de 22 de Outubro
Com a eleição do Presidente da República e a tomada de posse do 1.º Governo Constitucional, completou-se o esquema dos Órgãos de Soberania legitimados pela vontade popular, expressa pela via do sufrágio directo, secreto e universal.Este acontecimento reveste-se, para os Portugueses, de extraordinário relevo, pois é a primeira vez que tal acontece no decurso dos últimos cinquenta anos, não obstante a ansiedade - que revestiu formas de resistência e de luta demonstrativas do espírito indomável do povo português - com que sem desfalecimento foi aguardado.
Vai também comemorar-se mais um aniversário da implantação da República, efeméride a que o Governo Constitucional pretende justificadamente emprestar assinalado brilho: a II República retoma e remoça o espírito inovador e libertário da primeira.
Os Governos e, em geral, os Órgãos de Soberania posteriores a 25 de Abril de 1974, sem embargo da sua legitimidade revolucionária, não conseguiram reunificar a família portuguesa desgarrada pelo anterior regime em torno de um claro projecto e de um vivo sentimento de unidade nacional.
Foi assim que viemos a deplorar não só as arritmias do processo revolucionário mas verdadeiras situações de risco do seu colapso.
Com alguma perspectiva, é talvez possível dispensar aos menos responsáveis agentes dos factores de crise o benefício da dúvida sobre o bem fundado das suas intenções. O regresso inopinado da liberdade encontrou impreparados para o seu uso, e por isso propensos ao seu abuso, alguns dos melhores portugueses, sem excluir muitos dos que, com coragem e espírito de missão, contribuíram em 25 de Abril de 1974 para aquele regresso.
E se, por um lado, seriam de ora avante intoleráveis desvios da genuína prática democrática, é talvez conveniente que à novidade das instituições definitivas e legitimadas pela vontade popular se faça corresponder um ponto de partida para novas formas de harmonia e de unidade nacional, passando a esponja do esquecimento sobre a responsabilidade de alguns dos que, situados nos mais diversos ângulos do aspecto político, julgaram possível o regresso ao passado, ou a marcha acelerada para formas de sociedade que o povo português claramente rejeitou.
Desejável seria uma amnistia tão ampla que fizesse cair no esquecimento todos os crimes políticos sem excepção.
Acontece, porém, que o povo português tem o direito de ser esclarecido sobre os acontecimentos ocorridos em 11 de Março e 25 de Novembro de 1975 e só o julgamento dos responsáveis permitirá que a verdade se apure. Essa verdade foi, ao mais alto nível, prometida aos Portugueses. E não lhes será negada. De igual modo, não há tolerância que cubra a responsabilidade penal emergente de actos tão socialmente reprováveis como atentados bombistas ou sevícias e outras violências sobre presos. Não se há-de, pois, estranhar que a responsabilidade penal por esses actos seja expressa e claramente excluída do âmbito da amnistia que ora se concede.
O País Constitucional começa assim, tanto quanto possível, sem divisões e sem ódio.
Mas andariam mal avisados os que vissem fraqueza onde apenas há tolerância. Do facto mesmo de compreenderem e perdoarem retirarão os responsáveis pelo futuro do País força moral para serem vigilantes na prevenção e intransigentes na repressão de condutas delituosas que ponham em causa ou em risco a sociedade democrática em que escolhemos viver, ou que simplesmente constituam desvios da prática democrática que a todos assegura iguais direitos e oportunidades.
Bem se compreenderá que, filiada na especial compreensão que na presente situação pode e deve ser dispensada às infracções de conteúdo político, salvas as previstas e justificadas excepções, a presente amnistia não possa nem deva ser estendida aos mais graves delitos políticos ou comuns, dado o aumento do índice de criminalidade que se tem verificado, embora este aumento possa ser casualmente relacionado com bem identificados fenómenos - pós-guerra colonial, retorno de nacionais das ex-colónias, desemprego e alterações de comportamento determinados pelo termo do regime repressivo anterior a 25 de Abril -, a verdade é que os mecanismos causais subsistem sem que se vislumbre o termo próximo dos seus resultados anti-sociais. E enquanto existirem, e não pudermos opor-lhe soluções económico-sociais definitivas, há que contrapor à sua capacidade de estímulo a eficácia preventiva e dissuasora dos mecanismos penais. A especial incidência do aumento da criminalidade tem-se verificado, sobretudo, em relação aos crimes de maior gravidade. É desses que temos de acautelar-nos.
Quanto aos crimes meramente culposos, e dolosos de menor gravidade, só uma actuação de carácter pedagógico e acentuadamente preventivo pode conduzir a resultados positivos.
Pertinente é sem dúvida uma especial tolerância para os crimes cometidos por menores de 18 anos.
