1 - Delimitação do objeto do recurso [...] 1.11 - Ora, a formulação constante do requerimento de interposição do recurso, por excessivamente genérica, não reflete integral e especificamente as circunstâncias específicas que se verificam no caso e que necessariamente moldam a dimensão normativa que deverá constituir objeto do recurso.
Com efeito, posteriormente a ser fixada a incapacidade, o sinistrado (o Ministério Público) fez um pedido de revisão sendo proferida decisão, em 16 de abril de 2009, que, apesar de manter a incapacidade, condenou a seguradora a prestar ao sinistrado tratamentos médicos de acompanhamento (vd. 1.2 a 1.6).
O segundo pedido de revisão (de 7 de janeiro de 2015), que foi apreciado pela decisão que agora constitui a decisão recorrida no recurso de constitucionalidade, foi, assim, apresentado para lá do prazo de dez anos contados da data da fixação da incapacidade, em 18 de novembro de 2004 (vd. n.º 1.3.), mas antes do termo desse prazo contada da data posterior decisão (de 16 de abril de 2009) que manteve a incapacidade mas impôs condições à seguradora (vd. 1.6.).
Assim, parecenos que deverá constituir objeto do recurso a questão de inconstitucionalidade da norma Base XXII, n.os 1 e 2, da Lei 2.127, interpretada no sentido de consignar um prazo preclusivo de 10 anos, contados da fixação original da pensão, para a revisão da pensão devida a sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento superveniente de lesões sofridas, nos casos em que, desde a fixação inicial da pensão e o termo desse prazo de dez anos, apesar de mantida a incapacidade, a entidade responsável fique judicialmente obrigada a prestar tratamentos médicos.
8 - Com efeito, do teor da decisão judicial recorrida decorre uma razão determinante do sentido decisório da mesma, que não poderá deixar de constituir a dimensão normativa da Base XXII, n.os 1 e 2, da Lei 2127 de 3 de agosto de 1965 relevante para a apreciação do presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
É que o juízo de inconstitucionalidade formulado quanto ao determinado na Base XXII, n.os 1 e 2 da Lei 2127 de 3 de agosto de 1965 tem por fundamento a verificação, nos autos, de uma evolução (desfavorável) da situação clínica do sinistrado, atenta a circunstância de a seguradora, antes de decorrido o prazo de 10 anos desde a fixação inicial da pensão, ter sido condenada a pagar tratamentos médicos ao sinistrado, o que, para a decisão ora recorrida, afasta a
Assim se decidiu (cf. decisão judicial recorrida, fls. 244-245):
«
[...]
Ora, no caso dos autos, antes de completados os 10 anos em causa a seguradora foi condenada a prestar tratamentos médicos ao sinistrado, o que significa que a sua situação clínica não se consolidou, assim ficando afastada a
«
presunção
» de estabilização da situação clínica do sinistrado.
Verifica-se ainda que a decisão judicial ora recorrida convoca primeiramente a jurisprudência constitucional, em especial a exarada no Acórdão 161/2009, para sustentar o juízo de inconstitucionalidade da norma em apreço.
Por último, tenha-se em conta que, como parâmetro, faz a Juíza a quo apelo aos direitos dos trabalhadores reconhecidos no artigo 59.º da Constituição, especificamente o direito à assistência e justa reparação quando vítimas de acidentes de trabalho ou doença profissional (n.º 1, alínea f), da citada disposição constitucional).
Deste modo, a questão de inconstitucionalidade do disposto na Base XXII, n.os 1 e 2, da Lei 2127 de 5 de agosto de 1965 é reportada à dimensão normativa decorrente da previsão de um prazo preclusivo de dez anos, contados da fixação original da pensão, para a revisão da pensão devida a sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento superveniente de lesões sofridas, nos casos em que, desde a fixação da pensão e o termo desse prazo de dez anos, apesar de mantida a incapacidade, a entidade responsável fique judicialmente obrigada a prestar tratamentos médicos ao sinistrado.
Assim explicitada a dimensão normativa que constitui objeto do presente recurso, cumpre de seguida apreciar do seu mérito.
B) Do mérito do recurso
9 - Tenha-se presente que o direito de revisão das pensões por acidente de trabalho foi consagrado, inicialmente, sem condicionamento do seu exercício a qualquer prazo (artigo 33.º do Decreto 4288, de 22 de maio de 1918).
Mais tarde, a Lei 1942, de 27 de julho de 1936, no seu artigo 24.º, viria introduzir um prazo de cinco anos, a contar da data da homologação do acordo ou do trânsito em julgado da sentença, para a formulação de pedido de revisão das pensões com fundamento em alteração da capacidade de ganho do sinistrado.
Este regime viria a ser alterado pela Lei 2127, de 3 de agosto de 1965 - lei que estabeleceu as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais - aí se prevendo o alargamento do prazo para dez anos, após a fixação da pensão.
Assim, a Base XXII da Lei de Acidentes de Trabalho de 1965, ao caso aplicável, sob a epígrafe
, dispunha o seguinte:
«
1 - Quando se verifique modificação da capacidade de ganho da vítima, proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou quando se verifique aplicação de prótese ou ortopedia, as prestações poderão ser revistas e aumentadas, reduzidas ou extintas, de harmonia com a alteração verificada.
2 - A revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão e poderá ser requerida uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos.
3 - Nos casos de doenças profissionais de caráter evolutivo, designadamente pneumoconioses, não é aplicável o disposto no número anterior, podendo requerer-se a revisão em qualquer tempo; mas, nos dois primeiros anos, só poderá ser requerida uma vez no fim de cada ano.
»
A este propósito, escreveu-se no Acórdão 161/2009 (disponível, bem como os demais citados, em www.tribunalconstitucional.pt):
«
[...] Constata-se, assim, que, comparativamente ao regime legal precedente, a Lei 2127 veio permitir a revisão das várias “prestações” (incluindo, assim, as reparações em espécie) e não apenas das “pensões por incapacidade permanente”, alargou de cinco para dez anos o prazo durante o qual a revisão podia ser requerida e possibilitou a sua formulação “uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos”
»
.
