I - Relatório
1 - O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores vem, ao abrigo do disposto no artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 57.º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional, requerer, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a apreciação da norma constante do n.º 1 do artigo 3.º do decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores em 10 de Setembro de 1992 e por si recebido, para ser assinado como decreto legislativo regional, em 21 de Setembro de 1992, versando sobre «pessoal, extinção e destino dos bens das casas do povo».O pedido deu entrada neste Tribunal em 30 de Setembro de 1992.
Entende o requerente que a norma constante do mencionado artigo 3.º, n.º 1, «viola[m] o artigo 46.º, n.º 2, versa[m] sobre matéria reservada aos órgãos de soberania [artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição] e não incide[m] sobre matéria de interesse específico».
O requerente baseia esse seu entendimento nas razões que a seguir se indicam, numa síntese apertada:
a) O n.º 1 do mencionado artigo 3.º dispõe que as casas do povo existentes na Região Autónoma dos Açores, desde que relativamente a elas se verifique alguma das situações que indica, podem ser extintas por despacho do Secretário Regional da Saúde e Segurança Social;
b) Sucede que as casas do povo - que, no Estado Novo, constituíam «peças base do sistema corporativo» -, «com o 25 de Abril e a entrada em vigor do novo ordenamento jurídico-constitucional [...], 'sofreram abalo estrutural' e libertaram-se progressivamente da natureza corporativa que, até então, as moldara». Como decorre do Decreto-Lei 4/82, de 11 de Janeiro, e do Decreto-Lei 246/90, de 27 de Julho, «parece claro que as casas do povo constituem actualmente pessoas colectivas de direito privado», sendo «indiscutivelmente associações» - «associações de direito privado que não têm por fim a obtenção de lucros para distribuir pelos sócios», ou seja, «associações privadas em sentido estrito»;
c) «Ora, como é pacificamente admitido, as normas constitucionais sobre liberdade de associação aplicam-se às pessoas colectivas de direito privado de base associativa e fim não lucrativo: a garantia do direito de associação pressupõe que a autonomia privada está na base da sua criação ou extinção e dos actos individuais de adesão ou exoneração», podendo, por conseguinte, «concluir-se que as associações privadas, ainda que de utilidade pública, só podem ser dissolvidas por decisão judicial»;
d) Assim sendo, o artigo 3.º, n.º 1, aqui sub iudicio, ao conferir ao Secretário Regional da Saúde e Segurança Social a possibilidade de extinguir as casas do povo que se encontrem em determinadas condições, viola o artigo 46.º, n.º 2, da Constituição;
e) E, como o direito de associação se integra na categoria dos direitos, liberdades e garantias, não podem as assembleias regionais legislar sobre ele, pois é matéria que pertence à reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
Deste modo, sendo forçoso «concluir que os casos em que as associações podem ser dissolvidas ou suspensas por decisão judicial devem constar de lei da Assembleia da República ou, havendo autorização legislativa, de decreto-lei do Governo», o artigo 3.º, n.º 1, aqui em apreciação, ofende a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição;
f) A isto acresce que as assembleias legislativas regionais só podem legislar sobre matérias de interesse específico.
Ora, «a extinção das casas do povo não constitui, seguramente, matéria que respeite unicamente às Regiões Autónomas e tão-pouco se conhecem condicionalismos específicos que possam justificar um regime especial (ou excepcional) de extinção das casas do povo situadas nos arquipélagos dos Açores e da Madeira». Daí que deva concluir-se que o artigo 3.º, n.º 1, aqui em causa, «não versa sobre matéria de interesse específico da Região Autónoma dos Açores».
2 - Notificado o autor da norma para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, veio ele dizer:
a) O artigo em causa não viola o direito de liberdade de associação, uma vez que tem como objecto associações que foram criadas administrativamente (v., designadamente, base II da Lei 2144, de 29 de Maio de 1969, e artigo 3.º do Decreto-Lei 4/82, de 11 de Janeiro) e não no uso do direito de liberdade de associação.
Não se trata de extinguir associações puras, submetidas à lei civil, mas sim de associações especiais, com um estatuto especial, que as sujeitava a uma forte tutela administrativa.
O próprio Decreto-Lei 4/82, de 11 de Janeiro, permitia ao Secretário Regional da Saúde e Segurança Social extinguir casas do povo em determinadas circunstâncias, como resultava do disposto no n.º 2 do artigo 10.º deste diploma, com as adaptações constantes do Decreto Regulamentar Regional 31/82/A, de 11 de Agosto.
Extinta uma casa do povo, conforme o disposto no Decreto Legislativo Regional 19/92, nada impede os seus associados, ou outros cidadãos, de constituírem uma nova casa do povo, de acordo com as disposições do Decreto-Lei 246/90, de 27 de Julho, com o mesmo âmbito da extinta e, agora sim, inatingível por uma decisão administrativa.
No mesmo dia em que foi publicado o Decreto-Lei 246/90, de 27 de Julho, foi também publicado o Decreto-Lei 245/90, de 27 de Julho, cujo artigo 5.º, n.º 2, prevê a transferência do património de casas do povo que se encontrem em certas circunstâncias para os centros regionais de segurança social, mediante portaria, sem que tenha sido questionada a sua constitucionalidade face ao direito de liberdade de associação.
O próprio Governo da República aprovou o Decreto-Lei 246/90, de 27 de Julho, ao abrigo do artigo 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, ou seja, legislou sobre matéria não reservada à Assembleia da República;
b) É certo que o direito de associação se integra no elenco dos direitos, liberdades e garantias consagrados constitucionalmente, estando, como tal, sujeito à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Mas o raciocínio que fizemos atrás leva-nos a entender que a Assembleia Legislativa Regional não legislou sobre o direito de associação e sim sobre matéria da sua competência, como veremos adiante;
c) A Assembleia Legislativa Regional invocou a alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição na aprovação do decreto legislativo regional questionado e, portanto, o interesse específico da Região nesta matéria, fundamentado nos vultosos investimentos com instalações efectuados pelo Governo Regional e na utilização generalizada das casas do povo como terminais de segurança social e de saúde, como forma privilegiada de aproximação da Administração aos utentes nesses sectores, situação que não se verifica no todo nacional.
