de 27 de Maio
1. É sabido que a legislação concordatária e, posteriormente, o Código Civil de 1966 facultaram aos católicos a opção pelo casamento religioso, que a lei reconheceu como tal, ou seja, como instituto diferente do casamento civil e sujeito às regras materiais do direito matrimonial canónico.A unidade do nosso direito matrimonial ficou assim quebrada: em Portugal, e desde 1940, o regime do matrimónio é um ou outro conforme se trata de casamento civil ou católico.
É certo que, por um lado, a lei exige capacidade de direito civil para que possa celebrar-se casamento católico (Código Civil, artigo 1596.º) e, por outro lado, exige que o pároco envie ao conservador do registo civil o duplicado do assento paroquial para fins de transcrição (artigo 1655.º), não podendo o casamento católico ser invocado enquanto essa transcrição se não fizer (artigo 1669.º): quanto aos impedimentos matrimoniais e ao registo do casamento, os inconvenientes de uma dualidade de regime foram, portanto, afastados.
Em matéria de dissolução, porém, o casamento católico é regido exclusivamente pelo direito canónico, donde resulta que os tribunais civis não podem aplicar o divórcio aos casamentos católicos celebrados posteriormente à Concordata (artigo 1790.º).
Pelos seus largos reflexos sociais, essa solução tem sido objecto das mais vivas críticas.
E a modificação do nosso direito, neste particular, vem a ser exigida insistentemente por largo sector da opinião pública.
Como se tem dito muitas vezes, os nubentes podem casar catolicamente por simples conformismo ou respeito humano, assim como podem deixar de ser católicos, e a lei não deve vinculá-los, portanto, às consequências de uma opção religiosa que já não é ou até nunca foi verdadeiramente a sua. De resto, mesmo que os nubentes sejam e continuem a ser católicos, a solução não nos parece também que seja justificável. A indissolubilidade absoluta do casamento não entre nós um valor civil, um valor próprio do Estado, pois o legislador português admite o divórcio para os casamentos civis. É um puro valor religioso. E, não sendo o Estado português confessional, não se entende que o legislador defenda valores especificadamente religiosos, impondo aos católicos o cumprimento de um dever - o dever de não pedirem o divórcio - que não deverá ser para eles mais do que um dever de consciência. Nota-se, por último, que a solução do direito português é quase única no Mundo: vigora apenas na República Dominicana e entre nós.
2. O presente diploma - que mantém o sistema do casamento civil facultativo para os católicos, mas em versão diferente daquela que a legislação de 1940 introduziu no País - pretende evitar os aludidos inconvenientes.
Continua a reconhecer-se valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico, nos termos do artigo 1587.º, n.º 2, do Código Civil, podendo os católicos, como até aqui, optar entre as duas modalidades de casamento.
Simplesmente, uma vez celebrado o casamento, civil ou católico, ele será regido quanto aos efeitos por uma única lei - pela lei do Estado -, qualquer que tenha sido a forma da sua celebração.
Sujeito à lei do Estado no que concerne aos efeitos, o casamento católico passará, portanto, a poder ser dissolvido nos tribunais civis, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos com que pode ser dissolvido um casamento civil.
O sistema proposto corresponde fundamentalmente ao dos países anglo-saxónicos (é o da Inglaterra e Irlanda, do Canadá e da maior parte dos estados dos Estados Unidos da América), vale ainda em todos os países escandinavos (Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia) e em algumas repúblicas da América Central e do Sul (por exemplo, no Brasil, no Peru e no Haiti). Há só a notar que, na generalidade destes países, a opção entre o casamento civil e religioso não é concedida exclusivamente aos católicos, mas ainda aos que professam outras confissões religiosas (vejam-se elementos de direito comparado em Dolle, Familienrecht, vol. I, 1965, pp. 185 e seguintes).
3. Decerto que o objectivo visado - a existência de um único direito matrimonial, com a sujeição do casamento católico às mesmas causas de dissolução do casamento civil - poderia ser alcançado por outra via: o modelo do casamento civil obrigatório realizaria igualmente aquele objectivo. Como se sabe, o legislador da 1.ª República optou por esse modelo, que é seguido na França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, Suíça, Alemanha Federal, em todos os países socialistas e na maior parte dos da América Latina, por exemplo, no México, na Argentina e no Chile (Dolle, ob. cit., p.
187).
Não se ignora, porém, que a obrigatoriedade do casamento civil tem sido considerada, por alguns autores, contrária à liberdade de consciência dos católicos.
