.º, não por o terem como inaplicável, mas por o terem de todo omitido, têm como pressuposto - implícito e comum a ambas as decisões - inexistir norma específica no respectivo diploma) da lei que a concede, é com a latitude dessa oposição que deverá ser fixada jurisprudência.
Actualmente, a lei penal distingue entre instrumenta et producta sceleris (Código Penal, artigo 107.º) e vantagens decorrentes do crime (Código Penal, artigo 109.º) para definir o respectivo regime. Mas constatar isso não é suficiente, pois que os campos de aplicação de uma e de outra norma não parecem, prima facie, delimitados com o rigor e a precisão que se exige a uma lei penal.
Assim, necessário se torna conhecer quer a evolução legislativa (e a interpretação que jurisprudencialmente tem conhecido), quer a natureza (de efeitos da condenação, de pena acessória, de medida de segurança, mista de pena acessória e de medida de segurança, de sanção quase penal com finalidade de segurança), quer a finalidade (retributiva, preventiva) da perda de coisas e direitos que com o crime estão relacionados.
Até ao Código Penal de 1982, ela conhecia entre nós o carácter essencialmente de efeito da condenação, pressupunha-a (Código Penal de 1886, artigo 75.º), pelo que surgia fundamentalmente com finalidade de retribuição (embora não como pena acessória - actualmente, do domínio do Código Penal de 1982, é que passou a haver o entendimento de que os efeitos das penas são penas acessórias).
Eduardo Correia sublinhou a dupla faceta (medida preventiva e reacção penal) relativa a este instituto e concluiu que, para se compreendê-lo, não se deve tê-lo como limitado, na sua aplicação, pelo facto de o arguido vir a ser efectivamente condenado - a primeira faceta tinha assento no artigo 107.º enquanto a segunda presidia ao artigo 109.º (cf. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal - Parte Geral, vol. II, p. 198).
Com o Código Penal de 1982, pretendeu acentuar-se-lhe, rectius, conferir-lhe outra finalidade - a preventiva, se bem que não exclusivamente (Figueiredo Dias, refere-a como exclusiva, «aparece agora assente em razões de natureza preventiva», in Direito Penal Português, vol. II, p. 616; para o afirmar socorre-se da autoridade de Eduardo Correia, nas Actas citadas, vol. II, p. 203, e na interpretação correctiva que faz do artigo 109.º do Código Penal, recusando ter-se estabelecido aí uma pena acessória, tese de Damião da Cunha).
Subjacente à aplicação deste instituto é a existência, quer se trate do artigo 107.º quer do artigo 109.º do Código Penal de 1982, de um facto ilícito típico, a sua prática. A divergência inicia-se quando se pergunta se tal é suficiente (salvo, claro, se a lei for expressa para certas circunstâncias) ou se antes se exige a prática de um crime.
Partindo desta conclusão e considerando o que já acima ficou referido, prossiga-se mas sem esquecer que a questão é posta, para efeitos de fixação de jurisprudência, apenas em relação à amnistia própria (antes da condenação) e ao artigo 107.º do Código Penal, pelo que qualquer referência a fazer ao artigo 109.º só se poderá tomar enquanto e como apoio para a interpretação daquele. E, ainda em relação ao artigo 107.º do Código Penal de 1982, não se pede que se proceda à sua interpretação mas que se determine se este preceito, havendo objectos do crime, deve ou não ser aplicado quando se extingue o procedimento criminal por efeito de amnistia (sobre a interpretação deste preceito e sua articulação com o artigo 109.º do Código Penal de 1982, vária é a jurisprudência, que de modo algum se pode ter como uniforme - revela-se útil a consulta das anotações in Boletim, n.º 392, p. 242, 410, p. 417, e 413, p. 262).
5 - No domínio do Código Penal de 1886, tomava-se como regra que a perda dos instrumentos era privativa dos crimes (artigos 75.º, n.º 1, e 486.º, § único), o que não é equivalente a concluir-se que a declaração de perda fosse, efeito da pena - com aquela afirmação apenas se pretendia significar que daquela medida estavam excluídas, salvo disposição em contrário (cf., por exemplo, para os producta sceleris, artigo 83.º, § 3.º, da lei da pesca, Decreto 44623, de 10 de Outubro de 1962, e artigo 207.º, do Regulamento da Caça, Decreto 47847, de 14 de Agosto de 1967), as contravenções.
