Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 866/96, de 18 de Dezembro

Partilhar:

Sumário

Não declara a inconstitucionalidade das normas dos artigos 56º, nºs 3 e 4 (sujeição ao regime cinegético especial das águas e terrenos do domínio público fluvial e lacustre, existentes no interior das zonas do mesmo regime/regime cinegético geral e especial), do Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, - estabelece o regime jurídico do fomento, exploração e conservação dos recursos cinegéticos -, - Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 71º a 76º do Decreto-Lei nº 251/92, de 12 de Novembro (processo especial de procedimento para a concessão de zonas de regime cinegético especial), 63º, nºs 3 a 6, do Decreto-Lei nº 311/87, de 10 de Agosto, 65º, nºs 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei nº 274-A/88, de 3 de Agosto, e do artigo 56º, nºs 3, 4, 6 e 7, do Decreto Regulamentar Regional nº 18/92/M, de 30 de Julho (acordo prévio com a entidade gestora de terreno cinegético), na parte em que, em processo especial, impõem a integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos relativamente aos quais os respectivos interessados não produziram uma efectiva manifestação de vontade no sentido dessa integração, por violação dos artigos 2º e 62º, nº 1, acrescendo, no caso do artigo 56º, nºs 3, 4, 6 e 7, do Decreto Regulamentar Regional nº 18/92/M, a violação do artigo 229º, nº 1, alínea a), todos da constituição; - Por razões de segurança jurídica e ao abrigo do disposto no artigo 282º, nº 4, da constituição, restringe os efeitos da inconstitucionalidade relativamente às zonas de caça associativa por forma que os terrenos a que se reporta o parágrafo anterior apenas delas fiquem excluídos a partir da publicação do presente acórdão e relativamente às zonas de caça turísticas tais terrenos se mantenham nelas integrados até ao termo do prazo da respectiva concessão. A restrição dos efeitos da inconstitucionalidade assim fixada é feita sem prejuízo das impugnações contenciosas pendentes ou ainda susceptíveis de serem apresentadas. (Proc. nº 3/94)

Texto do documento

Acórdão 866/96
Processo 3/94
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O primeiro pedido e os seus fundamentos
1 - O Procurador-Geral da República, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), e 2, alínea e), da Constituição, veio requerer que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos seguintes preceitos:

a) Artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro;
b) Artigo 63.º, n.os 3 a 6, do Decreto-Lei 311/87, de 10 de Agosto;
c) Artigo 65.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei 274-A/88, de 3 de Agosto;
d) Artigo 56.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto Regulamentar Regional 17/92/M, de 30 de Julho (por lapso escreveu-se decreto legislativo regional).

Subsidiariamente, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, alínea b), requereu ainda que - para o caso de não proceder a inconstitucionalidade daqueles preceitos - seja declarada, com força obrigatória geral, a respectiva ilegalidade, por violação da lei com valor reforçado - a Lei 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça).

Para tanto foi aduzida a fundamentação seguinte:
«1.º Os artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92, instituem 'um processo especial' - 'alternativo' relativamente à forma procedimental comum para criar zonas sujeitas a regime cinegético especial.

2.º O estabelecimento de uma zona sujeita a regime cinegético especial envolve a especial afectação dos terrenos nela incluídos ao exercício de actividades venatórias, implicando, em muitos casos, uma específica e particular limitação ao pleno exercício das faculdades contidas nos direitos reais incidentes sobre os terrenos por ela abrangidos.

3.º Na verdade, verifica-se que, para além de o respectivo proprietário ficar privado, enquanto tal, da faculdade de, nos seus próprios terrenos, exercer actividades venatórias, se não for associado ou, em termos gerais, autorizado pela respectiva entidade gestora (cf., por exemplo, o disposto no artigo 26.º, n.º 9, da Lei 30/86, de 27 de Agosto), o exercício da caça passa a regular-se, subsidiariamente à lei geral, pelo disposto no respectivo 'plano de ordenamento e exploração' (artigo 57.º, n.º 2, do Decreto-Lei 251/92).

4.º Assim sendo, afigura-se perfeitamente plausível que, em nome da especial afectação dos terrenos à prática de actividades venatórias, se estabeleçam naqueles 'planos' limitações ao aproveitamento, designadamente agrícola, dos terrenos, de forma a conceder prevalência à facilitação do exercício da caça.

5.º Ora o 'processo especial', emergente das normas atrás transcritas, admite o estabelecimento de tal limitação às faculdades contidas genericamente no direito de propriedade através de um verdadeiro consentimento ficto ou presumido dos titulares dos direitos reais ou pessoais de gozo sobre os terrenos abrangidos.

6.º Tal ficção legal de consentimento é feita no decorrer de uma dupla omissão dos interessados: não comparência à 'assembleia' a que alude o artigo 72.º do referido diploma legal; não dedução de 'oposição administrativa', a que aludem os artigos 75.º e 76.º do mesmo diploma, no prazo peremptório de 90 dias.

7.º Acresce que tal ficção de consentimento pode assentar, no que se refere quer a um quer a outro daqueles comportamentos omissivos, na admissão, em larga escala, da prática de notificações editais: quer a reunião da assembleia a que alude o artigo 72.º quer a publicitação do nela decidido, nos termos previstos no artigo 75.º, podem realizar-se por meio de simples afixação de editais e pela publicação de anúncios na imprensa.

8.º O âmbito consentido pelo artigo 71.º ao 'processo especial' e, consequentemente, às notificações pela forma edital - feitos depender do 'excessivo parcelamento da propriedade fundiária', susceptível de inviabilizar a celebração dos 'acordos prévios' - afigura-se excessivo e desproporcionado, podendo facilmente conduzir - apesar da 'autorização administrativa' da Direcção-Geral das Florestas, a que alude o artigo 71.º, n.º 1 - a abusos no uso de tão imperfeita forma de comunicação pessoal.

9.º Na verdade, o recurso à notificação edital apenas poderá ser justificado quando os requerentes na constituição de zona sujeita a regime cinegético especial demonstrem que são desconhecidos os titulares de direitos de gozo sobre os prédios rústicos abrangidos, após haverem esgotado todas as possibilidades práticas razoáveis para os identificarem e localizarem, nomeadamente através da obrigatória consulta do registo predial e das matrizes fiscais.

10.º Tal ónus de identificação deve necessariamente recair sobre quem pretenda a constituição de zona cinegética especial - ou subsidiariamente sobre as entidades públicas que presidem ao processo administrativo gracioso -, ofendendo seguramente os critérios de ponderação e razoabilidade a ampla e incontrolada dispensa de tal ónus, em detrimento do legítimo interesse de contradizer dos titulares dos direitos afectados.

11.º A solução jurídica constante das normas impugnadas, ao não favorecer a participação efectiva dos interessados na formação da decisão que os afecta e ao colocar os requerentes da constituição de uma zona de regime cinegético especial numa posição de injustificado privilégio, permitindo subtrair à contraditoriedade de muitos titulares de direitos afectados o efeito jurídico pretendido, não acautela em termos satisfatórios o princípio do contraditório, dotado de dignidade e relevo constitucionais.

12.º Do mesmo modo que, ao não assegurar a participação de todos os interessados na formação de decisão administrativa que os afecta e ao não se conformar com a garantia conferida aos administrados de serem notificados de todos os actos que os afectem, viola ainda os princípios consignados nos artigos 267.º, n.º 4, e 268.º, n.º 3, da Constituição.

13.º Acresce que a criação, pelos citados preceitos legais, de um mecanismo permitindo um verdadeiro consentimento ficto ou presumido dos titulares de direitos reais e pessoais de gozo afectados, sem prever qualquer ressarcimento ou compensação, vai acabar por traduzir-se numa violação aos princípios constitucionais decorrentes dos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da lei fundamental.

14.º Na verdade, o processo especial instituído pode conduzir à criação de uma especial limitação ao pleno exercício das faculdades de uso e fruição do proprietário dos terrenos abrangidos pela zona cinegética especial - eventualmente estabelecida em benefício directo de entidades e interesses privados - sem que se preveja que a criação não contratual (não emergente de um efectivo e real acordo de vontades) origine o pagamento de 'justa indemnização' aos dissidentes que não agiram oportunamente, designadamente por desconhecimento não culposo, lançando mão da 'oposição administrativa', prevista nos citados artigos 75.º e 76.º

15.º A Lei 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça), configura-se como verdadeira «lei de bases», sendo as soluções normativas dela constantes densificadas e desenvolvidas pelo Decreto-Lei 251/92.

16.º Tem, deste modo, um valor reforçado, nos termos do artigo 115.º, n.º 2, da Constituição, relativamente aos diplomas de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos nela contidos.

17.º Ora, aquela lei condiciona, no seu artigo 21.º, o estabelecimento de zonas de regime cinegético especial ao prévio acordo das entidades titulares e gestoras dos terrenos abrangidos.

18.º A admissão, por parte destas, de um verdadeiro consentimento ficto ou presumido não respeita a directiva consignada no referido artigo 21.º, o que origina o vício de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, cuja apreciação se enquadra no âmbito das competências do Tribunal Constitucional.

19.º Por outro lado, o regime cominado no artigo 76.º do Decreto-Lei 251/92 revela-se igualmente incompatível com o princípio da criação contratual das zonas de regime cinegético especial, ao impor aos proprietários e titulares de direitos que, participando na assembleia, manifestaram oposição à inclusão naquela dos seus terrenos, o ónus de deduzirem a 'oposição administrativa aí prevista'.

20.º Deste modo, o diploma, que deveria limitar-se a desenvolver e regulamentar o estatuído na respectiva lei de bases, acaba por substituir o necessário 'acordo prévio' dos titulares dos direitos afectados pela constituição da zona de caça pelo ónus de estes exercerem uma dupla oposição, comparecendo e votando contra a deliberação favorável à concessão pretendida e, de seguida, deduzindo ainda 'oposição administrativa' à deliberação que fez vencimento, sob cominação de o seu desacordo se considerar, sem mais, suprido.

21.º Os traços fundamentais do processo especial de criação de zonas de regime cinegético especial atrás enunciados constavam já dos artigos 63.º, n.os 3 a 6, do Decreto-Lei 311/87 e do artigo 65.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei 274-A/88, que precedentemente haviam desenvolvido o regime estabelecido pela Lei 30/86.

22.º Estas normas, por força das razões já aduzidas, encontram-se viciadas pelas referidas inconstitucionalidade e ilegalidade, decorrentes de violação de lei com valor reforçado.

A circunstância de tais preceitos haverem sido entretanto revogados não obsta à utilidade do presente pedido, por ocorrer interesse com conteúdo prático apreciável na respectiva declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

23.º Para além de numerosas zonas de regime cinegético especial terem sido criadas ao abrigo daqueles preceitos legais, só a sua 'inconstitucionalização' será susceptível de obviar à repristinação do regime jurídico que deles constava, em consequência da eventual procedência do pedido relativamente às normas impugnadas do Decreto-Lei 251/92.

24.º A Lei 28/89, de 22 de Agosto, determinou a aplicação à Região Autónoma da Madeira da Lei 30/86, dispondo que esta seria adaptada através de decreto legislativo regional. Tal adaptação veio a ser realizada pelo Decreto Legislativo Regional 20/90/M, de 27 de Agosto, que atribuiu ao Governo Regional competência para a regulamentação e execução da Lei da Caça.

25.º Esta tarefa foi realizada pelo Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, estabelecendo o artigo 56.º, n.os 3, 4, 6 e 7, um regime estritamente análogo ao decorrente do atrás analisado 'processo especial' de constituição de zonas de regime cinegético especial. Tais normas, pelas razões já aduzidas, encontram-se viciadas por inconstitucionalidade e ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado.»

II - A resposta dos órgãos autores das normas
1 - Em conformidade com o disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, foram notificados o Primeiro-Ministro e o Presidente do Governo Regional da Madeira a fim de, querendo, se pronunciarem, respectivamente, sobre as normas dos Decretos-Leis n.os 251/92, 311/87 e 274-A/88 e do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, impugnadas no pedido.