Idêntico regime veio a ser consagrado no artigo 25.º da Lei 100/97, de 13 de setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho), que instituiu o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. A Lei 100/97, de 13 de setembro, foi entretanto revogada pela Lei 98/2009, de 4 de setembro, que veio regulamentar o regime de reparação de acidentes de trabalho, nos termos do artigo 284.º do Código de Trabalho (aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro).
Tal como decorre hoje do artigo 70.º da Lei 98/2009, de 4 de setembro, nos acidentes ocorridos após a sua entrada em vigor, a revisão da pensão pode verificar-se a todo o tempo, com o limite de apenas ser requerida uma vez em cada ano civil. Assim dispõe a nova lei:
«
Artigo 70.º
Revisão
1 - Quando se verifique uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de ajudas técnicas e outros dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais ou ainda de reabilitação e reintegração profissional e readaptação ao trabalho, a prestação pode ser alterada ou extinta, de harmonia com a modificação verificada.
2 - A revisão pode ser efetuada a requerimento do sinistrado ou do responsável pelo pagamento.
3 - A revisão pode ser requerida uma vez em cada ano civil.
»
Contudo, por força do n.º 1 do seu artigo 187.º (com a epígrafe
«
Norma de aplicação no tempo
»
), o disposto no capítulo II aplica-se [apenas] a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor da presente lei [1 de janeiro de 2010].
10 - A constitucionalidade da norma do n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, interpretada no sentido de consagrar um prazo absolutamente preclusivo de 10 anos, contados a partir da data da fixação inicial da pensão, para a revisão da pensão devida ao sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento em agravamento superveniente das lesões sofridas, já foi por diversas vezes apreciada pelo Tribunal Constitucional. 10.1 - Das diversas questões de constitucionalidade colocadas em sede de fiscalização concreta quanto à norma legal sub judicie, dános conta o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 694/2014, em especial, na passagem que se transcreve:
«
6 - [...] O Tribunal Constitucional apreciou a constitucionalidade da norma do n.º 2 da Base XXII à luz de diversas dimensões do princípio da igualdade:
(i) comparação com os sinistrados que, tendo requerido uma primeira revisão dentro dos primeiros dez anos, ficariam habilitados, segundo certo entendimento jurisprudencial, a requerer indefinidamente sucessivas revisões, desde que formuladas, cada uma delas, antes de decorrido um decénio sobre a precedente revisão;
(ii) comparação com os casos em que a pensão é fixada na menoridade do sinistrado, em situações em que não é possível aferir, com exatidão, quais as sequelas futuras da incapacidade;
(iii) comparação entre os lesados por acidentes de trabalho e os lesados “comuns”, quanto ao prazo de prescrição para exercício do direito à indemnização por danos futuros;
(iv) comparação, quanto à existência de um prazo de caducidade, entre os acidentes de trabalho ocorridos antes e depois da entrada em vigor da Lei 98/2009, de 4 de setembro.
(v) comparação entre os sinistrados de acidente de trabalho e os beneficiários de pensão por doença profissional, quanto ao prazo para solicitar a revisão da pensão;
Em todas essas situações de igualdade relacional, apenas na primeira o Tribunal Constitucional
«
julgou inconstitucional, por violação do direito do trabalhador à justa reparação, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, a norma do n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, interpretada no sentido de consagrar um prazo absolutamente preclusivo de 10 anos, contados a partir da data da fixação inicial da pensão, para a revisão da pensão devida ao sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento em agravamento superveniente das lesões sofridas, nos casos em que desde a fixação inicial da pensão e o termo desse prazo de 10 anos tenham ocorrido atualizações da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado
»
(cf. Acórdãos n.os 147/06, 59/2007, 548/09, 271/10 e 280/2011).
Nos casos em que nos dez anos posteriores à data da fixação da pensão não houve qualquer agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado de que tenha resultado a atualização da pensão, considerou-se que não há violação do princípio da igualdade, por comparação com os sinistrados que, tendo requerido e obtido uma primeira revisão da pensão dentro desse período de tempo, ficam depois habilitados a requerer sucessivas atualizações dessa pensão, mesmo que para além desse prazo (cf. Acórdãos n.os 155/03, 612/08, 341/2009 e 219/12).
O fundamento para tal decisão foi logo dado no Acórdão 155/03, o que pela primeira vez apreciou a constitucionalidade do n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, nos seguintes termos:
«
Neste contexto, não se reveste de flagrante desrazoabilidade o entendimento do legislador ordinário de que, dez anos decorridos sobre a data da fixação da pensão (que pressupõe a prévia determinação do grau de incapacidade permanente que afeta o sinistrado), sem que se tenha registado qualquer evolução justificadora de pedido de revisão, a situação se deva ter por consolidada. Diferente seria a situação de, nesse lapso de tempo, terem ocorrido pedidos de revisão, que determinaram o reconhecimento judicial da efetiva alteração da capacidade de ganho de vítima, com a consequente modificação da primitiva determinação do grau de incapacidade, o que indiciaria que a situação não se poderia ter por consolidada. Não ocorreria, assim, violação do princípio da igualdade na primeira perspetiva assinalada. [...]
»
.
7 - Em relação às demais situações de facto objeto de comparação, o Tribunal não encontrou diferenciações relevantes, sem razão material suficiente, que permitam considerar que os sinistrados de acidente de trabalho são tratados arbitrariamente como desiguais, quanto ao direito à revisão da pensão.
»
10.2 - A extensa jurisprudência constitucional já exarada sobre a conformidade constitucional da fixação de limites temporais para o exercício do direito à revisão da incapacidade, com a consequente revisão da pensão por acidente de trabalho (norma constante do n.º 2 da Base XXII da Lei 2127 - nas suas diversas dimensões) pode agrupar-se em dois grupos, a que correspondem juízos opostos:
decisões no sentido da inconstitucionalidade (v.g., os Acórdãos n.os 147/2006, 59/2007, 161/2009, 548/2009, bem como nas Decisões Sumárias n.os 390/2008, 470/2008 e 36/2009); e decisões no sentido da não inconstitucionalidade (v.g., os Acórdãos n.os 155/2003, 612/2008, 411/2011, 219/2012, 111/2014, 136/2014, 205/2014 e 583/2014).
