Acórdão 3/98-16.DEZ-PG
Recurso extraordinário n.º 2/97 (autos de reclamação n.º 174/96)
1 - A Sr.ª Ministra da Saúde interpôs, ao abrigo dos artigos 6.º, 7.º e 8.º da Lei 8/82, de 25 de Novembro, recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do acórdão aprovado em 4 de Março de 1997 pelo plenário da 1.ª Secção, lavrado nos autos de reclamação n.º 174/96 (que reapreciaram o processo de visto n.º 48290/96), por oposição com as decisões proferidas nos processos de visto n.º 62457/95, 5222/94 (decisão n.º 687/94) e 93963/93 (decisão n.º 1625/94).
Para tal, apresenta, em síntese, os seguintes fundamentos:
a) O acórdão dos autos de reclamação n.º 174/96, ora recorrido, confirmou a recusa de visto (inicialmente decidida no processo de visto n.º 48290/96) à nomeação do major médico na reserva António José Duque Rodrigues Neves como assistente hospitalar de cardiologia do Hospital Distrital de Tomar, com o fundamento, em síntese, de que o mesmo não possuía vínculo à função pública, pelo que não podia ter sido admitido como opositor ao concurso interno aberto para o referido provimento, tendo sido violados, em particular, os n.os 2 a 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro, e 2 do Regulamento dos Concursos da Carreira Médica Hospitalar (Portaria 833/91, de 14 de Agosto).
b) Porém, o Tribunal decidiu de forma diferente, concedendo o visto à nomeação de médicos militares do quadro permanente como assistentes da carreira médica hospitalar na sequência de concurso interno, nos seguintes processos de visto:
93963/93 - nomeação do capitão médico do quadro permanente da Força Aérea Eduardo Manuel Nunes Torpes Santana como assistente de gastrenterologia do Hospital Distrital de Vila Franca de Xira;
5222/94 - nomeação do capitão médico do quadro permanente da Força Aérea João Luís Raposo d'Almeida como assistente hospitalar de cirurgia geral do Hospital de Pulido Valente; e
62457/95 - nomeação do capitão médico do quadro permanente da Força Aérea António Maria Gomes Rocha de Almeida como assistente de cardiologia do Hospital Distrital do Barreiro.
c) «A tese do acórdão recorrido de inexistência de intercomunicabilidade entre a carreira médica militar e a carreira médica hospitalar é, de algum modo, expressamente contrariada pelo disposto nos Decretos-Leis 519/77, de 17 de Dezembro e 332/86, de 2 de Outubro, onde se estabelece e se mantém, respectivamente, a equiparação entre a carreira médica militar e a carreira médica hospitalar, bem como a interdependência entre ambas, designadamente fazendo depender a promoção para cargos militares da obtenção de graus da carreira médica hospitalar.»
d) «O disposto no n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei 323/89, de 26 de Setembro, permite que aos médicos militares, enquanto tal, seja contado o tempo de serviço para efeitos de recrutamento como directores de serviço ou chefes de divisão.»
e) As restrições impostas pelo artigo 270.º da Constituição da República Portuguesa abrangem apenas os militares que se encontrem em serviço efectivo, excluindo, assim, os que se encontram na reserva e são tão-só as que ali se encontram taxativamente consagradas. Além disso, a localização desta norma no título referente à Administração Pública, e não no referente à defesa nacional, significa que os militares estão incluídos na função pública em sentido amplo.
f) Invoca de novo (já o fizera nos autos de reclamação n.º 174/96, onde foi lavrado o acórdão agora recorrido) o parecer produzido pelo Dr. Bacelar Gouveia que suscitaria eventuais inconstitucionalidades, que agora imputa ao acórdão recorrido, designadamente por violação dos artigos 47.º e 50.º da Constituição da República Portuguesa.
g) Já depois de admitido o recurso, veio a ilustre recorrente juntar ao processo um parecer subscrito pelo Professor Freitas do Amaral, donde se destacam as seguintes conclusões:
« ...