Argumenta-se, neste sentido, que para os católicos só há um casamento - o casamento católico -, que é ao mesmo tempo um sacramento e que eles só podem receber na igreja e pela igreja. Assim, o Estado violentaria a consciência dos católicos ao obrigá-los a prestar o seu consentimento para o casamento civil na respectiva conservatória, pois, em verdade, eles não querem celebrar aí o seu casamento (para a exposição desta tese e respectiva apreciação podem ver-se Dolle, ob. cit., pp. 187 e seguintes, e Gernumber, Lebuch des Familienrechte, 1964, pp. 93-94).
Não se quis pôr aos católicos essa possível objecção de consciência. Preferia-se, por isso, a referida modalidade do sistema do casamento civil facultativo, que, em face do sistema do casamento civil obrigatório, tem fundamentalmente as mesmas vantagens e não se presta àquele reparo.
4. Tais são, em resumo, as razões justificativas do articulado que se segue.
Desde a primeira hora que o Governo Provisório esteve atento ao problema e necessidade de o resolver, mas a vinculação à Concordata, que é por natureza um tratado ligando duas pessoas soberanas de direito internacional, cujo respeito se lhe impunha por virtude do disposto no Programa do Movimento das Forças Armadas [Decreto-Lei 203/74, n.º 6, alínea b)], impedia que se legislasse sobre a matéria.
Alterada a redacção do artigo XXIV da Concordata pelo Protocolo adicional, assinado na cidade do Vaticano em 15 de Fevereiro de 1975, é chegado o momento de proceder à almejada modificação do direito interno.
Mais extensa e profunda alteração se pretende para o direito de família vigente, mas não se quer deixar de imediatamente dar satisfação aos desejos de muitos portugueses verem regularizada a sua situação e a dos filhos, pelo que se legisla já no sentido de permitir o divórcio dos casados catolicamente, sem prejuízo da remodelação, já em estudo, do direito de família.
No artigo 1.º revoga-se a disposição que não permitia a dissolução por divórcio dos casamentos católicos celebrados desde 1 de Agosto de 1940 e a que permitia decretar a separação, quando requerido o divórcio.
No artigo 2.º dá-se nova redacção a diversos preceitos do Código Civil em ordem a permitir aos cônjuges casados catolicamente e separados de pessoas e bens a conversão da separação em divórcio, nos termos gerais, e introduzindo outras alterações que, por razões de justiça, se entendeu ser possível concretizar imediatamente e antes de completados os estudos em curso para a reforma do direito de família.
Nos mais artigos, de carácter transitório, considera-se especialmente a situação dos cônjuges que, tendo casado catolicamente, vivem separados de facto e deixaram caducar o direito de pedir a separação de pessoas e bens porque era só o divórcio que lhes interessava pedir. Para lhes facultar ainda o exercício do direito ao divórcio ou separação, manda-se contar, nesse caso, o prazo de caducidade do artigo 1782.º a partir da data em que este diploma entra em vigor. Também se simplificam as formalidades processuais para a conversão da separação em divórcio dos mesmos cônjuges.
Finalmente, institui-se o divórcio por mútuo consentimento.
Nestes termos:
Usando da faculdade conferida pelo artigo 3.º, n.º 1, alínea 3), da Lei Constitucional 6/75, de 26 de Março, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:
Artigo 1.º Ficam revogados os artigos 1790.º e 1794.º do Código Civil.
Art. 2.º Os artigos 1599.º, 1605.º, 1656.º, 1778.º, 1792.º, 1793.º e 1795.º do Código Civil passam a ter a seguinte redacção:
ARTIGO 1599.º
(Dispensa do processo preliminar)
1. O casamento in articulo mortis, na iminência de parto ou cuja celebração imediata seja expressamente autorizada pelo ordinário próprio, por grave motivo de ordem moral, pode celebrar-se independentemente do processo preliminar de publicações de passagem do certificado da capacidade matrimonial dos nubentes.2. A dispensa de processo preliminar não altera as exigências da lei civil quanto à capacidade matrimonial dos nubentes, continuando estes sujeitos às sanções estabelecidas na lei.
ARTIGO 1605.º
(Prazo internupcial)
1. ............................................................................2. ............................................................................
3. ............................................................................