Na resposta oferecida pelo Primeiro-Ministro alcançaram-se as conclusões seguintes:

«a) A adopção do processo especial de manifestação de vontade dos titulares de direitos sobre as terras não dispensa a notificação dos mesmos para os termos da inclusão dessas terras nas zonas de caça a criar.

b) Notificação que é feita editalmente apenas nos casos em que a estrutura da propriedade fundiária impossibilita a notificação pessoal, que a lei exige.

c) Notificação edital que apenas é autorizada quando essa impossibilidade é real, o que a Administração fiscaliza.

d) E que, em qualquer caso, é sempre acompanhada de uma segunda notificação, também ela edital, onde expressivamente é exigida a publicitação do valor jurídico atribuído ao silêncio dos titulares das terras.

e) Este procedimento especial é meio adequado a levar ao conhecimento dos interessados este sentido e valor do seu silêncio, sendo que apenas por culpa sua poderão não conhecer o direito que têm de em prazo se oporem à inclusão das terras na zona cinegética criada.

f) A inclusão de terras nesses regimes cinegéticos especiais não determina qualquer restrição ao direito de propriedade, ou outros direitos reais menores, enquanto as faculdades inerentes à exploração cinegética não precludem nunca, antes lhe estão subordinadas as faculdades inerentes à propriedade.

g) E nem sequer estará em causa o direito à caça do proprietário dos terrenos, direito que não decorre da propriedade, como faculdade de fruição, mas que antes decorre da lei, nos termos em que por esta é assegurado.

h) Não existe, assim, qualquer violação do princípio da igualdade, da proporcionalidade ou do contraditório na estatuição deste procedimento.

i) Muito menos existirá violação de lei de valor reforçado, enquanto as normas previstas consubstanciam apenas e só a regulamentação dos termos em que a lei supragraduada prevê o acordo dos proprietários envolvidos, consubstanciando este processo especial apenas uma forma de obtenção do acordo, pela valorização jurídica do silêncio.

j) E nem sequer estamos no campo da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, onde com pertinência se poderia questionar da legalidade destas normas face às bases gerais, onde, aí sim, constituírem sempre um parâmetro material superior vinculativo para os decretos-leis de desenvolvimento.

Termos em que, salvo melhor opinião, as normas constantes dos artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 256/92, de 12 de Novembro (estabelece o regime jurídico de fomento, exploração e conservação dos recursos cinegéticos), do artigo 63.º, n.os 3 a 6, do Decreto-Lei 311/87, de 10 de Agosto (regulamenta a Lei 30/86 - Lei da Caça) e do artigo 65.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei 247-A/88, de 3 de Agosto (regulamenta a Lei da Caça), não violam princípios com dignidade e acolhimento constitucionais, pelo que o Tribunal Constitucional não se deverá pronunciar pela sua inconstitucionalidade ou ilegalidade; porém, caso assim não se entenda, deve a eventual declaração de inconstitucionalidade produzir os seus efeitos apenas para o futuro, ressalvando dessa forma as situações jurídicas criadas ao abrigo das normas em causa.»

2 - Por seu turno, o Presidente do Governo da Região Autónoma da Madeira desenvolveu, no essencial, a argumentação seguinte:

«a) O Decreto Regulamentar 18/92/M, de 30 de Julho, fundamentado no Decreto Legislativo Regional 20/90/M, de 27 de Agosto, procede à regulamentação da Lei 30/86, de 27 de Agosto, ao abrigo da Lei 28/89, de 22 de Agosto, que adaptou aquela à Região Autónoma da Madeira.

b) Contém assim o diploma regional primeiramente referido uma disciplina jurídica perfeitamente independente da disciplina contida no Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, sendo que a fundamentação do pedido de declaração de inconstitucionalidade efectuada para o decreto-lei nem sempre 'serve', como se verá, ao decreto regulamentar regional citado, que em alguns pontos não contém sequer uma disciplina jurídica exactamente igual à daquele decreto-lei.

c) Em parte alguma diz o Decreto Regulamentar Regional 18/92/M que é possível conceder uma 'zona de regime cinegético especial' sem o conhecimento e acordo do 'proprietário e gestor' do respectivo terreno, sendo que toda a sua disciplina jurídica aponta mesmo no sentido contrário.

d) Veja-se: refere-se expressamente o n.º 1 do artigo 56.º do diploma regional em causa 'ao acordo prévio a que se refere o artigo 21.º da Lei 30/86, de 27 de Agosto'.

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo 56.º refere que tal acordo deverá constar de 'documento escrito assinado pelas partes intervenientes'.

E o n.º 3 do mesmo artigo 56.º, cuja declaração de inconstitucionalidade é requerida, no seguimento dos dois números supra-referidos, de forma alguma vem dispensar esse acordo, antes expressamente ao mesmo se refere, dizendo que '[...] constitui documento bastante a acta da reunião efectuada por iniciativa da DSF [Direcção dos Serviços Florestais] ou das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter a regime cinegético especial e da qual constem todos os elementos essenciais do acordo'.

e) É por demais evidente que o 'legislador', ao ditar as normas constantes do artigo 56.º do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, conhecia e sabia não poder deixar de confrontar-se com as normas constantes do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei 442/91, de 15 de Novembro, designadamente as relativas à validade e à eficácia do acto administrativo.

f) A citação edital para que remete o diploma regional não visa de forma nenhuma permitir contra a vontade de quem de direito, ou no seu desconhecimento, a concessão de zonas de regime cinegético especial, antes pelo contrário.

g) O que aquelas normas pressupõem é que o(s) particular(es) que pretende(m) a zona, 'não tenha podido fazer intervir no acordo todos os proprietários e gestores'.

h) E porque tal sucedeu, o que não foi possível levar ao conhecimento do proprietário e gestor pelos meios de que pode valer-se o particular, sabia o 'legislador' que a Administração o podia fazer com o recurso à forma de notificação prevista no artigo 70.º, n.º 1, alínea d) (citação por edital), do Código do Procedimento Administrativo, cuja constitucionalidade não se contesta.

i) Também não assiste razão ao requerente no que respeita ao mecanismo da 'dupla oposição', previsto no n.º 6 do artigo 56.º do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M.

j) A Administração apresenta-se nestas negociações contratuais entre o particular interessado na concessão da zona de regime cinegético especial e o particular proprietário ou gestor do mesmo como a entidade que, além de promover o encontro entre eles, está vocacionada a promover também a conciliação dos respectivos interesses particulares em causa, com o interesse público que prossegue no quadro das suas atribuições nesta matéria.

l) O facto de se conceder aos 'proprietários e gestores' que não estiverem presentes à reunião, ainda que por opção pessoal, posto que notificados para o efeito, e aqueles que, estando presentes, não deram o seu acordo à concessão um prazo de 90 dias para 'reclamar', ao invés de representar um prazo de reclamação especialmente alargado relativamente ao prazo geral previsto no Código do Procedimento Administrativo, representa sim um prazo de reflexão dado ao 'proprietário e gestor', que se entendeu fazer terminar com o seu consentimento tácito, caso ele não venha dizer o contrário, para não o onerar com o dever de vir ainda uma vez mais a um processo de concessão que é efectuado no interesse de outrém.

m) Isto porque em bom rigor nesta fase do processo não há ainda nenhum acto administrativo de que o particular possa reclamar no sentido jurídico do termo.

n) Nunca há concessão contra a vontade do particular, sendo que o problema da inconstitucionalidade destas normas é, salvo o devido respeito, um falso problema que decorre de uma interpretação desadequada dos preceitos em causa, por um lado, e não sistemática, porque, por outro lado, é feita à margem das normas relativas à validade e eficácia do acto administrativo, que naturalmente não podem deixar de ter-se aqui em conta.

o) Quanto ao pedido de declaração da ilegalidade por violação da lei com valor reforçado, são igualmente improcedentes os argumentos invocados pelo requerente, como já resulta da contra-argumentação deduzida a propósito do pedido de declaração de inconstitucionalidade.

p) É que o artigo 21.º da Lei 30/96 apenas exige o 'acordo prévio da entidade ou entidades titulares e gestores dos terrenos'.

q) Ora o Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, em caso algum dispensa esse acordo. O que prevê é que ele possa assumir forma diferente nos casos em que a Administração participa nele.

r) Se o acto administrativo de concessão é um acto 'constitutivo de direitos', que portanto só produz efeitos nos termos do disposto no artigo 132.º do Código do Procedimento Administrativo, e mais, se é certo que, faltando ao acto um 'elemento essencial', como é aqui o consentimento do particular, este será nulo, nos termos do disposto no artigo 133.º, n.os 1 e 2, alínea d), do mesmo Código do Procedimento Administrativo, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes, que prejuízo pode advir ao particular se para o acordo em questão der eventualmente em algum caso o seu consentimento de forma tácita?

s) Será salutar fazer valer aqui para esta matéria as mesmas regras gerais das garantias administrativas graciosas e contenciosas dos particulares face à Administração, não havendo razão alguma válida para distinguir nesta matéria este acto administrativo de concessão da restante actividade administrativa, que deve efectivar-se, toda ela, em obediência à Constituição e à lei, sendo que o mecanismo previsto no Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, porque nunca dispensa o acordo do particular em vista à concessão, aceitando apenas que o mesmo possa revestir diferentes 'formas', em nada contraria aqueles princípios, devendo por isso julgar-se improcedentes os pedidos de declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade dos n.os 3, 4, 6 e 7 do artigo 56.º daquele diploma, com todos os efeitos legais daí decorrentes.»

III - O segundo pedido e os seus fundamentos
Entretanto, em 12 de Setembro de 1994, veio o Provedor de Justiça, no exercício do poder que lhe é conferido pelo artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição, requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, desenvolvendo para tanto a fundamentação seguinte:

«1 - O Decreto-Lei 251/92 tem por objecto, nos termos do seu artigo 1.º, o regime jurídico do fomento, exploração e conservação dos recursos cinegéticos.

2 - O artigo 56.º desse decreto-lei dispõe, no seu n.º 3, que as águas e terrenos no domínio público fluvial e lacustre existentes no interior das zonas do regime cinegético especial consideram-se, salvo determinação legal ou regulamentar em contrário, abrangidas pelas mesmas, independentemente de qualquer formalidade, e, no seu n.º 4, que os diplomas que criem zonas do regime cinegético especial podem determinar que as águas e terrenos no domínio público fluvial e lacustre existentes no seu perímetro sejam abrangidas, na totalidade ou em parte, pela respectiva zona de caça.

3 - A Constituição, no seu artigo 168.º, n.º 1, alínea z), inclui a definição e regime de bens do domínio público na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pelo que o Governo só poderia legislar sobre essa matéria precedendo autorização legislativa.

4 - O Decreto-Lei 251/92, ao prever, no seu artigo 56.º, n.os 3 e 4, a submissão de terrenos do domínio público fluvial e lacustre ao regime cinegético especial, está a estabelecer um regime específico de utilização, em termos de actividade cinegética, daqueles bens do domínio público.

5 - As citadas normas desse decreto-lei foram aprovadas sem que para tal o Governo dispusesse da necessária autorização legislativa.

6 - No seu preâmbulo, o Decreto-Lei 251/92 assume-se como desenvolvimento da Lei 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça), invocando expressamente a alínea c) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição.

7 - No entanto, os n.os 3 e 4 do artigo 56.º desse decreto-lei são claramente inovatórios, não se limitando a reproduzir ou a extrair consequências necessárias do regime constante dos artigos 19.º e seguintes da Lei 30/86.

8 - De qualquer forma, o artigo 168.º, n.º 1, alínea z), da Constituição abrange toda a legislação sobre definição e regime dos bens do domínio público, e não apenas as respectivas bases gerais, pelo que mesmo para o desenvolvimento de bases gerais o Governo necessitaria de autorização legislativa.

9 - Resulta assim clara a inconstitucionalidade do artigo 56.º, n.os 3 e 4, do referido Decreto-Lei 251/92, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, estabelecida no artigo 168.º, n.º 1, alínea z), da Constituição.»

IV - A resposta do órgão autor da norma
Em obediência ao disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, foi notificado o Primeiro-Ministro a fim de, querendo, se pronunciar sobre a matéria do pedido, havendo na resposta depois oferecida formulado as seguintes conclusões:

«a) A Lei 30/86, de 27 de Agosto, estabelece nos seus artigos 13.º e 14.º a permissão de exercício da caça em terrenos do domínio público, com algumas excepções;

b) O Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, diploma que desenvolve o regime jurídico da Lei 30/86, cumpre o disposto nesta lei, permitindo o exercício da caça em terrenos do domínio público, com as mesmas excepções ali estabelecidas;

c) Resulta, assim, que é permitida a utilização do domínio público fluvial e lacustre para o exercício da caça;

d) Face à existência de dois modelos ou dois regimes cinegéticos - geral e especial -, o legislador, no Decreto-Lei 251/92, teve que estatuir sobre a aplicação do modelo cinegético aos bens do domínio público fluvial e lacustre que estivessem situados no interior de zonas de terrenos em que se aplicava o modelo cinegético especial;

e) Fê-lo, optando pela aplicação do mesmo modelo cinegético especial aos referidos bens do domínio público fluvial e lacustre (n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Decreto-Lei 251/92);

f) Isto é, a caça nos bens do domínio público segue as mesmas regras da caça nos bens não dominiais contíguos;

g) Ao fazê-lo, o legislador não alterou o que quer que seja sobre a definição e o regime dos bens do domínio público, matéria reservada à Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alínea z), da Constituição];

h) Limitou-se a disciplinar o exercício de uma actividade independentemente do regime jurídico a que o bem se encontra afecto;

i) Os bens que eram do domínio público fluvial e lacustre do domínio público continuam;

j) A sua comercialidade, o seu funcionamento, a sua gestão, não sofrem qualquer alteração com o estatuído nos n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Decreto-Lei 251/92;

k) Mais ainda, bem vistas as coisas, o que está em causa nas referidas normas (artigo 56.º, n.os 3 e 4, do Decreto-Lei 251/92) nem é a utilização das águas e terrenos do domínio público, mas sim a utilização/ocupação dos animais selvagens, que não fazem parte do domínio público, uma vez que são res nullius, ou, por outras palavras, está em causa apenas a regulamentação de uma actividade.»

