Acórdão do Tribunal Constitucional 380/2024, de 4 de Junho
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 107/2024, Série I de 2024-06-04
- Data: 2024-06-04
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Sumário
Texto do documento
Processo 1164/22
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, doravante LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 54.º da Lei 98/2009, de 4 de setembro, "na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida".
Para fundamentar tal pedido, o recorrente alega que a norma em causa foi julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 151/2022, 194/2022 e 699/2022, bem como na Decisão Sumária n.º 644/2022, o que permite ter por verificado o pressuposto previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, já que todas as referidas decisões transitaram em julgado.
2 - Notificado, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, para se pronunciar sobre o pedido na qualidade de representante do órgão emissor da norma, o Senhor Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos, tendo remetido uma nota elaborada pela Comissão Parlamentar de Trabalho, Segurança e Inclusão acerca do enquadramento legal, antecedentes e trabalhos preparatórios da Lei 98/2009, de 4 de setembro.
3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos previstos no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II - Fundamentação
Pressupostos de cognição
4 - O artigo 281.º, n.º 3, da Constituição, estabelece que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas por ele julgadas inconstitucionais ou ilegais em três casos concretos. O artigo 82.º da LTC, por seu turno, atribui ao Ministério Público legitimidade para requerer a apreciação abstrata da constitucionalidade ou legalidade de normas julgadas inconstitucionais ou ilegais pelo Tribunal em três casos concretos.
Não se levantam, aqui, dúvidas sobre a legitimidade ativa do representante do Ministério Público. De igual modo, verifica-se que o pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado nos presentes autos tem por base quatro decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, correspondendo a primeira ao Acórdão 151/2022, que julgou inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, "a norma constante do artigo 54.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa se situe aquém do montante correspondente à remuneração mínima mensal garantida". Para além de reiterado nos Acórdãos n.os 194/2022 e 699/2022, e na Decisão Sumária n.º 644/2022, indicados pelo Ministério Público, este juízo positivo de inconstitucionalidade viria a ser reafirmado ainda nos Acórdãos n.os 793/2022, 128/2023 e 610/2023, assim como nas Decisões Sumárias n.os 38/2023, 181/2023, 294/2023, 406/2023, 570/2023 e 659/2023, tornando-se, deste modo, inequívoca a verificação das condições necessárias para a apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.
B. Do mérito
5 - A norma que integra o objeto do pedido encontra-se consagrada no artigo 54.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4 de setembro, que complementa o regime de atribuição da "prestação suplementar para assistência a terceira pessoa" (doravante referida também pela sigla "PSATP"), estabelecido no respetivo artigo 53.º
A respetiva redação é a seguinte:
"Artigo 53.º
(Prestação suplementar para assistência a terceira pessoa)
1 - A prestação suplementar da pensão destina-se a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente.
2 - A atribuição da prestação suplementar depende de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, carecendo de assistência permanente de terceira pessoa.
3 - O familiar do sinistrado que lhe preste assistência permanente é equiparado a terceira pessoa.
4 - Não pode ser considerada terceira pessoa quem se encontre igualmente carecido de autonomia para a realização dos atos básicos da vida diária.
5 - Para efeitos do n.º 2, são considerados, nomeadamente, os atos relativos a cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção.
6 - A assistência pode ser assegurada através da participação sucessiva e conjugada de várias pessoas, incluindo a prestação no âmbito de apoio domiciliário, durante o período mínimo de seis horas diárias.
Artigo 54.º
(Montante da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa)
1 - A prestação suplementar da pensão prevista no artigo anterior é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS.
[...]".
A Lei 98/2009 regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (doravante designado também pelo acrónimo "RAT"), incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, tendo tido na sua génese o Projeto de Lei 786/X, apresentado pelo grupo parlamentar do Partido Socialista.
Ao referir-se à PSATP, o aludido diploma não segue a mesma formulação em todos os seus preceitos, ora atribuindo-lhe o nome de "prestação suplementar para assistência a terceira pessoa" - como faz nos artigos 53.º e 54.º -, ora designando-a por "prestação suplementar para assistência de terceira pessoa", como sucede com os artigos 47.º, n.º 1, alínea h), e 55.º
Sem prejuízo de ser esta última a designação mais correta, a apontada discrepância nominativa não assume qualquer relevo no plano normativo. Aqui como ali, do que se trata é de regular a atribuição de uma prestação que tem como função permitir ao trabalhador incapacitado por acidente de trabalho cobrir as despesas que terá de suportar por ter ficado dependente, em consequência da lesão sofrida, dos serviços de alguém que lhe preste assistência. O que está em causa não é, pois, a assistência dada pelo sinistrado a terceira pessoa, mas sim a assistência dada por terceira pessoa ao sinistrado.
6 - Como houve oportunidade de observar no Acórdão 151/2022, a Lei 98/2009 inscreve-se numa linha evolutiva que remonta à Lei 83, de 24 de julho de 1913, diploma que consagrou, pela primeira, vez o direito dos "operários e empregados" a "assistência clínica, medicamentos e indemnizações" em caso de "acidente de trabalho, sucedido por ocasião do serviço profissional e em virtude desse serviço" (artigo 1.º). A partir dessa consagração, o sistema legal de proteção dos trabalhadores em caso de infortúnio laboral conheceu sucessivas modificações, que se traduziram num reforço progressivo da proteção especial concedida aos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, designadamente através da ampliação do âmbito objetivo do direito à reparação pelo dano sofrido, independentemente de culpa do empregador.