4. Cessa o impedimento do prazo internupcial se o casamento se tiver dissolvido por conversão da separação judicial de pessoas e bens em divórcio, salvo se não tiverem decorrido desde a separação os prazos referidos nos números anteriores, e ainda quando o divórcio houver sido decretado sem fundamento nos factos previstos nas alíneas f) e g) do artigo 1778.º
ARTIGO 1656.º
(Dispensa da remessa de duplicado)
A obrigação da remessa de duplicado não é aplicável:a) Ao casamento de consciência, cujo assento só é transcrito perante certidão de teor e mediante denúncia feita pelo ordinário, bem como aos casamentos celebrados nos termos do artigo 1599.º deste Código e que não possam ser transcritos;
b) ............................................................................
ARTIGO 1778.º
(Fundamentos)
1. A separação litigiosa de pessoas e bens pode ser requerida por qualquer dos cônjuges com fundamento em alguns dos factos seguintes:a) ............................................................................
b) ............................................................................
c) ............................................................................
d) ............................................................................
e) ............................................................................
f) .............................................................................
g) O decaimento em acção de divórcio ou separação na qual tenham sido feitas imputações ofensivas da honra e dignidade do outro cônjuge;
h) A separação de facto livremente consentida, por cinco anos consecutivos;
i) Qualquer outro facto que ofenda gravemente a integridade física ou moral do requerente.
2. O prazo a que se reporta a alínea h) do número anterior é relevante, mesmo que iniciado ou decorrido anteriormente à data da publicação do diploma que altera a redacção deste artigo.
ARTIGO 1792.º
(Divórcio litigioso e por mútuo consentimento)
O divórcio pode ser requerido judicialmente por um dos cônjuges com fundamento em algum dos factos referidos no artigo 1778.º, ou mediante conversão da separação judicial de pessoas e bens, ou por mútuo consentimento.
ARTIGO 1793.º
(Conversão da separação em divórcio)
Após o trânsito em julgado da sentença que tiver decretado a separação judicial de pessoas e bens, litigiosa ou por mútuo consentimento, sem que os cônjuges se tenham reconciliado, a qualquer deles é lícito requerer que a separação seja convertida em divórcio, quer o casamento tenha sido civil ou católico.
ARTIGO 1795.º
(Remissão)
É aplicável ao divórcio litigioso, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 1779.º a 1785.º Art. 3.º Ao divórcio por mútuo consentimento é aplicável o disposto nos artigos 1419.º e seguintes do Código de Processo Civil.Art. 4.º Os cônjuges casados catolicamente à data da entrada em vigor deste diploma poderão pedir o divórcio ou a separação de pessoas e bens, com fundamento em factos verificados anteriormente, dentro dos dois anos subsequentes àquela data.
Art. 5.º O pedido de separação de pessoas e bens em acções pendentes à data da entrada em vigor deste diploma pode ser alterado para o de divórcio, a requerimento do autor ou reconvinte, quando se trate de casamento católico.
Art. 6.º Nos processos pendentes à entrada em vigor deste diploma, o pedido de separação judicial de pessoas e bens por mútuo consentimento pode ser alterado para o de divórcio por mútuo consentimento, mediante requerimento de ambos os cônjuges.
Art. 7.º Decretada a separação judicial de pessoas e bens em comarca de qualquer colónia ou ex-colónia portuguesa, pode a conversão em divórcio ser requerida no tribunal do domicílio do requerente, com base em certidão da sentença, donde conste o trânsito em julgado, ou certidão de cópia integral do registo de casamento ou nascimento do requerente.
Art. 8.º O artigo 1417.º do Código de Processo Civil passa a ter a seguinte redacção:
ARTIGO 1417.º
1. O requerimento da conversão da separação judicial de pessoas e bens em divórcio é autuado por apenso ao processo da separação, não sendo obrigatória a constituição de advogado.2. Requerida a conversão por ambos os cônjuges, após o visto do Ministério Público, será logo proferida a sentença.
3. Requerida a conversão por um dos cônjuges, será o outro notificado pessoalmente ou na pessoa do seu mandatário, quando o houver, para no prazo de quinze dias deduzir oposição. Quando for caso de notificação edital, não serão publicados anúncios.
4. A oposição só pode fundamentar-se na reconciliação dos cônjuges.
5. Não havendo oposição, mesmo nos casos de notificação edital, após o visto do Ministério Público será logo proferida sentença.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros. - Vasco dos Santos Gonçalves - Francisco Salgado Zenha.
Promulgado em 22 de Maio de 1975.
Publique-se.O Presidente da República, FRANCISCO DA COSTA GOMES.