E relativamente a normas muito semelhantes à norma constante do n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, e com apoio na jurisprudência citada, pode atentar-se em especial nos seguintes exemplos:
quanto ao primeiro grupo de acórdãos - nos quais se formulou um juízo de inconstitucionalidade quanto à fixação de limites temporais do direito à revisão da incapacidade derivada de acidente laboral - recorda-se o Acórdão 548/2009, que julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 25.º da Lei 100/97, de 13 de setembro (norma que praticamente reproduz a norma legal objeto do presente recurso); já quanto ao grupo de acórdãos em que não foi proferido um juízo de desvalor constitucional, pode ainda invocar-se o Acórdão 621/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 24.º da Lei 1942, de 27 de julho de 1936, na parte em que estatui que a revisão das pensões por incapacidade permanente só pode ser requerida dentro de cinco anos posteriores à data da fixação da pensão, bem como o Acórdão 271/2010, que incindiu sobre norma extraída de preceito legal similar no domínio das relações jurídicas de emprego público, o artigo 24.º, n.º 1, da Lei 503/99, de 20 de novembro, relativa aos chamados “acidentes em serviço”.
O juízo de não inconstitucionalidade formulado no segundo grupo de arestos citados pode assim ser sintetizado (cf. Acórdão 219/2012):
«
[...] O entendimento do Tribunal Constitucional é o de que o legislador dispõe de alguma margem de conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental e de que não se reveste de flagrante desrazoabilidade o aludido prazo de 10 anos, decorridos sobre a data da fixação da pensão, quando não se tenha registado qualquer evolução justificadora de pedido de revisão nesse período. Isto porque, de acordo com a experiência médica, a ocorrência de agravamentos (ou de melhorias) tem maior incidência no período inicial, tendendo a situação a estabilizar com o decurso do tempo. Assim, o prazo legal de 10 anos, revela-se, na generalidade e segundo a normalidade das coisas, um prazo suficientemente dilatado para permitir considerar como consolidada a situação clínica do sinistrado. Num regime que globalmente é mais favorável ao sinistrado do que o regime geral de responsabilidade civil (v.gr., promoção oficiosa do procedimento, caráter objetivo da responsabilidade, irrelevância da contribuição do lesado para o acidente que não se traduza em culpa grosseira) não é incompatível com o direito à “justa reparação” a ponderação de razões de segurança jurídica e a limitação da revisibilidade pelo decurso de um período de tempo inferior ao prazo geral de prescrição
»
.
E da presunção de estabilidade da situação e consequente razoabilidade da opção legislativa em causa retirou também alguma desta jurisprudência a consideração de se poder ter por desonerada a entidade empregadora (ou, melhor, a seguradora que assumiu os riscos daquela) de um possível aumento do valor da pensão fixada, decorridos dez anos sem alteração da situação do sinistrado, para tanto concorrendo os argumentos da segurança jurídica e da tutela da confiança da empresa seguradora (sendo este último argumento aduzido, sobretudo, na perspetiva da questão de direito transitório, por comparação com o regime legal subsequente, como, designadamente, nos Acórdãos n.os 398/2011, 136/2014 e 205/2014). Em termos substantivos, assim se pronunciou o Acórdão 136/2014:
«
[...] 22 - Ora, a solução propugnada pela decisão recorrida conduziria necessariamente à possibilidade de fazer renascer situações passadas e definitivamente consolidadas na ordem jurídica, colocando em causa o referido princípio da segurança jurídica. De facto, admitir esse “renascimento” apenas porque o legislador, na sua liberdade de conformação, decidiu legislar de forma diferente para o futuro, é algo que afeta intoleravelmente a segurança das relações jurídicas.
Como bem observa o Ministério Público nas alegações produzidas, também as expetativas do responsável pelo pagamento da pensão merecem tutela.
O regime de reparação por acidentes de trabalho decorre da lei, mas a relação jurídica que conduz à reparação pelo acidente de trabalho por uma empresa seguradora resulta do contrato de seguro celebrado. É pela celebração deste negócio jurídico que a entidade empregadora transfere a sua responsabilidade para uma seguradora, acordando ambas as partes as condições e termos da efetivação pela última de uma prestação ao trabalhador sinistrado, caso se verifique a condição de que depende a cobertura. Como contrapartida, a entidade empregadora obriga-se a pagar o prémio de seguro igualmente acordado. Ora, para a estipulação do valor deste prémio concorre naturalmente a apreciação do risco seguro e este é necessariamente condicionado pelo regime legal em vigor. É violador do princípio da segurança que a seguradora seja confrontada com a realização dum exame de revisão da incapacidade, quando se trata dum acidente de trabalho com incapacidade permanente fixada há mais de dez anos, o que face ao regime legal vigente acarretou a extinção do direito de requerer tal revisão. Tanto mais quando a norma em questão passou sempre, neste Tribunal, o teste da constitucionalidade.
A prevalência do princípio da segurança jurídica não é, no entanto, absoluta. No Acórdão 161/2009, o Tribunal Constitucional, face ao aparecimento na situação clínica do sinistrado de um elemento “singular” (cirurgia, a cargo da seguradora, cuja possibilidade de execução derivara da evolução de técnicas médicas inexistentes à data do acidente) que foi considerado determinante, afastou, a presunção de estabilização da situação de incapacidade resultante do acidente.
»
Já as pronúncias pela inconstitucionalidade respeitaram a situações que tinham em comum o facto de, desde a fixação inicial da pensão e o termo do prazo de dez anos, ter ocorrido alguma atualização da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado ou, no caso particular do Acórdão 161/2009, por se verificar circunstância indiciadora da não estabilização, mesmo decorrido o período de tempo de 10 anos, da situação de incapacidade resultante do acidente de trabalho.
