As cadeias foram durante muito tempo meros lugares de cumprimento das penas privativas de liberdade, nos quais se aglomeravam, numa promiscuidade deplorável, reclusos da mais variada condição: homens em mera prisão preventiva, que os tribunais vinham mais adiante a absolver, com delinquentes habituais; menores ou delinquentes primários com adultos, endurecidos na prática do crime; doentes com sãos; cadastrados a cumprir pena maior com réus sujeitos a curtas penas correccionais.
Em semelhante ambiente, é fácil de admitir que os reclusos não raro saíssem da cadeia, como autorizadamente se afirmou já, piores do que eram quando nela deram ingresso. E nada custa compreender também como a amnistia ou as providências análogas poderiam constituir, em tais circunstâncias, um processo cómodo e vantajoso em vários aspectos de libertar alguns dos que haviam prevaricado, sem prejuízo da intimidação já exercida pelo começo do cumprimento da pena ou pela simples instauração da acção penal, do perigo de contágio a que a cadeia os expunha.
É certo que algumas das amnistias então concedidas visaram, não tanto os delitos comuns, como os chamados crimes políticos.
Mas a prática dos crimes políticos reflectiu, durante algum tempo e em muitos casos, menos o espírito de rebeldia ou os instintos de malvadez ou de perversão dos agentes, do que o clima de desordem nas ruas e de intranquilidade nos espíritos em que todo o País viveu. A reprovação que a prática dos delitos cometidos despertava na opinião pública variava muitas vezes ao sabor dos movimentos de carácter emocional criados pelas forças políticas que se alternavam no Poder, nada surpreendendo, por conseguinte, que a um desejo de repressão severa de algumas das infracções sucedesse, da parte dos próprios governantes, uma atitude de excessiva compreensão, nem sempre devidamente recompensada.
2. Ora, tanto num como noutro dos casos, as circunstâncias que interessam à política legislativa penal a definir pelo Governo sofreram uma modificação profunda.
A diferenciação dos estabelecimentos prisionais permite hoje separar as várias categorias de reclusos, de acordo com as exigências do tratamento penitenciário que requer cada uma delas; as instalações modelares das cadeias mais importantes, bem como os progressos alcançados nos diferentes meios de tratamento penitenciário, converteram as prisões de mero lugar de castigo, que eram antigamente, em verdadeiros centros de recuperação social. Libertar um recluso, nestas condições, antes de cumprida a pena a que foi condenado, equivale em certo aspecto e para além de determinados limites a lançar para a rua, com grave risco da sociedade, um doente que ainda não está completamente curado.
É verdade que, enquanto se processa por toda a parte este movimento de aperfeiçoamento, não só das instalações prisionais, como de todas as formas de tratamento penitenciário em geral, se desenvolve, paralela e paradoxalmente, na doutrina moderna uma forte tendência para substituir ao tratamento a realizar na cadeia outras formas de actuação sobre o delinquente, mas com este regressado à vida livre.
Simplesmente, a substituição só pode ser feita no geral, sem grave lesão dos valores fundamentais que ao legislador precìpuamente cumpre salvaguardar, através de um estudo individualizado das situações e não por meio de medidas genéricas, indiscriminadas, do tipo da amnistia.
As nossas instituições têm acompanhado este movimento de ideias, através da modalidade na qual mais ampla mas prudentemente se espelha a nova orientação.
Trata-se do instituto da liberdade condicional, que os tribunais podem conceder, sob certos pressupostos, logo que o recluso haja cumprido metade da pena, e graças à qual todos os anos um número relativamente avultado de reclusos beneficia, sem prejuízo da segurança social, de um sensível encurtamento da pena a que foram condenados.
Por outro lado, o ambiente de paz e de tranquilidade pública em que o País tem vivido nos últimos 30 anos permitiu evitar quaisquer excessos, quer na tipicização, quer na correlativa punição das infracções penais, ao mesmo tempo que os tribunais têm podido exercer, em condições de perfeita regularidade, a sua acção repressiva do crime.
A legislação relativa aos crimes contra a segurança interior e exterior do Estado tem pràticamente atingido apenas a acção dos comunistas ou a daqueles que de qualquer modo atentam contra a integridade da Pátria. E esses, assim como merecem a serena mas firme repulsa da consciência nacional, também não podem aspirar a qualquer tratamento de clemência por parte de quem se há-de esforçar por ser o fiel intérprete dos sentimentos da colectividade.