Este instituto no domínio do Código Penal de 1886, tinha uma natureza mista, presidindo-lhe a finalidade retributiva, se bem que com ela concorrendo ainda a preventiva.
Embora não daquela regra, mas directamente do artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal de 1886, resultava que a declaração de perda implicava uma sentença condenatória. Cavaleiro Ferreira (Direito Penal, vol. II, edição de 1961), referindo-se-lhe, considerava-a com efeito penal da pena (fosse ela maior ou correccional) e articulava-a expressamente com a sentença condenatória - «efeitos penais de qualquer condenação penal» (p. 182) e «consistem em penas que acrescem por força de lei às penas aplicadas na condenação judicial. Não carecem por isso de constar da sentença condenatória; seguem-na como seus efeitos, por determinação legal» (p. 181), conforme dispunha o seu artigo 83.º (aliás, ainda no parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta da lei 9/X se qualifica a perda como efeito da condenação). No vol. II das suas Lições de Direito Penal (edição de 1989), aquele mestre, a p. 56, confrontando os regimes do Código Penal de 1886 e do Código Penal de 1982, reafirmou que essa declaração de perda estava, no anterior Código Penal, ligada à condenação como seu efeito necessário.
Tendo a perda dos objectos embora como efeito da condenação mas recordando que isso não podia fazer esquecer que também era efeito da pena, este Supremo Tribunal, por Assento de 28 de Junho de 1979, uniformizou a jurisprudência no sentido de que a suspensão da execução da pena abrangia a perda dos instrumentos da infracção.
Significa tudo isto que, face às regras de interpretação das leis penais, a norma contida no artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal de 1886 não tinha aplicação no caso da amnistia própria, exactamente por ainda não haver uma condenação.
Esta conclusão não impedia, todavia, que o legislador pudesse dispor em sentido contrário, mas então teria de o fazer expressamente (exemplo do entendimento de «crime» apenas como sinónimo de «infracção» e não ligando aquela declaração de perda necessariamente a uma condenação, o n.º 1 da Portaria 24046, de 26 de Abril de 1969.
6 - O Código Penal de 1982, acentuando mais fortemente a finalidade preventiva e atribuindo ao instituto uma natureza jurídica diversa e, por outro, distinguindo os instrumenta et producta sceleris das vantagens decorrentes do crime, «rompeu» com essa perspectiva do Código Penal de 1886 (apenas se terá presente o regime geral e não o que a propósito de certas situações, como estupefacientes, actividades económicas e outras, possa ter sido legislado; onde houver regime especial este prefere ao geral).
Não é de estranhar, pois, como observa Figueiredo Dias, mesmo na história do direito comparado, a perda dos objectos (sejam instrumenta sejam producta sceleris) aparece com as finalidades de retribuição e deprevenção geral e, ainda em relação aos instrumenta, também com a de prevenção especial, reconhecendo-se actualmente ao respectivo instituto uma pluralidade de finalidades de conteúdo e tónica variáveis consoante a filosofia latente à evolução legislativa e informadora da sua natureza jurídica (op. cit., pp. 613-614).
O artigo 107.º reporta-se aos instrumenta et producta sceleris (os objectos do crime) e em relação a eles acentuou de um modo muito especial a finalidade preventiva. Definindo a prevenção especial aqui, Figueiredo Dias relaciona-a à aptidão dos instrumentos em si para a repetição criminosa ou à sua permanência em mãos de agentes particularmente propensos ao crime ou que, pelo menos, já haviam demonstrado ser capazes de os utilizar para fins criminosos (op. cit., p. 614).