Foi sobre o espírito generoso dos jovens que mais significativamente incidiram as profundas alterações de comportamento ocorridas na sociedade portuguesa. Há que não confundir com propensão para a delinquência o que em regra não passa de imaturidade psíquica ou excesso de generosidade. Investir na juventude um acto de demência rende, em regra, elevado juro.
Não obstante, há que não permitir que se instale um sentimento, que parece desenhar-se em forma tendencial, de generalizada impunidade. A amnistia haverá, pois, de constituir também, se não sobretudo, um aviso à delinquência. A partir dela, vida nova. E nova no sentido de que ninguém deve contar com os excessos de permissividade que o clima revolucionário dos dois últimos anos tornaram possíveis.
Numa administração prudente da própria vontade reside afinal a melhor defesa da ordem, da liberdade e da paz social.
Assim, em consagração da hora jubilosa que passa, sublinhando a esperança que os Portugueses depositam nela:
O Governo decreta, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º - 1. São amnistiados os crimes políticos e as infracções disciplinares da mesma natureza cometidos desde 25 de Abril de 1974.
2. Para os efeitos do disposto neste diploma consideram-se crimes políticos os definidos no artigo 39.º, § único, do Código Penal, com inclusão dos cometidos contra a segurança exterior e interior do Estado.
3. A amnistia não abrange os crimes e as infracções disciplinares, tentados, frustrados ou consumados:
a) As infracções cometidas na preparação e execução dos actos sediciosos de 11 de Março e 25 de Novembro de 1975;
b) Com o emprego de bombas, explosivos ou engenhos semelhantes;
c) Previstos em lei eleitoral, desde que lhes corresponda pena de prisão maior;
d) A que corresponda pena superior à do n.º 4 do artigo 55.º do Código Penal.
4. A amnistia não abrange os crimes contra a liberdade das pessoas, nomeadamente sevícias sobre detidos, de furto, de dano e de abuso de autoridade, mesmo que não consumados, e ainda que a sua prática tenha obedecido a um fim exclusivamente político.
Art. 2.º São também amnistiados os crimes:
a) A que corresponda pena de prisão, quando cometidos por menores de 18 anos;
b) Culposos;
c) A que corresponda ou tenha sido aplicada pena de prisão não superior a três meses, desde que não sejam abrangidos pelo n.º 4 do artigo 1.º;
d) De simples detenção de armas de defesa, desde que o detentor legalize a sua posse no prazo de sessenta dias.
Art. 3.º - 1. A amnistia não extingue a responsabilidade civil emergente dos factos praticados. Se os ofendidos houverem já deduzido pedido de fixação de indemnização civil no processo crime, podem, para o efeito de fixação da mesma, requerer, no prazo de trinta dias, o prosseguimento do processo.
2. É restituível o imposto de justiça pago pela constituição de assistente nos casos em que, pela aplicação da amnistia, cesse o procedimento criminal pelas infracções que motivaram a intervenção do assistente.
Art. 4.º São ainda amnistiadas as contravenções previstas nos seguintes diplomas:
a) As transgressões ao Código da Estrada e seu regulamento, quando puníveis apenas com multa;
b) As transgressões ao regime da caça puníveis com multa;
c) A transgressão prevista no artigo 14.º do Decreto-Lei 42644, de 14 de Novembro de 1959, desde que a inscrição do facto sujeito a registo obrigatório seja requerido no prazo de sessenta dias, a contar da publicação do presente diploma;
d) A transgressão prevista no artigo 36.º do Decreto-Lei 42661, de 20 de Novembro de 1959;
e) As transgressões previstas em regulamentos, posturas e editais camarários.
Art. 5.º - 1. São perdoados, relativamente às penas privativas de liberdade já aplicada, ainda que por decisão não transitada:
a) Dois meses, nas penas de prisão até seis meses;
b) Um quarto das restantes penas de prisão;
c) Um quinto das penas de prisão maior variáveis;
d) Um sexto das penas de prisão maior fixas.
2. O perdão referido no número anterior será concedido sob a condição resolutiva de o beneficiado não praticar uma infracção dolosa nos três anos subsequentes à data deste diploma ou à data em que vier a terminar o cumprimento da pena ou durante o cumprimento desta. Se a praticar, à pena correspondente à infracção acrescerá a parte da pena perdoada.
3. Não beneficiam do perdão das penas os delinquentes de difícil correcção e os que, tendo beneficiado do perdão concedido pelo Decreto-Lei 259/74, de 15 de Junho, perderam tal benefício nos termos do n.º 2 do artigo 1.º desse diploma.
Art. 6.º Os benefícios concedidos pelo presente diploma apenas se aplicam às infracções e processos sujeitos à jurisdição do tribunal comum.
Art. 7.º O presente decreto-lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros. - Mário Soares.
Promulgado em 14 de Outubro de 1976.
Publique-se.O Presidente da República, ANTÓNIO RAMALHO EANES.