3. Não pretendem as razões expostas significar, entretanto, que a amnistia constitua um instituto inteiramente proscrito do sistema legislativo, por contrário aos princípios fundamentais consagrados na legislação penal vigente.
Querem apenas dizer que as medidas de clemência são hoje menos necessárias do que anteriormente e, por outro lado, que os sentimentos que em regra as inspiram se exercem presentemente através de outros canais, em termos de maior acerto e segurança para a colectividade e com maiores garantias de equidade quanto aos próprios que delas beneficiam.
Nestas circunstâncias, embora não banida da legislação, a concessão da amnistia só se concebe a título excepcional.
Mas ninguém ousará certamente contestar o relevo singular que na vida da comunidade assume o acontecimento festivo que no ano corrente congregou os Portugueses em torno da memória de um dos maiores vultos da sua história: o centenário da morte do príncipe Dom Henrique.
Foi à tenacidade do infante que ficámos devendo a especial configuração do mundo português e, directamente, algumas das parcelas mais caras do território nacional, como foi o seu espírito iluminado que marcou pelos séculos fora o sentido ecuménico da missão de Portugal na história da humanidade.
Bem se compreende assim, perante o significado excepcional das festas henriquinas, que o Governo, indo, aliás, ao encontro de um desejo manifestado pela opinião pública, conceda algumas providências especiais de amnistia, na convicção de que as medidas de clemência e de perdão consagradas no presente diploma não destoam do ambiente de exaltação patriótica e de fraternidade espiritual em que as comemorações têm decorrido.
Nestes termos:
Usando da faculdade conferida pela 1.ª parte do n.º 2.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:
Artigo 1.º - 1. São amnistiados os crimes contra a segurança interior e exterior do Estado.
2. Não aproveitam, porém, do benefício da amnistia:
a) Os agentes dos crimes previstos na parte final do § único do artigo 39.º do Código de Processo Penal;
b) Os que tiverem exercido as actividades a que se referem os n.os 1.º e 2.º do artigo 7.º do Decreto-Lei 40550, de 12 de Março de 1956;
c) Os agentes dos crimes previstos nos artigos 141.º 145.º, 167.º a 170.º e 173.º do Código Penal.
Art. 2.º - 1. São ainda amnistiados:
a) Os crimes eleitorais;
b) Os crimes de abuso de liberdade de imprensa previstos nos artigos 11.º e seguintes do Decreto 12008, de 2 de Agosto de 1926;
c) Os crimes de exercício ilegal de profissões, quando a ilegalidade não provenha da falta de título;
d) Os crimes de abuso de autoridade;
e) Os crimes culposos de ofensas corporais e de dano;
f) Os crimes de emigração clandestina, previstos no artigo 39.º do Decreto 5624, de 10 de Maio de 1919;
g) Os crimes previstos nos artigos 183.º a 189.º e 193.º a 196.º do Código de Justiça Militar.
h) Os crimes previstos nos artigos 181.º, 182.º e 414.º do Código Penal;
i) Os actos de encobrimento previstos no n.º 5.º do artigo 23.º do Código Penal.