Cabe agora apreciar e decidir.
V - Enquadramento histórico da disciplina jurídica da caça
1 - Ao longo dos séculos, confrontaram-se dois sistemas ou concepções sobre o problema fundamental das relações entre o direito da caça, a propriedade da caça e o direito de propriedade: de um lado, a concepção romana segundo a qual os animais selvagens constituíam res nullius de que todos podiam apropriar-se através da occupatio, único título de aquisição da propriedade sobre a caça; de outro lado, o sistema germânico, para o qual o direito de caça nada mais era do que uma regalia do senhor feudal, não constituindo a caça mais do que um produto da terra.

No parecer da Câmara Corporativa n.º 4/IX, sobre o projecto de lei relativo à lei da caça e do repovoamento cinegético e sobre o projecto da proposta de lei relativo ao regime jurídico da caça, Pareceres (IX Legislatura), Ano de 1966, Lisboa, 1968, pp. 258 e segs., tratou-se larga e desenvolvidamente desta matéria e, considerando aqueles dois sistemas vistos à luz das realidades económico-sociais do País, escreveu-se, assim:

«À concepção germânica da caça como fruto ou produto da terra opõem alguns o argumento de que é artificial no seu fundamento, não servindo para resolver a questão nos países ou nas regiões onde predomina a pequena propriedade, pois que a caça, pela sua mobilidade, nasce num prédio e alimenta-se e vive em vários outros, cuja determinação exacta é na realidade impossível.

É certo que essa concepção se aproxima bastante da realidade quanto à grande propriedade, mas subsiste sempre, em certa medida, a dificuldade de saber se a caça encontrada numa propriedade, porque vive em liberdade natural e por isso difere muito dos animais domésticos, nela nasceu e nela se criou e vive exclusivamente (pense-se sobretudo na caça que se encontra nas extremas dos prédios). Além de que há espécies - as chamadas espécies migratórias - que nem sequer permanecem nas regiões onde nascem.

Por outro lado, argumenta-se que a concepção germânica, aplicada em toda a sua pureza e rigor, poderá levar à extinção de espaços livres, transformando o País ou uma região praticamente numa grande coutada, onde não teriam acesso os caçadores não proprietários ou desprovidos de meios económicos que lhe possibilitem tornar-se arrendatários de reservas de caça.

E isto pode impressionar num país em que a tradição da liberdade de caçar quase atribuiu ao direito de caça a natureza de um direito de personalidade, que, como tal, se compreende seja limitado, mas nunca excluído.

Por outro lado ainda, a concepção germânica pura levaria logicamente a uma situação que o sentimento jurídico das sociedades modernas não poderia deixar de considerar um verdadeiro abuso do direito. Com efeito, o proprietário, dentro de tal concepção, não só pode impedir que outrem cace nos seus terrenos como pode deixar ele próprio de aproveitar a caça aí existente e até destruir os ovos, ninhos e toda a criação, atentando contra uma riqueza pública que importa salvaguardar.

Quer isto dizer que o sistema germânico, na sua pureza, leva a tais extremos que, se quisermos salvá-lo, teremos de limitá-lo, exigindo que o proprietário só possa considerar-se dono da caça sob certas condições, como sejam as de delimitar a sua propriedade e possibilitar o seu aproveitamento racional no interesse próprio ou de terceiro.

Mas reconhece-se geralmente ao princípio germânico a grande virtude de poder contribuir eficientemente para a protecção e fomento das espécies.

Não há dúvida de que, se o proprietário quiser, ninguém melhor do que ele poderá cuidar da defesa da caça que habitualmente viva na sua propriedade. Se ele tiver estímulo à conservação da caça, ele procurará protegê-la tal como protege e defende os frutos da terra. E essa protecção, levada à escala regional ou nacional, será criadora e fomentadora de uma riqueza que a todos acabará por beneficiar.

A concepção romanista da res nullius, ou da liberdade de caçar, tem a seu favor alguns argumentos de valor.

Antes de mais deve reconhecer-se que a caça, pela sua constante mobilidade, como já se assinalou, não vive, excluindo o caso de propriedades de áreas muito extensas, num só prédio, mas reparte a sua vida por vários, cujo número só arbitrariamente poderá fixar-se.

Acresce que a propriedade privada tem o seu fundamento natural no esforço do homem, no suor do seu rosto, aparecendo como o fruto do trabalho, a condensação material dos seus esforços.

E a caça apresenta-se praticamente como uma dádiva da natureza, em que não intervém ou em que só raras vezes intervém, e em pequena medida, o esforço humano.

Por outro lado, sabe-se que a propriedade privada desempenha também uma função social, até por imperativo constitucional, e pode conceber-se que o Estado queira que ela, em geral, suporte o ónus de criar e alimentar as espécies cinegéticas destinadas à usufruição colectiva.»

Neste documento recorda-se depois que o princípio romanista, enquanto limitado em certos períodos, beneficiou, entre nós, de uma longa tradição fruto de uma antiga cultura dos povos, que consideravam a caça como «coisa comum e não estava portanto no senhorio de coisa alguma», vindo, na continuidade dessa tradição a ser consagrado, por forma inequívoca, no Código Civil de 1867 e a manter idêntico tratamento em todas as leis que vieram depois a ser publicadas sobre o direito da caça e a propriedade da caça, mais concretamente a Lei 15, de 17 de Julho de 1913, o Decreto 18743, de 12 de Agosto de 1930 (Código da Caça de 1930), o Decreto 20199, de 12 de Agosto de 1931 (Código da Caça de 1931), o Decreto-Lei 23460, de 17 de Janeiro de 1934, e o Decreto 23461, da mesma data.

E, ponderando-se as virtualidades contidas nos dois sistemas, concluiu-se assim:

«Mas é também fora de dúvida que o princípio romanista, aplicado em toda a sua plenitude, levaria à extinção da fauna cinegética.

A inteira liberdade de caçar, em face de uma legião de caçadores que aumenta progressivamente e de uma área com condições de vida para a caça cada vez mais reduzida, equivaleria à destruição total das espécies dentro de poucos anos.

Isto significa que também a concepção da caça como res nullius não serve nem pode ser aplicada em toda a sua pureza. Chegamos, assim, à conclusão de que nenhum dos sistemas em presença contém em si a virtualidade de solucionar convenientemente o problema venatório se não lhes introduzirmos desvios e correcções.

Mas se assim é, se temos de eleger um deles, porque na realidade não dispomos de outros, então parece que estará indicado dar preferência ao sistema tradicional.

E pensa-se que ele poderá conduzir a resultados satisfatórios se houver a decisão necessária para o corrigir de harmonia com as realidades dos tempos de hoje.

Esta correcção consistirá, sobretudo, além da delimitação de locais em que é proibido caçar no estabelecimento de um sistema de reservas de caça suficientemente amplo e equilibrado, que não tolha em medida incomportável os direitos dos caçadores de limitado poder económico, mas que seja meio eficaz de protecção e desenvolvimento das espécies, em primeiro lugar, que proporcione depois uma maior rendibilidade das terras, especialmente daquelas que não têm ou têm reduzida aptidão para a exploração agrícola ou florestal, e que satisfaça finalmente as necessidades de um turismo rico e exigente, como é o turismo venatório.

Eis o caminho que se nos afigura mais prudente e aconselhável.
Evitar-se-á deste modo a transição brusca de um sistema para outro, através de uma revolução jurídica que não deixaria de ter os seus graves reflexos de ordem social.»

2 - Na continuidade deste parecer, consagrando no essencial as soluções nele preconizadas, veio a ser publicada a Lei 2132, de 26 de Maio de 1967 depois regulamentada pelo Decreto 47847, de 14 de Agosto de 1967.

Estes diplomas - em sintonia, aliás, com o Código Civil entrado em vigor em 1 de Junho de 1967 - mantiveram-se fiéis à tradição romanista do direito de caça, proclamando como critério geral orientador que a caça, «observadas as condições e restrições convencionais e legais», pode ser exercida em todos os terrenos, nas águas interiores, no mar e nas áreas das circunscrições marítimas, sendo certo que, desde logo, se definiram locais onde era defeso caçar ou onde o exercício da caça se achava condicionado pela autorização dos proprietários ou possuidores dos respectivos terrenos (bases XIII a XV).

Simplesmente, partindo da consideração de que «a inteira liberdade de caçar conduziria ao extermínio das espécies», foi prevista a constituição de «coutadas ou coutos de caça e reservas de caça para protecção e fomento das espécies cinegéticas e para fins científicos» (base XXVI).

A concessão de coutadas de caça atribuía ao seu titular o direito de caçar nos respectivos terrenos com exclusão de todos os outros caçadores, que somente aí poderiam caçar se dele obtivessem autorização escrita ou o acompanhassem no exercício da caça (base XXVII).

O proprietário dos terrenos, bem como o usufrutuário, o enfiteuta, ou o arrendatário com o consentimento daqueles, individualmente ou em grupo, poderiam requerer a concessão de coutadas de caça, podendo igualmente fazê-lo as comissões venatórias concelhias, desde que provassem o consentimento daquelas pessoas e as associações de caçadores legalmente constituídas, em conjunto com os titulares daqueles direitos ou com o seu consentimento. As câmaras municipais, as juntas de freguesia, as juntas gerais dos distritos autónomos e as misericórdias, quanto aos terrenos por si administrados, e os órgãos locais de administração com competência em matéria de turismo também poderiam requerer a concessão de coutadas de caça, desde que provassem o consentimento dos titulares dos direitos já referidos (base XXVIII).

No processo de concessão de coutadas requerido ao Secretário de Estado da Agricultura, para além de diversas outras exigências e elementos instrutórios, os interessados deveriam juntar aos outros documentos comprovativos da qualidade jurídica que conferia legitimidade para a formulação do pedido (base XXVIII da Lei 2132 e artigo 116.º, n.º 1, do Decreto 47847), bem como documento comprovativo do consentimento à sujeição dos terrenos ao regime de coutada por parte dos proprietários, dos usufrutuários, enfiteutas ou arrendatários, nos casos em que não fossem eles os requerentes (artigo 132.º do Decreto 47847).

Os critérios a seguir na concessão de coutadas, a definição das respectivas áreas, os prazos de concessão, as obrigações dos concessionários, as taxas correspondentes à concessão e outros aspectos do seu regime achavam-se definidos nas bases XXIX a XL da Lei 2132.

3 - Após o 25 de Abril, depois de o Decreto-Lei 354-A/74, de 14 de Agosto, ter aprovado diversas alterações ao regime de caça e o Decreto-Lei 733/74, de 21 de Dezembro, definir o regime de exploração das coutadas com fins turísticos, por se entender que «a concessão de coutadas, sob a capa de medida de protecção e de fomento da caça, mais não constituiu do que uma fonte de privilégios a que urge por termo, lançando-se, entretanto, as bases de um verdadeiro ordenamento cinegético do território», foi editado o Decreto-Lei 407-C/75, de 30 de Julho, cujo artigo 1.º extinguiu todas as coutadas, com excepção das coutadas com fins turísticos (n.º 1), devendo os respectivos concessionários proceder ao arrancamento dos sinais convencionais e à adequada alteração das tabuletas até 1 de Agosto de 1975 (n.º 2).

Entretanto, já na vigência do sistema jurídico-normativo ancorado na Constituição de 1976, foram publicados diversos diplomas relativos ao regime da caça, enfermando, porém, todos eles de um carácter fragmentário e conjuntural, sem uma perspectiva sistemática e global das diversas e complexas questões que nesta matéria se colocam.

Este objectivo veio a ser intentado pela Lei 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça), através da qual se procurou definir um quadro normativo que conciliasse «os diferentes interesses em presença de caçadores nacionais e caçadores locais, agricultores, Administração e público em geral, compatibilizando-os com o ordenamento jurídico geral da legislação europeia e com as necessidades de protecção, conservação e fomento dos recursos cinegéticos e da natureza em geral do nosso país» (cf., sobre os respectivos trabalhos parlamentares, Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.os 17 e 18, de 20 e 21 de Dezembro de 1985, e 74, de 28 de Maio de 1986, e 2.ª série, n.º 69, de 28 de Maio de 1986).

Em conformidade com este diploma, a caça pode ser exercida em todos os terrenos, nas áreas de jurisdição marítima e nas águas interiores, observadas as condições e restrições convencionais e legais (artigo 13.º).

No entanto, em ordem à protecção de pessoas e bens, estabelece-se uma proibição de caçar em todas as áreas onde o acto venatório constitua perigo para a vida, saúde ou tranquilidade das pessoas ou constitua meio de graves danos para os bens, condicionando-se, por outro lado, o exercício da caça em determinadas áreas e terrenos sem o consentimento de quem de direito (artigo 14.º, n.os 1 e 2).