Face a isto, devemos entender que o Decreto-Lei 246/90, de 27 de Julho, não integra o conceito de lei geral, uma vez que não envolve a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional: primeiro porque tal não resulta da letra da lei e segundo porque a razão de ser deste diploma resulta da forma como o Governo da República analisa a situação das casas do povo que estavam na sua dependência e que, portanto, conhecia e não da situação que efectivamente existe nas casas do povo da Região, que é substancialmente diferente da que foi ponderada.
Há um manifesto interesse público, a ser prosseguido pela Região, em manter a utilização das instalações das casas do povo ao serviço da comunidade, já que a sua construção e manutenção tem sido feita exclusivamente à custa de dinheiros públicos. Uma vez que a lei geral da República não cuidou de proteger estes interesses, provavelmente por não existirem no País em geral, cabe à Região defendê-los, através do mecanismo do interesse específico para a Região em matéria de saúde e segurança social, de acordo com o disposto na alínea m) do artigo 33.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Com carácter secundário, mas não menos importante e em ligação com o artigo questionado, a Assembleia Legislativa Regional pretendeu marcar a assunção das responsabilidades da Região em relação ao pessoal admitido com a concordância primeiro da administração central e depois regional. É que este pessoal tem os seus vencimentos assegurados pelas subvenções da Região, atribuídas no contexto da forte tutela a que estavam sujeitas as casas do povo. Ao prever-se a extinção administrativa de algumas casas do povo, em determinadas circunstâncias, cuidou-se de assegurar a transferência dos seus trabalhadores para outras casas do povo que se mantenham em funcionamento.
3 - Cumpre, então, decidir.
II - Fundamentos
4 - Uma questão prévia.Como se referiu atrás, o Ministro da República recebeu o decreto, para assinatura como decreto legislativo regional, em 21 de Setembro de 1992, e só em 30 do mesmo mês e ano é que o pedido de fiscalização preventiva da sua constitucionalidade deu entrada neste Tribunal.
Coloca-se, por isso, a questão de saber se este pedido foi ou não tempestivamente apresentado.
É que o n.º 3 do artigo 278.º da Constituição dispõe que a apreciação preventiva da constitucionalidade - que, diz o n.º 2 do mesmo preceito, os ministros da República podem requerer relativamente a «qualquer norma constante de decreto legislativo regional ou de decreto regulamentar de lei geral da República que lhes tenham sido enviados para assinatura» - «deve ser requerida no prazo de oito dias a contar da data da recepção do diploma».
Portanto - e conforme esclarece o artigo 57.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional -, os respectivos pedidos «devem ser apresentados» (isto é, dar entrada) no Tribunal Constitucional no prazo de oito dias contados da data em que o Ministro da República recebeu o diploma em causa (na hipótese, no prazo de oito dias contados de 21 de Setembro de 1992).
Como se sublinhou no Acórdão 26/84 deste Tribunal e se repetiu no Acórdão 278/89, publicados, o primeiro, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º vol., 1984, pp. 81 e segs., e o segundo no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Junho de 1989, este prazo (de oito dias) é um prazo constitucional (e, por isso mesmo, um prazo substantivo, e não um prazo judicial ou processual), que, assim, não pode ser alongado pela lei ordinária. É, consequentemente, um prazo contínuo, «que corre mesmo nos dias referidos no artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo Civil» (a saber:
durante as férias, domingos, sábados e feriados).
A este prazo (de oito dias) há, no entanto, que juntar a dilação de dois dias, prevista no n.º 2 do artigo 56.º da Lei do Tribunal Constitucional, «destinada a torná-lo plenamente 'exequível' quanto a acertos dos respectivos destinatários» (cf. citado Acórdão 26/84).
Como se escreveu no mencionado acórdão:
[...] não se vê razão para excluir a possibilidade de a lei intervir em matéria de prazos constitucionais a título regulamentar, quer dizer, a título de uma normação complementar da Constituição.
E nesse aresto, depois de se chamar a atenção para que não é lícito ao legislador dispor livremente sobre prazos constitucionais, «derrogando o teor expresso dos preceitos constitucionais, ou subvertendo, afinal, o espírito e o sentido destes», afirma-se que lhe é, no entanto, seguramente, permitido «editar normas destinadas a conferir exequibilidade a tais preceitos». E acrescenta-se:
[...] é perfeitamente admissível que, ao «regulamentar» o prazo do artigo 278.º, n.º 3, da Constituição, o legislador da Lei 28/82 lhe tenha feito acrescer a dilação do n.º 2 do artigo 56.º - uma dilação que há-de ser entendida como destinada à apresentação do requerimento de apreciação da constitucionalidade. Com isso, o legislador não alongou um prazo constitucional substantivo: estabeleceu apenas uma condição para o seu completo aproveitamento.
É esta jurisprudência que ora se reitera.
Por isso, devendo o prazo de que o Ministro da República dispunha - que era de oito dias - ser acrescido da dilação de dois dias, o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade foi tempestivamente apresentado no Tribunal Constitucional em 30 de Setembro de 1992.
De facto, tendo o respectivo decreto sido recebido em 21 de Setembro de 1992, o dia limite para requerer a apreciação da constitucionalidade de qualquer das suas normas era o dia 1 de Outubro de 1992, uma vez que - dispõe o artigo 279.º, alínea b), do Código Civil - «na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia [...] em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr».
Concluindo-se pela tempestividade do pedido, há que passar ao conhecimento do mesmo, começando-se, como parece razoável, pela questão de saber se a Assembleia Legislativa Regional dos Açores tinha ou não competência para editar a norma sub iudicio.
Comecemos, então, por fazer um pouco da história das casas do povo, a fim de lhes surpreender a sua natureza e, bem assim, as áreas e sectores de actuação.
5 - As casas do povo.
5.1 - As casas do povo foram criadas pelo Decreto-Lei 23051, de 22 de Setembro de 1933. A partir do Decreto-Lei 30 710, de 29 de Agosto de 1940, passaram a funcionar como instituições de previdência para o mundo rural. Reorganizadas pela Lei 2144, de 29 de Maio de 1969, foram aí definidas como «organismos de cooperação social, dotados de personalidade jurídica, que constituem o elemento primário da organização corporativa do trabalho rural e se destinam a colaborar no desenvolvimento económico-social e cultural das comunidades locais, bem como a assegurar a representação profissional dos trabalhadores e dos demais residentes na sua área» (cf. base I).