10.3 - Ora, sobre os dois - e divergentes - sentidos decisórios da pronúncia do Tribunal Constitucional já se escreveu (cf., designadamente, o Acórdão 583/2014):
«
[...] Ao contrário do que se poderia pensar, pese embora o sentido divergente das pronúncias, se atentarmos nos fundamentos de cada uma das decisões, verificamos que elas não são contraditórias:
bem pelo contrário, assentam no mesmo critério jurisprudencial, sendo perfeitamente coerentes.
Esse critério está intimamente ligado à razão de ser da fixação pelo legislador de um limite temporal a partir do qual já não é possível pedir a revisão das prestações. Como sublinha Carlos Alegre (Aci-dentes de Trabalho e Doenças Profissionais, regime jurídico anotado, 2.ª Edição, Almedina, pág. 124-132), a fixação deste limite
«
surge da verificação da experiência médica quotidiana de que os agravamentos como as melhorias têm uma maior incidência nos primeiros tempos (daí a fixação de dois anos iniciais em que é possível requerer mais revisões), decaindo até decorrer um maior lapso de tempo (que o legislador fixou generosamente em 10 anos)
»
.
O ponto é que se, até um dado momento, não ocorreu qualquer evolução da lesão, seja pelo agravamento, seja pela melhoria, uma vez ultrapassado esse momento dificilmente ela virá a ocorrer. Esse momento a partir do qual se presume que já não vai haver evolução fixou-o o legislador no termo dos dez anos após a fixação da pensão. Considerou, por isso razoável que já não seja possível pedir a revisão da pensão.
Analisando a jurisprudência do Tribunal que acima referimos, verifica-se que o grupo de casos em que foram produzidos juízos de inconstitucionalidade [ponto (ii)] se reporta a situações de facto em que, a certo momento do período de dez anos, ocorreram revisões da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado (ou, no caso do Acórdão 161/2009, por ter sido proferida uma decisão judicial reconhecendo a existência de um elemento novo, igualmente suscetível de contrariar a presunção de estabilização das lesões).
Nestas condições, em que se verifica uma circunstância que indicia a não estabilização da lesão no decurso daquele prazo, o Tribunal entendeu que era inconstitucional não permitir a revisão da pensão. O que se compreende pois, como acima referimos, a impossibilidade de pedir a revisão após aquele prazo tem a sua razão de ser na presunção de que findo aquele período se dá a estabilização da lesão.
Já no grupo de casos em que se julgou não inconstitucional a norma do n.º 2 da Base XXII [antecedente do artigo 25.º, n.º 2, da LAT] estavam em causa situações em que o prazo de dez anos decorreu sem que tivessem ocorrido quaisquer revisões da pensão (seja porque não foram formulados pedidos de revisão, seja porque foram indeferidos). Aqui o entendimento do Tribunal assentou no pressuposto de que, nessa circunstância, não havia qualquer razão para deixar de presumir a estabilização da lesão. Como tal, o Tribunal considerou que não existiam motivos para manter o juízo de inconstitucionalidade que havia formulado nos arestos do grupo (i).
»
11 - No caso dos autos, cumpre ter presente a invocação - feita na decisão judicial recorrida e, bem assim, nas alegações do recorrente Ministério Público - da jurisprudência constante do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 161/2009.
Tenha-se presente que o acórdão invocado integra o grupo de acórdãos do Tribunal Constitucional em que foi formulado um juízo de inconstitucionalidade sobre a norma do n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, interpretada no sentido de consagrar um prazo absolutamente preclusivo de 10 anos, contados a partir da data da fixação inicial da pensão, para a revisão da pensão devida ao sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento em agravamento superveniente das lesões sofridas.
É certo que, como assinalado supra (10.2), parte significativa dessa jurisprudência foi dirigida aos
«
casos em que desde a fixação inicial da pensão e o termo desse prazo de 10 anos tenham ocorrido atualizações da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado
»
(assim o Acórdão 147/2006) - o que não se verifica exatamente, in casu.
Já no invocado Acórdão 161/2009 foi determinante o aparecimento na situação clínica do sinistrado de um elemento singular (ci-rurgia, a cargo da seguradora, cuja possibilidade de execução derivara da evolução de técnicas médicas inexistentes à data do acidente) que afastou, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação de incapacidade resultante do acidente, fundando o juízo de inconstitucionalidade então exarado.
Nestes termos:
«
[...] 2.5.2 - Aqui chegados, há que reconhecer que a situação dos presentes autos se apresenta com características especiais, que a diferenciam das precedentemente apreciadas por este Tribunal.
A inexistência de qualquer revisão da incapacidade nos primeiros dez anos subsequentes à fixação da pensão inviabiliza a direta extensão ao presente caso do critério que foi seguido nos Acórdãos n.os 147/2006 e 59/2007 e nas Decisões Sumárias n.os 390/2008, 470/2008 e 36/2009, nos quais a existência de revisão nesse período de tempo foi assumida como indício seguro da não estabilização da situação de incapacidade resultante do acidente de trabalho, equiparável à situação das doenças profissionais evolutivas, o que tornava desrazoável a aplicação rígida da regra da Base XXII, n.º 2, da Lei 2127.
Mas o presente caso também se diferencia das situações apreciadas, quer no Acórdão 155/2003, quer no Acórdão 612/2008, na medida em que surgiu, na situação clínica do sinistrado, um elemento singular, que afasta, de modo irrecusável, a presunção de estabilização dessa situação, que esteve na base dessas decisões anteriores.
Na verdade, no presente caso, o tribunal, com a concordância dos intervenientes processuais, reconheceu que, apesar de já ter decorrido mais de um decénio sobre a data da fixação da pensão, era juridicamente exigível, ao abrigo da Base IX da Lei 2127, como meio de reparação dos danos sofridos pelo sinistrado, uma prestação de natureza cirúrgica, a cargo da seguradora, cuja possibilidade de execução derivou da evolução das técnicas médicas, inexistentes à data do acidente.