5) A unidade com que a Constituição compreende a Administração e a função pública decorre expressamente dos artigos 266.º e seguintes e aos funcionários públicos globalmente considerados reconhece a Constituição direitos fundamentais, desde logo o constante no artigo 47.º - direito de acesso à função pública em condições de igualdade e de liberdade;
...
7) Depois de consagrar princípios gerais para toda a função pública - cf. artigo 269.º -, a Constituição restringe certos direitos fundamentais aos militares e agentes militarizados, em razão da sua função - cf. artigo 270.º;
8) A inserção sistemática do artigo 270.º no título sobre a Administração Pública, e não no título sobre a defesa nacional, é prova evidente de que a Constituição compreende os militares no contexto de uma função pública unitária, como aliás acontece em outros ordenamentos jurídicos, nomeadamente o francês e o italiano;
9) A defesa nacional é hoje um conceito amplo que co-envolve um dever/direito do cidadão e uma fundamental tarefa, diversificada e ampla, da parte do Estado, que se não circunscreve às Forças Armadas e abrange toda a Administração Pública;
10) Estando a Administração Pública e a função pública sujeitas a princípios jurídicos e deveres unitários, e sendo a defesa nacional uma tarefa de todos, acaba a estanquicidade com que, em tempos, a categoria dos funcionários militares era entendida face aos funcionários civis e fica somente a especialidade de uma carreira perante outras, como acontece com a carreira dos docentes, dos médicos ou dos diplomatas, acrescida embora das restrições constitucionais a alguns direitos fundamentais;
11) Concretização expressa desta ideia pode ver-se no Decreto-Lei 184/89, de 2 de Junho, que, no artigo 16.º, n.º 2, no quadro da função pública, distingue a carreira diplomática da carreira dos militares dos três ramos das Forças Armadas e da carreira docente [...]
12) O Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro, fixou as regras de recrutamento e selecção do pessoal da administração pública civil;
13) Ao definir «concurso interno geral» utiliza a expressão «todos os funcionários», a qual deve ser entendida em termos amplos, envolvendo funcionários públicos civis e militares, de acordo com a compreensão unitária da função pública presente no artigo 269.º da Constituição;
14) Uma interpretação restrita, que deixe de fora os militares, viola o princípio do acesso a concurso em condições de igualdade e de liberdade, como impõe o artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, directamente aplicável por força do n.º 1 do artigo 18.º da mesma Constituição;
...
18) Por outro lado ainda, a opção de um militar por uma carreira civil pode ter a vantagem de contribuir para a difusão de experiências e para um maior enraizamento do conceito de defesa nacional na administração pública civil, hoje tão importante para o desenvolvimento da política de defesa e de uma estratégia global de defesa nacional;
19) Em suma, não só não se encontram razões materiais suficientes para diferenciar os militares nos concursos gerais internos como se encontram mesmo razões para permitir e facilitar a mobilidade dos militares para carreiras civis;
20) Acresce que a pertença de um militar ao quadro da reserva não o impede de candidatar-se a um concurso interno geral, como a interpretação feita pelo Tribunal de Contas do artigo 78.º do Estatuto da Aposentação, na redacção actual, parece inculcar;
21) Com efeito, o que aí se proíbe é somente que um militar na reserva exerça funções públicas, não se proíbe que se candidate a concursos públicos;
22) Assim, se, antes da tomada de posse, o militar pedir o abate ao quadro, não há razões legais para que não preste funções públicas.»
2 - Admitido o recurso, foram os autos com vista ao Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto, que, em douto parecer e no seguimento do que já havia defendido nos autos de reclamação n.º 174/96, concluiu pela concessão do visto à nomeação do interessado, depois de ter sugerido a fixação de jurisprudência nos seguintes termos:
«Os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, no activo ou na reserva, são de considerar como funcionários para o efeito de serem opositores a concurso interno geral da Administração Pública, ao abrigo do previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro.»