A iniciativa da sua criação podia pertencer aos interessados, às juntas de freguesia, a qualquer autoridade administrativa ou ao Ministro das Corporações e Previdência Social (cf. base II, n.os 1 e 2).
Adquiriam personalidade jurídica com a aprovação, por alvará, dos seus estatutos (cf. base II, n.º 3).
Havia três categorias de sócios: efectivos, contribuintes e protectores. Os sócios protectores eram aqueles cuja contribuição para as receitas da casa do povo era voluntária (cf. base IX).
A função de representação profissional dos trabalhadores agrícolas - que havia sido cometida às casas do povo, pela primeira vez, pelo Decreto-Lei 28 859, de 18 de Julho de 1936 - veio a ser-lhes retirada, após a Revolução de Abril, pelo Decreto-Lei 737/74, de 23 de Dezembro.
Quanto à tarefa de realização da previdência social dos mesmos trabalhadores e demais residentes na sua área (tarefa também cometida às casas do povo pela Lei 2144, que instituiu, para o efeito, um regime geral de previdência e abono de família, um regime especial de previdência e um regime especial de abono de família - cf. bases XXII a XXVII), o Decreto-Lei 549/77, de 31 de Dezembro - diploma que veio instituir um sistema unificado de segurança social - veio estabelecer que, «à medida que forem sendo instalados os serviços locais dos centros regionais de segurança social, serão nele integrados os serviços das casas do povo adstritos à finalidade de segurança social» (cf. artigo 41.º, na redacção introduzida pela Lei 55/78, de 27 de Julho).
5.2 - Foi, entretanto, publicado o Decreto-Lei 4/82, de 11 de Janeiro, que reestruturou novamente as casas do povo.
O legislador, vendo nas casas do povo «autênticos centros comunitários, empenhados no desenvolvimento das populações, contribuindo para a melhoria da sua qualidade de vida, através de diversas acções de animação sócio-cultural» (cf. o respectivo preâmbulo), definiu-as como «pessoas colectivas de utilidade pública, de base associativa, constituídas por tempo indeterminado, com o objectivo de promover o desenvolvimento e o bem-estar das comunidades, especialmente as do meio rural» (cf. artigo 1.º, n.º 1).
Considerando que elas prosseguem fins «de interesse para toda a comunidade» (cf. O preâmbulo), o Estado propôs-se apoiá-las e velar «pelo cumprimento dos seus fins através da Junta Central das Casas do Povo» (cf.
artigo 1.º, n.º 2).
Os apoios do Estado às casas do povo traduziam-se, desde logo, na concessão de subsídios [cf. artigo 16.º, n.º 1, alínea d)] e na disponibilização de fundos públicos para «a construção de instalações», para o «seu apetrechamento» e para o «financiamento das respectivas actividades» (cf.
artigo 16.º, n.º 3).
Os fins das casas do povo são «desenvolver actividades de carácter cultural e social, com a participação dos interessados, e colaborar com o Estado e as autarquias, proporcionando-lhes o apoio que em cada caso se justifique, por forma a contribuírem para a resolução dos problemas da população residente nas respectivas áreas» (cf. Artigo 2.º, n.º 1).
Uma das incumbências das casas do povo era a execução, «por delegação», de «tarefas cometidas a serviços públicos, por forma a aproximá-los das populações» [cf. artigo 2.º, n.º 3, alínea a)]. Desde logo delegada nas casas do povo, ali onde não houvesse um centro local de segurança social, foi «a gestão do regime especial de previdência dos trabalhadores rurais».
(Este regime especial de previdência dos trabalhadores rurais - tal como o regime especial de abono de família dos mesmos trabalhadores, previsto, ele também, pela já citada Lei 2144, de 29 de Maio de 1969, e legislação complementar - veio, mais tarde, a ser substituído pelo regime de segurança social da actividade agrícola, instituído pelo Decreto-Lei 81/85, de 28 de Março, regulamentado pelo Decreto Regulamentar 19/85, de 28 de Março.) Desse regime especial de previdência beneficiavam os trabalhadores, independentemente de serem ou não sócios da casa do povo, pois «a titularidade dos direitos e obrigações» era «independente do vínculo associativo às casas do povo» (cf. artigo 21.º, n.º 1).
Por isso, quem não fosse sócio da casa do povo, mas fosse utente desse regime de previdência, tinha acesso aos respectivos serviços (cf. artigo 9.º, n.º 3). Isto não obstante apenas ser permitida a frequência das casas do povo e a participação nas respectivas actividades de animação sócio-cultural dos sócios e respectivos familiares a seu cargo (cf. artigo 9.º, n.º 1).
Por isso, também, era o orçamento da segurança social que suportava «o pagamento dos encargos da casa do povo com o pessoal» «adstrito à execução de tarefas do âmbito» daquele regime especial de previdência, tal como suportava «uma parte das despesas de administração» (cf. artigo 24.º, conjugado com o artigo 23.º).
O pessoal adstrito a tarefas daquele regime especial seria integrado nos quadros dos centros locais de segurança social, à medida que estes fossem sendo implantados (cf. artigo 23.º).
Os estatutos das casas do povo - cuja aprovação tinha de ser pedida em requerimento subscrito por 50 pessoas em condições de nela se inscreverem (cf. artigo 3.º, n.º 2) - careciam de ser aprovados pelo Ministro dos Assuntos Sociais (cf. artigo 3.º, n.º 1).
O despacho de aprovação tinha de ser publicado no Diário da República, sendo com essa publicação que as casas do povo adquiriam personalidade jurídica (cf. artigo 3.º, n.º 1).
Como o número mínimo de sócios era 50, a Junta Central das Casas do Povo organismo que (salvo no tocante às tarefas delegadas nas casas do povo por serviços públicos) exercia tutela sobre elas - devia propor ao Ministro dos Assuntos Sociais a extinção (ou a sua transformação numa delegação) daquelas que, por um período superior a seis meses, tivessem um número de sócios inferior àquele mínimo (cf. artigos 10.º, n.os 1 e 2, e 20.º, n.os 1 e 2).