2. A aministia é finalmente extensiva:
a) Às infracções previstas nos Decretos-Leis n.º 28492, de 19 de Fevereiro de 1938;
n.º 38273, de 29 de Maio de 1951; n.º 38630, de 2 de Fevereiro de 1952, e n.º 41033, de 18 de Março de 1957;
b) Às infracções respeitantes à extracção de cortiça e à poda de sobreiros, previstas e punidas nos Decretos n.º 13658, de 20 de Maio de 1927; n.º 15020, de 9 de Fevereiro de 1928; n.º 16953, de 8 de Junho de 1929; n.º 19072, de 25 de Novembro de 1930, e n.º 19636, de 21 de Abril de 1931, e nos Decretos-Leis n.º 27776, de 24 de Junho de 1937, e n.º 38271, de 26 de Maio de 1951;
c) Às infracções previstas no artigo 15.º e seus §§ 2.º, 3.º e 4.º e nos artigos 21.º, 23.º, 26.º, 36.º a 41.º, 44.º, 45.º, 46.º e seu § 3.º e 47.º do Regulamento do Serviço da Polícia Florestal, aprovado pelo Decreto-Lei 39931, de 24 de Novembro de 1954;
d) Às infracções a que se refere o artigo 17.º do Decreto-Lei 39561, de 13 de Março de 1954;
e) Às infracções previstas e punidas no § único do artigo 13.º e no artigo 27.º do Decreto-Lei 39634, de 5 de Maio de 1954, quando o valor da multa aplicada nos termos deste último artigo não exceda 20000$00;
f) Às infracções, punidas com simples pena de multa, previstas nos artigos 57.º, 61.º, 63.º a 65.º, no § 1.º do artigo 74.º, nos artigos 81.º e 86.º, no § único do artigo 109.º e no § único do artigo 117.º do Decreto 18713, de 11 de Julho de 1930, e ainda no artigo 2.º do Decreto-Lei 28852, de 13 de Julho de 1938, e no § 1.º do artigo 1.º do Decreto-Lei 31635, de 12 de Novembro de 1941;
g) Às infracções, punidas com pena de multa, previstas no artigo 62.º do Decreto 15401, de 17 de Abril de 1928, quando na exploração das águas se não verifiquem alterações que façam perigar a saúde pública;
h) Às infracções previstas nos n.os 3.º, 6.º e 7.º do artigo 52.º e no artigo 53.º do Decreto 13642, de 7 de Maio de 1927;
i) Às meras infracções disciplinares contra a economia nacional, puníveis com sanções não superiores a multa, sem prejuízo da manutenção dos créditos de terceiros ou dos organismos corporativos ou de coordenação económica;
j) Às simples contravenções a que se referem os artigos 27.º e seguintes do Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957, e que sejam sòmente puníveis com pena de multa. A concessão da amnistia não envolve neste caso a restituição das mercadorias apreendidas, a qual só poderá verificar-se quando o infractor, depois de renunciar aos efeitos da amnistia, dentro do prazo de dez dias, vier a ser absolvido por sentença judicial;
k) Às infracções, relativas à produção, venda ou trânsito de vinhos ou seus derivados, previstas no artigo 9.º do Decreto-Lei 40036, de 18 de Janeiro de 1955, no artigo 27.º do Decreto-Lei 35846, de 2 de Setembro de 1946, no artigo 37.º da Lei 1889, de 23 de Março de 1935, e no § 4.º do artigo 8.º do Decreto-Lei 27002, de 12 de Setembro de 1936, na Portaria 15348, de 19 de Abril de 1955, e nos artigos 1.º, 2.º e 4.º do Decreto-Lei 31565, de 10 de Outubro de 1941.
Art. 3.º - 1. É perdoado um terço das penas correccionais de prisão, de multa ou de trabalho prisional que tenham sido aplicadas em decisões já proferidas à data da publicação deste diploma, ainda que não transitadas em julgado, por crimes contra a propriedade.
2. São perdoadas aos empreiteiros de obras públicas no ultramar as multas em que, por mora no cumprimento dos contratos, se achem incursos à data da publicação deste decreto-lei, previstas nos cadernos de encargos, a que se refere o artigo 1.º das cláusulas e condições gerais de empreitadas de obras públicas e de fornecimento de materiais para as províncias ultramarinas, aprovadas pela Portaria de 20 de Outubro de 1900.
Art. 4.º Os benefícios constantes deste diploma não aproveitam aos reincidentes, aos delinquentes de difícil correcção nem aos vadios ou equiparados.
Art. 5.º A amnistia não extingue a responsabilidade civil emergente dos factos praticados.
Art. 6.º O presente decreto-lei entra imediatamente em vigor.
Publique-se e cumpra-se como nele se contém.
Paços do Governo da República, 12 de Novembro de 1960. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ - António de Oliveira Salazar - Júlio Carlos Alves Dias Botelho Moniz - Arnaldo Schulz - João de Matos Antunes Varela - António Manuel Pinto Barbosa - Afonso Magalhães de Almeida Fernandes - Fernando Quintanilha Mendonça Dias - Marcello Gonçalves Nunes Duarte Mathias - Eduardo de Arantes e Oliveira - Vasco Lopes Alves - Francisco de Paula Leite Pinto - José do Nascimento Ferreira Dias Júnior - Carlos Gomes da Silva Ribeiro - Henrique Veiga de Macedo.
Para ser publicado no Boletim Oficial de todas as províncias ultramarinas. - Vasco Lopes Alves.