Maia Gonçalves (op. cit., p. 295) chama muito justamente a atenção - «o condicionalismo desta perda vem projectado tendo em vista o perigo que os objectos podem oferecer, inclusive para a prática de novos crimes». Para acrescentar de imediato - «imperiosas razões de carácter preventivo estão na base da apreensão adoptada com condicionalismo, na melhor legislação estrangeira, e se sobrepõem a limitações ligadas ao dolo ou a um mínimo de gravidade da pena». «A perda radica na perigosidade dos objectos», não se «relaciona com a culpa» (p. 296).
Porque assim, o termo «crime» no artigo 107.º, n.º 1, é sinónimo de infracção, de facto ilícito típico, não pressupõe «culpa», surge desligado dela, o que representa, em relação ao Código Penal de 1886, uma ruptura, pois que a declaração de perda dos instrumenta et producta sceleris não aparece como efeito de condenação.
Esta conclusão pode, contudo, ainda não ser bastante para resolução do problema. Com efeito, completa-a o n.º 2 daquele preceito. Tal como está redigido evidencia que o seu campo de aplicação é o da impossibilidade de perseguição criminal por extinção do procedimento criminal (e uma das causas da sua extinção é a amnistia própria, artigo 126.º, n.º 1), por indeterminabilidade do(s) agente(s) do facto ou por motivos processuais (v. g., falta de legitimidade).
A dificuldade reside aqui na justificação de uma «medida de polícia administrativa» com fundamento por demais duvidoso (Figueiredo Dias, op. cit., p. 620). Faria esta crítica esperar que o novo Código Penal de 1995 (aprovado pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Maio, ao abrigo da Lei de autorização legislativa n.º 35/94, de 15 de Setembro) cuja ratificação foi pedida se salvaguardasse de idêntica, o que, contudo, não se fez (artigo 109.º, n.º 2).
Existe-a (a medida) com consagração legal, pelo que a discussão daquela apenas pode interessar para se conhecer dos pressupostos da sua aplicação. Todavia, não há aqui que conhecer, por duas ordens de razões, de tal ponto - ao fixar-se jurisprudência, a incidência a haver sobre o acórdão recorrido manifesta-se na verificação da aplicação da norma a interpretar e sentido em que se fez, não comporta um reexame dos pressupostos; por outro, in casu, o acórdão recorrido não negou a aplicação, declarou perdida a favor do Estado a mercadoria apreendida e, como se intui do que se vem expondo, o «assento» a extrair vai no sentido da aplicabilidade do artigo 107.º do Código Penal.
7 - Não se tem notícia de que no domínio do Código Penal de 1886 se não considerasse a perda dos instrumentos do crime como efeito da condenação; ponto era que se devesse qualificar o objecto como instrumenta sceleris (por todos, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 1973 e 15 de Dezembro de 1982, in Boletim, n.os 232, p. 55, e 322, p. 250).
Retomando, agora no domínio do Código Penal de 1982, este entendimento e considerando já não só os instrumentos (como no Código Penal de 1886) mas também os produtos do crime como «abrangidos pelo facto penal», encontra-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Março de 1987 (Boletim, n.º 365, p. 405), desligando a declaração de perda do carácter preventivo, ainda que de prevenção especial, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 1992 (Boletim, n.º 417, p. 404), quando afirma, a p. 411, que «a perda» ali do veículo «é, a todos os títulos, um efeito necessário»).
Todavia, diversamente e acentuando a sua natureza preventiva (quer de prevenção geral quer especial), observamos, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 1985 (Boletim, n.º 351, p. 206), de 19 de Dezembro de 1989 (Boletim, n.º 292, p. 237), de 2 de Maio de 1991 (Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, t. 3, p. 5), de 27 de Abril de 1994 (Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, t. 2, p. 197), dois de 7 de Julho de 1994 (Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, t. 3, pp. 192 e 196), de 6 de Outubro de 1994 (Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, t. 3, p. 213), de 29 de Março de 1995, processo 46393 (a respeito de imóveis), de 1 de Fevereiro, processo 47265 (sobre óculos), e de 5 de Abril de 1995, processo 47259 (sobre armas).
Como exemplo de uma posição intermédia, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Outubro de 1988 (Colectânea de Jurisprudência, ano XIII, t. 4, p. 8), para o qual a perda de instrumentos e produtos do crime só radica na ideia de perigosidade se aqueles não pertencerem ao arguido.