Na Região Autónoma dos Açores, a tutela sobre as casas do povo era exercida pela Direcção Regional de Segurança Social. Era a esta, por isso, que cumpria propor ao Secretário Regional dos Assuntos Sociais a extinção das casas do povo (cf. artigos 10.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar Regional 31/82/A, de 11 de Agosto).
(A Junta Central das Casas do Povo veio a ser extinta pelo Decreto-Lei 185/85, de 29 de Maio - cf. artigo 1.º -, tendo as suas competências, «no que respeita ao apoio, fiscalização, exercício de tutela e gestão de pessoal das casas do povo», sido transferidas para os centros regionais de segurança social - cf. artigo 2.º) A qualidade de sócio da casa do povo passou a depender de «pedido de admissão dos interessados e de decisão da direcção» (cf. artigo 6.º, n.º 1), sendo definidos pelos respectivos estatutos «o modo e condições de admissão, saída e exclusão de associados, seus direitos e deveres e sanções pelo não cumprimento destes deveres» [cf. artigo 4.º, alínea c)].
As casas do povo - cujas quotizações viam o seu montante mínimo fixado pelo Ministro dos Assuntos Sociais (cf. artigo 16.º, n.º 2) - careciam de ser autorizadas para adquirir e alienar bens (cf. artigo 26.º).
A mais que as disposições deste Decreto-Lei 4/82, de 11 de Janeiro, passaram a ser supletivamente aplicáveis às casas do povo «as disposições legais aplicáveis às demais associações» - o que, desde logo, remetia para o Decreto-Lei 594/74, de 7 de Novembro, que, justamente, regula o exercício do direito de associação.
Nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, haveriam de ser publicados decretos regulamentares regionais para «execução, com as adaptações consideradas necessárias, do disposto neste diploma» (cf. artigo 34.º), o que nos Açores teve lugar com o Decreto Regulamentar Regional 31/82/A, de 11 de Agosto, já citado.
5.3 - Mais tarde, foi publicado o Decreto-Lei 246/90, de 27 de Julho, que, entre outras disposições do Decreto-Lei 4/82, de 11 de Janeiro, revogou os artigos 1.º, n.º 2, 3.º, 10.º, n.º 2, 16.º, 20.º, n.º 1, e 21.º a 26.º, antes citados. E revogou, bem assim, o artigo 2.º do Decreto-Lei 185/85, de 29 de Maio, que também foi citado atrás.
Este Decreto-Lei 246/90, depois de assinalar que as casas do povo se encontravam numa situação de forte «dependência tutelar, financeira e técnica do sistema de segurança social», afirma que, para ganharem a sua «verdadeira autonomia institucional» e se afirmarem «como pólos dinâmicos e vitalizadores da sociedade civil», necessário se tornava que essas relações de dependência fossem substituídas pela celebração de «acordos de cooperação» com «serviços públicos, autarquias e outras entidades privadas interessadas na prestação de serviços ou na utilização de instalações» (cf. o preâmbulo).
Por este diploma legal, as casas do povo - que continuam a ser pessoas colectivas de utilidade pública de base associativa (cf. o artigo 9.º, que não revogou o artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 4/82) - passaram a reger-se pelas disposições do Código Civil aplicáveis às associações no tocante à sua constituição e extinção e, bem assim, no que se refere ao destino dos bens subsistentes à data dessa extinção (cf. artigo 1.º).
No que concerne à extinção, isto significa, pois, que elas passaram a ficar sujeitas aos artigos 182.º a 184.º do Código Civil, razão por que - para além de poderem extinguir-se por deliberação da assembleia geral, pelo falecimento ou desaparecimento de todos os associados, pela verificação de qualquer causa extintiva prevista no auto constitutivo ou nos estatutos [cf. artigo 167.º, n.º 1, alíneas a), c) e d), do Código Civil] - podem ainda extinguir-se por decisão judicial. Desde logo, pela decisão judicial que declare a sua insolvência [cf.
artigo 182.º, alínea e)].
A extinção por decisão judicial terá ainda lugar nos casos indicados no n.º 2 do artigo 182.º, a saber:
a) Quando o respectivo fim se tenha esgotado ou tornado impossível;
b) Quando não haja coincidência entre o fim real e o fim expresso no acto constitutivo ou nos estatutos;
c) Quando o respectivo fim seja sistematicamente prosseguido por meios ilícitos ou imorais;
d) Quando a sua existência se torne contrária à ordem pública.
A extinção por decisão judicial pode ser requerida pelo Ministério Público ou por qualquer interessado (cf. artigo 183.º, n.º 3, do Código Civil).
Isto vale, naturalmente, para as casas do povo que ainda tinham existência real, não para aquelas que apenas tinham existência legal.
De facto, quanto às casas do povo unicamente afectas a fins de segurança social, que já não dispunham de órgãos constituídos nos termos legais e eram integralmente financiadas por verbas do orçamento da segurança social (que, inclusive, pagava a renda dos imóveis que elas ocupavam), quanto a essas, o membro do Governo responsável pela segurança social, partindo dessa situação de facto (ou seja, partindo do desaparecimento real da casa do povo), transferiria o respectivo património, por portaria, para o centro regional de segurança social da respectiva área (cf. artigo 5.º, n.os 2, 3 e 4, do Decreto-Lei 245/90, de 27 de Julho).