O surgimento da possibilidade dessa intervenção cirúrgica e a decisão judicial que determinou a sua prestação tornaram, naturalmente, insubsistente a “presunção” de estabilização da situação clínica que as anteriores decisões deste Tribunal associaram à inexistência de qualquer revisão da incapacidade durante o referido período de dez anos. Assim, deixa de ter base de sustentação a tese da não inconstitucionalidade associada à consideração de que, decorrido esse prazo, era normal que se tivesse por estabilizada a situação clínica do sinistrado, justificando-se a solução legal questionada pela proteção da segurança da posição jurídica dos responsáveis pela reparação dos danos derivados do acidente de trabalho.
Como se assinalou no relatório inicial, a seguradora, na sua comunicação de 9 de novembro de 1995, quando se disponibilizou a custear a intervenção cirúrgica, logo salientou que se reservava o direito de, “subsequentemente e em função dos resultados da intervenção cirúrgica, requerer a revisão da pensão”. Sendo indiscutivelmente atendível esta reserva, para a hipótese, em caso de sucesso da intervenção, de o sinistrado recuperar por inteiro a visão, o que poderia levar, não apenas à redução, mas à própria extinção do direito à pensão, não pode deixar de se considerar igualmente atendível a pretensão de, com base em alegado agravamento da situação determinado pelas complicações derivadas do insucesso de uma segunda intervenção, se proceder à revisão da incapacidade, apesar de há muito decorrido o prazo inicial de dez anos.
A situação, a partir da decisão da prestação de intervenção cirúrgica, assumiu um caráter de não estabilidade, que afasta a razão de ser do entendimento, subjacente ao Acórdão 612/2008, da razoabilidade da solução legal questionada, que afastaria a sua inconstitucionalidade, e acaba por a aproximar mais das situações, atrás descritas, em que a não estabilização da situação derivava da ocorrência de revisões da pensão por reconhecidas alterações do grau de incapacidade do sinistrado.
3 - Decisão Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma da Base XXII, n.º 2, da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, enquanto consagra um prazo preclusivo de 10 anos, contados da fixação originária da pensão, para a revisão da pensão devida ao sinistrado por acidente laboral, nos casos em que, tendo sido, ao abrigo da Base IX da mesma Lei, judicialmente determinada à entidade responsável a prestação de uma intervenção cirúrgica para além daquele prazo, o sinistrado invoque agravamento da situação clínica derivado dessa intervenção;
[...]
»
.
12 - No caso vertente, em face do específico objeto do presente recurso - tal como delimitado supra (8), a partir do requerimento de interposição de recurso no confronto com a decisão judicial recorrida - , verifica-se que o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Juiz a quo, convocando o direito à justa reparação dos trabalhadores sinistrados, determina a recusa de aplicação da Base XXII, n.º 2, da Lei 2127, de 3/08/1965, na medida em que
«
antes de completados os 10 anos em causa a seguradora foi condenada a prestar tratamentos médicos ao sinistrado, o que significa que a sua situação clínica não se consolidou, assim ficando afastada a
«
presunção
» de estabilização da situação clínica do sinistrado
»
, concluindo que,
«
[p]or isso, e com tais fundamentos, não se verifica a caducidade do direito de pedir a revisão da pensão, afastando-se consequentemente a aplicação da referida Base XXII, n.os 1 e 2 da Lei 2.127, quando interpretada no sentido de consagrar, sem mais, um prazo preclusivo de 10 anos, por violação do disposto no artigo 59.º, n.º 1, f) da Constituição da República Portuguesa
»
.
Deste modo, a dimensão normativa agora questionada (por violação do princípio da justa reparação previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f) da Constituição da República Portuguesa (CRP)), da norma que consagra um prazo preclusivo de 10 anos, desde a fixação inicial da pensão, para, em caso de agravamento ou recidiva das lesões, poder ser pedida a revisão da pensão, toma por referência a condenação judicial da seguradora responsável para o fornecimento de prestações em espécie - tratamento médico, acompanhamento estomatológico, reparação de próteses - para ilidir a presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado. Ora, a
«
presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado
» foi o elemento determinante na jurisprudência constitucional que concluiu não se mostrar desconforme com a Constituição - e ainda dentro da margem de conformação do legislador - a fixação de um prazo findo o qual se mostra vedado o direito de revisão da pensão atribuída ao sinistrado em acidente laboral.
Essa jurisprudência incidiu sobre situações diversas, tendo todas por comum a circunstância de entre a fixação da pensão atribuída e o pedido da respetiva revisão ter decorrido o prazo fixado na lei sem que se registassem alterações ou circunstâncias relevantes para o afastamento da presunção de estabilização da situação do sinistrado. Para o efeito, foram tidas em conta quer as situações em que não tinham sido formulados quaisquer pedidos de revisão de pensão dentro do prazo de dez anos desde a fixação da pensão inicial (assim, os Acórdãos n.os 155/2003 e 612/2008), quer as situações em que, tendo ocorrido atualizações da pensão inicialmente fixada (na sequência de pedidos de revisão a tanto dirigidos), decorrera o prazo de 10 anos desde a última revisão da pensão (assim, o Acórdão 219/2012), quer as situações em que, não obstante ter sido requerida a revisão da pensão durante o período inicial subsequente à incapacidade inicialmente fixada, fora a mesma indeferida, não ocorrendo, assim, qualquer revisão intercalar do grau de incapacidade e pensão fixada (assim, o Acórdão 134/2014).
Ora, mesmo por referência aos dois últimos acórdãos citados - e encontrando neles, quanto à situação sub judicie, o elemento comum de o prazo preclusivo do direito de requerer a revisão da pensão concedida ser tido por decorrido desde a fixação da pensão por incapacidade não obstante ter o mesmo direito sido exercido, com ou sem sucesso, no período subsequente à fixação inicial - considera-se não se mostrar a jurisprudência neles exarada aplicável à situação dos autos.
Aí se afirma que
«
[...] é constitucionalmente aceitável que o legislador possa, se não houver alterações, considerar estabilizada a situação do sinistrado ao fim de um prazo razoável, sendo dez anos um prazo razoável
»
, conclusão alcançada no Acórdão 219/2012, a partir das seguintes premissas:
«
Efetivamente, não ocorreu, neste caso, qualquer atualização intercalar do grau de incapacidade no período de dez anos que antecedem o novo requerimento de atualização, nem se verifica qualquer circuns-tância que afaste, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação clínica. Pelo que não viola a alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição a norma do n.º 2 da Base XXII da Lei 2.127, de 3 de agosto de 1965 [...]