Anote-se desde já que logo após a sua interposição o presente recurso ficou a aguardar o desfecho do recurso que a Sr.ª Ministra da Saúde havia interposto para o Tribunal Constitucional, também do acórdão aqui recorrido.
O acórdão do Tribunal Constitucional acabou por decidir no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
3 - Corridos os demais vistos legais, deve, como questão prévia e apesar de o recurso ter sido liminarmente admitido, verificar-se da existência ou inexistência dos pressupostos conducentes à fixação de jurisprudência.
Tendo o recurso sido interposto nos termos e ao abrigo da Lei 8/82, de 25 de Novembro, não obstante já ter sido revogada pela Lei 98/97, de 26 de Agosto, há-de ser à luz daquela que a verificação de tais pressupostos deverá ser medida.
Ora, o artigo 6.º da Lei 8/82 fixava, para a interposição deste recurso extraordinário no âmbito da fiscalização prévia, os seguintes pressupostos, de verificação cumulativa:
Duas decisões com soluções opostas;
Proferidas no domínio da mesma legislação;
Relativas à mesma questão fundamental de direito.
A estas viria a Lei 98/97, de 26 de Agosto - nova Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas -, a acrescentar mais as seguintes (artigo 101.º, n.os 1 e 2):
Decisões de concessão ou recusa de visto;
Decisão fundamento já transitada em julgado;
Tomadas em processos diferentes;
Aprovadas no plenário da 1.ª Secção deste Tribunal (ou nas secções regionais).
As três primeiras, apesar de não expressas, sempre foram tidas como decorrentes do artigo 6.º da Lei 8/82, por aplicação subsidiária das normas que no processo civil regulam a uniformização de jurisprudência. A última, porém, não será de considerar no caso em apreço por, como já se disse, o presente recurso ter sido interposto ao abrigo da Lei 8/82.
Para a resolução da questão prévia importa ter presente o seguinte:
i) O acórdão recorrido confirmou a recusa de visto, decidida no processo de visto n.º 48290/96, à nomeação do major médico na reserva António José Duque Rodrigues Neves como assistente hospitalar de cardiologia do Hospital Distrital de Tomar, com o fundamento de que o mesmo, enquanto elemento das Forças Armadas, não possuía vínculo à função pública, pelo que não podia ter sido admitido como opositor ao concurso interno aberto para o referido provimento. Em consequência, foram violados, em particular, os n.os 2 a 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro, e 2 do Regulamento dos Concursos da Carreira Médica Hospitalar (Portaria 833/91, de 14 de Agosto);
ii) Por sua vez, as decisões fundamento tiveram o seguinte desfecho:
No processo de visto n.º 93963/93 formou-se visto tácito em relação à nomeação do capitão médico do quadro permanente da Força Aérea Eduardo Manuel Nunes Torpes Santana como assistente de gastrenterologia do Hospital Distrital de Vila Franca de Xira, na sequência de concurso interno de provimento aberto para o efeito e a que o mesmo foi admitido;
No processo de visto n.º 62457/95 formou-se, igualmente, visto tácito em relação à nomeação do capitão médico do quadro permanente da Força Aérea António Maria Gomes Rocha de Almeida como assistente de cardiologia do Hospital Distrital do Barreiro, na sequência de concurso interno de provimento aberto para o efeito e a que o mesmo foi admitido;
No processo de visto n.º 5222/94 (decisão n.º 687/94) foi decidido visar, «por se afigurar em termos», a nomeação do capitão médico do quadro permanente da Força Aérea João Luís Raposo d'Almeida como assistente hospitalar de cirurgia geral do Hospital de Pulido Valente, na sequência de concurso interno de provimento aberto para o efeito e a que o mesmo foi admitido.
Assim sendo, diga-se desde já que as decisões dos processos n.os 93963/93 e 62457/95, que se limitaram a reconhecer a formação de visto tácito, não podem, de acordo com a jurisprudência pacificamente aceite (cf. acórdãos do plenário geral de 27 de Junho de 1995 - rec. ext. n.º 37/91 - e de 16 de Outubro de 1995 - rec. ext. n.º 6/94, entre outros), servir de fundamento à oposição de julgados, uma vez que através delas o Tribunal não tomou qualquer posição expressa e fundamentada quanto à questão controvertida.