No que aqui especialmente releva, essa ampliação chegou logo com a Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, que promulgou as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, consagrando, pela primeira vez, o direito do trabalhador sinistrado a uma "prestação suplementar", devida nos casos em que, "em consequência da lesão resultante do acidente, a vítima não pude[sse] dispensar a assistência constante de terceira pessoa" (Base XVIII). Tendo como objetivo, "de algum modo, compensar o acréscimo das despesas que efetua um sinistrado que, por motivo das lesões sofridas, não pode dispensar a assistência permanente de terceira pessoa" (Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho, Notas e Comentários à Lei 2127, Coimbra, Almedina, 1995, p. 88), a prestação suplementar prevista na Base XVIII da Lei 2127 pressupunha já a fixação de uma pensão - não sendo por isso devida nos casos de incapacidade temporária, ainda que absoluta - e tinha como valor máximo o correspondente a 25 por cento do montante da pensão fixada (n.º 1), não se atendendo para o respetivo cálculo à parte da pensão que excedesse 80 por cento da retribuição-base (n.º 2).
À Lei 2127 seguiu-se a Lei 100/97, de 13 de setembro, com origem na Proposta de Lei 67/VII, que aprovou o (então) novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. Reconhecendo que, "nalguns aspetos", a Lei 2127 "não cumpr[ia] integralmente o seu objetivo fundamental", que consistia "em assegurar aos sinistrados condições adequadas de reparação dos danos decorrentes das lesões corporais e materiais originadas pelo acidente ou doença profissional", o Governo procurou, com aquela iniciativa legislativa, "criar condições para melhorar, de uma maneira geral, o nível das prestações garantidas aos sinistrados, nomeadamente pecuniárias". As medidas para o efeito adotadas incluíam a "criação do subsídio por situações de elevada incapacidade permanente", como "compensação adicional para os casos mais graves de incapacidade com permanência", a determinar através de um "cálculo baseado no valor do salário mínimo nacional". Cálculo que, tendo sido estendido à fixação do valor de outras prestações pecuniárias, como a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa (artigo 19.º da Proposta de Lei), procurava refletir também a ideia de que, sendo obrigatória a transferência da responsabilidade por acidentes de trabalho para uma entidade seguradora, "qualquer alteração dos benefícios te[ria] reflexos quase imediatos em termos de financiamento", com consequências para a "competitividade das nossas empresas, para a criação e manutenção dos postos de trabalho e para a criação de riqueza" (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 13, 10 de janeiro de 1997, p. 208 e ss.). Mantendo inalterado o pressuposto para a atribuição da prestação suplementar que constava já da Base XVIII da Lei 2127 - não poder o sinistrado, em consequência da lesão resultante do acidente, dispensar a assistência constante de terceira pessoa -, a Lei 100/97 veio fixar-lhe assim um novo limite máximo, ao prescrever que o respetivo valor não poderia ser "superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico". Remuneração essa que veio a ser equiparada ao salário mínimo nacional para as outras atividades pelo Decreto-Lei 19/2004, de 20 de janeiro.
À Lei 100/97 sucedeu, por último, a Lei 98/2009, de 4 de setembro, que, tal como previsto no artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, veio regulamentar o RAT, com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2010 (artigo 188.º).
7 - Em matéria de atribuição da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, as modificações operadas pela Lei 98/2009, essencialmente concentradas nos respetivos artigos 53.º a 55.º, resultaram, desde logo, na previsão de uma disciplina mais completa e detalhada.
O artigo 53.º do RAT (ao qual se referirão todos os artigos seguidamente mencionados, sem indicação de outro diploma) esclarece a finalidade da PSATP: trata-se de uma prestação suplementar da pensão que se destina "a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente" (n.º 1). A atribuição da prestação suplementar depende por isso - e aqui reside o seu pressuposto - "de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias", nomeadamente as relacionadas com os "cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção", "carecendo de assistência permanente de terceira pessoa" (n.os 2 e 5), que pode ser um seu familiar (n.º 5). A assistência "pode ser assegurada através da participação sucessiva e conjugada de várias pessoas, incluindo a prestação no âmbito do apoio domiciliário, durante o período mínimo de seis horas diárias" (n.º 6).
O artigo 54.º estabelece, por seu turno, as regras para a determinação do valor da prestação suplementar, levando em conta que se trata de uma prestação pecuniária [artigo 47.º, n.º 1, alínea h)] de realização periódica (artigo 47.º, n.º 3), que "acompanha o pagamento mensal da pensão anual e dos subsídios de férias e de Natal" (artigo 78.º, n.º 4). Tal prestação é "fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS" (n.º 1), sendo anualmente atualizável na mesma percentagem em que o for o IAS" (n.º 4). À semelhança do que antes constava do artigo 48.º do Decreto-Lei 143/99, fixa-se ainda o direito do sinistrado à atribuição de uma prestação suplementar provisória "a partir do dia seguinte ao da alta e até ao momento da fixação da pensão definitiva", de "montante equivalente" a 1,1 Indexante dos Apoios Sociais ("IAS"), sempre que "o médico assistente entender" que o mesmo "não pode dispensar a assistência de uma terceira pessoa" (n.º 2), sendo os montantes pagos considerados aquando da fixação final dos direitos do sinistrado (n.º 3).
8 - De acordo com o regime previsto na Lei 98/2009, a PSATP constitui uma prestação pecuniária cumulável quer com as prestações em espécie elencadas no artigo 25.º, quer com as demais prestações pecuniárias devidas em caso de incapacidade permanente para o trabalho. Estas compreendem ainda: (i) a pensão por incapacidade permanente e o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente [artigo 47.º, n.º 1, alíneas c) e d), respetivamente], que se destinam a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho (artigo 48.º, n.º 2); e (ii) o subsídio para readaptação de habitação, quando necessária [artigo 47.º, n.º 1, alínea i)].