Para efeitos de organização da actividade venatória e do ordenamento do património cinegético nacional, os terrenos de caça podem ser sujeitos ao regime cinegético geral ou ao regime cinegético especial, sendo que no primeiro caso o acto venatório pode ser praticado sem outras limitações senão as fixadas nas regras gerais da lei e dos seus regulamentos, enquanto no segundo caso a respectiva gestão fica sujeita a planos de ordenamento e de exploração subordinados aos princípios seguintes: o plano de ordenamento definirá as medidas a adoptar e as acções a empreender que visem o fomento, a conservação e a exploração racional da caça com vista a alcançar e manter o melhor aproveitamento das potencialidades cinegéticas do terreno em questão; o plano de exploração fixará os períodos, processos e meios de caça, o número de exemplares de cada espécie que poderá ser abatido, os regimes de admissão de caçadores e tudo o mais necessário à correcta aplicação do plano de ordenamento no terreno em questão (artigo 19.º, n.os 1 a 5).

As zonas de regime cinegético especial podem ser zonas de caça nacionais, zonas de caça sociais, zonas de caça associativas e zonas de caça turísticas (artigo 19.º, n.º 6).

As zonas de regime cinegético especial são criadas pelo Governo, carecendo o seu estabelecimento de prévios acordos da entidade ou entidades titulares e gestoras dos terrenos a ser submetidos àquele regime, nomeadamente no que respeita a:

a) Entidade que acede ao direito de caça e terrenos de caça a que eles respeitam;

b) Montante da renda e modalidades de pagamento;
c) Modalidade de ordenamento e exploração cinegética e obrigações delas decorrentes para ambas as partes (artigos 20.º e 21.º).

São zonas de caça nacionais as que forem constituídas por tempo indeterminado, em terrenos cujas características de ordem física ou biológica permitam a constituição de núcleos de potencialidades cinegéticas tais que justifiquem ser o Estado o único responsável pela sua administração. Estas zonas de caça serão constituídas em terrenos públicos ou privados quando o Estado obtenha para tal a concordância das respectivas entidades titulares e gestoras, podendo a submissão dos terrenos a este regime ser feita sem aquela concordância, desde que a mesma seja considerada de utilidade pública (artigo 24.º, n.os 1, 2 e 3).

As zonas de caça nacionais serão administradas pelos serviços competentes do Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação (na actualidade, Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e, doravante, Ministério da Agricultura), que elaborarão os planos de ordenamento e exploração e suportarão os encargos com a sua constituição e funcionamento (artigo 24.º, n.º 4).

São zonas de caça sociais as que visam proporcionar a todos os caçadores nacionais o exercício organizado da caça por tempo indeterminado e em condições especialmente acessíveis. Estas zonas de caça serão constituídas de preferência em terrenos dos sectores público ou cooperativo, mas poderão sê-lo também em terrenos do sector privado, quando para tal haja concordância das respectivas entidades titulares e gestoras (artigo 25.º, n.os 1 e 2).

As zonas de caça sociais serão administradas pelos serviços competentes do Ministério da Agricultura, com a comparticipação das autarquias locais, das comissões de compartes e de outras entidades indicadas na lei, sendo os planos de ordenamento e exploração elaborados pelos serviços competentes daquele departamento governativo, que controlarão a sua gestão (artigo 25.º, n.os 3 e 5).

São zonas de caça associativas aquelas cujo aproveitamento cinegético seja exercido por associações, sociedades ou clubes de caçadores que nelas se proponham custear ou realizar acções de fomento e conservação da fauna cinegética, nelas assegurando o exercício venatório. Estas zonas de caça serão constituídas de preferência em terrenos do sector privado ou cooperativo, mas poderão sê-lo também em terrenos do sector público, quando os serviços competentes do Ministério da Agricultura considerem inadequada a constituição nesses terrenos de zonas de caça nacionais e sociais (artigo 26.º, n.os 1 e 2).

A associação deverá submeter os planos de ordenamento e de exploração à aprovação dos serviços competentes do Ministério da Agricultura aos quais compete fiscalizar o seu cumprimento. A concessão das zonas de caça associativas está sujeita ao pagamento de taxas (artigo 26.º, n.os 8 e 10).

São zonas de caça turísticas as que se constituam com vista ao aproveitamento turístico dos recursos cinegéticos, garantindo, para além da exploração da caça, a prestação de serviços turísticos adequados. Estas zonas de caça serão constituídas de preferência em terrenos dos sectores cooperativo ou privado, mas poderão sê-lo também em terrenos do sector público, quando os serviços competentes considerem vantajosa a sua criação nestes terrenos (artigo 27.º, n.os 1 e 2).

Os planos de ordenamento, de exploração e de aproveitamento turístico serão aprovados pelos serviços competentes, estando a concessão destas zonas de caça sujeita ao pagamento de uma taxa (artigo 27.º, n.os 5 e 7).

A Lei 30/86, começou por ser regulamentada pelo Decreto-Lei 311/87, de 10 de Agosto.

Todavia, menos de um ano decorrido sobre a edição deste diploma, verificando-se que nele se continham «algumas deficiências, resultantes não só da omissão de aspectos importantes para uma conveniente definição das regras a observar na prática do acto venatório como ainda nos capítulos da administração e fiscalização da caça e organização venatória», optou-se pela sua revogação integral e pela aprovação de um novo texto normativo, concretamente o Decreto-Lei 274-A/88, de 3 de Agosto.

Simplesmente, passados cerca de quatro anos sobre a sua publicação, foi novamente sentida a necessidade de se proceder «à sua reformulação geral, tendo em atenção os proveitosos ensinamentos resultantes da sua aplicação».

E na concretização deste objectivo foi editado o Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, visando, tal como os dois diplomas que o antecederam, proceder ao desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei 30/86.

Entretanto, a Lei 28/89, de 22 de Agosto, veio aplicar à Região Autónoma da Madeira, com as necessárias adaptações, a Lei 30/86, havendo o Decreto Legislativo Regional 20/90/M, de 27 de Agosto, procedido às adaptações ditadas pelas especificidades regionais, cabendo depois a sua regulamentação ao Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, de 30 de Julho.

Aqui chegados, expostas que foram as referências histórico-normativas da disciplina que entre nós tem regido o exercício da caça, importa passar a considerar, concretamente, as questões a que o presente processo se reporta.

Começar-se-á pelo primeiro pedido, subdividindo-se este entre as normas de regulamentação aplicáveis na República e as normas vigentes na Região Autónoma da Madeira.

Em momento posterior, considerar-se-á então a problemática que vem posta no segundo pedido.

Antes porém, e relativamente à matéria do primeiro pedido, importa fazer uma precisão quanto à dimensão do seu objecto.

4 - O Tribunal Constitucional tem vindo a entender, em jurisprudência constante e uniforme, que a revogação de uma norma objecto de um pedido de declaração de inconstitucionalidade não obsta, só por si, à sua eventual inconstitucionalização, com força obrigatória geral. Isto porque, enquanto a revogação tem, em princípio, uma eficácia prospectiva (ex nunc), a declaração de inconstitucionalidade de uma norma dispõe, por via de regra, de uma eficácia retroactiva (ex tunc), nos termos do artigo 282.º, n.º 1, da Constituição.

Nesta situação, sempre poderá existir interesse na eliminação dos efeitos produzidos medio tempore, isto é, no período de vigência da norma entretanto revogada. Em face da revogação, justificar-se-á ainda a declaração de inconstitucionalidade, «justamente toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado, durante o tempo em que vigorou», e essa indispensabilidade for evidente, por se tratar da eliminação de efeitos produzidos constitucionalmente relevantes (cf. por todos o Acórdão 57/95, Diário da República, 2.ª série, de 12 de Abril de 1995).

Assim sendo, a circunstância de alguns dos preceitos que integram o pedido haverem sido revogados não obsta à existência de um interesse jurídico relevante do seu conhecimento, pois que, no decurso da sua vigência, e à sua sombra, terão por certo sido criadas diversas zonas de regime cinegético especial.

Por outro lado, os traços fundamentais do processo especial de constituição de zonas de regime cinegético especial vasados nas normas do Decreto-Lei 251/92, que vêm questionadas, constavam já dos artigos 63.º, n.os 3, 4 e 5, e 6.º do Decreto-Lei 311/87 e 65.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei 274-A/88, que, como se observou, haviam precedentemente desenvolvido o regime jurídico estabelecido pela Lei da Caça, com o que só a sua inconstitucionalização será susceptível de obviar à repristinação do regime jurídico que delas constava, na eventualidade de as normas do Decreto-Lei 251/92 virem a ser objecto de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.

Na sequência do assim exposto conhecer-se-á, tocantemente a esta matéria, do pedido em toda a sua dimensão, começando-se pelas normas do Decreto-Lei 251/92.

VI - As normas dos artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92 e o processo especial de procedimento para a concessão de zonas de regime cinegético especial.

1 - Estas normas, inscritas no capítulo VIII, «Regimes cinegéticos», secção II «Regime cinegético especial», divisão II, «Procedimento para a concessão de zonas de caça», dispõem assim:

«Artigo 71.º
Processo especial
1 - Quando, em virtude do excessivo parcelamento da propriedade fundiária, não for possível obter os acordos prévios referidos no artigo anterior, o interessado pode requerer à Direcção-Geral das Florestas autorização para promover o processo alternativo previsto nos artigos seguintes.

2 - O requerimento deve conter os elementos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º e ser acompanhado pelos documentos previstos na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo e por uma lista das entidades a que se refere o artigo anterior, que for possível individualizar, e respectivas moradas.

3 - A Direcção-Geral das Florestas caso considere justificado o pedido defere o mesmo.

Artigo 72.º
Convocação da assembleia
1 - Autorizado o recurso ao processo especial, deve ser convocada uma assembleia das entidades referidas no artigo 70.º

2 - A assembleia deve ser convocada com pelo menos 30 dias de antecedência, por edital da junta de freguesia afixado nos locais do costume e publicado em dois jornais de âmbito regional ou local e um de âmbito nacional e, ainda, por carta registada dirigida a todos os interessados que constem da lista referida no número anterior ou por contacto directo que seja provado por documento.

Artigo 73.º
Reunião da assembleia
1 - A assembleia é presidida por um membro da junta de freguesia onde se situem os terrenos em causa, ou a maior área dos mesmos, e nela participa, obrigatoriamente, pelo menos um representante da entidade requerente.

2 - As deliberações são tomadas por maioria absoluta, considerando-se a apresentação de acordos nos termos do artigo 70.º como voto favorável dos seus signatários à constituição da zona de caça.

3 - Da reunião é lavrada acta, da qual deve constar, nomeadamente, o local da reunião, os presentes, os assuntos apreciados, as deliberações tomadas, a identificação dos que votaram contra e a forma e resultado das respectivas votações, sendo assinada pelos presentes e autenticada pela junta de freguesia.

Artigo 74.º
Formalização do pedido de concessão
Caso a assembleia delibere, de acordo com o artigo anterior, a favor da concessão da zona de caça, devem os interessados formalizar o respectivo pedido nos termos do disposto no artigo 69.º

Artigo 75.º
Oposição administrativa
1 - Observado o disposto no artigo anterior, são afixados nos lugares do costume editais que contenham os elementos essenciais do processo, designadamente identificação do requerente, espécie de zona de caça pretendida, área abrangida, data da reunião referida nos artigos anteriores e, ainda, informação sobra a possibilidade de os que não participaram na reunião poderem opor-se a que os seus terrenos sejam utilizados na zona de caça em causa, mediante requerimento dirigido ao director-geral das Florestas.

2 - O prazo para a oposição é de 90 dias a contar da afixação dos editais.
Artigo 76.º
Consequência da oposição administrativa
São excluídos da zona de caça a conceder os terrenos cujos interessados manifestaram oposição desde que os mesmos não tenham participado na reunião ou, tendo-o feito, votaram contra as deliberações favoráveis à concessão pretendida.»

A montante da disciplina assim instituída, o Decreto-Lei 251/92, define as condições e pressupostos de que depende a concessão de zonas de regime cinegético especial, exigindo-se para tanto que o requerimento inicial, dirigido ao Ministro da Agricultura, se faça acompanhar, para além de outras indicações e documentos, do «acordo escrito com os titulares de direitos sobre os terrenos a submeter ao regime cinegético especial», sendo certo que tais acordos «devem ser dados pelos proprietários dos terrenos a integrar na zona de caça, ou pelos titulares dos direitos reais menores que onerem os mesmos, e pelos arrendatários quando os houver» [artigos 69.º, n.º 2, alínea b), e 70.º, n.º 1].

Todavia, confrontado com a dificuldade de, em áreas de excessivo parcelamento da propriedade fundiária, serem obtidos os acordos prévios de todos os titulares de direitos sobre os terrenos, o legislador instituiu um processo alternativo - processo especial -, no qual se verificam, relativamente ao processo geral ou comum, diversas especificidades.