A decisão n.º 687/94 - processo 5222/94 -, com fundamentação tão sucinta («em sessão diária de visto decide-se visar o despacho por se afigurar em termos»), deixa, face à jurisprudência citada, alguma dúvida que, por si só, possa servir de fundamento à oposição de julgados.
Para a desfazer torna-se necessário recorrer à informação feita pelos serviços de apoio resultante do estudo e análise do processo em que a dita decisão foi proferida. Na verdade, vem aqui colocada, ainda que de forma concisa, a dúvida que nos transporta para a questão controvertida nos presentes autos, dúvida que foi colocada nos seguintes termos: «À data de abertura do concurso desempenhava as funções de capitão médico do quadro permanente dos oficiais médicos da Força Aérea portuguesa e em regime de acumulação [...] pelo que se coloca a questão de saber da legalidade da admissão do interessado a um concurso interno de provimento.»
Atento o teor da informação, apesar de na mesma não vir expressamente invocada a norma que consideravam violada, não pode deixar de entender-se que era o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro, que estava subjacente e subentendido.
Assim, ao ter sido visada a nomeação, mesmo com a fundamentação utilizada de forma bastante concisa e simplificada («por se afigurar em termos»), deverá concluir-se que, implicitamente, não se considerou ilegal a admissão do interessado ao concurso interno aberto para o efeito.
Então, como bem conclui a este propósito o Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto no seu douto parecer antes citado, concluímos também que se está perante duas decisões de sentidos opostos (o acórdão recorrido e a decisão n.º 687/94 - processo 5222/94 -, já transitada em julgado), proferidas no domínio da mesma legislação e relativas à mesma questão fundamental de direito. Estão, por isso, verificados os pressupostos da oposição de julgados fixados no artigo 6.º da Lei 8/82, de 25 de Novembro.
4 - A questão de direito a resolver e sobre a qual haverá que fixar jurisprudência pode enunciar-se do seguinte modo: os militares do quadro permanente das Forças Armadas, no activo ou na reserva, podem ser considerados funcionários para efeito de candidatura aos concursos internos de provimento de lugares dos quadros da administração pública civil previstos na alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro?
5 - Apreciando.
5.1 - Como se viu, a decisão fundamento à oposição de julgados encontra-se sucintamente fundamentada e só implicitamente se consegue alcançar que a mesma terá, por via da informação apresentada pelos serviços de apoio do Tribunal, apreciado a questão de direito controvertida que nos ocupa. Na verdade, a sessão diária de visto não equacionou na mencionada decisão n.º 687/94 expressa e desenvolvidamente a questão controvertida.
No entanto, para além do acórdão recorrido e da decisão que lhe deu causa (a n.º 3607/96), outros arestos houve em que tal questão foi largamente analisada, estudada e ponderada, tendo todos eles decidido no sentido em que decidiu o acórdão recorrido. Aliás, neste se faz referência à jurisprudência que no Tribunal de Contas se firmara sobre o assunto.
Valerá, por isso, a pena percorrê-la e constatar, através dos documentos de maior significado, as razões que justificaram o decidido.
Na resolução aprovada em 30 de Maio de 1989 - processo 53932/89 -, que recusou o visto à nomeação de José Alberto Gouveia da Costa como terceiro-oficial do quadro especial da PSP, escreveu-se a propósito:
«I - c) O segundo interessado é primeiro-cabo readmitido da Força Aérea Portuguesa desde 1 de Outubro de 1986;
...
II - Considerando que:
...
d) Acresce que só podem ser opositores a concursos internos para ingresso nos quadros dos serviços e organismos da administração central e institutos públicos o pessoal vinculado a qualquer daqueles serviços, estando por isso excluídos deste regime os agentes da administração local e militares das Forças Armadas (cf. artigos 1.º, n.os 1 e 2, e 11.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro) [...]»