De entre as receitas das casas do povo, que o Estado continua a subsidiar [cf.
artigo 2.º, n.º 2, alínea e)], contam-se as «compensações por serviços prestados ou pela utilização de instalações ao abrigo de acordos ou contratos de cooperação celebrados com serviços públicos e autarquias ou com entidades ou instituições particulares» (cf. artigo 2.º). E mais: «Sempre que as casas do povo prossigam acções de carácter social, designadamente as que se relacionem com a criação e ou financiamento de equipamentos e serviços sociais, podem ser-lhes assegurados apoios financeiros, mediante protocolos a celebrar com o centro regional do respectivo distrito.» (Cf. artigo 7.º, n.º 1.) Os centros regionais de segurança social podem celebrar protocolos com as casas do povo para instalação dos respectivos centros locais (em regra, um centro local por município), sendo que a implantação de serviços locais da segurança social nas instalações das casas do povo «não determina a transição, para a titularidade dos centros regionais de segurança social, da propriedade» ou dos respectivos «contratos de arrendamento». (Ressalva-se, naturalmente, o caso, já referido, em que houve transferência do património das casas do povo para os centros regionais de segurança social.) (Cf. artigos 1.º, n.os 1, 2 e 4 e 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei 245/90, de 27 de Julho.) (O regime especial de segurança social das actividades agrícolas - que, como já atrás se referiu, foi instituído pelo Decreto-Lei 81/85, de 28 de Março, substituindo o regime especial dos fundos de previdência das casas do povo e o regime especial de abono de família dos trabalhadores rurais, previstos na Lei 2144, de 29 de Maio de 1969, e legislação complementar - passou a ser gerido pelo Centro Nacional de Pensões e pelos centros regionais de segurança social - cf. artigo 56.º, n.º 1, do Decreto-Lei 81/85, de 28 de Março.) À medida que estes centros locais de segurança social foram sendo instalados, o pessoal das casas do povo que estava afecto a tarefas de segurança social foi integrado nos quadros dos centros regionais de segurança social (cf. artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 246/90 e artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei 245/90).
5.4 - Das disposições do Decreto-Lei 4/82, ainda subsistentes, e das do Decreto-Lei 246/90 resulta, em síntese, o seguinte:
a) As casas do povo, quanto à sua constituição e extinção e, bem assim, quanto ao destino dos bens, passaram a reger-se pelas disposições do Código Civil, pelo que, desde logo (à parte o caso das casas do povo que, de facto, já não existiam e a cujo património houve, por isso, que dar destino), deixaram de poder ser extintas por decisão administrativa;
b) Logicamente, os seus estatutos deixaram de ter de ser aprovados por despacho ministerial, o mesmo sucedendo com o montante das quotas a pagar pelos associados, cujo número mínimo deixou de ser 50;
c) A aquisição da personalidade jurídica deixou de ficar dependente de publicação no Diário da República de qualquer despacho ministerial de aprovação dos estatutos (cf. artigos 158.º e 168.º do Código Civil);
d) Deixaram de ser tuteladas por organismos estaduais, designadamente pela Junta Central das Casas do Povo, que foi extinta, ou pelos centros regionais de segurança social, e deixaram, bem assim, de estar numa situação de dependência financeira e técnica dos mesmos;
e) Deixaram não apenas de ser instituições de previdência social, mas também de executar tarefas por delegação dos serviços públicos (máximo, dos serviços de segurança social); antes passaram a celebrar acordos ou contratos de cooperação, designadamente para a cedência de instalações com vista à implantação dos centros locais de segurança social;
f) O Estado, continuando, embora, a subsidiá-las por lhes reconhecer «utilidade pública», deixou de assumir o compromisso de concorrer para a construção das suas instalações, para o seu apetrechamento ou para o financiamento das suas actividades;
g) O pessoal das casas do povo afecto a tarefas de segurança social foi sendo integrado nos quadros de pessoal de segurança social;
h) Deixaram de necessitar de autorização ministerial para adquirir e alienar bens.
Pode, assim, concluir-se que as casas do povo começaram por ser organismos corporativos (e, assim, associações públicas) (cf. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1988, p. 366). Com o Decreto-Lei 737/74, de 23 de Dezembro, deixaram de ter a função de representação profissional dos trabalhadores rurais, mas mantiveram-se «como instituições de previdência social» (cf., neste sentido, Parecer da Comissão Constitucional n.º 6/79, publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7.º, pp. 287 e segs.). Entretanto, porém, passaram a desempenhar essas funções de previdência (mais tarde chamadas de segurança social) e outras funções públicas, por delegação; e nesse período, naturalmente, continuaram sujeitas a restrições de carácter público. Com a publicação do Decreto-Lei 246/90, aquelas que, de facto, ainda existem libertam-se da tutela de organismos estaduais e de outras restrições de carácter público e passam a assumir a natureza de verdadeiras associações privadas. Quanto às outras (as que já só tinham existência legal, mas que, em verdade, não existiam), constatado o facto, atribuiu-se o seu património aos centros regionais de segurança social.
As casas do povo são hoje, pois, pessoas colectivas de utilidade pública, constituídas por agrupamentos de pessoas que, no exercício do direito geral de associação, se juntam com o fim de desenvolver «actividades de carácter cultural e social», assim colaborando na resolução dos problemas do mundo rural.
À conclusão a que acaba de chegar-se sobre serem hoje as casas do povo associações particulares não obsta o facto delas terem sido criadas primeiro como organismos cooperativos, transformando-se depois em instituições de previdência social.
É que elas perderam, ope legis, a natureza que até então detinham, para passarem a subsistir, por último (justamente com a publicação do Decreto-Lei 246/90), ope legis também, como afirmação de uma vontade de associação dos particulares que se quiseram manter como seus sócios.
Visto (embora per summa capita) o evoluir das casas do povo, cumpre, agora, averiguar se a norma sub iudicio, que versa sobre a extinção das que existem na Região Autónoma dos Açores (definindo as causas dessa extinção e indicando a entidade competente para a decretar), podia ou não ser editada pela respectiva Assembleia Legislativa Regional.
6 - A questão da competência da Assembleia Legislativa Regional dos Açores.
6.1 - O preceito legal cuja conformidade constitucional cumpre apreciar é o n.º 1 do artigo 3.º do decreto aprovado em 10 de Setembro de 1992 por aquela Assembleia.
Dispõe ele:
1 - O Secretário Regional da Saúde e Segurança Social pode determinar, em despacho fundamentado, no prazo máximo de 180 dias, a extinção das casas do povo que, à data da publicação do presente diploma, se encontrem em qualquer da seguintes situações:
a) Localizadas nas sedes dos concelhos;
b) Não tenham pelo menos 50 sócios com as quotas em dia;
c) Permaneçam há mais de um ano sem órgãos constituídos nos termos legais;
d) Prossigam actividades que não correspondam aos seus fins estatutários de promoção social e cultural e que sejam manifestamente prejudiciais para a comunidade.