»
.
Isto, desde logo, porque, no caso vertente, mesmo não tendo havido, nos primeiros dez anos após a fixação da pensão, atualizações intercalares da pensão, certo é que também dificilmente se pode ter por estabilizada a situação de incapacidade resultante do acidente de trabalho em causa. A circunstância de a seguradora responsável ter sido judicialmente condenada a acompanhar a situação clínica do sinistrado e a prestar os tratamentos médicos necessários, designadamente a reparação das próteses dentárias cuja deterioração motivou os pedidos de revisão da pensão pelo sinistrado, formulados antes e após o decurso do prazo de dez anos sobre a data da fixação da incapacidade permanente parcial, conduz à conclusão - assumida na decisão judicial ora recorrida - de não se ter por verificada, ou mesmo presumida, a estabilização da situação clínica do sinistrado no período temporal estabelecido pelo legislador.
E essa circunstância afigura-se determinante da ratio da decisão recorrida e, assim, da dimensão normativa em causa no presente recurso. 13 - A relevância da dimensão normativa reportada à circunstância da condenação da seguradora na prestação ao trabalhador sinistrado decorre, desde logo, da densificação - a que o legislador ordinário não se mostra alheio - do direito fundamental dos trabalhadores à assistência e justa reparação quando vítimas de acidentes de trabalho (e doenças profissionais), plasmado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP desde a revisão constitucional de 1997.
A ideia de justa reparação - em face de danos provocados por um acidente de trabalho - aponta para um conceito compreensivo que não se esgota na atribuição aos trabalhadores de pensões por incapacidade (prestações em numerário), antes incluindo prestações de diferentes tipos, como as reparações em espécie, exemplificadas no acompanhamento e tratamento médico das lesões decorrentes do sinistro laboral, no caso vertente justificadas pela verificada deterioração das próteses colocadas.
Assim, e já antes da expressa inclusão daquele direito no catálogo dos direitos constitucionais dos trabalhadores, a Base IX da Lei 2127 de 3 de agosto de 1965 - regime legal aplicável à situação dos autos - assim configurava o direito à reparação em caso de acidente laboral ou doença profissional (em termos muito próximos, sublinhe-se, do regime atualmente vigente - artigo 23.º, da Lei 98/2009, de 4/09):
«
Base IX (Reparação) O direito à reparação compreende as seguintes prestações:
a) Em espécie:
prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica e hospitalar e outras acessórias ou complementares, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima e à sua recuperação para a vida ativa;
b) Em dinheiro:
indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente; pensões aos familiares da vítima e despesas de funeral, no caso de morte.
»
O direito do trabalhador às diferentes prestações será, naturalmente, ditado pelas especificidades do caso. Assim, o direito a uma pensão (in casu, vitalícia) destina-se às situações em que se verifica uma incapacidade permanente (absoluta ou parcial) do trabalhador como con-sequência do sinistro. Naturalmente, as lesões que possam ditar uma situação de incapacidade (permanente) do sinistrado são associadas a uma maior gravidade do acidente ocorrido e dos seus efeitos (necessa-riamente duradouros, previsivelmente vitalícios) na saúde e aptidão do trabalhador que sofreu o acidente de trabalho em causa. Assim, e para esses casos, é previsto o direito a uma pensão vitalícia:
«
Base XVI (Prestações por incapacidade)
1 - Se do acidente resultar redução na capacidade de trabalho ou ganho da vítima, esta terá direito às seguintes prestações:
a) Na incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho:
pensão vitalícia igual a 80 por cento da retribuiçãobase, acrescida de 10 por cento por cada familiar em situação equiparada à que legalmente confere direito a abono de família, até ao limite de 100 por cento da mesma retribuição;
b) Na incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual:
pensão vitalícia compreendida entre metade e dois terços da retribuiçãobase, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível;
c) Na incapacidade permanente e parcial:
pensão vitalícia correspondente a dois terços da redução sofrida na capacidade geral de ganho;
[...]
»
Ora, a relação estabelecida entre a prestação
«
pensão vitalícia
» e as prestações em espécie destinadas à reparação da situação (sobretudo clínica) do sinistrado não pode ser ignorada. Ela ocorre, pelo menos, em três diferentes perspetivas.
Em primeiro lugar, pela finalidade das prestações em causa. Assinala-se aqui que a principal função das pensões é a de substituição ou compensação da perda de contribuição que o vencimento do próprio trabalhador representava para a sua subsistência. Verificada (médica e judicialmente) uma incapacidade permanente, a reparação do dano causado ao trabalhador é feita pela compensação (através de uma prestação periódica em dinheiro) da redução na capacidade de trabalho ou ganho da vítima acarretada por aquela.
Já o direito à reparação em espécie - neste caso reparações de natureza médica - é devido sempre que estas prestações se mostrem necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima e à sua recuperação para a vida ativa. A função das prestações em espécie é, assim, dirigida à reintegração da situação, no que for médica e tecnicamente (em cada momento) possível.
Deste modo, não se pode ignorar que os resultados das prestações em espécie, incluindo dos tratamentos médicos devidos, podem vir a influir - especialmente, se bemsucedidos - no grau de incapacidade estabelecido para o efeito da atribuição da correspondente pensão.
Nesta sequência e em segundo lugar, pelas possíveis consequências das reparações em espécie.
É que, não obstante o assinalado objetivo das reparações em espécie - reintegração da situação (recuperação, restabelecimento, reabilita-ção) -, o próprio legislador não descurou a possibilidade de o tratamento (médico, farmacêutico, hospitalar) poder acarretar como consequência lesões ou doenças derivadas do próprio tratamento (o que vai para além do possível agravamento ou a recidiva das lesões e sequelas causadas pelo acidente de trabalho).