Assim, o interessado ou interessados, confrontados com a impossibilidade de alcançar a obtenção dos acordos a que se reporta o artigo 70.º, formulam requerimento à Direcção-Geral das Florestas peticionando autorização para promover o processo alternativo.

Este requerimento apenas há-de conter ou ser acompanhado dos seguintes elementos:

a) Identificação do requerente;
b) Tipo de zona de caça pretendida e prazo de concessão;
c) Uma planta dos terrenos referenciada à Carta Militar de Portugal, na escala de 1:25000, e três cópias desta carta;

d) Uma lista das entidades referidas no artigo 70.º - proprietários dos terrenos a integrar na zona de caça, titulares dos direitos reais menores que onerem os mesmos e arrendatários quando os houver - que for possível individualizar e respectivas moradas (artigo 71.º, n.os 1 e 2).

A Direcção-Geral das Florestas, caso considere justificado o pedido, concede-lhe deferimento (artigo 71.º, n.º 3).

E a partir desta autorização administrativa, o acordo expresso daqueles titulares que é exigido no processo comum passa a ser substituído por uma mera anuência presumida.

Com efeito, tanto a convocação da assembleia a que se reporta o artigo 72.º como a forma de conhecimento para dedução de oposição administrativa contemplada no artigo 75.º não asseguram, suficientemente, que os proprietários dos terrenos ou os titulares de outros direitos reais disponham de um eficaz conhecimento daqueles eventos, nada garantindo que a integração dos respectivos terrenos em zona de regime cinegético especial disponha da sua efectiva concordância.

Neste sentido, basta recordar que apenas se exige que o requerimento para concessão do regime especial seja acompanhado por uma lista dos proprietários dos terrenos e titulares de outros direitos reais que os onerem e respectivas moradas, proprietários e titulares que for possível individualizar, deixando-se assim na disponibilidade dos requerentes uma maior ou menor diligência no sentido dessa determinação, consentindo-se mesmo que na elaboração dessa lista se possam verificar, intencional ou não intencionalmente, graves omissões.

A convocação da assembleia será feita através de edital da junta de freguesia afixado nos locais do costume e publicado em dois jornais de âmbito regional e ainda, com base nos elementos informativos prestados pelos requerentes, por meio de carta registada dirigida aos interessados que constem daquela lista ou por contacto directo provado por documento.

Assim, para além do conhecimento sempre aleatório e inseguro advindo da via edital, não pode afirmar-se que a todos os interessados chegue a notícia da convocação da assembleia, bastando para tanto que na respectiva lista não se contenha uma menção completa de todos eles - por via de regra sucederá isso mesmo - ou que as cartas registadas expedidas para notificação pessoal não venham a ser recebidas pelos seus destinatários, desde logo por não serem certas ou actualizadas as residências fornecidas naquela lista.

E, por maioria de razão, o mesmo deverá dizer-se quanto à oposição administrativa à utilização de terrenos na zona de caça pretendida, a qual haverá de ser deduzida no prazo de 90 dias a contar da afixação dos editais que publicitem a reunião da assembleia e as deliberações nela tomadas, sendo certo que apenas são excluídos da zona de caça os terrenos cujos interessados manifestarem essa oposição, desde que não tenham participado na reunião ou, tendo-o feito, votaram contra as deliberações favoráveis à concessão peticionada.

Descrita e caracterizada a forma de «consentimento» dos interessados, no contexto jurídico-normativo em que se inscreve o processo especial para concessão de zonas de regime cinegético especial, cabe então averiguar, pelas consequências que pode comportar no âmbito dos respectivos direitos reais, se a mesma credencia a legitimidade constitucional das normas que vêm postas em crise.

2 - Segundo o entendimento do Procurador-Geral da República, o estabelecimento de zonas de caça nos termos do processo especial, emergente das normas que se deixaram transcritas, envolve a especial afectação dos terrenos nelas incluídos ao exercício de actividades venatórias, implicando, em muitos casos, «uma específica e particular limitação ao pleno exercício das faculdades contidas nos direitos reais incidentes sobre os terrenos por elas abrangidos».

Contrariamente, na resposta do Primeiro-Ministro, admitindo-se embora que a criação de uma zona cinegética especial envolve para as terras por ela abrangidas «uma especial afectação das mesmas aos fins prosseguidos pelas actividades de exploração venatória, enquanto tais terras passarão não só a cumprir o fim a que se destinavam, v. g. agricultura, mas igualmente o fim prosseguido pela actividade venatória que aí será exercida», não se aceita que a integração de terrenos em tais regimes cinegéticos especiais envolva restrição aos direitos reais sobre eles incidentes, designadamente ao direito de propriedade.

É que, escreveu-se ali, «qualquer terra estará desde logo naturalmente 'limitada' pela existência do direito de qualquer caçador a ela aceder e nela exercer o seu direito de caçar. Quer dizer, face à nossa lei, a caça não é considerada um fruto da terra, mas verdadeiramente uma res nullius passível de ocupação, garantindo a lei, por razões de interesse público, que qualquer caçador possa caçar mesmo contra o consentimento do proprietário das terras onde a caça se encontra e, por essa via, ocupar os animais».

E assim sendo, acrescentou-se, porque antes da sujeição dos terrenos a esse regime especial já o proprietário não tinha qualquer direito sobre a caça, a sua inclusão em tal regime «tem por consequência o afastar do regime de exploração cinegética geral, a que todas as terras estão em princípio sujeitas, o que traduz apenas uma restrição do direito dos 300000 caçadores do regime geral aí exercerem o seu direito de caça».

Que dizer desta contraposição argumentativa?
Nos termos do artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, «a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição».

Não definindo o texto constitucional o que deva entender-se por direito de propriedade, nem sempre têm sido pacíficas as conclusões atingidas pelos seus intérpretes a propósito da dimensão e contornos daquele conceito, sendo, porém, seguro que a velha concepção clássica da propriedade, o jus fruendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito, em que avulta a sua função social.

Como quer que seja, o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não beneficia de uma garantia em termos absolutos, havendo de conter-se dentro dos limites e nos termos definidos noutros lugares do texto constitucional, merecendo, desde logo, particular saliência o estatuto específico da propriedade relativa a meios de produção (artigos 82.º, 83.º, 89.º e 97.º da Constituição).

No que à matéria em apreço respeita, há-de admitir-se que, sendo consentido, como regra geral, o exercício da caça «em todos os terrenos, nas águas de jurisdição marítima e nas águas interiores», não podem os respectivos titulares, salvo as excepções contidas na lei, opor-se, em tais circunstâncias, à prática da actividade cinegética, achando-se sujeitos ao trânsito dos caçadores pelas suas propriedades e ao abate e apreensão das espécies que ali sejam encontradas.

Todavia, o condicionamento do direito de propriedade assim decorrente do regime geral que define a actividade cinegética e os locais do seu exercício e que se traduz no ónus de os proprietários consentirem e não se oporem por qualquer forma ao desenvolvimento e concretização dessa mesma actividade há-de ter-se por constitucionalmente legitimado pela própria função social da propriedade.

Através do livre exercício da prática venatória assegura-se a satisfação de um interesse colectivo, o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores, privilegiando-se com ele um contacto directo com a natureza e os seus ambientes mais recônditos e protegidos, propiciando-se-lhes um «ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado» (artigo 66.º, n.º 1), do mesmo passo que se fomenta a «cultura física e desportiva» e contribui para a «protecção da saúde» [artigo 64.º, n.º 2, alínea b), da Constituição].

Ora, nas zonas de caça do regime especial que aqui importa considerar, isto é, as zonas de caça associativas e turísticas, nas quais a actividade cinegética apenas pode ser exercida por grupos restritos de caçadores a troco de pagamento pecuniário dirigido a entidades privadas que visam, se não primordialmente, ao menos complementarmente, a realização de resultados económico-financeiros, não pode já invocar-se como causa justificativa daquele condicionamento a função social da propriedade, pois que não se verifica aí a existência de um interesse colectivo capaz de justificar o sacrifício da liberdade de decisão dos proprietários.

Com efeito, é aqui prevalecente a satisfação de interesses de grupos restritos de cidadãos ao contrário do que acontece quando está em causa a realização de interesses da generalidade dos caçadores.

Ora, neste contexto, o efeito modificativo operado por aquelas normas sobre o estatuto jurídico dos respectivos terrenos vai ligado a um inegável nexo de interesse dos proprietários sobre «coisa sua» que exige num Estado de direito democrático uma notificação susceptível de proporcionar uma efectiva manifestação de vontade, proscrevendo o mero consentimento presumido.

3 - Aliás, do regime jurídico contido nas normas em apreço podem decorrer consequências que dificilmente se harmonizam com aquela autonomia de decisão e, consequentemente, com o direito de propriedade.

A integração nas zonas de caça associativas e turísticas poderá implicar, desde logo, que o respectivo proprietário fique privado, enquanto tal, da faculdade de, nos próprios terrenos, exercer actividades venatórias, a menos que, para tanto, pague uma taxa (zonas de caça turísticas) ou obtenha autorização da respectiva entidade gestora (zonas de caça associativas).

Sendo certo que o exercício da actividade cinegética não pode classificar-se como uma faculdade contida no direito de propriedade, traduzindo-se antes num direito genérico atribuído por lei a todos quantos se achem munidos da respectiva licença de caça, direito esse a exercer, segundo a regra geral, em todos os terrenos, nas áreas de jurisdição marítima e nas águas interiores, salvas as proibições e condicionamentos legalmente estabelecidos.

Todavia, enquanto na generalidade dos terrenos os respectivos proprietários portadores de licença de caça podem exercer livremente a actividade cinegética, naquelas zonas de caça do regime especial, ao contrário, tal actividade é proibida ou condicionada, sendo-lhes mesmo vedada a defesa de culturas ou plantações ali existentes contra os ataques e depredações das espécies animais que integrem a fauna cinegética a que se refere o artigo 21.º do Decreto-Lei 251/92.

Correspondendo ao direito de propriedade um dever geral de omissão de terceiros, que não podem intrometer-se nem dificultar o exercício das faculdades que lhe são inerentes, naquelas zonas de caça de regime especial, relativamente aos terrenos que as integram, pode verificar-se uma limitação da disponibilidade de escolha que se contém no direito de propriedade.

E a tudo isto acresce que a disciplina decorrente do processo especial, nomeadamente quando contraposta ao sistema do processo comum, se traduz numa solução mais gravosa e injustificada para os proprietários dos respectivos terrenos.

No processo comum, para a concessão de zonas de caça do regime especial é sempre exigido o «acordo escrito com os titulares de direitos sobre os terrenos a submeter ao regime cinegético especial», com o que, implicando embora um acréscimo de diligência instrutória e negocial por parte dos requerentes da concessão, se afastam todas as implicações para aqueles decorrentes de um «consentimento» ficto.

No processo especial, contrariamente, transfere-se para os proprietários um dever de diligência que em muitos casos os ultrapassa, impondo-se-lhes que, a partir de meras publicitações editais, acompanhem e intervenham no respectivo processo, sob pena de, mesmo contra a sua vontade real, verem os respectivos terrenos integrados naquelas zonas de caça.

O processo comum é tão adequado quanto o processo especial para a consecução das finalidades que através de ambos se visa alcançar, não se considerando justificado o sacrifício dos bens, interesses e valores, de natureza eminentemente privada, que constituem verdadeiramente a sua razão de ser.

E assim sendo, por violação dos artigos 2.º e 62.º, n.º 1, da Constituição, conclui-se pela inconstitucionalidade daquelas normas, na parte em que, em processo especial, consentem a integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos relativamente aos quais os respectivos interessados não hajam produzido em tal sentido uma efectiva manifestação de vontade.

VII - As normas dos artigos 63.º, n.os 3 a 6, do Decreto-Lei 311/87 e 65.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei 274-A/88 e o acordo prévio com a entidade gestora de terreno cinegético.

O artigo 63.º do Decreto-Lei 311/87, que primeiramente regulamentou a Lei 30/86, dispunha do modo seguinte:

«Artigo 63.º
1 - O acordo prévio a que se refere o artigo 21.º da Lei 30/86, de 27 de Agosto, será celebrado por período mínimo correspondente ao da validade da respectiva zona de regime cinegético especial.

2 - O acordo referido constará de documento escrito e assinado pelas partes intervenientes.

3 - Para efeitos do número anterior, quando não for possível fazer intervir no acordo todos os proprietários e gestores dos terrenos envolvidos, constitui documento bastante a acta de reunião efectuada por iniciativa das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter a regime cinegético especial e da qual constem todos os elementos essenciais do acordo.

4 - Para a reunião referida no número anterior devem ser convocados os proprietários e gestores dos terrenos a submeter ao regime cinegético especial, com pelo menos 30 dias de antecedência, por edital afixado nos locais do costume e em três jornais de grande circulação, regionais ou da especialidade, e o acordo resultante da reunião considera-se válido para início da instrução do processo de concessão desde que tenha obtido os votos favoráveis da maioria dos presentes.