Como se lê no preâmbulo, o legislador regional justificou a edição do diploma em causa nos termos seguintes:
A Região Autónoma dos Açores tem seguido uma política própria em relação às casas do povo, traduzida em vultosos investimentos com instalações, numa intensa cooperação técnica e financeira e, sobretudo, na utilização generalizada destas instituições como terminais de segurança social e de saúde, como forma privilegiada de aproximação da Administração aos utentes nos referidos sectores. Esta política conforma um especial interesse da Região em matéria como o pessoal, extinção e destino dos bens que justifica a introdução de medidas tendentes a salvaguardar a manutenção das instalações das casas do povo ao serviço das populações, independentemente da sobrevivência destas instituições assegurar a continuação do programa de descentralização dos serviços de segurança social e de saúde e garantir a segurança no emprego dos trabalhadores.
Se, pois, o diploma a que pertence a norma transcrita viesse a ser assinado como decreto legislativo regional, por força da norma acabada de transcrever, o Secretário Regional da Saúde e Segurança Social podia determinar, em despacho fundamentado, a proferir no prazo máximo de 180 dias, a extinção das casas do povo que, à data da publicação do respectivo diploma, se encontrassem nalgumas das seguintes situações:
a) Acharem-se localizadas em sede de concelho;
b) Não terem, pelo menos, 50 sócios com as quotas em dia;
c) Permanecerem sem órgãos constituídos, nos termos legais, há mais de um ano; ou d) Prosseguirem actividades que não correspondam aos seus fins estatutários de promoção social e cultural e que sejam manifestamente prejudiciais para a comunidade.
Esse despacho de extinção - diz o n.º 2 do mesmo artigo 3.º - deve ser publicado na 2.ª série do Jornal Oficial da Região e indicar os motivos da extinção, o destino do pessoal e o eventual interesse dos serviços de segurança social e de saúde em manterem a utilização das instalações.
Extinta a casa do povo, pela forma indicada e por algum dos fundamentos apontados, o respectivo pessoal seria «integrado nos quadros dos serviços de freguesia dos centros de prestações pecuniárias do Instituto de Gestão de Regime de Segurança Social» (cf. n.º 1 do artigo 1.º) ou, então, transitaria «para outras casas do povo que se mantenham em funcionamento» (cf. artigo 2.º, n.º 1).
Os bens próprios e a posição contratual de arrendatário das casas do povo extintas passariam automaticamente para as respectivas freguesias (cf. artigo 4.º, n.º 1).
6.2 - Pergunta-se então: poderia a Assembleia Legislativa Regional dos Açores editar tal norma? A resposta a esta pergunta é negativa.
As razões são as que seguem.
As assembleias legislativas regionais têm competência para «legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as Regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania» [cf. artigo 229.º, n.º 1, alínea a), conjugado com os artigos 234.º, n.º 1, e 115.º, n.º 3, da Constituição da República].
Significa isto que as assembleias legislativas regionais, quando editarem legislação ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição, se hão-de mover dentro dos limites seguintes.
a) As matérias a tratar hão-de ser de interesse específico para a Região (limite positivo);
b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (limite negativo);
c) Ao tratar legislativamente essas matérias - para além de haverem de obedecer à Constituição -, não podem elas estabelecer disciplina que contrarie «leis gerais da República» (cf., neste sentido, o Acórdão deste Tribunal n.º 326/86, in Diário da República, 1.ª série, de 18 de Dezembro de 1986, que remete para os Acórdãos n.os 91/84, 82/86 e 164/86, publicados no Diário da República, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1984, 2 de Abril de 1986 e 7 de Junho de 1986, respectivamente; cf. também, no mesmo sentido, os Acórdãos n.os 246/90, in Diário da República, 1.ª série, de 3 de Agosto de 1990, 92/92, in Diário da República, 1.ª série, de 14 de Abril de 1992, 212/92, in Diário da República, 1.ª série, de 21 de Julho de 1992, e 256/92, in Diário da República, 1.ª série, de 6 de Agosto de 1992).
6.3 - Deste modo, pois, o que, antes de mais, interessa averiguar é se a matéria sobre que versa o mencionado artigo 3.º, n.º 1, é ou não de interesse específico para a Região Autónoma dos Açores, pois, não se verificando essa especificidade da matéria (ou achando-se esta reservada à competência dos órgãos de soberania), não pode o poder normativo regional intervir nela, sequer, para reproduzir a legislação nacional eventualmente existente, transformando-a em legislação regional (cf., entre outros, o citado Acórdão 92/92).
A resposta a esta pergunta é negativa.
Não existe, de facto, no caso, como se verá, interesse específico para a Região Autónoma dos Açores que possa justificar a edição de uma norma como a do n.º 1 do artigo 3.º pela respectiva Assembleia Legislativa Regional.
Este Tribunal tem entendido que matérias de interesse específico são as que, não estando reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (se estiverem reservadas, não há interesse específico capaz de legitimar a intervenção do poder normativo regional - cf. Acórdão 160/86, in Diário da República, 2.ª série, de 1 de Agosto de 1986), respeitem exclusivamente às Regiões ou nelas exijam especial tratamento, por aí assumirem uma configuração especial também (cf. Acórdão 42/85, in Diário da República, 1.ª série, de 6 de Abril de 1985, e ainda os já citados Acórdãos n.os 92/92, 212/92 e 256/92).
6.4 - Pois bem: as casas do povo existem, como atrás se viu, em todo o Pais, e não apenas na Região Autónoma dos Açores. Têm em todo o lado a mesma natureza e prosseguem os mesmos fins, pois o quadro legal que as rege foi pensado para o todo nacional, apenas tendo sido deixada às Regiões Autónomas a tarefa de promover a execução desse quadro legal, nos respectivos territórios, mediante a edição de decretos regulamentares regionais. Não apenas nos Açores, mas em todo o País, as casas do povo foram instituições de previdência social, passando, depois, a executar tarefas de segurança social (e de outros serviços públicos), por delegação (serviram, pois, «como terminais de segurança social e de saúde») - coisa que, recorda-se, hoje já não sucede. Também não foi apenas nos Açores, mas em todo o País, que se investiram fundos públicos na construção de instalações de casas do povo e no seu apetrechamento.