Daqui se retirou uma nova concretização do direito à reparação dos danos sofridos pelas vítimas de acidentes de trabalho - prevista, pelo legislador no n.º 4 da Base VIII, da Lei 2127 (hoje quase textualmente reproduzido no artigo 11.º, n.º 5, da Lei 98/2009):
«
Confere também direito à reparação a lesão ou doença que se manifeste durante o tratamento de lesão ou doença resultante de um acidente de trabalho e que seja consequência de tal tratamento.
»
Depois, por último, quanto à revisibilidade das prestações. A Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, na sua Base XXII (supra citada em 9.), veio prever a possibilidade de revisão das pensões e, bem assim, de outras prestações
«
quando se verifique aplicação de prótese ou ortopedia
»
, estabelecendo, (pelo menos) quanto às primeiras, um prazo de dez anos contados da fixação da pensão. E, no regime atualmente vigente, a revisibilidade das prestações devidas para reparação dos danos provenientes de acidentes de trabalho encontra-se prevista no artigo 70.º, da Lei 98/2009 (supra citado em 9.).
Verifica-se, assim, que a lei (num regime como noutro) prevê a revisibilidade de diversas prestações - e não apenas das pensões por incapacidade - dirigindo-se também, e especificamente, às prestações destinadas à reparação em espécie (seja na formulação mais compreensiva do n.º 1 do artigo 70.º da lei atual, seja na formulação mais estrita da aplicação de próteses e tratamentos de ortopedia adotada no n.º 1 da Base XXII da Lei 2127). Ora, em todo o caso, trata-se da previsão da revisão de prestações em espécie que não apenas se traduzem na aplicação de tratamentos e técnicas suscetíveis de evolução e modificação (seja pelo avanço das ciências médicas e da tecnologia ao serviço da medicina, seja pela necessidade de ajustamentos em função da própria evolução da situação clínica do sinistrado), como podem influir na
«
capacidade de ganho ou de trabalho
» que determina o grau de incapacidade e a correspondente prestação em dinheiro sob a forma de
. A aplicação de próteses (no caso, dentárias) mostra exemplarmente o que fica dito.
Assim, se nem todas as prestações se mostram contempladas no regime de revisibilidade contido na lei - uma indemnização, por exemplo, assumirá caráter definitivo, quando decretada - certo é que quer as pensões por incapacidade (permanente), quer as prestações em espécie destinadas à reparação dos danos causados na saúde e aptidão (sobre-tudo, física) do trabalhador vítima de um acidente de trabalho (aqui se incluindo, inequivocamente, a colocação de próteses), pela sua natureza e finalidades, se afiguram passíveis de revisão.
14 - Deste modo - e dadas as interconexões estabelecidas entre as prestações
, no plano dos factos e do direito, acima assinaladas (supra, 13.) -, a ocorrência de uma condenação judicial da seguradora com vista a prestar tratamentos médicos ao trabalhador sinistrado (in casu, com a incumbência de proceder ao devido acompanhamento e à reparação das próteses dentárias), de acordo com o relatório pericial elaborado por junta médica, é um dado da maior relevância no contexto das prestações devidas ao sinistrado como forma de reparação da situação decorrente do acidente de trabalho.
Com efeito, sendo as prestações em espécie determinadas se necessárias e adequadas à reparação dos danos causados pelo acidente de trabalho sofrido pelo trabalhador, a sua decretação (por decisão judicial) é, desde logo, reveladora da evolução não favorável (e nessa medida não estabilizada) da situação clínica que as reclama, acrescendo a sua (também necessária) revisibilidade em função da evolução da situação patológica que visam reparar e do progresso dos meios médicos e técnicos disponíveis e, bem assim, as possíveis consequências da sua utilização, seja no sucesso da reparação das lesões causadas pelo acidente, seja no insucesso dessa reparação, traduzido, no limite, no possível agravamento ou recidiva das lesões ou sequelas causadas pelo acidente ou mesmo no surgimento de novas lesões ou doenças provocadas pelo próprio tratamento, também incluídas no direito à reparação.
Em todos os casos, a avaliação da situação clínica do sinistrado que habilitou um juízo sobre o seu grau de incapacidade e a pensão correspondente mostra-se suscetível de alteração, não se compaginando com qualquer presunção de estabilidade da situação clínica do trabalhador na sequência do acidente por ele sofrido.
Assim sendo, afigura-se correta a conclusão - assumida na decisão judicial ora recorrida - de se ter por afastada, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado que legitimaria, na linha jurisprudencial seguida neste Tribunal, a opção normativa de fixação de um prazo de dez anos findo o qual a revisão das prestações (ou, especificamente, da pensão por incapacidade) se mostraria vedada ao trabalhador.
Deste modo, tendo sido judicialmente determinada - e antes de decorrido o prazo de 10 naos sobre a fixação da pensão - a prestação de cuidados médicos ao sinistrado, a recusa (liminar) do pedido de revisão da pensão (in casu, acompanhado do pedido de tratamento médico), em virtude de entre a fixação da pensão decretada e esse pedido ter decorrido o prazo de dez anos previsto no n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, consubstanciaria uma ofensa não consentida pela Constituição ao direito fundamental dos trabalhadores à assistência e justa reparação quando vítimas de um acidente de trabalho, expressamente consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP.
A ideia de justiça na reparação - retirada do próprio léxico da norma constitucional citada - comete o legislador na incumbência de facultar os meios necessários e adequados à efetivação desse direito dos trabalhadores com vista à reparação dos danos sofridos pelas vítimas de um acidente de trabalho, a qual se procura efetiva e verdadeiramente dirigida à superação ou, não sendo tal possível, à compensação dos danos na saúde e na capacidade e aptidão dos trabalhadores para a vida ativa e, em particular, para a atividade laboral.