A pensão por incapacidade permanente é anual e vitalícia, correspondendo a 80 % da retribuição em caso incapacidade absoluta para todo e qualquer trabalho, acrescida de acrescida de 10 % desta por cada pessoa a cargo sinistrado, até ao limite da retribuição; em caso de incapacidade absoluta para o trabalho habitual, será fixada entre 50 % e 70 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível [artigo 48.º, n.º 3, alíneas a) e b), respetivamente]. O subsídio por situação de elevada incapacidade permanente constitui, por sua vez, uma prestação de atribuição única (artigo 47.º, n.º 1), destinada a compensar o sinistrado com incapacidade permanente absoluta ou incapacidade permanente parcial igual ou superior a 70 %, pela perda ou elevada redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho (artigo 67.º, n.º 1). O subsídio para readaptação de habitação corresponde igualmente a uma prestação pecuniária de atribuição única (artigo 47.º, n.º 3), mas a sua finalidade é o pagamento das despesas suportadas com a readaptação da habitação do sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho que dela necessite, em função da sua incapacidade (artigo 68.º, n.º 1).
A atribuição cumulativa das quatro prestações - pensão por incapacidade permanente, subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, subsídio para readaptação de habitação, quando necessária, e prestação suplementar para assistência a terceira pessoa - constitui o modo através do qual se efetiva, no âmbito do RAT, a reparação pecuniária do dano emergente de acidente de trabalho sempre que dele tiver resultado uma incapacidade permanente absoluta para o sinistrado, que o impossibilite de prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias sem a assistência permanente de terceira pessoa.
9 - Ao contrário das prestações em espécie, que se efetivam através da simples imputação à entidade responsável das despesas inerentes aos cuidados e serviços elencados no artigo 25.º, as prestações em dinheiro pressupõem a fixação do respetivo valor. No caso da pensão, a base de cálculo é dada pelo valor da retribuição do sinistrado (artigo 71.º, n.º 1); no caso do subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, do subsídio para readaptação de habitação e da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa o referencial é outro.
No âmbito da Lei 100/97, o valor de cada uma destas três prestações era definido ou limitado com base na remuneração mínima mensal garantida: o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente era igual a 12 vezes a remuneração mínima mensal garantida à data do acidente (artigo 23.º da referida Lei); o subsídio para readaptação de habitação era fixado até ao limite de 12 vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data do acidente (artigo 24.º da mesma Lei); e a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa era fixada, conforme acima visto, em valor não superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico (artigo 19.º do diploma mencionado).
Com a entrada em vigor da Lei 98/2009, o elemento de referência para o cálculo das referidas prestações deixou de ser a retribuição mínima garantida para passar a ser o IAS - mais concretamente 1,1 IAS: 12 vezes 1,1 IAS em vigor à data do acidente no caso do subsídio por situação de elevada incapacidade permanente (artigo 67.º) e do limite máximo subsídio para readaptação de habitação (artigo 68.º); e 1,1 IAS no caso do limite máximo da prestação mensal suplementar para assistência a terceira pessoa (artigo 54.º, n.º 1), cujo valor é anualmente atualizável na percentagem em que aquele o for (artigo 54.º, n.º 2).
10 - Como igualmente se observou no Acórdão 151/2022, o RAT continua a não estabelecer, à semelhança do que sucedida com o regime precedente, quais os elementos a atender na fixação do valor da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa. De acordo com a orientação prevalecente na jurisprudência dos tribunais comuns - de resto, firmada já no âmbito de vigência da Lei 100/97 -, a prestação suplementar, para além de ser devida 14 vezes ao ano (v., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.2010, Processo 786/06.9TTGMR.P1.S1, e os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 12.12.2005, Processo n.os 0515361, e de 21.02.2018, Processo 1419/13.2TTPNF.P1, todos disponíveis, tal como os demais seguidamente mencionados, em www.dgsi.pt), deve ser graduada em função do tempo requerido pela satisfação das necessidades do sinistrado que demandam a assistência de terceira pessoa, tomando em consideração a maior ou menor autonomia daquele e a sua capacidade restante para prover à satisfação de as respetivas necessidades básicas diárias; ou, dito de outra forma, de acordo com o número de horas em que o sinistrado carece da assistência de terceira pessoa, o que dependerá, por sua vez, da gravidade das limitações que o mesmo apresente e da maior ou menor extensão do quociente de autonomia e de capacidade de satisfação das respetivas necessidades básicas diárias. De tal modo que o limite máximo legalmente estabelecido - antes o valor da retribuição mínima mensal garantida, agora o valor correspondente a 1,1 IAS - apenas deverá ser atingido nos casos mais graves, sendo de graduar em sentido inverso nos casos em que a dependência é menor, tendo em conta a capacidade restante da vítima do acidente de trabalho (v., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2007, Processo 07S2716, e de 08.05.2013, Processo 771/11.9TTVIS.C1.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.12.2007, Processo 8145/2007-4, e de 13.09.2019, Processo 1210/16.4T8LMG.C1, do Tribunal da Relação do Porto de 23.01.2012, Processo 340/08.0TTVJG.P1, e do Tribunal da Relação de Évora de 14.07.2021, Processo 2053/19.9T8VFX.E1).
11 - Tendo presentes os aspetos essenciais do regime legal de reparação pecuniária dos danos emergentes de acidente de trabalho de que resultou para o sinistrado uma incapacidade permanente que o impede de prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias sem a assistência permanente de uma terceira pessoa, a primeira questão a resolver consiste em saber, como apontou o Acórdão 151/2022, se e em que medida o direito dos trabalhadores à justa reparação em caso de infortúnio laboral, consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, impõe ao legislador a previsão de uma prestação adicional e autónoma, que permita ao sinistrado fazer face a essa situação de dependência em que se viu colocado em consequência do tipo e ou nível de incapacitação originado pela lesão resultante do acidente.