Isto se recorda para pôr em destaque que a extinção das casas do povo (designadamente no que concerne à tipificação das respectivas causas e à definição da entidade com competência para a decretar) - que, como se viu, é do que trata a norma sub iudicio - não é matéria que diga unicamente respeito aos Açores. Por outro lado, não se vê que haja aspectos dela que lhes respeitem exclusivamente ou que neles se apresentem com um recorte peculiar ou especial.
Mas, sendo isto assim, há que concluir que, como logo começou por advertir-se, não existe interesse específico capaz de legitimar a intervenção do poder normativo regional açoriano.
O poder normativo regional, destinando-se a regular matérias que respeitem exclusivamente a uma região autónoma ou aspectos delas que só aí se verifiquem ou que, pelo menos, lá tenham especificidades que reclamem um tratamento especial, só pode produzir «um ordenamento (especial) complementar do ordenamento jurídico nacional», e não «um ordenamento paralelo ou de substituição deste último» (cf. o Acórdão 92/92, já citado).
A norma sub iudicio, logo por aqui, viola, pois, a alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição, que prescreve:
1 - As Regiões Autónomas são pessoas colectivas de direito público e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:
a) Legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as Regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania.
6.5 - Mas a violação do preceito constitucional acabado de transcrever decorre também do facto de a norma sub iudicio, versar matéria que se acha reservada à competência própria da Assembleia da República.
Dispõe, com efeito, o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição:
1 - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
...........................................................................................................................
b) Direitos, liberdades e garantias.
Em matéria de «direitos, liberdades e garantias», só, pois, a Assembleia da República (ou o Governo, munido de autorização legislativa) pode definir o respectivo regime legislativo, neste se incluindo, seguramente, a definição das causas de extinção das associações privadas e da entidade com competência para a decretar, que, como adiante se verá (à parte o caso de autodissolução), só pode ser o juiz.
É, na verdade, às associações privadas - que não às associações públicas - que se refere o artigo 46.º, n.º 1, da Constituição da República, quando garante a todos os cidadãos «o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei» [sobre isto, cf. os Pareceres n.os 1/78, 2/78 e 6/79, aqueles publicados no vol. 4.º dos Pareceres da Comissão Constitucional, pp. 180 e 151, e o último já atrás citado, os Acórdãos deste Tribunal n.os 46/84 e 497/89, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Julho de 1984 e de 1 de Fevereiro de 1990, respectivamente, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. I, Coimbra, 1984, p. 46, anotação XI, Jorge Miranda, «Liberdade de trabalho e profissão», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXX (III da 2.ª série), p. 159, e Rogério Ehrhardt Soares, «A Ordem dos Advogados. Uma corporação pública», in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124.º, pp. 226 e 227].
Ora, como atrás se viu, as casas do povo, presentemente, são associações privadas.
A legislação relativa à sua extinção há-de ter, por isso, natureza parlamentar ou ser parlamentarmente autorizada.
Os decretos legislativos regionais não podem, com efeito, versar sobre matérias reservadas à Assembleia da República (cf. também o n.º 3 do artigo 115.º da Constituição).
A norma sub iudicio (versando sobre a extinção das casas do povo existentes nos Açores e fazendo parte de um decreto aprovado pela respectiva Assembleia Legislativa Regional para vigorar como decreto legislativo regional), também, pois, por invadir a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, viola o artigo 229.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, agora conjugada com a alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º, também da lei fundamental.
7 - A questão da violação do artigo 46.º da Constituição.
7.1 - Dispõe como segue o artigo 46.º da Constituição:
1 - Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2 - As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
3 - Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela.
4 - Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações que perfilhem ideologia fascista.
Os cidadãos têm, pois, o direito de, sem impedimentos nem imposições por parte do Estado, constituir associações, filiar-se em associações já existentes, não entrar em qualquer associação senão por sua livre e espontânea vontade e sair de associação em que se tenham inscrito (cf. n.os 1 e 3 do artigo 46.º).
As associações, elas próprias, uma vez constituídas, gozam do direito de se organizarem livremente e de, livremente também, prosseguirem a sua actividade (princípio da auto-organização e da autogestão das associações - cf. n.º 2 do artigo 46.º).
Isto não impede, obviamente, o legislador de fixar regras gerais imperativas de organização e gestão das associações. Questão é que essas regras não tornem o exercício do direito de associação particularmente oneroso.
O direito de associação apresenta-se, assim, fundamentalmente, como um direito de defesa perante o Estado.
O Estado não pode, na verdade, interferir na constituição das associações, desde que, claro é, elas se não destinem a promover a violência e se não proponham fins contrários à lei penal, nem sejam associações armadas, de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem perfilhem ideologia fascista. Por outro lado, o Estado também não pode intrometer-se na organização e na vida interna das associações. Finalmente, as associações (salvo no caso de deliberarem a sua própria dissolução) só podem ser dissolvidas (ou ver suspensas as suas actividades) mediante decisão judicial (reserva de decisão judicial) e desde que se verifique alguma causa de extinção expressamente prevista na lei (princípio da tipicidade) [cf., sobre isto, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., vol. I, pp. 263 e segs., Jorge Miranda, «Liberdade de associação e alteração aos estatutos sindicais», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XVIII (I da 2.ª série), pp. 161 e segs., e Rogério Ehrhardt Soares, «A Ordem dos Advogados. Uma corporação pública», in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124.º, pp.
226 e 227].
Tudo quanto acaba de dizer-se vale para as casas do povo, que, como se disse, são hoje associações privadas.
7.2 - Pois bem: na norma sub judicio - para além de se preverem causas de extinção das casas do povo não constantes da lei [cf. artigo 182.º do Código Civil, em confronto com o dito artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e b), parte final da alínea d) e alínea c), na qual se vai além da previsão do n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 245/90, de 27 de Julho, já citado] - prevê-se que tal extinção seja decretada pelo Secretário Regional da Saúde e Segurança Social.