Mesmo tendo-se presente que a escolha daqueles meios incumbe ao legislador democrático, incluindo a possibilidade de fixação de um prazo preclusivo para o pedido de revisão das prestações devidas (aqui, da pensão por incapacidade), certo é que a opção normativa plasmada no prazo de dez anos estabelecido no n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965 (e nas disposições legais similares contidas em regimes subsequentes ou especiais) foi sujeita, pela jurisprudência constitucional, ao crivo da razoabilidade e proporcionalidade da medida adotada, tendo os juízos de não inconstitucionalidade da norma em causa sido sempre baseados na não ocorrência de revisão intercalar da pensão fixada ou de outra circunstância que afastasse a presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado (como se escreveu no Acórdão 583/2014:
«
[...] [o] ponto é que se, até um dado momento, não ocorreu qualquer evolução da lesão, seja pelo agravamento, seja pela melhoria, uma vez ultrapassado esse momento dificilmente ela virá a ocorrer. Esse momento a partir do qual se presume que já não vai haver evolução fixou-o o legislador no termo dos dez anos após a fixação da pensão. Considerou, por isso razoável que já não seja possível pedir a revisão da pensão.
»
).
E dada a instabilidade da situação clínica do sinistrado - referenciada na ordem judicial para a seguradora prestar o acompanhamento médico necessário, sendo deste modo aquela situação do pleno conhecimento desta - afigura-se não se deverem contrapor razões de segurança jurídica que pudessem, porventura, fundar o estabelecimento de um prazo para a revisão das pensões em face das exigências de justiça que subjazem à consagração constitucional do direito à assistência e justa reparação dos trabalhadores vítimas de um acidente de trabalho. Mesmo tendo em conta as legítimas expectativas da seguradora no momento da celebração do contrato de seguro com a entidade patronal responsável e contando aquela com a estrita aplicação da norma contida no n.º 2 da Base XXII da Lei 2127, deverá ter-se presente que o escrutínio constitucional da norma em causa - quer nos arestos que se pronunciaram pela não inconstitucionalidade, quer nos arestos que concluíram pela inconstitucionalidade, todos devidamente publicados e conhecidos - seguiu uma linha orientadora definida a partir da verificação, ou não, de alterações da situação clínica do sinistrado que pudessem infirmar ou confirmar a estabilização dessa situação. E a este respeito, cumpre recordar o já citado Acórdão 136/2014:
«
A prevalência do princípio da segurança jurídica não é, no entanto, absoluta
»
.
Ora, no caso vertente, concluiu-se já pela determinante relevância da condenação judicial para a reparação (em espécie) da situação do sinistrado, ocorrida no período de dez anos desde a fixação da pensão por incapacidade, para a ilisão da presunção de estabilidade da situação clínica do trabalhador que sofreu o acidente de trabalho em causa. Aproximamonos, deste modo, da jurisprudência constitucional que julgou a norma legal sob escrutínio inconstitucional por ofensa ao direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição. É que, não obstante as circunstâncias determinantes do afastamento da presunção de estabilização das lesões (e da incapacidade por estas causada) tidas em conta quer nos Acórdãos n.os 147/2006, 59/2007 e 548/2009 (a alteração da pensão estabelecida nos primeiros dez anos desde a fixação da pensão original), quer mesmo no Acórdão 161/2009 (em que a circunstância relevante para o efeito assume um caráter singular - cirurgia inovatória desconhecida ao tempo da lesão, ocorrendo em momento muito posterior ao decurso do prazo ora impugnado) não se mostrarem totalmente replicadas no caso sub judicie, certo é que a ideia de justiça subjacente aos juízos de inconstitucionalidade neles produzido merece plena aplicação no caso vertente, no qual, durante o período de dez anos subsequente à fixação da pensão por incapacidade, foi determinada judicialmente a obrigação de prestação de tratamentos médicos ao sinistrado.
Daqui decorre que a efetivação do direito constitucional à justa reparação dos danos causados por acidente de trabalho não se mostra, in casu, concluída ou suficientemente assegurada pela primeira fixação de uma pensão por incapacidade, em termos irrevogáveis ou imodificáveis, decorrido o prazo de dez anos para o pedido da respetiva revisão. Isto, na medida em que a verificada necessidade de recurso a prestações em espécie (tratamento médico estomatológico) e a possibilidade de alteração da própria situação de incapacidade verificada (que, por um lado, a necessidade daqueles tratamento indicia e que, por outro lado, se assume como risco possível da própria intervenção ou tratamento médico) não se compadecem com a fixação de um prazo absolutamente preclusivo para o pedido de revisão da pensão pelo sinistrado, sob pena de desproteção do próprio trabalhador.
Assim, na linha seguida na jurisprudência agora citada e em consonân-cia com a demais jurisprudência constitucional exarada sobre a norma legal sob escrutínio, a dimensão (normativa) retirada da interpretação da norma legal sob escrutínio no sentido de o prazo preclusivo nela contido se dirigir também a situações em que a situação clínica do sinistrado não se poder ter por estabilizada, já que foi judicialmente determinada a prestação de ulteriores cuidados médicos, mostra-se desconforme com o direito à justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP.
15 - Pelo exposto, conclui-se pela desconformidade constitucional da norma contida nos n.os 1 e 2 da Base XXII da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, quando interpretada no sentido de estabelecer um prazo preclusivo de dez anos, contados da fixação original da pensão, para a revisão da pensão devida a sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento superveniente de lesões sofridas, nos casos em que, desde a fixação da pensão e o termo desse prazo de dez anos, apesar de mantida a incapacidade, a entidade responsável fique judicialmente obrigada a prestar tratamentos médicos ao sinistrado, por violação do direito dos trabalhadores à justa reparação quando vítimas de acidente de trabalho, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP.
III - Decisão
16 - Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma contida nos n.os 1 e 2 da Base XXII da Lei 2127, de 3 de agosto de 1965, quando interpretada no sentido de estabelecer um prazo preclusivo de dez anos, contados da fixação original da pensão, para a revisão da pensão devida a sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento superveniente de lesões sofridas, nos casos em que, desde a fixação da pensão e o termo desse prazo de dez anos, apesar de mantida a incapacidade, a entidade responsável fique judicialmente obrigada a prestar tratamentos médicos ao sinistrado; e, em conformidade, b) Não conceder provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida. Sem custas, por não serem legalmente devidas. Lisboa, 13 de julho de 2016. - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral.
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