Na decisão n.º 2062/90 foi recusado o visto à nomeação de Carlos Manuel Alves de Sousa e Manuel António da Costa Sousa como tesoureiros-ajudantes estagiários da Direcção-Geral do Tesouro com os seguintes fundamentos:
«a) O concurso era interno geral de ingresso [...]
...
e) Os restantes interessados, enquanto militares (cf. ...), não podiam ser opositores a concursos internos, pois a sua admissão nos quadros de organismos da administração central depende de quota de descongelamento;».
Na decisão n.º 1378/91 - processo 36516/9 - foi igualmente recusado o visto à nomeação de João Manuel Gomes Afonso para o cargo de motorista de pesados da Universidade Nova de Lisboa:
«Considerando que o provimento foi precedido de concurso aberto [...] para funcionários e agentes de qualquer serviço ou organismo da administração central;
Considerando que consta do processo que o interessado é primeiro-marinheiro do quadro permanente da Armada Portuguesa [...]
Considerando que não se encontra, assim, vinculado à administração central, conforme jurisprudência pacífica deste Tribunal, pelo que a sua admissão a concurso dependia de prévia quota de descongelamento [...]»
O acórdão lavrado nos autos de reclamação n.º 121/94, que confirmou a recusa do visto à nomeação do capitão-tenente António Gomes Camacho como assistente hospitalar de gastrenterologia do Subgrupo Hospitalar dos Capuchos e Desterro, desenvolveu a fundamentação nos seguintes termos:
«4 - Impõe-se desde já afirmar que é pacífica a inserção das Forças Armadas na administração directa do Estado, através do Ministério da Defesa Nacional, bem como dos militares e agentes militarizados na Administração Pública.
Tal decorre claramente dos artigos 202.º, alínea d), e 270.º da Constituição e do artigo 1.º, n.º 1, da Lei 111/91, de 29 de Agosto.
Como pacífica é a distinção no interior da administração central directa do Estado entre a administração civil e militar [artigo 202.º, alínea d)].
A questão a dilucidar, com vista ao aferimento da correcção jurídica da decisão ora reclamada, é a de saber se são estanques os regimes jurídicos do recrutamento e das carreiras dos funcionários e agentes para a administração directa do Estado, civil e militar.
É manifesto que tais regimes são distintos e em princípio não admitem intercomunicabilidade de pessoal.
O Decreto-Lei 184/89, de 2 de Junho, que estabeleceu os princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e gestão de pessoal da função pública (artigo 1.º), afirma a aplicabilidade das suas disposições às Forças Armadas 'com as adaptações decorrentes dos seus estatutos específicos' (artigo 3.º, n.º 2).
Coerentemente considerou integrado em corpo especial os 'militares dos três ramos das Forças Armadas' [artigo 16.º, n.º 2, alínea b)] e como tal remeteu para estatuto próprio as adaptações dos princípios que consagrou.
5 - No que respeita à administração central directa civil, o Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro, veio desenvolver o regime da constituição da 'relação jurídica de emprego', mandado aplicar posteriormente, com adaptações, à administração local pelo Decreto-Lei 409/91, de 17 de Outubro.
Por seu turno, o regime geral da estruturação das carreiras e de mobilidade no interior da administração central directa civil rege-se pelos Decretos-Leis 248/85, de 15 de Julho, 498/88, de 30 de Dezembro e 41/84, de 3 de Fevereiro, na medida em que o Decreto-Lei 184/89 pressupõe a respectiva vigência total ou parcial [artigos 22.º, n.º 2, alínea d), e 3, 23.º, 26.º, 27.º, 31.º e 32.º].
6 - Situação paralela, no que concerne à administração central directa militar, se verifica com o Decreto-Lei 34-A/90, de 24 de Janeiro, ratificado pela Lei 27/91, de 17 de Julho, que aprovou o Estatuto dos Militares das Forças Armadas, estabelecendo os princípios das respectivas carreiras, desde o ingresso nos quadros permanentes até ao posto máximo de cada categoria (parte II).
No preâmbulo deste diploma afirma-se expressamente a natureza própria da condição militar, que 'se distingue do estatuto funcional dos demais servidores do Estado'.
Esta distinção de regimes jurídicos, quanto ao recrutamento, progressão e promoção e estatuto dos funcionário e agentes civis e militares da Administração Pública, é realçada ainda pelo facto de a Constituição prever a respectiva competência legislativa da Assembleia da República em normas separadas - artigos 167.º, alínea d), in fine, e 168.º, n.º 1, alínea v).
Acresce, por fim, que o Decreto-Lei 46/88, de 11 de Fevereiro, que aprova a Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional, no seu artigo 20.º veio prever o recrutamento de pessoal não dirigente para os organismos ou serviços elencados no artigo 10.º (direcções-gerais e equiparadas), de entre não só civis mas também militares.
Para estes foi estabelecido um regime próprio (n.os 3, 4 e 6), 'comissão especial ou diligência', mandando-se aplicar ao provimento dos civis o regime do funcionalismo público (n.º 2).
Esta distinção de regimes estatutários é expressamente consagrada no artigo 21.º do mesmo diploma. Obviamente que tal estatuição seria desnecessária se o regime de recrutamento e provimento da função pública (civil) se aplicasse aos militares.
7 - Posto isto, vejamos o regime de recrutamento do pessoal na administração central directa civil do Estado.
Dispõe o artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 498/88 que o concurso é interno geral 'quando aberto a todos os funcionários, independentemente do serviço ou organismo a que pertençam', e externo quando, no respeito pela legislação vigente sobre restrições à admissão de pessoal na Administração Pública, 'seja aberto a todos os indivíduos, estejam ou não vinculados aos serviços e organismos previstos no n.º 1 do artigo 2.º'.
É evidente que estes dispositivos se reportam a 'serviços e organismos' da administração central, civil.
Quanto à administração local, o n.º 2 do artigo 2.º remeteu para posterior decreto-lei a aplicabilidade deste regime.
Não havendo qualquer referência à administração central directa militar nem aos militares ou agentes militarizados, é manifesto que o artigo 6.º, n.º 2, alínea a), daquele diploma não podia de modo algum abranger estes últimos quando se refere a 'todos os funcionários' como opositores possíveis a concursos internos gerais.
Esta conclusão não se altera face aos termos do n.º 2, alínea a), do Regulamento dos Concursos da Carreira Médica Hospitalar (Portaria 833/91, de 14 de Agosto), aplicável ao caso vertente: 'São concursos internos aqueles cuja abertura se confine aos médicos possuidores dos requisitos de admissão e já vinculados à função pública, independentemente dos serviços a que pertençam.'
8 - Deste modo os militares, no activo ou na reserva, não podem ser opositores a concursos internos para os serviços ou organismos da administração central do Estado, civil.
...
Daí que o seu ingresso nos quadros daqueles 'serviços ou organismos' só possa ser feito por concurso externo, carecendo, além de mais decorrente do seu estatuto militar, de quota de descongelamento nos termos do artigo 13.º do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro.»
Nos autos de reclamação n.º 111/95 manteve-se recusado visto à nomeação do capitão da Força Aérea Eduardo Manuel Nunes Torpes Santana como assistente hospitalar do Hospital de Egas Moniz com os mesmos fundamentos (largamente transcritos) do acórdão dos autos de reclamação n.º 121/94, antes reproduzidos.
A acrescer a esta jurisprudência, refira-se ainda o parecer elaborado pelo Gabinete de Estudos deste Tribunal (parecer 8/94-GE), que, depois de ter chegado à conclusão que «a Constituição da República Portuguesa aponta para a distinção da administração directa do Estado em civil e militar e faz corresponder à administração civil o regime da função pública civil e à administração militar o regime da função pública militar», acaba concluindo que «o Tribunal só pode visar os provimentos de militares do quadro permanente, no activo ou na reserva, em lugares dos quadros da administração civil, desde que tais provimentos tenham sido objecto de prévia quota de descongelamento de admissões [...]», ou seja, se se tiverem candidatado a concurso externo de ingresso.
Como se vê, efectivamente o acórdão recorrido seguiu, como afirmara, a jurisprudência constante e pacificamente formada no Tribunal e que, diga-se, o Ministério da Saúde conhecia em pormenor, porquanto os dois autos de reclamação citados que desenvolveram o tema em causa foram intentados precisamente pelo Ministro da Saúde.
5.2 - Depois do exposto e recordando que na decisão fundamento a concessão do visto foi sumarissimamente justificada, resta agora saber se as alegações da ilustre recorrente, consubstanciadas nos pareceres do Dr. Bacelar Gouveia e do Professor Freitas do Amaral, e as razões aduzidas pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto no seu douto parecer serão suficientes para inverter a jurisprudência até agora unanimemente firmada e pacificamente seguida.
Entendemos que não.
Em bom rigor, tanto os pareceres juntos pela Exma. Recorrente como o do Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto aceitam que, na expressão deste último, «os estatutos da função pública civil e da função pública militar são profundamente distintos».
No entanto, invocando o princípio da unidade da administração do Estado e a letra da alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro, que, ao definir concurso interno geral, utiliza a expressão «todos os funcionários», defendem a intercomunicabilidade entre a administração pública militar e a administração pública civil, o que permitiria a candidatura de um militar como opositor a um concurso interno para provimento de lugares dos quadros da administração civil.
Entendimento diferente deste, porque restritivo, violaria o princípio do direito de acesso à função pública consagrado no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
Quanto à intercomunicabilidade entre as duas administrações públicas, militar e civil, cremos que ficou demonstrada no acórdão dos autos de reclamação n.º 121/94 a sua não aceitação. E o argumento agora invocado, a unidade da administração, já no dito aresto fora ponderado, quando se começou por afirmar que «é pacífica a inserção das Forças Armadas na administração directa do Estado, através do Ministério da Defesa Nacional, bem como dos militares e agentes militarizados na Administração Pública». Porém, não foi considerado decisivo para aceitar a intercomunicabilidade defendida pela Exma. Recorrente e pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto. Não haverá, por isso, necessidade de novo desenvolvimento do tema.
Acrescentaremos, tão-só, que a intercomunicabilidade pressupõe a reciprocidade, ou seja, permite a transição de uma situação para outra, e vice-versa. Vejam-se, a título de exemplo, o Decreto-Lei 85/85, de 1 de Abril (intercomunicabilidade entre as administrações central e regional autónoma), o Decreto-Lei 248/85, de 15 de Julho (intercomunicabilidade entre carreiras), ou o Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro (intercomunicabilidade entre quadros de pessoal ou serviços). Ora, no caso em apreço não encontramos na legislação que regula a administração pública militar qualquer situação que preveja ou permita a transição para esta de funcionários da administração pública civil.
Quanto à invocada violação do princípio constante do n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, que estabelece que «todos os cidadãos tem o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e de liberdade, em regra por via de concurso», não conseguimos retirá-la da interpretação que se vem fazendo da alínea a) do n.º 3 do Decreto-Lei 498/88.
É que a restrição decorrente do normativo mencionado não impede o acesso dos militares à função pública civil através de concurso. Aliás, o concurso apropriado para o ingresso na função pública é o concurso externo, e a esse os militares não estão impedidos de se candidatarem.
E também não viola o mesmo preceito constitucional numa outra leitura que do mesmo fazem tanto o Professor Freitas do Amaral como o Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto, ou seja, não «viola o princípio do acesso a concurso em condições de igualdade e de liberdade», nas palavras do primeiro.
Só haveria violação do princípio assim enunciado se a situações iguais se desse tratamento desigual. Como se deixou dito, através da transcrição da jurisprudência que vem sendo seguida e que perfilhamos, não há uma coincidência entre os regimes da administração civil e da administração militar e, consequentemente, entre os estatutos dos respectivos funcionários. Daí que, em obediência à obrigação de diferenciação, integradora do princípio da igualdade (como bem se assinala no acórdão recorrido), haja que tratar de forma diferente o que é diferente. Será o caso.
5.3 - Uma última nota em relação a um outro argumento, de menor peso em nosso entender, porém invocado tanto pela Exma. Recorrente como pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto. É o facto de o interessado se propor pedir o abate da sua condição de militar antes de tomar posse do novo cargo.
Tal facto não é relevante para a questão em apreço. Com efeito, o que está em causa é a admissão dos militares a concursos internos para provimento de lugares da administração pública civil e a questão do abate coloca-se em momento posterior a esse, no desenvolvimento do procedimento conducente à nomeação.
Ou seja, no primeiro momento são os requisitos de admissão ao concurso que se avaliam, enquanto no segundo são os requisitos para o exercício de funções públicas civis que estão em apreço, designadamente o regime de incompatibilidades. Ora, o abate aos quadros permanentes prende-se com estas, pelo que o seu pedido será sempre necessário para que um militar possa ingressar na administração pública civil, mesmo que através de concurso externo.
6 - Pelo que vem exposto e como já se deixou dito, a tese da Exma. Recorrente não merece acolhimento.
No entanto, uma nova questão se coloca. Tendo o acórdão recorrido sido prolatado antes da publicação da Lei 98/97, de 26 de Agosto, e tendo esta reduzido os fundamentos da recusa de visto, a ilegalidade que então conduziu à recusa manter-se-á válida face ao disposto no n.º 3 do seu artigo 44.º?
Segundo este preceito, constitui fundamento da recusa do visto:
a) A nulidade;
b) A assunção de encargos sem cabimento em verba orçamental própria ou a violação directa de normas financeiras;
c) Ilegalidade que altere ou possa alterar o respectivo resultado financeiro.
De acordo com o disposto no artigo 88.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, reconhecidamente aplicável à administração central, por traduzir a concretização do princípio geral constante do artigo 133.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, são nulas as nomeações de funcionários a quem falte algum dos requisitos essenciais.
A qualidade de funcionário (civil), que o interessado, enquanto militar, não possuía, constitui um requisito essencial para ser opositor ao concurso interno aberto para o provimento em causa, pelo que a sua falta acarreta a nulidade da subsequente nomeação.
Assim, também à luz da nova Lei 98/97, de 26 de Agosto, há fundamento para a recusa do visto.
7 - Face ao exposto, acordam em plenário geral os juízes do Tribunal de Contas em:
a) Julgar improcedente o recurso, confirmando integralmente o acórdão recorrido;
b) Fixar a seguinte jurisprudência obrigatória:
O conceito de funcionário constante da alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro, não abrange os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, no activo ou na reserva, pelo que estes não poderão ser admitidos como opositores a concursos internos gerais para provimento de lugares dos quadros da administração pública civil do Estado.
São devidos emolumentos, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do regime jurídico dos emolumentos do Tribunal de Contas, anexo ao Decreto-Lei 66/96, de 31 de Maio.
Publique-se na 1.ª série-A do Diário da República (n.º 1 do artigo 9.º da Lei 98/97, de 26 de Agosto).
Diligências necessárias.
Lisboa, 16 de Dezembro de 1998. - O Presidente, Alfredo José de Sousa - Pinto Almeida (relator) - Morais Antunes - Freitas Pereira - Alípio Duarte Calheiros - Mira Crespo - Pestana de Gouveia - Fernandes Neto - Pinto Ribeiro - Arlindo Lopes de Almeida - Ribeiro Gonçalves - Menéres Barbosa - Oliveira Moita - Carlos Moreno - Alves Cardoso - Alves de Melo. - O Procurador-Geral-Adjunto, Amável Dias Raposo.