5 - Os proprietários e gestores que não estiverem presentes à reunião ou não derem o seu acordo poderão apresentar reclamação ao director-geral das Florestas, no prazo de 90 dias, a contar da data da afixação, nos lugares do costume das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter ao regime especial, dos editais a anunciar a entrada do pedido de concessão.

6 - A DGF excluirá do pedido de concessão os terrenos cujos titulares ou gestores tenham apresentado reclamação nos termos do número anterior.»

Por seu turno, o artigo 65.º do Decreto-Lei 274-A/88, segundo diploma a regulamentar a Lei 30/86, continha a seguinte formulação:

«Artigo 65.º
1 - O acordo prévio a que se refere o artigo 21.º da Lei 30/86, de 27 de Agosto, será celebrado por período mínimo correspondente ao da validade da respectiva zona de regime cinegético especial.

2 - O acordo referido constará de documento escrito e assinado pelas partes intervenientes.

3 - Para efeitos do número anterior, quando não for possível fazer intervir no acordo todos os proprietários e gestores dos terrenos envolvidos, constitui documento bastante a acta da reunião efectuada por iniciativa da DGF ou das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter a regime cinegético especial e da qual constem todos os elementos essenciais do acordo.

4 - Para a reunião referida no número anterior devem ser convocados os proprietários e gestores dos terrenos a submeter a regime cinegético especial com, pelo menos, 30 dias de antecedência, por edital afixado nos locais do costume e em três jornais de grande circulação, regionais ou da especialidade, e o acordo resultante da reunião considera-se válido para início da instrução do processo de concessão desde que tenha obtido os votos favoráveis da maioria dos presentes.

5 - Para intervir no acordo a que se referem os números anteriores, relativamente aos terrenos do sector público, são competentes os órgãos executivos da Administração Pública ou a entidade privada a quem estiver atribuída, por qualquer título, a exploração agro-pecuária ou florestal dos referidos terrenos.

6 - Os proprietários e gestores que não estiverem presentes à reunião ou não derem o seu acordo poderão apresentar reclamação ao director-geral das Florestas, no prazo de 90 dias a contar da data da afixação, nos lugares do costume das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter a regime cinegético especial, dos editais a anunciar a entrada do pedido de concessão.

7 - A DGF excluirá do pedido de concessão os terrenos cujos titulares ou gestores tenham apresentado reclamação nos termos do número anterior.»

Do confronto destes preceitos com as normas dos artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92, resulta que o processo de concessão de zonas de regime cinegético especial regulado neste último diploma traduz, relativamente ao quadro jurídico anterior, uma tentativa de acréscimo das garantias processuais concedidas aos titulares de direitos reais incidentes sobre os respectivos terrenos, valendo assim, por maioria de razão, quanto a eles as razões já aduzidas no sentido da inconstitucionalidade daqueles preceitos.

VIII - As normas do artigo 56.º do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M e o acordo prévio com a entidade gestora do terreno cinegético.

Cabe recordar que a Lei 28/89 fez aplicar à Região Autónoma da Madeira, com as necessárias adaptações, a Lei 30/86, havendo o Decreto Legislativo Regional 20/90/M procedido às adaptações ditadas pelas especificidades regionais, pertencendo depois a sua regulamentação ao Decreto Regulamentar Regional 18/92/M.

O artigo 56.º deste último diploma reza assim:
«Artigo 56.º
1 - O acordo prévio a que se refere o artigo 21.º da Lei 30/87, de 27 de Agosto, será celebrado por período mínimo correspondente ao da validade da respectiva zona de regime cinegético especial.

2 - O acordo referido no número anterior constará de documento escrito, devidamente assinado pelas partes intervenientes.

3 - Para efeitos do número anterior, quando não for possível fazer intervir no acordo todos os proprietários e gestores dos terrenos envolvidos, constitui documento bastante a acta da reunião efectuada por iniciativa da DSF ou das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter a regime cinegético especial e da qual constem todos os elementos essenciais do acordo.

4 - Para a reunião referida no número anterior devem ser convocados os proprietários e gestores dos terrenos a submeter a regime cinegético especial com, pelo menos, 30 dias de antecedência, por edital afixado nos locais do costume e em dois jornais de grande circulação, regionais ou da especialidade, e o acordo resultante da reunião considera-se válido para início da instrução do processo de concessão desde que tenha obtido os votos favoráveis da maioria dos presentes.

5 - Para intervir no acordo a que se referem os números anteriores, relativamente aos terrenos do sector público, são competentes os órgãos executivos da Administração Pública ou a entidade privada a quem estiver atribuída, por qualquer título, a exploração agro-pecuária ou florestal dos referidos terrenos.

6 - Os proprietários e gestores que não estiverem presentes à reunião ou não derem o seu acordo poderão apresentar reclamação ao director dos Serviços Florestais, no prazo de 90 dias a contar da data de afixação, nos lugares do costume das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter a regime cinegético especial, dos editais a anunciar a entrada do pedido de concessão.

7 - A DSF excluirá do pedido de concessão os terrenos cujos titulares ou gestores tenham apresentado reclamação nos termos do número anterior.»

Este preceito traduz-se em mero decalque do artigo 65.º do Decreto-Lei 274-A/88, ainda em vigor à data da publicação daquele diploma regional.

Ora, como tem sido assinalado reiteradamente pela jurisprudência deste Tribunal, «quando um diploma regional se limite a reproduzir (literalmente ou sem alterações relevantes capazes de traduzir uma especificidade regional) as normas constantes de uma lei geral da República, tal diploma é inconstitucional. E é-o porque ele não representa o exercício do poder normativo regional, que pressupõe sempre a existência de um interesse específico. Tal diploma mais não faz, na verdade, do que 'apropriar' a legislação nacional e 'transformá-la' em regional» (cf., por todos, os Acórdãos n.os 246/90 e 92/92, Diário da República, 1.ª série, de, respectivamente, 3 de Agosto de 1990 e 7 de Abril de 1992).

Acresce que vale quanto a ele a fundamentação exposta a propósito das pertinentes normas do Decreto-Lei 251/92 e com base na qual se conclui também agora no sentido da sua inconstitucionalidade.

IX - As normas dos artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92, 63.º, n.os 3 e 6, do Decreto-Lei 311/87, 65.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei 274-A/88 e 56.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do decreto regulamentar regional e a sua eventual ilegalidade, por violação da Lei 30/86.

Subsidiariamente ao pedido principal, sob invocação do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, requereu o Procurador-Geral da República, para o caso de não proceder a sua inconstitucionalidade, a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade dos preceitos que vêm de se referir, por violação de lei com valor reforçado.

Considerando, porém, que, relativamente a todas essas normas, se concluiu no sentido da sua inconstitucionalidade, acha-se precludido aquele pedido subsidiário, dele não se tomando assim conhecimento.

X - As normas do artigo 56.º, n.os 3 e 4, do Decreto-Lei 251/92 e o regime cinegético geral e especial

1 - O artigo 56.º do Decreto-Lei 251/92, regendo sobre princípios gerais do regime cinegético geral e especial, dispõe assim:

«Artigo 56.º
Regime cinegético geral e especial
1 - Os terrenos podem estar sujeitos ao regime cinegético geral ou ao regime cinegético especial.

2 - Estão sujeitos ao regime cinegético geral os terrenos em que é permitido o exercício da caça e que não façam parte de zonas de regime cinegético especial.

3 - Salvo determinação legal ou regulamentar em contrário, as águas e terrenos do domínio público fluvial e lacustre existentes no interior das zonas do regime cinegético especial consideram-se abrangidos pelas mesmas, independentemente de quaisquer formalidades.

4 - Os diplomas que criem zonas do regime cinegético especial podem determinar que as águas e terrenos do domínio público fluvial e lacustre existentes no seu perímetro sejam abrangidos, na totalidade ou em parte, pela respectiva zona de caça.»

No entendimento do Provedor de Justiça, as normas dos n.os 3 e 4 deste preceito, respeitando, embora, ao regime dos bens do domínio público, foram editadas pelo Governo a descoberto de credencial parlamentar idónea, transgredindo assim a reserva relativa de competência da Assembleia da República e violando o artigo 168.º, alínea z) da Constituição.

2 - Sabe-se que o domínio público traduz o conjunto de bens que o Estado aproveita para os seus fins, usando de poderes de autoridade (jus imperii).

Na lição de Marcello Caetano, domínio público significa quer a categoria das coisas públicas, quer os poderes da Administração sobre os bens apropriados, sobre certos espaços sujeitos à mera soberania do Estado e, em sentido lato, sobre as próprias coisas particulares (servidões administrativas), devendo considerar-se bens dominiais tudo aquilo que forma objecto dos direitos de domínio público em sentido estrito.

O domínio pode ser composto por bens naturais e por coisas devidas à acção do homem, formando os primeiros o domínio público natural e as segundas o domínio público artificial.

No domínio público natural compreendem-se o domínio hídrico, o domínio aéreo e o domínio mineiro, pertencendo ao domínio público artificial o domínio da circulação, o domínio monumental, cultural e artístico e ainda o domínio militar (cf. Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., vol. II, pp. 896 e segs.).

A Constituição de 1933, nos artigos 49.º e 51.º, regia, respectivamente, sobre os «bens do domínio público» e sobre o «regime dos bens do domínio público e de interesse público», fazendo deles enumeração e remetendo para a lei a possibilidade de assim classificar outros bens e definir o seu específico regime, nomeadamente no que respeitasse ao uso e ocupação desses bens por entidades públicas ou particulares, salvaguardando sempre o interesse público.

No texto constitucional vigente a matéria do domínio público tem assento no artigo 84.º, importando também no que ao domínio público hídrico respeita ter presentes as referências que se contêm nos Decretos-Leis n.os 468/71, de 5 de Novembro, 53/94, de 15 de Fevereiro, 513-P/79, de 26 de Dezembro, 477/80, de 15 de Outubro, 45/94, 46/94 e 47/94, todos de 22 de Fevereiro.

Na situação em apreço cabe apenas considerar o domínio público fluvial e o domínio público lacustre, os únicos a que se reportam as normas impugnadas no pedido.

O domínio público fluvial é constituído fundamentalmente pelas correntes de água navegáveis ou flutuáveis, com seus leitos e margens, considerando-se correntes de água não apenas os cursos de água, os rios, mas também os canais.

O domínio público lacustre é essencialmente integrado pelos lagos e lagoas navegáveis ou flutuáveis, com seus leitos e margens.

Destinando-se as coisas dominiais a prestar uma utilidade pública, várias são as formas que pode revestir a sua utilização pelos cidadãos, importando sobretudo referir aqui as relações existentes entre o aproveitamento das coisas dominiais pelos particulares e o destino próprio dessas coisas.

A distinção proposta a este respeito por Freitas do Amaral, A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, Lisboa, 1965, considera de um lado o uso comum - modo de utilização do domínio que, sendo conforme ao destino principal da coisa pública sobre que se exerce, é declarado lícito pela lei para todos, ou para um categoria genericamente delimitada de particulares - e de outro lado o uso privativo - o modo de utilização do domínio que é consentido a uma ou a algumas pessoas determinadas, com base num título jurídico individual.

As subdistinções que é possível encontrar dentro de cada uma destas espécies, bem como o seu regime geral e natureza jurídica, constituem matéria de relativa complexidade que aqui não cabe desenvolver.

Revertendo à questão em apreço, será que as normas dos n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Decreto-Lei 251/82, quando estatuem, respectivamente, que «às águas e terrenos do domínio público fluvial e lacustre existentes no interior das zonas do regime cinegético especial se consideram abrangidas pelas mesmas» e que os diplomas instituidores de zonas do regime especial podem determinar que «as águas e terrenos do domínio público fluvial e lacustre existentes no seu perímetro sejam abrangidas, na totalidade ou em parte, pela respectiva zona de caça», dispõem sobre matéria de «definição e regime dos bens do domínio público»?

Não se contendo naqueles preceitos um sentido definitório de bens dominiais, restaria a eventual consideração de neles existirem regras respeitantes ao regime do seu uso relativamente à específica actividade venatória, uso circunscrito àqueles que vierem a obter o direito ou a autorização para o exercício cinegético dentro das zonas de caça em que tais bens se acharem integrados.

Simplesmente, parece poder afirmar-se não se tratar aqui de um específico uso do domínio público fluvial ou lacustre, mas antes da utilização (ocupação) dos animais bravios que se encontrem nas áreas desses domínios, do que decorrerá não disporem aquelas normas a natureza de normas definidoras do regime dominial.

3 - Mas, mesmo que assim não se entenda, tem-se por inverificado o vício de inconstitucionalidade denunciado pelo requerente.

A Lei 30/86, embora assim não se autoqualifique, configura-se como uma verdadeira lei de bases, havendo estabelecido as opções político-legislativas fundamentais e definido a disciplina básica do regime jurídico da caça, a cujo desenvolvimento procedeu o Decreto-Lei 251/92, aprovado nos termos doas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição.