Tal norma viola, pois, o artigo 46.º, n.º 2, da Constituição da República.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º, n.º 1, do decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores em 10 de Setembro de 1992, sobre «pessoal, extinção e destino dos bens das casa do povo», com fundamento em violação dos artigos 46.º, n.º 2, e 229.º, n.º 1, alínea a), este conjugado com o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), todos da Constituição da República Portuguesa.Lisboa, 14 de Outubro de 1992. - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Armindo Ribeiro Mendes - Fernando Alves Correia [com a declaração de que votei o conhecimento do pedido não tanto pela doutrina explanada no aresto a propósito da sua tempestividade - sobre cujo acerto tenho algumas dúvidas -, mas antes pela necessidade de não defraudar as expectativas criadas ao requerente pelas anteriores decisões deste Tribunal (Acórdãos n.os 26/84 e 278/89) quanto à interpretação da norma constitucional que estabelece o prazo para apresentação dos pedidos de fiscalização preventiva pelos Ministros da República para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira] - Vítor Nunes de Almeida (com a declaração de que a resolução da questão prévia, na senda das decisões anteriores do Tribunal referidas no acórdão, me suscita algumas dúvidas, que, todavia, não considero, de momento e a benefício de melhor estudo, suficientes para inverter, neste caso, a jurisprudência do Tribunal) - Mário de Brito (com a reserva - quanto à questão prévia - que decorre da parte final da declaração de voto que fiz no Acórdão 26/84)
Bravo Serra
(vencido, de harmonia com a declaração de voto que junto, e respeitantemente quanto à questão prévia) - Luís Nunes de Almeida (vencido quanto à questão prévia, nos termos da declaração de voto junta) - Maria da Assunção Esteves (vencida, quanto à questão prévia, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Vencido quanto à questão prévia, já que entendo que ao prazo estipulado no n.º 3 do artigo 278.º da Constituição não deve ser aditada qualquer dilação.Trata-se, no meu entender, de um prazo que, por estar fixado na Constituição, não pode, por via de um raciocínio que aponta para uma «exequibilidade» do poder conferido aos Ministros da República pelo n.º 2 daquele artigo 278.º (raciocínio que é o seguido no acórdão), ser, na prática, aumentado pelo legislador ordinário.
Isto equivale a dizer que o n.º 2 do artigo 56.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (sob pena de, a meu ver, em hipótese contrária, poder ser perspectivado como ofendendo a lei fundamental), deve ser interpretado como dirigindo-se, e unicamente, aos prazos processuais fixados nos precedentes artigos e nos da secção II do subcapítulo I do capítulo II do título II daquela lei.
A fixação de um prazo constitucional, na minha óptica, não concede ao legislador ordinário uma «liberdade para o conformar» mediante o aditamento de outros prazos que, embora sob denominação diferente, até, por hipótese, poderia dilatá-lo para mais do dobro do estipulado no diploma básico, o que, justamente, constituirá um factor de insegurança que a previsão constitucional de um prazo quis criar.
Adito ainda que, nos casos de propositura de uma acção visando o exercício de um direito sujeito, verbi gratia, a um prazo de caducidade (e sem com isto querer significar minimamente que o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade possa ser tratado de forma semelhante àquela propositura), nunca se haveria de ter em consideração, para se aferir da tempestividade de tal exercício, o aditamento, ao prazo de caducidade, de qualquer dilação.
Daí que tivesse propugnado pelo não atendimento, por extemporaneidade, do presente pedido. - Bravo Serra.
Declaração de voto
Votei vencido quanto à questão prévia, na sequência da mudança de orientação anunciada na declaração de voto que juntei ao Acórdão 278/89.Entendo, hoje, com maior convicção, que não é admissível que a lei ordinária venha, seja a que título for, alongar um prazo constitucional substantivo.
E se a jurisprudência decorrente do Acórdão 26/84, no sentido de considerar aplicável, in casu, a dilação de dois dias, prevista no n.º 2 do artigo 56.º da Lei do Tribunal Constitucional, se pode entender, no contexto da época, como uma jurisprudência pragmática, tendo em conta o prazo exíguo de cinco dias concedido para a solicitação da apreciação preventiva da constitucionalidade e as dificuldades de comunicação existentes entre o continente e os arquipélagos dos Açores e da Madeira, a verdade é que a realidade fáctica se alterou, entretanto, profundamente.
Por um lado, como é sabido, o prazo constitucional em causa foi alongado para oito dias, em resultado da revisão constitucional de 1989. E, por outro lado, a evolução tecnológica transformou radicalmente o sistema de comunicações ainda existente em 1984, designadamente com a generalização do uso da telecópia, hoje, aliás, já permitido na prática de actos judicais, desde a publicação do Decreto-Lei 28/92, de 27 de Fevereiro.
Consequentemente, nada justifica ainda a manutenção da referida jurisprudência pragmática, pelo que se deveria, na minha opinião, ter considerado o pedido como extemporâneo, dele não se tomando conhecimento. - Luís Nunes de Almeida.
Votei contra a decisão relativa à questão prévia, pois não considero tempestivo o requerimento de fiscalização preventiva apresentado pelo Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores.
A norma do artigo 278.º, n.º 3, da Constituição, que determina que «a apreciação preventiva da constitucionalidade deve ser requerida no prazo de oito dias a contar da data da recepção do diploma», não é, do meu ponto de vista, susceptível de qualquer modificação por lei ordinária.
A solução do acórdão assenta na ideia de que a norma do artigo 56.º, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, é aplicável ao prazo constitucional de fiscalização preventiva, nos casos em que o requerente seja ministro da República. O fundamento é o de que a dilação de dois dias, ali prevista, viria superar a desigualdade que do prazo único estabelecido na Constituição resultaria para as várias entidades requerentes daquela espécie de fiscalização.
Este fundamento resulta, porém, de uma argumentação paradoxal, que vai ligada à jurisprudência em que se firma a tese do acórdão: os prazos constitucionais não se podem modificar, mas optimiza-se o seu aproveitamento - e modificam-se; os prazos constitucionais não são susceptíveis de regulamentação, mas, em homenagem à igualdade que a Constituição «não soube acautelar», regulamentam-se.
Esta argumentação afigura-se-me logicamente incoerente e juridicamente insustentável. Os prazos constitucionais não existem à disposição do legislador nem do intérprete. A sua modificação, pese, embora, a melhor das intenções, envolve uma metodologia de interpretação irrestrita do direito constitucional. - Assunção Esteves.