Como se afirmou no Acórdão 699/2022, da simples leitura do referido preceito constitucional podem extrair-se, sem grande esforço hermenêutico, duas notas prévias: a primeira é que a Constituição consagra o direito de todos os trabalhadores (sem qualquer exceção) a serem assistidos quando forem vítimas de um sinistro laboral (distinguindo, desde logo, a “assistência” da “reparação”), assim como prevê a “justa reparação” dos danos decorrentes de um “acidente de trabalho ou de doença profissional”; a segunda é que o legislador constitucional não define o que é “justa reparação”, nem quem deverá, em concreto, prestar essa “assistência” e efetuar essa “reparação”, deixando uma ampla margem de discricionariedade ao legislador ordinário para concretizar legalmente este direito dos trabalhadores, quer quanto aos danos reparáveis neste âmbito, quer quanto à entidade que deverá assegurar a sua “reparação” (que, entre nós, quanto aos eventos infortunísticos laborais, incumbe ao empregador - artigos 7.º e 79.º da Lei 98/2009 -, que deverá, obrigatoriamente, transferir essa responsabilidade para uma seguradora, e à Segurança Social relativamente às doenças profissionais - artigos 93.º e 140.º e seguintes da Lei 98/2009).
Daqui resulta que, apesar de assistir ao legislador "alguma margem de livre conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais constitucionalmente consagrado" (Acórdão 612/2008), essa liberdade de atuação não pode ser exercida em termos que ponham em causa o conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição. Conteúdo esse que, como se escreveu no Acórdão 786/2017, corresponde, nem mais nem menos, do que "à função desempenhada pelo instituto da reparação por infortúnio laboral; é, em termos aproximados, o direito a que seja preservada a função essencial desse instituto. Temos, por isso, que tal direito constitui uma garantia de reparação do dano laboral, o mesmo é dizer, de reconstituição ou de compensação da capacidade de ganho perdida pelo trabalhador em virtude de ter sofrido um acidente de trabalho ou de ter contraído uma doença profissional".
A esta luz, percebe-se que a densificação do conceito de "justa reparação" dos danos provocados por acidente de trabalho tenda a pressupor uma noção compreensiva de dano laboral e, com isso, uma conceção reintegradora da função do regime especial de proteção dos trabalhadores em caso de infortúnio. É este, de resto, o sentido em que parece apontar o Acórdão 433/2016 ao afirmar que "a ideia de justiça na reparação - retirada do próprio léxico da norma constitucional citada - comete o legislador na incumbência de facultar os meios necessários e adequados à efetivação desse direito dos trabalhadores com vista à reparação dos danos sofridos pelas vítimas de um acidente de trabalho, a qual se procura efetiva e verdadeiramente dirigida à superação ou, não sendo tal possível, à compensação dos danos na saúde e na capacidade e aptidão dos trabalhadores para a vida ativa e, em particular, para a atividade laboral". Daí que o conceito de justa reparação não se "esgot[e] na atribuição aos trabalhadores de pensões por incapacidade (prestações em numerário), antes incluindo prestações de diferentes tipos, como as reparações em espécie [...]".
Ora, deste ponto de vista, não parece subsistir qualquer dúvida de que, nos casos em que a materialização dos riscos inerentes à prestação laboral resulte em lesão que incapacite o sinistrado para o trabalho de forma permanente e o torne simultaneamente dependente da assistência permanente de terceira pessoa para acudir às suas necessidades básicas diárias, certas delas essenciais à própria sobrevivência, a justa reparação do dano laboral não poderá deixar de contemplar a atribuição de uma prestação cumulativa, que reflita e compense o correspondente encargo. Neste sentido, pode dizer-se que a PSATP integra diretamente a reparação adequada, proporcionada e “justa” o dano emergente de acidentes de trabalho e doenças profissionais ou, ainda nas palavras do Acórdão 699/2022, aquilo que o legislador ordinário está constitucionalmente obrigado a prever para não deixar os sinistrados numa posição de desproteção em resultado dos eventos infortunísticos de que foram vítimas.
12 - Embora por uma distinta ordem de razões, não é diferente a resposta que se obtém à luz da orientação perfilhada no Acórdão 786/2017, este tirado em Plenário.
De acordo com tal orientação, o "conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, corresponde à função desempenhada pelo instituto da reparação por infortúnio laboral" e esta à "reparação do dano estritamente laboral, consubstanciado na perda de capacidade de ganho do trabalhador vítima de acidente de trabalho ou doença profissional". Aquele direito "constitui uma garantia de reparação do dano laboral, o mesmo é dizer, de reconstituição ou de compensação da capacidade de ganho perdida pelo trabalhador em virtude de ter sofrido um acidente de trabalho [...]" (itálico aditado).
Ora, como igualmente se assinalou no Acórdão 151/2022, mesmo quem sufrague esta compreensão, aparentemente mais estrita, do conteúdo do direito à justa reparação dos danos provocados por acidente de trabalho, não pode deixar de reconduzir a PSATP ao âmbito de proteção do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, tendo em conta a relação que intercede entre as diferentes prestações pecuniárias contempladas no RAT, mais concretamente entre a prestação principal - a pensão anual e vitalícia, com o complemento constituído pelo subsídio de elevada incapacidade permanente - e a prestação suplementar - a prestação para assistência a terceira pessoa -, que são devidas em caso de incapacidade permanente para o trabalho.
Conforme se afirmou no Acórdão 433/2016, a pensão anual e vitalícia tem como finalidade "a substituição ou compensação da perda da contribuição que o vencimento do próprio trabalhador representava para a sua subsistência". Ela visa reparar o direito à integridade económica ou produtiva do trabalhador através da reintegração da sua concreta capacidade de ganho, desempenhando neste sentido uma "função de garantia de subsistência do sinistrado" (v., Acórdãos n.º 136/2014 e 621/2015). Justamente porque a pensão visa - e visa apenas - a compensação do prejuízo económico sofrido pelo sinistrado em consequência da perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho, o respetivo valor é fixado em função do grau de desvalorização sofrido pela vítima, tendo como referente de cálculo o valor da retribuição e até 80 % deste.
O subsídio de elevada incapacidade permanente participa da função reparadora do direito à integridade produtiva do trabalhador que a pensão tipicamente desempenha. Seja por ter em vista a atenuação dos efeitos que a limitação a 80 % da retribuição do valor máximo da pensão atribuível ao sinistrado exerce sobre a efetiva reintegração da sua concreta capacidade de ganho (neste sentido, Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, Coimbra, Almedina, 2001, p. 123), seja, como sustenta a jurisprudência dos tribunais comuns, por visar em qualquer caso "facilitar a adaptação do sinistrado à sua situação de desvalorização funcional com perda de capacidade de ganho, permitindo-lhe porventura efetuar uma aplicação económica que lhe proporcione outros proventos ou reorientar a sua vida profissional para outro tipo de atividade" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2006, Processo 05S3820, em fundamentação seguida, entre outros, nos Acórdãos Relação de Lisboa de 28.05.2008, Processo 3670/2008-4, e de 28.04.2021, Processo 8807/17.3T8LSB.L1-4), tal subsídio constitui uma prestação ainda destinada a compensar o prejuízo económico sofrido pelo sinistrado em consequência da perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho.
A PSATP, por sua vez, visa compensar a despesa adicional gerada pelo recurso à assistência permanente de uma terceira pessoa, de que o sinistrado passou a depender na medida inerente à perda da capacidade de prover, por si só, à satisfação das suas necessidades básicas diárias, designadamente de prestar a si próprio os cuidados de higiene, alimentação e locomoção necessários.
Ora, se, como vimos, é à pensão anual e vitalícia, eventualmente acompanhada do subsídio de elevada incapacidade permanente, que cabe a reintegração da concreta capacidade de ganho do trabalhador sinistrado, a atribuição de uma prestação destinada a compensar os encargos suportados pelo sinistrado com a contratação de pessoa capaz de lhe prestar a assistência permanente necessária tem a função de obviar a que o valor da pensão seja desviado para aquele fim e nele se consuma ou até mesmo esgote. Na ausência de uma prestação suplementar como a que se encontra prevista no artigo 53.º do RAT, o sinistrado que, em consequência do acidente, se confrontasse simultaneamente com a ablação da sua plena capacidade de ganho e a perda da autonomia funcional indispensável à satisfação das suas necessidades básicas diárias ver-se-ia obrigado a alocar pelo menos parte do valor da pensão à contratação da assistência requerida pela superação desta situação de dependência, com consequente e simétrica depreciação da compensação pela perda do vencimento que aquela visa representar. Nestas situações, pode mesmo dizer-se que a pensão apenas constituirá um mecanismo de efetiva reintegração da concreta capacidade de ganho do trabalhador sinistrado se e na medida em que o custo inerente à superação do estado de dependência em que o acidente o colocou se encontre acautelado por outra via. Ou, por outras palavras, que a atribuição da PSATP constitui, em tal circunstância, uma condição indispensável para que a pensão possa funcionar como um real sucedâneo da contribuição antes representada pelo vencimento do sinistrado e, neste sentido, como uma garantia efetiva da sua subsistência.
13 - Uma vez assente que a PSATP integra o conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, a questão que seguidamente se coloca é, como apontado também no Acórdão 151/2022, a de saber se o legislador pode fixar a essa prestação um limite máximo inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida.
Para responder a tal questão, há que começar por verificar se é mesmo essa a solução que decorre do artigo 54.º, n.º 1, da Lei 98/2009, que estabelece como limite máximo do valor da prestação o correspondente de 1,1 IAS.
Ainda que os respetivos valores possam conjunturalmente aproximar-se, o IAS e a retribuição mínima mensal garantida constituem grandezas de natureza diversa.
O IAS foi criado pela Lei 53-B/2006, de 29 de dezembro, tendo passado a constituir, em substituição da retribuição mínima mensal garantida, o referencial determinante da fixação, cálculo e atualização dos apoios sociais do Estado e, bem assim, de quaisquer outras despesas e receitas por este realizadas ou cobradas (artigos 2.º e 8.º, n.º 1, da referida Lei). Tendo em conta esta sua função, o valor do IAS é atualizado anualmente com efeitos a partir do dia 1 de janeiro de cada ano, ponderados os seguintes indicadores de referência: (i) o crescimento real do produto interno bruto (PIB), correspondente à média da taxa do crescimento médio anual dos últimos dois anos, terminados no 3.º trimestre do ano anterior àquele a que se reporta a atualização ou no trimestre imediatamente anterior, se aquele não estiver disponível à data de 10 de dezembro; e (ii) a variação média dos últimos 12 meses do índice de preços no consumidor (IPC), sem habitação, disponível em dezembro do ano anterior ao que reporta a atualização, ou em 30 de novembro, se aquele não estiver disponível à data da assinatura do diploma de atualização (artigo 4.º da Lei 53-B/2006, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 254-B/2015, de 31 de dezembro).
Na medida em que o direito à justa reparação por acidentes de trabalho continua a ser perspetivado no ordenamento jurídico nacional, "não como um direito à segurança social destinado a proteger os cidadãos em situações de falta ou insuficiência de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, mas como um direito dos trabalhadores no âmbito da legislação do trabalho, baseado num regime de responsabilidade civil do empregador tendo em vista a recuperação do sinistrado, segundo o princípio da restauração natural, ou a fixação de uma compensação pecuniária em caso de morte ou incapacidade para o trabalho, e que pressupõe, como garantia de pagamento, a obrigatoriedade de transferência da responsabilidade do empregador para uma instituição seguradora" (Acórdão 161/2011), pode desde logo questionar-se a adequação funcional do IAS para intervir como referencial de cálculo na determinação do limite máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa.
Com efeito, como se disse no Acórdão 699/2022, "prima facie, não deixa de ser estranho que se tenha entendido vincular o valor inicial desta prestação pecuniária e das suas posteriores atualizações a um “indexante” ligado a pensões e prestações sociais pagas pela Segurança Social, quando aqui está em causa, pelo menos no que diz respeito ao acidentes de trabalho, um verdadeiro aliud - uma prestação que não é paga, em regra, pelo Estado ou pela Segurança Social, mas antes por entidades privadas (desde logo, as próprias seguradoras para quem usualmente deve ser transferida a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos infortunísticos laborais). De igual modo, mostra-se estranho o afastamento da relação anteriormente existente entre o seu montante e a retribuição mínima mensal garantida para o serviço doméstico, que se compreendia e justificava uma vez que seria essa a referência (mínima) para contratar alguém que preste essa assistência permanente".
De resto, e como se observou também no referido aresto, a doutrina não deixou, desde logo, de apontar a incongruência desta solução legal e a sua possível inconstitucionalidade, como decorre da análise levada a cabo por Viriato Reis (cf. A Lei de Acidentes de Trabalho. Aspetos controversos da sua aplicação, disponível em https://www.asf.com.pt/NR/rdonlyres/4A25731F-B02D-4285-A23B-C2BEA6078707/0/F34_Art5.pdf), que notou o seguinte:
“Na Lei 98/2009, de 4 de setembro (LAT de 2009), que está em vigor desde 01-01-2010, foram mantidas todas aquelas prestações complementares, as quais constam das seguintes normas: 1. no artigo 54.º, a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa; 2. no artigo 65.º, o subsídio por morte; 3. no artigo 66.º, o subsídio por despesas de funeral; 4. no artigo 67.º, o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente; 5. no artigo 68.º, o subsídio para readaptação de habitação. Todavia, diferentemente do que sucede na LAT de 1997, o referencial para o seu cálculo deixou de ser a RMMG para passar a ser o valor de 1,1 do Indexante dos Apoios Sociais (IAS). Ora, sendo em 2014 o valor do IAS de 419,22 €, o montante de 1,1 IAS é de 461,14 €. Por sua vez, o valor da RMMG em vigor em 2014 é de 485,00 €. Constata-se, assim, que da LAT de 1997 para a de 2009 se verificou uma redução dos montantes de todas aquelas prestações que têm agora como referencial para o seu cálculo o valor de 1,1 IAS em substituição da RMMG.
[...]
Foi, assim, apresentado o Projeto de Lei 786/X, no qual o referencial para o cálculo daqueles subsídios e prestações complementares já previstos no regime jurídico anterior (da LAT de 1997) passou a ser o valor de 1,1 IAS, o que, como se sabe, veio a ser consagrado na LAT de 2009. Ora, também quanto a esta opção o legislador não deu qualquer explicação, sendo que na exposição de motivos do Projeto de Lei surgem elencados alguns dos aspetos que os deputados proponentes entenderam que mereciam destaque, sem mencionar esta alteração a que estamos a fazer referência, e tendo, simultaneamente, deixado escrito que não se visava romper com o regime jurídico anterior. Considerando os valores já acima referidos, de 485,00 € para a RMMG e de 461,14 € correspondente a 1,1 IAS, atualmente em vigor, facilmente se concluiu que a alteração legislativa redundou numa significativa redução do montante desses complementos da pensão. Essa diminuição do valor assume um especial significado no caso da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa., a qual se destina a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa, em face da situação de dependência do sinistrado, conforme se prevê no n.º 1, do artigo 54.º da LAT de 2009. Com efeito, tendo presentes os valores atualmente em vigor da RMMG, por um lado, e de 1,1 IAS, por outro, acima mencionados, teremos como consequência que o valor da prestação suplementar sofra uma redução relativamente ao modo de cálculo que estava previsto na LAT de 1997, cujo montante anual pode atingir 334,00 €. Para beneficiar dessa assistência por terceira pessoa o sinistrado terá, em princípio, de contratar um(a) trabalhador(a) para exercer essa atividade e considerando "a natureza dos serviços a prestar, tal contratação revestirá, por norma, a natureza de um contrato de trabalho do serviço doméstico".
Ora, cumprindo as suas obrigações legais e contratuais, o sinistrado deverá necessariamente pagar à pessoa contratada para lhe prestar assistência a retribuição mensal, a retribuição de férias e os subsídios de férias e de Natal, pelo que os pagamentos devem ser feitos 14 vezes no ano, sendo que o valor da retribuição não pode ser inferior ao da RMMG, como naturalmente resulta das leis laborais. Assim sendo, o valor mensal da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, calculada com base em 1,1 IAS, não é suficiente para compensar o sinistrado dos encargos que terá de suportar com o pagamento da retribuição à pessoa contratada, nem sequer quanto ao montante correspondente ao da RMMG. O que permite colocar seriamente a questão de saber se a norma atualmente em vigor, a do artigo 54.º, n.º 1, da LAT, respeita o direito constitucional à assistência e justa reparação devida aos sinistrados, previsto na al. f), do n.º 1, do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa” (itálico aditado).
Tenha-se presente que, no ano de 2010 - o primeiro em que vigorou a Lei 98/2009 -, o IAS fixava-se em € 419,22 (Portaria 1514/2008, de 24 de dezembro), valor que se manteve até ao ano de 2017 (cf. Decreto-Lei 323/2009, de 24 de dezembro; Lei 55-A/2010, de 31 de dezembro; Lei 64-B/2011, de 30 de dezembro; Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro; Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro; Lei 82-B/2014, de 31 de dezembro e Decreto-Lei 253/2015, de 30 de dezembro); no ano de 2017, o IAS voltou a ser atualizado, tendo sido fixado em € 421,32 (Portaria 4/2017, de 3 de janeiro); no ano de 2018, foi atualizado para € 428,90 (Portaria 21/2018, de 18 de janeiro) e, no ano de 2019, para € 435,76 (Portaria 24/2019, de 17 de janeiro); no ano de 2020, subiu para € 438,81 (Portaria 27/2020, de 31 de janeiro), valor que se manteve em 2021; no ano de 2022 foi atualizado para €443,20 (Portaria 294/2021, de 13 de dezembro), tendo subido para € 480,43 em 2023 (Portaria 298/2022, de 16 de dezembro) e para € 509,26 em 2024 (Portaria 421/2023, de 11 de dezembro).
O estabelecimento de uma retribuição mínima mensal garantida (RMMG) resulta, por sua vez, da concretização pelo Estado da incumbência enunciada na alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º da Constituição. Assim, a lei garante aos trabalhadores uma retribuição mínima mensal, seja qual for a modalidade praticada, cujo valor é determinado anualmente por legislação específica, ouvida a Comissão Permanente de Concertação Social, tendo em conta, entre outros fatores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento de custo de vida e a evolução da produtividade, tendo em vista a sua adequação aos critérios da política de rendimentos e preços (artigo 273.º, n.os 1 e 3, do Código do Trabalho). De acordo com essa ponderação, a RMMG foi fixada: para o ano de 2010 em € 475,00 (Decreto-Lei 5/2010, de 15 de janeiro); para o ano de 2011 em € 485,00 (Decreto-Lei 143/2010, de 31 de dezembro), valor que só voltou a ser atualizado em 2014, subindo para € 505,00, valor que se manteve em 2015 (Decreto-Lei 144/2014, de 30 de setembro); no ano de 2016 foi fixada em € 530,00 (Decreto-Lei 254-A/2015, de 31 de dezembro); no ano de 2017 em € 557,00 (Decreto-Lei 86-B/2016, de 29 de dezembro); no ano de 2018 em € 580,00 (Decreto-Lei 156/2017, de 28 dezembro); no ano de 2019 em € 600,00 (Decreto-Lei 117/2018, de 27 dezembro); no ano de 2020 em € 635,00 (Decreto-Lei 167/2019, de 21 novembro); no ano de 2021 em € 665,00 (Decreto-Lei 109-A/2020, de 31 de dezembro); no ano de 2022, em € 705,00 (Decreto-Lei 109-B/2021, de 7 de dezembro); no ano de 2023, em € 760,00 (Decreto-Lei 85-A/2022 de 22 de dezembro); e, finalmente, € 820,00 (Decreto-Lei 107/2023 de 17 de novembro).
Confrontando os valores que, desde a entrada em vigor da Lei 98/2009, foram correspondendo a 1,1 IAS com aqueles que resultaram da atualização da RMMG, verifica-se que os primeiros se situam consideravelmente aquém dos segundos. A tendência é mesmo para a acentuação dessa diferença, como comprovam os anos de 2021 a 2024: em 2021, o diferencial era de € 182,31 (€ 665,00 – € 438,81 × 1,1), ascendendo a € 217,48 em 2022 (€ 705 – €443,20 × 1,1), subindo para € 231,53 em 2023 (€ 760 – €480,43 × 1,1) e aumentando para € 259,82 em 2024 (€ 820 – €509,26 × 1,1).
14 - Sabendo-se que, no âmbito da Lei 100/97, o valor da prestação suplementar tinha com limite máximo o montante da retribuição mínima mensal garantida (cf. supra, o n.º 11), a confrontação da norma sindicada com o direito consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, como observou o Acórdão 151/2022, pode, à partida, ocorrer por uma de duas vias.
A primeira corresponde a um controlo de constitucionalidade baseado na proibição do retrocesso social: alcançado já um certo nível de realização do direito à justa reparação dos trabalhadores, quando vítimas de acidente de trabalho, o simples facto de o legislador retroceder nesse nível de efetivação seria suficiente para se ter por constitucionalmente vedada a substituição da solução que constava do artigo 19.º, n.º 1, da Lei 100/97, por aquela que atualmente resulta do n.º 1 do artigo 54.º do RAT.
Tal perspetiva não pode ser, todavia, aceite. Como este Tribunal vem assinalando, "[s]ó seria assim se se admitisse uma proibição geral de retrocesso social, em matéria de direitos sociais, no sentido de que nunca poderia ser criado um novo regime legal que pudesse afetar qualquer situação jurídica que se encontrasse abrangida pela lei anterior", o que acarretaria a destruição da "autonomia da função legislativa, cujas características típicas, como a liberdade constitutiva e a autorevisibilidade, seriam praticamente eliminadas se, em matérias tão vastas como os direitos sociais, o legislador fosse obrigado a manter integralmente o nível de realização e a respeitar em todos os casos os direitos por ele criados" (Acórdão 575/2014).
Negada a "autonomia normativa da proibição do retrocesso" - isto é, assente que "dela não se retira qualquer parâmetro próprio de controlo da afetação negativa dos direitos sociais" (Acórdão 794/2013) -, isso significa que a inconstitucionalidade da norma sindicada, a verificar-se, não resultará do simples facto de o legislador de 2009, através da substituição dos referenciais que operou, ter permitido que o montante máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa retrocedesse para um valor significativamente aquém daquele que se obtinha por aplicação da solução anterior; só poderá resultar de uma resposta afirmativa à questão de saber se, nesse retrocesso, foi ou não indevidamente afetado o próprio direito à justa reparação dos trabalhadores, quando vítimas de acidente de trabalho.
15 - Conforme relatado supra (v. o n.º 4), o Tribunal respondeu positivamente a essa questão em todos os casos em que foi chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da norma constante do n.º 1 do artigo 54.º da Lei 98/2009, "na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida". Em todos esses julgamentos, concluiu-se que tal solução veio fragilizar a posição jurídica do trabalhador vítima de acidente laboral em termos incompatíveis com o acesso a uma reparação que possa ser considerada justa, nos termos impostos pelo artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
Como notado una vez mais no Acórdão 151/2022, nos casos em que, em consequência da lesão em que se materializou o risco inerente à prestação laboral, o trabalhador se vê simultaneamente confrontado com supressão da sua plena capacidade de ganho e a perda da autonomia funcional necessária à satisfação das necessidades básicas diárias, a efetivação do direito à justa reparação a que alude a alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição não pode deixar de pressupor a atribuição de uma prestação suplementar da pensão em valor congruente com a necessidade de contratação da assistência de terceira pessoa. Congruência essa que obriga a que aquele limite máximo, a existir, leve em conta não menos do que o valor da retribuição mínima mensal garantida praticada no mercado de trabalho - isto é, aquele com que o sinistrado terá, ele próprio, de assegurar sempre que a situação de dependência originada pela lesão resultante de acidente de trabalho exija a assistência permanente de terceira pessoa durante oito horas diárias (artigo 203.º, n.º 1, do Código de Trabalho). É esse o referencial pressuposto pelo direito à justa reparação em caso de acidente de trabalho, conclusão especialmente evidente se não se perder de vista que o limite máximo da pensão suplementar tenderá a ser atingido apenas nos casos mais graves, graduando-se em sentido inverso o restante universo de casos (cf. supra, o n.º 9).
Resta assim concluir, uma vez mais, que a norma sindicada é incompatível com o que dispõe o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental e, nessa medida, declará-la inconstitucional nos termos previstos no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 54.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
Atesto o voto de conformidade do Senhor Conselheiro Vice-Presidente Gonçalo de Almeida Ribeiro, que não assina por não estar presente. Joana Fernandes Costa
Lisboa, 14 de maio de 2024. - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Rui Guerra da Fonseca - Maria Benedita Urbano - José Teles Pereira - Carlos Medeiros de Carvalho - Dora Lucas Neto - Mariana Canotilho - José João Abrantes.
117755739
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5770132.dre.pdf .
Ligações deste documento
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1965-08-03 -
Lei
2127 -
Presidência da República
Promulga as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
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1982-11-15 -
Lei
28/82 -
Assembleia da República
Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.
-
1997-09-13 -
Lei
100/97 -
Assembleia da República
Aprova o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais.
-
1999-04-30 -
Decreto-Lei
143/99 -
Ministério das Finanças
Regulamenta a Lei 100/97, de 13 de Setembro, no que respeita à reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho.
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2004-01-20 -
Decreto-Lei
19/2004 -
Ministério da Segurança Social e do Trabalho
Actualiza os valores do salário mínimo nacional para 2004.
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2006-12-29 -
Lei
53-B/2006 -
Assembleia da República
Cria o indexante dos apoios sociais e novas regras de actualização das pensões e outras prestações sociais do sistema de segurança social.
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2008-12-24 -
Portaria
1514/2008 -
Ministérios das Finanças e da Administração Pública e do Trabalho e da Solidariedade Social
Procede à actualização anual do valor do indexante dos apoios sociais e à actualização anual das pensões e de outras prestações sociais atribuídas pelo sistema de segurança social.
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2009-02-12 -
Lei
7/2009 -
Assembleia da República
Aprova a revisão do Código do Trabalho. Prevê um regime específico de caducidade de convenção colectiva da qual conste cláusula que faça depender a cessação da sua vigência de substituição por outro instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
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2009-09-04 -
Lei
98/2009 -
Assembleia da República
Regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
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2009-12-24 -
Decreto-Lei
323/2009 -
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social
Aprova um regime extraordinário de actualização de pensões e de outras prestações indexadas ao indexante dos apoios sociais para 2010.
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2010-01-15 -
Decreto-Lei
5/2010 -
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social
Fixa o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2010 em € 475.
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2010-12-31 -
Decreto-Lei
143/2010 -
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social
Actualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida em € 485.
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2010-12-31 -
Lei
55-A/2010 -
Assembleia da República
Aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2011. Aprova ainda o sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial II (SIFIDE II) e o regime que cria a contribuição sobre o sector bancário.
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2011-12-30 -
Lei
64-B/2011 -
Assembleia da República
Aprova o Orçamento do Estado para 2012 bem como o regime excepcional de regularização tributária de elementos patrimoniais que não se encontrem em território português, em 31 de Dezembro de 2010, abreviadamente designado pela sigla RERT III.
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2012-12-31 -
Lei
66-B/2012 -
Assembleia da República
Aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2013.
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2013-12-31 -
Lei
83-C/2013 -
Assembleia da República
Aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2014.
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2015-12-30 -
Decreto-Lei
253/2015 -
Finanças
Estabelece o regime de execução orçamental duodecimal entre 1 de janeiro de 2016 e a entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para 2016
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2015-12-31 -
Decreto-Lei
254-A/2015 -
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Atualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2016
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2015-12-31 -
Decreto-Lei
254-B/2015 -
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Repõe as regras de atualização do valor das pensões do regime geral da Segurança Social e do regime de proteção social convergente e fixa o valor de referência do Complemento Solidário para Idosos, a vigorar a partir de 1 de janeiro de 2016
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2016-12-29 -
Decreto-Lei
86-B/2016 -
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Atualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2017
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2017-12-28 -
Decreto-Lei
156/2017 -
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
Fixa o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2018
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2018-04-19 -
Lei Orgânica
1/2018 -
Assembleia da República
Oitava alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), segunda alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), sétima alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), e primeira alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos)
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2018-12-27 -
Decreto-Lei
117/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Fixa o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2019
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2019-11-21 -
Decreto-Lei
167/2019 -
Presidência do Conselho de Ministros
Atualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2020
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2020-12-31 -
Decreto-Lei
109-A/2020 -
Presidência do Conselho de Ministros
Fixa o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2021
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2021-12-07 -
Decreto-Lei
109-B/2021 -
Presidência do Conselho de Ministros
Aprova a atualização do valor da retribuição mínima mensal garantida e cria uma medida excecional de compensação
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2022-12-22 -
Decreto-Lei
85-A/2022 -
Presidência do Conselho de Ministros
Atualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2023
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2023-11-17 -
Decreto-Lei
107/2023 -
Presidência do Conselho de Ministros
Atualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2024
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