Na definição daquele regime jurídico, a Lei 30/86, relativamente aos locais de caça começou por estabelecer a regra geral de que «a caça pode ser exercida em todos os terrenos, nas áreas de jurisdição marítima e nas águas interiores, observadas as condições e restrições convencionais e legais» (artigo 13.º).

E de seguida, instituiu uma norma de proibição abrangendo «todas as áreas onde o acto venatório constitua perigo para a vida, saúde ou tranquilidade das pessoas ou constitua risco de graves danos para os bens» e enumerando, a título exemplificativo, um determinado conjunto de situações a ela sujeitas (artigo 14.º).

Não se contém naquele diploma um tratamento autonomizado dos bens do domínio público face ao exercício da caça e aos regime cinegéticos, muito embora, no artigo 14.º, se elenquem diversas áreas integradas no domínio público onde é defeso exercer actividades venatórias: aeródromos, estradas, linhas de caminho de ferro (domínio de circulação); praias de banhos (domínio marítimo); instalações militares (domínio militar).

Poder-se-á assim sustentar - e é esse o posicionamento adoptado na resposta do Primeiro-Ministro - que a Assembleia da República, embora por uma forma indirectamente assumida, estabeleceu uma proibição de caçar em certas zonas do domínio público (as que se acham referidas no artigo 14.º), instituindo para todas as demais, isto é, aquelas a que não se faz uma expressa referência de exclusão, uma genérica cláusula autorizadora.

E a assim ser, a integração nas zonas do regime cinegético especial das «águas e terrenos do domínio público fluvial e lacustre» traduzir-se-á em mero desenvolvimento de um princípio contido naquela lei, inexistindo por isso o vício de inconstitucionalidade que vem imputado às normas dos n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Decreto-Lei 251/92.

XI - Limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade
Na resposta que o Primeiro-Ministro ofereceu relativamente ao primeiro pedido, foi requerido que a eventual declaração de inconstitucionalidade deve produzir os seus efeitos apenas para o futuro, ressalvando-se dessa forma as situações jurídicas criadas ao abrigo das normas em causa.

E para tanto, alegou-se que «razões de segurança jurídica e razões de equidade exigem, manifestamente, que não sejam postas em causa as zonas cinegéticas especiais já criadas. De facto, os vultosos investimentos realizados para a sua constituição, nomeadamente a compra de terras e da própria caça, a construção e ou reparação de casas para alojamento, as vedações de grandes áreas e, em geral, os encargos com o capital investido e com diversos contratos celebrados com entidades terceiras resultariam extremamente ruinosos para aqueles que, de boa fé - porque ao abrigo de uma legislação emanada do Estado - os estão ainda a suportar».

Como é sabido, em conformidade com o disposto no artigo 282.º, n.º 1, da Constituição, «a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado», sendo certo que, nos termos do n.º 4 do mesmo preceito, «quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse pública de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito» do que o ali previsto.

Ora, na situação em apreço, ponderadas as razões invocadas pelo Primeiro-Ministro e tendo em conta, por um lado, a particular natureza das zonas de caça associativas e a dimensão que nelas podem comportar os terrenos cuja autorização de integração foi meramente presumida e, por outro lado, os específicos interesses de ordem turística, económica e financeira envolvidos na exploração das zonas de caça turísticas, tem-se por adequado limitar os efeitos da inconstitucionalidade nos termos que constam da parte decisória do presente acórdão.

XII - A decisão
Nestes termos decide-se:
a) Não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 56.º, n.os 3 e 4, do Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, 63.º, n.os 3 a 6, do Decreto-Lei 311/87, de 10 de Agosto, 65.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto-Lei 274-A/88, de 3 de Agosto, e do artigo 56.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, de 30 de Julho, na parte em que, em processo especial, impõem a integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos relativamente aos quais os respectivos interessados não produziram uma efectiva manifestação de vontade no sentido dessa integração, por violação dos artigos 2.º e 62.º, n.º 1, acrescendo, no caso do artigo 56.º, n.os 3, 4, 6 e 7, do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, a violação do artigo 229.º, n.º 1, alínea a), todos da Constituição;

c) Por razões de segurança jurídica e ao abrigo do disposto no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, restringir os efeitos da inconstitucionalidade relativamente às zonas de caça associativa por forma que os terrenos a que se reporta a alínea antecedente apenas delas fiquem excluídos a partir da publicação do presente acórdão e relativamente às zonas de caça turísticas tais terrenos se mantenham nelas integrados até ao termo do prazo da respectiva concessão.

A restrição dos efeitos da inconstitucionalidade assim fixada é feita sem prejuízo das impugnações contenciosas pendentes ou ainda susceptíveis de serem apresentadas.

Lisboa, 4 de Julho de 1996. - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - Maria da Assunção Esteves - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Guilherme da Fonseca (com a declaração de voto junta) - Maria Fernanda Palma (com a declaração de voto junta) - Armindo Ribeiro Mendes [vencido quanto à alínea b) da conclusão, nos termos da declaração de voto junta] - Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Ribeiro Mendes) - Luís Nunes de Almeida (vencido nos mesmos termos e fundamentos que o Exmo. Conselheiro Ribeiro Mendes).


Declaração de voto
1 - Votei a decisão do acórdão, quanto às alíneas a) e b), e acompanhei todo o seu discurso argumentativo, só que acrescentaria a este mais o seguinte:

Estando em causa, essencialmente, as normas do Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, que se reportam a um processo administrativo especial - um verdadeiro procedimento administrativo, que curiosamente abre com o deferimento da pretensão pela Direcção-Geral das Florestas (artigo 71.º) -, «no qual se verificam, relativamente ao processo geral ou comum, diversas especificidades», a conclusão a que se chegou no acórdão de que com esse processo especial se consente «a integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos relativamente aos quais os respectivos interessados não hajam produzido em tal sentido uma efectiva manifestação de vontade» envolve também a violação do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição [violação em que incorrem igualmente os demais preceitos legais identificados na alínea b) da decisão do acórdão].

É que o «consentimento presumido» ou «consentimento ficto» de que se fala no acórdão briga com a garantia da participação de interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas - aqui envolvendo a Direcção-Geral das Florestas, com as peculiariedades decorrentes do citado processo administrativo especial -, consagrada naquele n.º 4, pelo que, qualquer que seja o desenho de tal participação, todos os interessados no caso, portanto, e aqui, os proprietários dos terrenos, devem ser chamados a pronunciar-se sobre a consequência da integração dos terrenos na constituição pretendida de zonas de caça associativas e turísticas.

E a garantia consagrada no n.º 4 do citado artigo 268.º passou hoje para o artigo 8.º do Código do Procedimento Administrativo, em termos assim caracterizados pelos anotadores do diploma:

«A participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões administrativas apresenta uma função legitimadora, característica de uma Administração Pública democrática, permitindo aos administrados a protecção dos seus direitos e interesses legalmente protegidos em face da Administração e conduzindo a um aumento de eficácia da actividade administrativa. O direito de participação regulado neste preceito constitui uma figura genérica, extensiva a todos os procedimentos administrativos.» (Freitas do Amaral e outros, in Código Anotado, Almedina, 1992, p. 38.)

Com o que aditaria aquele n.º 4 do artigo 267.º aos artigos 2.º e 62.º, n.º 1, da Constituição como normas violadas pelo legislador ordinário.

2 - Manifestei sempre dúvidas quanto à alínea c) da decisão do acórdão, por não me parecerem suficientemente relevantes as razões invocadas pelo Primeiro-Ministro e que o acórdão singelamente e acriticamente se limitou a acolher, sendo certo que, sem a restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, a única consequência prospectiva só poderia ser um eventual dever de indemnizar a cargo do Estado (e não vejo fundamentos bastantes para, com tal restrição, desobrigar o Estado desse dever).

São, todavia, dúvidas que não ganharam consistência bastante para, neste ponto, ser levado a votar vencido. - Guilherme da Fonseca.


Declaração de voto
Votei a decisão do presente acórdão sem, no entanto, perfilhar inteiramente a sua fundamentação ou, pelo menos, todos os seus pressupostos.

Entende o acórdão que há uma liberdade de caçar, quase inata, de que são titulares todos os indivíduos, e que à função social da propriedade inere um seu condicionamento para satisfação daquela liberdade. Por outro lado, o acórdão considera que, no regime especial, é meramente um interesse grupal que entra em conflito com o direito de propriedade. Deste modo, será através do apelo à função social da propriedade que se atingirá o condicionamento deste direito pela liberdade de caçar.

Toda esta construção parte da concepção (romanista) do «homem caçador», dono da terra e dos seus recursos, e de um antropocentrismo ilimitado. Ora, a Constituição consagra um relacionamento da pessoa com o ambiente (artigo 66.º, n.º 1) incompatível com tais pressupostos ou, no mínimo, superador desta visão das coisas, considerando a estabilidade ecológica como incumbência do Estado [artigo 66.º, n.º 2, alínea d)].

Não há, por outro lado, direitos ilimitados a fruir os bens da natureza que não sejam condicionados e até determinados pela necessidade de assegurar a estabilidade ambiental, sendo inadequada, hoje, a utilização da categoria da res nullius como elemento de um direito de apropriação dos bens da natureza. Neste sentido, a caça não é uma liberdade acima de quaisquer direitos nem, por si própria, condicionadora de direitos reais, fora de uma situação de sobrevivência ou de gestão racional de recursos.

As limitações do direito de propriedade por causa da caça não são, na verdade, determinadas pela «ultraliberal liberdade de caçar», mas sim pelo interesse na gestão racional dos recursos da natureza e pela sua protecção. Ora, nesta perspectiva, qualquer condicionamento extraordinário do direito de propriedade pelo mero interesse grupal e lúdico de caçar, sem uma específica justificação no plano do interesse colectivo na gestão racional e ecologicamente adequada dos recursos naturais, não é legitimável.

A presunção de consentimento dos proprietários surge, assim, como uma limitação excessiva e desproporcionada do direito de propriedade, bem como expressão do culminar de uma fase administrativa de um processo em que aos respectivos destinatários não é concedido um adequado controlo sobre o condicionamento dos direitos de que são titulares (cf. artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, a que o Tribunal apelou, a propósito do exercício do direito de reversão, no Acórdão 827/96, de 25 de Junho de 1996 - inédito). - Maria Fernanda Palma.


Declaração de voto
1 - Não pude concordar com a solução de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes da alínea b) da conclusão, razão por que votei vencido quanto a essa alínea.

Indicarei de seguida as razões da minha discordância.
2 - A tese vencedora considerou que estavam afectadas de inconstitucionalidade as normas dos artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92, de 12 de Novembro, bem como as normas dos n.os 3, 4, 6 e 7 do artigo 56.º do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M, de 30 de Julho, «na parte em que, em processo especial, impõem a integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos relativamente aos quais os respectivos interessados não produziram uma efectiva manifestação de vontade no sentido dessa integração [...]». O fundamento desta declaração de inconstitucionalidade reside na violação dos artigos 2.º e 62.º, n.º 1, da Constituição e, no caso das normas do diploma regional, também na violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição.

Em função desta declaração de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional veio a declarar igualmente a inconstitucionalidade das normas anteriormente vigentes sobre a mesma matéria, constante dos dois diplomas regulamentares de 1987 e de 1988, e que, não obstante estarem revogadas, poderiam voltar a vigorar por força de repristinação decorrente da declaração referida. Tais normas foram, assim, incluídas no pedido formulado pelo Procurador-Geral da República.

Como considero que as normas do Decreto-Lei 251/92 e do Decreto Regulamentar Regional 18/92/M não se acham afectadas de inconstitucionalidade, abster-me-ei de analisar as normas já revogadas, visto não haver, do meu ponto de vista, razão para operar a repristinação de quaisquer delas.

3 - A tese maioritária considerou que, nas zonas de caça do regime especial em causa (zonas de caça associativas e turísticas), faltava de todo, como justificação desse regime especial, a ideia de função social da propriedade, uma vez que, do seu ponto de vista, não se verificaria aí «a existência de um interesse colectivo capaz de justificar o sacrifício da liberdade de decisão dos proprietários», tanto mais que estes tinham ficado privados da faculdade de, nos próprios terrenos, exercerem actividades venatórias, a menos que, para tanto, pagassem uma taxa (zonas de caça turística) ou obtivessem autorização da respectiva entidade gestora (zona de caça associativa) (ponto VI, n.º 3, do acórdão).

Creio que, na base da tese que fez vencimento, se encontra um entendimento enraizado de que o direito de caçar, o jus venandi, se reconduz ainda ao direito de propriedade sobre prédios rústicos, configurando-se aquele como uma faculdade deste último, que se verifica, ao menos, em certos regimes especiais. Há, assim, embora de forma algo inconsciente, uma sobrevivência da velha concepção germanista do direito de caça - concepção que, após a Revolução Francesa, viria a ter curso em França - que o vê como uma faculdade inerente ao direito de propriedade sobre prédios rústicos. Todavia, tal concepção não foi acolhida no direito português desde sempre, como, aliás, se afirma no texto do acórdão.