8 - Resumindo.
Tem sido uma constante, entre nós, dos diplomas de amnistia não constar norma especial sobre a perda de objectos (instrumenta et producta sceleris).
O regime geral sobre este instituto vem traçado no Código Penal, sem prejuízo de legislação avulsa poder conter normas específicas em relação às actividades delituosas que aí prevê.
A amnistia de um crime, se própria, extingue o respectivo procedimento criminal.
O Código Penal de 1982 não pressupõe, ao contrário do Código Penal de 1886, a existência de uma sentença condenatória para poder ser declarada a perda dos objectos do crime, antes entendendo este termo como facto ilícito típico.
Se existir este pressuposto, a perda dos objectos do crime será declarada se se verificarem os demais requisitos do artigo 107.º, n.º 1, do Código Penal de 1982.
Ressalva-se desta conclusão a existência de disposição especial contida na lei de amnistia ou de regime especial estabelecido no diploma que prevê o crime que veio a ser amnistiado.
No recurso de fixação de jurisprudência, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça estão limitados pela concreta oposição - entre os acórdãos fundamento e recorrido - definida no acórdão interlocutório.
No acórdão recorrido, declarado extinto o procedimento criminal por amnistia do crime (Lei 23/91, de 4 de Julho), foi decretado o perdimento, ao abrigo do artigo 107.º do Código Penal de 1982, a favor do Estado da mercadoria apreendida.
A lei aplicada (amnistia da Lei 23/91, de 4 de Julho) contém um preceito especial (artigo 8.º) sobre este instituto.
9 - Decorre do exposto que o teor do «assento» a extrair salvaguarda a existência quer de disposição especial em contrário na lei da amnistia, quer de regime específico estabelecido em legislação penal extravagante.
Daí que se tenha escrito - «vai no sentido da aplicabilidade do artigo 107.º do Código Penal» e não «no sentido da aplicação do artigo 107.º do Código Penal»; ali, situa-se no plano da susceptibilidade de ser aplicado e não no da efectiva aplicação.
Porque a lei de amnistia continha um preceito especial sobre a matéria, o acórdão recorrido, ao decidir a questão na base do artigo 107.º do Código Penal, julgou incorrectamente. Aplicável era o disposto no artigo 8.º da Lei 23/91 e é nessa base que aquela tem de ser reapreciada.
Decretada a extinção do procedimento criminal por a infracção ter sido abrangida pela alínea g) do artigo 1.º da Lei 23/91.
Assim, é aplicável à perda da mercadoria apreendida o n.º 2 daquele artigo 8.º, o qual manda restituir os objectos, salvo se não for lícita ou enquanto se não mostrar regularizada a sua posse.
A mercadoria apreendida não se encontra excepcionada, pelo que se deve ordenar a sua restituição.
Termos em que se acorda:
a) Conceder provimento ao recurso, pelo que, revogando-se o acórdão recorrido, se ordena a restituição da mercadoria apreendida; e,
b) Em estabelecer, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:
Declarado extinto o procedimento criminal por efeito de amnistia, à perda dos instrumentos e produtos do crime aplica-se, salvo disposição em contrário da lei de amnistia, o disposto no artigo 107.º do Código Penal, na versão de 1982, ressalvando-se o especificamente estabelecido em legislação penal extravagante, relativa a esse tipo de crime, quanto àquele instituto.
Sem tributação.
Lisboa, 19 de Outubro de 1995. - Rui Manuel Lopes Pinto - Pedro Elmano Marçal - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira - Sebastião Duarte da Costa Pereira - António Sousa Guedes - Manuel Luís Sá Ferreira - Victor Manuel Ferreira da Rocha - José Moura Nunes da Cruz - José Joaquim da Costa Figueirinhas - José Sarmento da Silva Reis - Augusto Alves - Manuel Castro Ribeiro - Humberto Carlos Amado Gomes - Manuel de Andrade Saraiva - Joaquim Daniel Araújo dos Anjos.