4 - No direito português - tal como no direito italiano - desde as codificações do século passado e passando para as legislações específicas sobre a caça, o direito de caça, o jus venandi, é concebido como um direito pessoal ou uma faculdade que são conferidos em abstracto à generalidade das pessoas para estas exercerem actividades venatórias nos limites e nas condições previstas nas leis de natureza administrativa que regulam tais actividades. Está-se, assim, longe do velho direito de caça encarado como direito eminentemente pessoal, liberdade fundamental ou direito natural destinado a garantir, em última análise, a sobrevivência económica do caçador e da sua família.

As leis da caça - e, no caso português, tal solução remonta às Ordenações Manuelinas - estabelecem sempre condicionamentos de natureza pública ao exercício da caça pelos caçadores, movidas pela preocupação de impedir a eliminação das espécies cinegéticas por actos indisciplinados de caça. Tradicionalmente, estabeleciam-se zonas de caça reservadas a certas pessoas, as coutadas, como forma de impedir a destruição indiscriminada de animais, mas o abuso das coutadas senhoriais acabou por levar o poder monárquico em 1800 a extinguir todas as coutadas que não fossem reais, acentuando uma concepção das coutadas como regalias ou direitos exclusivos do monarca (cf. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, em Comentário ao Código Civil, vol. III, Coimbra, 1930, pp. 169 e segs.).

5 - No domínio da Constituição de 1976, acha-se acolhida na comunidade jurídica e na própria legislação a ideia de que a actividade venatória, o jus venandi, é uma actividade recreativa ou lúdica, de natureza desportiva, que há-de ser praticada com respeito pelo «ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado», cabendo ao Estado promover o aproveitamento racional da caça enquanto recurso natural, salvaguardando a respectiva capacidade de renovação e a estabilidade ecológica [artigo 66.º, n.os 1 e 2, alínea d), da Constituição].

A Lei da Caça de 1986 (Lei 30/86, de 27 de Agosto) trata o direito de caçar como um direito subjectivo público, de natureza administrativa, que não se confunde com o direito de propriedade privada. Assim, o seu artigo 6.º, n.º 1, estatui que só é permitido o exercício da caça «aos indivíduos detentores da carta de caçador que estiverem munidos de licença e demais documentos legalmente exigidos». O exercício da caça depende da atribuição de licenças de validade temporal e territorial (artigo 9.º, n.º 1), podendo fazer-se «em todos os terrenos, nas áreas de jurisdição marítima e nas águas interiores, observadas as condições e restrições convencionais e legais» (artigo 13.º; v. as normas condicionadoras e restritivas constantes dos artigos 14.º a 18.º da mesma lei).

Por outro lado, o jus venandi tem a mesma natureza, quer seja exercido em terrenos sujeitos ao regime cinegético geral ou a um dos regimes cinegéticos especiais (artigos 19.º a 28.º da mesma lei).

6 - Neste quadro constitucional e legal, não vejo qual a base para a distinção radical que se traça entre a caça no regime cinegético geral e em qualquer dos regimes cinegéticos especiais que está acolhida no acórdão.

Em qualquer destas situações há condicionamentos, limites ou restrições decorrentes das leis da caça que afectam os titulares do direito de propriedade ou de certos direitos reais de gozo sobre os prédios em causa. E não se vê que o artigo 62.º, n.º 1, da Constituição faça depender nestes casos do consentimento do proprietário o exercício da caça por terceiros, em termos de que no respectivo terreno só se possa exercer a actividade venatória com autorização do proprietário, conclusão que a tese vencedora aceita, mas apenas quanto aos terrenos integrados no regime cinegético geral. De facto, não é reconhecido no nosso direito um jus excludenti aos proprietários dos prédios rústicos: não existe um jus prohibendi privado, mas há proibições legais de exercício da caça em certos tipos de terrenos (artigo 14.º da Lei da Caça).

Mas se isto é assim no caso do regime cinegético geral, há-de ser do mesmo modo nos regimes especiais, pois quanto às reservas não se encontra qualquer imposição constitucional para reconhecer o tal jus prohibendi aos proprietários (cf. Francesco Cigolini, «Diritto di caccia e diritto de proprietà fondiaria», in Scritti in Memoria di Antonino Giuffrè, vol. II, Milão, 1967, pp. 187 e segs.). Ainda que se reconheça que nas zonas cinegéticas especiais existem condicionamentos mais intensos ao exercício da caça e que, por isso, se compreenda que o legislador ordinário exija, em princípio, a aquiescência dos proprietários para a integração dos respectivos terrenos nas zonas de caça ou associativas, a verdade é que a Constituição não faz depender tais limitações ou restrições do direito de propriedade do consentimento dos proprietários. As zonas cinegéticas especiais visam o reordenamento da actividade venatória, limitando o número de caçadores e sujeitando as áreas abrangidas a uma gestão eficaz, podendo aquelas ficar sujeitas «a planos de ordenamento e de exploração que obedecerão aos princípios» estabelecidos na própria lei (artigo 19.º, n.º 3, da Lei da Caça).

Diferentemente da conclusão a que chegou o acórdão, não se está nestes casos perante uma agressão do direito de propriedade substancialmente diversa, pela própria natureza, da que ocorre no regime cinegético geral, sendo possível dizer-se que é até menos grave, dada a limitação do número das pessoas que aí podem caçar, não podendo falar-se de uma restrição deste direito de natureza ablativa ou quase ablativa.

7 - A solução constante dos artigos 71.º a 76.º do Decreto-Lei 251/92 no chamado «processo especial» cabe dentro do poder de conformação do legislador, não viola o princípio da proporcionalidade nem os artigos 2.º e 62.º, n.º 1, da Constituição. A circunstância de o proprietário cujo consentimento se presume não poder caçar no seu prédio integrado numa zona de caça associativa ou turística nada tem de aberrante ou de contrário à Constituição, porque o proprietário de um prédio rústico não vê reconhecida, no nosso direito, uma faculdade de caçar no seu prédio. É, assim, indevido distinguir a natureza do interesse colectivo ou particular nas diferentes zonas de caça para fundar soluções constitucionais diversificadas.

8 - Não há, pois, em minha opinião, qualquer inconstitucionalidade.
9 - Quanto ao diploma legislativo regional, não se vê como o mesmo possa ter violado a alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição.

Bastará referir que a Lei da Caça de 1986 não se aplica às Regiões Autónomas (artigo 47.º da Lei 30/86), tendo o legislador da República mandado aplicar mais tarde à Região Autónoma da Madeira o regime daquela lei, «com as necessárias adaptações, a introduzir por decreto legislativo regional» (artigo 1.º da Lei 28/89, de 22 de Agosto). Esta última lei invocou expressamente a alínea c) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição. Não se vê, por isso, por que motivo há-de estar afectado por inconstitucionalidade o diploma regional que visou regulamentar o Decreto Legislativo Regional 20/90/M, de 27 de Agosto, sendo certo que não havia anteriormente a 1989 legislação da República em matéria de caça aplicável na Região Autónoma da Madeira. - Armindo Ribeiro Mendes.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/79433.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1913-07-07 - Lei 15 - Ministério das Finanças - Secretaria Geral

    Regula o exercício da caça.

  • Tem documento Em vigor 1934-01-17 - Decreto 23461 - Ministério do Interior - Direcção Geral de Administração Política e Civil

    Regulamenta o exercício da caça.

  • Tem documento Em vigor 1934-01-17 - Decreto-Lei 23460 - Ministério do Interior - Direcção Geral de Administração Política e Civil

    Estabelece os preceitos gerais e fundamentais do instituto da caça.

  • Tem documento Em vigor 1967-05-26 - Lei 2132 - Presidência da República

    Promulga o regime jurídico da caça.

  • Tem documento Diploma não vigente 1967-08-14 - DECRETO 47847 - MINISTÉRIO DA ECONOMIA

    Promulga o Regulamento da Caça.

  • Tem documento Em vigor 1974-08-14 - Decreto-Lei 354-A/74 - Ministério da Economia - Secretaria de Estado da Agricultura

    Aprova novas disposições relativas ao regime de caça.

  • Tem documento Em vigor 1974-12-21 - Decreto-Lei 733/74 - Ministério da Economia - Secretarias de Estado da Agricultura e do Comércio Externo e Turismo

    Define o regime de exploração das coutadas com fins turísticos e do exercício nelas da actividade venatória.

  • Tem documento Em vigor 1975-07-30 - Decreto-Lei 407-C/75 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Extingue todas as coutadas, com excepção das reguladas no Decreto-Lei n.º 733/74.

  • Tem documento Em vigor 1982-06-26 - Decreto-Lei 251/82 - Ministério da Habitação, Obras Públicas e Transportes

    Dá nova redacção ao artigo 1.º e n.os 1 e 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 278/78, de 6 de Setembro (actualização dos valores do limite de isenção e das classes de alvarás).

  • Tem documento Em vigor 1986-08-27 - Lei 30/86 - Assembleia da República

    Aprova e publica a lei da caça.

  • Tem documento Em vigor 1987-07-07 - Lei 30/87 - Assembleia da República

    Lei do Serviço Militar.

  • Tem documento Em vigor 1987-08-10 - Decreto-Lei 311/87 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Regulamenta a Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça).

  • Tem documento Em vigor 1988-08-03 - Decreto-Lei 274-A/88 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Regulamenta a lei da caça aprovada pela Lei 30/86, de 27 de Agosto.

  • Tem documento Em vigor 1989-08-22 - Lei 28/89 - Assembleia da República

    Aplicação da Lei 30/86, de 27 de Agosto. Lei da caça à Região Autónoma da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 1990-08-27 - Decreto Legislativo Regional 20/90/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa Regional

    Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei 30/86, de 27 de Agosto, que aprova a Lei da Caça.

  • Tem documento Em vigor 1991-11-15 - Decreto-Lei 442/91 - Presidência do Conselho de Ministros

    Aprova o Código do Procedimento Administrativo, publicado em anexo ao presente Decreto Lei, que visa regular juridicamente o modo de proceder da administração perante os particulares.

  • Tem documento Em vigor 1992-07-22 - Decreto Regulamentar Regional 17/92/M - Região Autónoma da Madeira - Governo Regional

    REGULAMENTA A INSTALAÇÃO E EXPLORAÇÃO DO JOGO EM MÁQUINAS DE FORTUNA OU AZAR, FORA DO CASINO, NA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA DE ACORDO COM O ESTABELECIDO NO ARTIGO 1 DO DECRETO LEGISLATIVO REGIONAL NUMERO 21/90/M, DE 28 DE AGOSTO. O PRESENTE DIPLOMA ENTRA EM VIGOR NO DIA IMEDIATO AO DA SUA PUBLICAÇÃO.

  • Tem documento Em vigor 1992-07-30 - Decreto Regulamentar Regional 18/92/M - Região Autónoma da Madeira - Governo Regional

    REGULAMENTA O DECRETO LEGISLATIVO REGIONAL NUMERO 20/90/M, DE 27 DE AGOSTO, QUE ADAPTOU A REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA A LEI DA CAÇA (LEI 30/86, DE 27 DE AGOSTO), A QUAL FOI APLICADA A REGIÃO PELA LEI NUMERO 28/89, DE 22 DE AGOSTO. O PRESENTE DIPLOMA ENTRA EM VIGOR 30 DIAS APOS SUA PUBLICAÇÃO.

  • Tem documento Em vigor 1992-11-12 - Decreto-Lei 251/92 - Ministério da Agricultura

    Estabelece o regime jurídico do fomento, exploração e conservação dos recursos cinegéticos.

  • Tem documento Em vigor 1992-11-20 - Decreto-Lei 256/92 - Ministério das Finanças

    Altera o Decreto-Lei n.º 293/86, de 12 de Setembro, que regula o sistema de moeda metálica, na parte referente ao limite da emissão para as moedas correntes.

  • Tem documento Em vigor 1996-08-14 - Lei 30/96 - Assembleia da República

    Reforça as competências e independência do Provedor de Justiça.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1999-09-29 - Portaria 830/99 - Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

    Exclui da zona de caça associativa da Quinta da Venda e outras o prédio rústico denominado «Quinta do Ajoujo», sito na freguesia da Ota, município de Alenquer, concessionada ao Clube de Caça da Venda pela Portaria nº 875/89 de 10 de Outubro e posteriormente renovada pela Portaria nº 1384/95 de 22 de Novembro (Proc. nº 139-DGF).

  • Tem documento Em vigor 2000-09-21 - Portaria 802/2000 - Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

    Revoga a concessão da zona de caça associativa atribuída pela Portaria 859/98, de 9 de Outubro, ao Clube de Caçadores de Fanhões.

  • Tem documento Em vigor 2020-09-18 - Acórdão do Tribunal Constitucional 299/2020 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda