Acórdão 431/94
Processo 207/94
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores veio requerer, em processo de fiscalização preventiva, a apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 78.º e 80.º do decreto aprovado pela respectiva Assembleia Legislativa Regional em 17 de Março de 1994 e recebido, para assinatura, em 29 de Abril de 1994 (relativo ao Estatuto das Vias de Comunicação Terrestre na Região), as quais, em seu entender, violam, respectivamente, os artigos 229.º, n.º 1, alínea a), e 115.º, n.º 3 [conjugados com o artigo 168.º, n.º 1, alínea c)], e 62.º, n.º 1 (conjugado com os artigos 17.º e 18.º, n.º 2), todos da Constituição da República Portuguesa.
Para fundamentar o pedido, diz, em síntese, o requerente:
a) O artigo 78.º, ao estatuir que «o desrespeito pelos actos administrativos que determinam o embargo, a demolição e a reposição do terreno na situação anterior à infracção é considerado crime de desobediência, nos termos do artigo 388.º do Código Penal», versa sobre matéria que não é de interesse específico regional, pois a «definição de crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos» é da reserva relativa de competência da Assembleia da República.
b) O artigo 80.º, ao determinar que têm carácter urgente todas as expropriações de bens imóveis para a construção, alargamento ou melhoramento das vias a que se refere o respectivo decreto e, bem assim, as expropriações de terrenos situados nas proximidades dessas vias, que sejam necessárias para as obras complementares destas, dispensando, consequentemente, a realização de diligências prévias para aquisição dos bens por qualquer meio de direito privado e, bem assim, o inquérito público, simplificando a instrução do pedido e permitindo que a expropriante entre logo na posse do bem a expropriar, introduz uma restrição desproporcionada no direito de propriedade, que, «pelo menos no seu núcleo garantístico essencial, tem de considerar-se incluído na reserva parlamentar definida» na alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.
2 - Notificado para responder, querendo, veio o Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores dizer, em síntese, o seguinte:
a) O artigo 78.º «não interfere com as matérias pertencentes à reserva legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, uma vez que esta norma, ainda que com carácter remissivo, limita-se a indicar a legislação penal a que se encontram sujeitas as condutas definidas nos artigos 76.º e 77.º».
b) Tal preceito «não ofende qualquer norma ou princípio ínsito na Constituição, nem inclui matéria da reserva legislativa dos órgãos de soberania».
3 - Cumpre decidir se os artigos 78.º e 80.º do decreto aqui sub iudicio são ou não inconstitucionais.
II - Fundamentos
4 - O decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores em 17 de Março de 1994, relativo ao Estatuto das Vias de Comunicação Terrestre na Região Autónoma dos Açores, é um diploma composto por 85 artigos, agrupados em 8 capítulos.
O capítulo I (artigos 1.º a 3.º) contém disposições gerais e integra as vias de comunicação terrestre existentes na Região em três grupos: rede regional, rede municipal e rede florestal. O capítulo II (artigo 4.º a 17.º) trata das características das vias, sejam elas vias rápidas, estradas regionais (de 1.ª ou 2.ª classes), estradas municipais, caminhos municipais (de 1.ª ou 2.ª classes), caminhos florestais (principal ou secundário) ou estradões florestais. O capítulo III (artigos 18.º a 40.º) é relativo ao tratamento e gestão das vias: define a zona da via, a zona de protecção da via e a área de protecção da paisagem e ambiente e regula a demarcação, as condições de circulação, a arborização e o cadastro das vias. O capítulo IV (artigos 41.º a 61.º) trata da protecção das vias, contendo restrições de utilidade pública (proibições relativas à zona da via, utilizações condicionadas a aprovação, licença ou autorização, conservação, manutenção e limpeza de testadas) e servidões administrativas. O capítulo V (artigos 62.º a 67.º) regula as autorizações, aprovações e licenças. O capítulo VI (artigos 68.º a 71.º) trata das taxas a cobrar pelas autorizações e licenças. O capítulo VII (artigos 72.º a 78.º) é relativo à fiscalização e sanções. O capítulo VIII (artigos 79.º a 85.º) contém disposições finais, entre elas conta-se o artigo 85.º, que revoga o Decreto Legislativo Regional 32/88/A, de 25 de Julho, o qual regulava «a conservação, manutenção e limpeza dos limites dos prédios confinantes com vias públicas municipais», abrangendo os «prédios confinantes com caminhos municipais ou vicinais, veredas e servidões ou serventias legalmente autorizadas e abertas ao público» (cf. artigo 1.º, n.os 1 e 2, desse Decreto Legislativo Regional 32/88/A).
O regime jurídico das vias públicas de comunicação terrestre constava da Lei 2037, de 19 de Agosto de 1949, que aprovou o Estatuto das Estradas Nacionais, prevendo a publicação de legislação especialmente aplicável às estradas nacionais das ilhas adjacentes (cf. artigo 174.º); do Decreto-Lei 34593, de 11 de Maio de 1945 (alterado por vários diplomas posteriores), que continha o plano rodoviário nacional (e, assim, a classificação e a definição das características das estradas nacionais); do Decreto-Lei 13/71, de 23 de Janeiro, que - para além de ter revogado várias disposições daquele Estatuto (cf. artigo 19.º) - contém várias proibições e sujeita a aprovação, autorização ou licença a prática de vários actos, relativamente à zona da estrada nacional e, bem assim, à zona de protecção da mesma, e da Lei 2110, de 19 de Agosto de 1961, que continha o Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais.
O Decreto-Lei 380/85, de 26 de Setembro, revogou aquele Decreto-Lei 34593, de 11 de Maio de 1945 (cf. artigo 14.º), e aprovou o novo plano rodoviário do continente (cf. artigos 1.º e 13.º, n.º 2). Além disso, anunciou que, «no prazo de seis meses, o Governo aprovará o diploma regulamentador da rede municipal», do qual haveriam de constar «as estradas nacionais a desclassificar, que se integrarão na rede municipal em consequência do plano rodoviário nacional contido no presente decreto-lei» (cf. artigo 13.º, n.os 1 e 2).
Este Decreto-Lei 380/85 - depois de dizer que «as comunicações públicas rodoviárias do continente desempenham funções de interesse nacional e internacional» (cf. artigo 1.º) - integrou-as em duas categorias: a rede nacional fundamental, constituída pelos itinerários principais, e a rede nacional complementar, constituída pelos itinerários complementares e por outras estradas.
Entretanto, pelo Decreto-Lei 697/74, de 6 de Dezembro, tinha sido aprovado, «a título provisório, o plano de estradas e caminhos municipais das ilhas adjacentes» (cf. artigo 1.º).
Feito este breve apanhado, passemos à apreciação das normas que vêm questionadas sub specie constitutionis.
5 - O artigo 78.º:
5.1 - Este artigo 78.º dispõe como segue:
Artigo 78.º
Crime de desobediência
O desrespeito dos actos administrativos que determinem o embargo, a demolição e a reposição do terreno na situação anterior à infracção é considerado crime de desobediência, nos termos do artigo 388.º do Código Penal.
O artigo 388.º do Código Penal preceitua, justamente, como segue:
Artigo 388.º
Desobediência
1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimo que tenham sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente será punido com prisão até 1 ano e multa até 30 dias.
2 - A mesma pena será aplicada se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência simples.
3 - A pena será a de prisão até 2 anos e multa até 100 dias se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência qualificada.
5.2 - Sustenta o requerente que, se o sentido do artigo 78.º for o de prescrever que apenas «o desrespeito dos actos administrativos que determinem o embargo, a demolição e a reposição do terreno na situação anterior à infracção» é punido como crime de desobediência - e não já, por exemplo, «o não cumprimentos dos actos administrativos relativos à 'conservação, manutenção e limpeza de testadas' (artigos 45 e 46.º) e à remoção de sebes vivas ou de vedações (artigo 51.º)» -, então, a norma aqui sub iudicio é uma norma descriminalizadora, pois também as condutas por último indicadas são subsumíveis ao artigo 388.º do Código Penal, já que representam falta de «obediência devida a ordem ou mandado legítimo», emanado de «funcionário competente». Se, porém, o artigo 78.º não tivesse qualquer efeito descriminalizador, então - acrescenta o requerente - haveria de reconhecer-se-lhe natureza interpretativa (interpretação autêntica, pois «pretende-se vincular o decidente» a uma certa interpretação do artigo 388.º do Código Penal) - alcance, este último, que o autor da norma lhe recusa. Em qualquer destes casos, e uma vez que a interpretação autêntica não pode ser feita «por um órgão que não tem competência para emanar a norma interpretanda», a Assembleia Legislativa Regional - diz o requerente - teria legislado sobre matéria da competência reservada da Assembleia da República - recte, sobre a «definição de crimes, penas [...]». Se o artigo 78.º for uma simples norma remissiva (com o que concorda o autor da norma), sem qualquer sentido inovador, ele continuaria a ser - diz o requerente - inconstitucional, pois não haveria interesse específico para a sua produção.
5.3 - A Assembleia Legislativa Regional dos Açores não detém competência para produzir uma norma como a do artigo 78.º atrás transcrito, como vai ver-se.
De facto, as Assembleias Legislativas Regionais têm competência para «legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as Regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania» [cf. artigo 229.º, n.º 1, alínea a), conjugado com os artigos 234.º, n.º 1, e 115.º, n.º 3, da Constituição da República].
Significa isto que as Assembleias Legislativas Regionais, quando editarem legislação ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição, se hão-de mover dentro dos limites seguintes:
a) As matérias a tratar hão-de ser de interesse específico para a Região (limite positivo);
b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (limite negativo);
c) Ao tratar legislativamente essas matérias - para além de haverem de obedecer à Constituição -, não podem elas estabelecer disciplina que contrarie «leis gerais da República» [cf., neste sentido, o Acórdão deste Tribunal n.º 326/86 (Diário da República, 1.ª série, de 18 de Dezembro de 1986, que remete paa os Acórdãos n.os 91/84, 82/86, e 164/86, publicados no Diário da República, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1984, 2 de Abril de 1986 e 7 de Junho de 1986, respectivamente); cf. também, no mesmo sentido, os Acórdãos n.os 246/90 (Diário da República, 1.ª série, de 3 de Agosto de 1990), 92/92 (Diário da República, 1.ª série-A, de 14 de Abril de 1992), 212/92 (Diário da República, 1.ª série-A, de 21 de Julho de 1992), 256/92 (Diário da República, 1.ª série-A, de 6 de Agosto de 1992), 328/92 (Diário da República, 1.ª série-A, de 12 de Novembro de 1992) e 235/94 (Diário da República, 1.ª série-A, de 2 de Maio de 1994)].
Interessa, então, saber se a matéria sobre que incide o artigo 78.º está ou não reservada «à competência própria dos órgãos de soberania». Até porque, para além de, no caso, se não descobrir a existência de qualquer interesse específico - que só existe quando a matéria em causa respeitar exclusivamente à Região ou nela exigir um tratamento especial, por aí assumir uma configuração especial também (cf. o Acórdão 42/85, in Diário da República, 1.ª série, de 6 de Abril de 1985, e, por último, o citado Acórdão 328/92) -, para além disso, ali «onde esteja uma matéria reservada à 'competência própria dos órgãos de soberania', não há interesse específico para as Regiões que legitime o poder legislativo das Regiões Autónomas» (cf. Acórdão 160/86, Diário da República, 2.ª série, de 1 de Agosto de 1986).
Pois bem: no caso, o artigo 78.º, aqui qualifica como crime de desobediência (a punir nos termos do artigo 388.º do Código Penal) «o desrespeito dos actos administrativos que determinem o embargo, a demolição e a reposição do terreno na situação anterior à infracção».
Ora, prescreve o artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição que «é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: c) definição de crimes, penas [...]». Ou seja: pertence à Assembleia da República tanto a criminalização de condutas, como a sua descriminalização (cf. Acórdão 56/84, Diário da República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984).
O artigo 78.º, aqui sub iudicio, ao qualificar como crime de desobediência as condutas que descreve, versa matéria da competência reservada da Assembleia da República, desse modo violando o artigo 229.º, n.º 1, alínea a), da lei fundamental (cf. também o artigo 115.º, n.º 3), conjugado com a alínea c) do n.º 1 do artigo 168.º, igualmente da Constituição.
Para assim concluir, é desnecessário decidir aqui se tal normativo tem um efeito descriminalizador ou um alcance interpretativo. Suficientemente relevante é que, em tal preceito, define-se, autonomamente, um específico crime de desobediência - e isso só a Assembleia da República (ou o Governo por ela autorizado) podem fazer.
6 - O artigo 80.º:
6.1 - O artigo 80.º dispõe como segue:
Artigo 80.º
Expropriações
1 - As expropriações de bens imóveis para a construção, alargamento ou melhoramento das vias a que se refere o presente diploma consideram-se urgentes.
2 - O disposto no número anterior é aplicável às expropriações de terrenos nas proximidades das vias necessárias para as obras complementares destas, designadamente:
a) Sinalização e demarcação;
b) Estabelecimento de recintos para depósito de materiais e parques de estacionamento de veículos;
c) Construção de edifícios para instalação do pessoal e dos serviços das vias ou para outros fins relacionados com os mesmos;
d) Arborização;
e) Outras obras ou trabalhos indispensáveis à protecção e embelezamento das vias.
Trata-se de norma de teor idêntico ao do artigo 161.º e § único do Estatuto das Estradas Nacionais (aprovado pela Lei 2037, de 19 de Agosto de 1949), que reza assim:
Art. 161.º As expropriações de bens imóveis para construção, alargamento ou melhoramento de estradas nacionais consideram-se urgentes e realizar-se-ão nos termos da legislação que regular as expropriações por arbitragem.
§ único. O disposto no corpo deste artigo é aplicável às expropriações dos terrenos, nas proximidades das estradas nacionais, necessários para as obras complementares desta, tais como:
a) Sinalização e demarcação;
b) Estabelecimento de recintos para depósito de materiais e parques de estacionamento de veículos;
c) Construção de edifícios para instalação do pessoal e dos serviços de estradas ou para outros fins relacionados com os mesmos serviços;
d) Arborização, nos termos do presente Estatuto;
e) Outras obras intimamente ligadas com a protecção ou embelezamento das referidas estradas.
(Cf., identicamente, o artigo 103.º e seu § único do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei 2110, de 19 de Agosto de 1961.)
6.2 - O requerente entende que o regime constante deste normativo - para além de implicar «uma clara derrogação ao regime consagrado nos artigos 2.º a 13.º do Código das Expropriações» - «não se harmoniza com o princípio da proporcionalidade», pois prescinde «de uma adequada ponderação do caso concreto», atribuindo-se, em abstracto, carácter de urgente à expropriação. Ora - acrescenta -, «'a exigência da análise da relação de meios e fins, pressuposta pelo princípio da proporcionalidade' (Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 198) elimina, neste domínio, a liberdade de conformação do legislador, ou seja, a lei não pode impor o carácter urgente da expropriação nos casos em que, face às circunstâncias concretas, seja possível utilizar o processo de expropriação ordinário».
6.3 - Os bens imóveis e direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública, compreendida nas atribuições da entidade expropriante, mediante o pagamento de justa indemnização - diz o artigo 1.º do Código das Expropriações [aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro, editado no uso da autorização legislativa concedida pela Lei 24/91, de 16 de Julho, e nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição].
A autorização legislativa tornou-se necessária, porque é da exclusiva competência da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo) legislar sobre o «regime geral da requisição e da expropriação por utilidade pública» [cf. alínea c) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição].
A requisição e a expropriação por utilidade pública - prescreve o n.º 2 do artigo 62.º da Constituição - só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
A expropriação por utilidade pública priva o particular do seu direito de propriedade sobre o imóvel expropriado.
Ora, o direito de propriedade privada - tal como se sublinhou no Acórdão 404/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 10.º, pp. 391 e segs.) -, embora a Constituição o não emunere entre os chamados «direitos, liberdades e garantias», «deve entender-se que é um direito fundamental a estes análogo e sujeito, por consequência e por força do artigo 17.º da Constituição, ao respectivo regime jurídico (incluindo aí a reserva parlamentar), se não porventura em todos os aspectos do seu estatuto e regulamentação, ao menos naqueles [...] que são verdadeiramente significativos e determinantes da sua caracterização como garantia constitucional (neste sentido, e até mais amplamente, v. já o parecer 32/82 da Comissão Constitucional; cf., também, não o excluindo, os Acórdãos n.os 1/84 e 14/84 deste Tribunal) - um direito, assim, «cujo regime, pelo menos no seu núcleo garantístico essencial, tem de considerar-se incluído na reserva parlamentar definida» na alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (ibidem).
A expropriação por utilidade pública, configurando-se como um acto ablativo de um dos direitos dos cidadãos (recte: do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real sobre imóveis), só pode ter lugar - prescreve o artigo 2.º, n.º 1, do respectivo Código - «após se ter esgotado a possibilidade de aquisição por via do direito privado, salvo nos casos em que lhe seja atribuído carácter de urgência [...]».
A utilidade pública só pode ser declarada, fazendo a entidade expropriante prova documental das diligências efectuadas, com vista à aquisição do bem, por via do direito privado, indicando as razões do respectivo inêxito e juntando os relatórios apresentados pelas partes [cf. artigos 10.º, n.º 1, e 12.º, n.os 1 e 2, alínea g), do Código]. Mesmo quando «resultante genericamente da lei ou regulamento», deve tal declaração ser «concretizada em acto administrativo que individualize os bens a expropriar, valendo este acto como declaração de utilidade pública para efeitos do presente diploma» (cf. artigo 10.º, n.º 2, do Código).
Compreende-se que a utilidade pública da expropriação tenha sempre de ser concretizada em acto administrativo.
De facto, ela constitui pressuposto de legitimidade da própria expropriação, pois que, assentando esta na prevalência do interesse público sobre o interesse do particular à conservação dos bens que possui em propriedade, se o seu fim não for a realização de uma utilidade pública específica, carece ela de todo o fundamento (cf., neste sentido, Fernando Alves Correia, na Introdução ao Código das Expropriações, Aequitas, Editorial Notícias, 1992, p. 18).
Este autor (ob. cit., p. 19), justamente a propósito do artigo 10.º, n.º 2, do Código, escreve o seguinte:
Na sequência deste dispositivo legal não é possível realizar uma expropriação apenas com base numa declaração de utilidade pública que resulte genericamente de uma lei ou de um regulamento, é necessário, ainda, que àquela suceda um acto administrativo que a concretize e que individualize os bens a expropriar, valendo apenas este acto como declaração de utilidade pública.
O carácter urgente da expropriação - que, recorda-se, dispensa o expropriante de esgotar, previamente, a possibilidade de aquisição do bem por via de direito privado (cf., artigo 2.º, n.º 2) e que lhe abre a possibilidade de tomar imediatamente posse administrativa do mesmo (cf. artigos 13.º, n.º 2, e 17.º, n.º 1) - pode ser-lhe atribuído para obras de interesse público (cf. artigo 13.º, n.º 1), devendo a decisão que o atribua ser fundamentada (cf. artigo 13.º, n.º 2).
Nas Regiões Autónomas, a declaração de utilidade pública da expropriação (e, assim, a atribuição de carácter urgente) é da competência do Governo Regional e reveste a forma de resolução (cf. artigo 86.º, n.º 1, na redacção do artigo 71.º da Lei 2/92, de 9 de Março), salvo se se tratar de expropriações necessárias à realização de obras de iniciativa do Estado ou serviços dependentes do Governo da República, pois, nesse caso, a competência é do Ministro da República (cf. citado artigo 86.º, n.º 2).
Alguns destes princípios (e outros que, aqui, não importa considerar), que o Código das Expropriações consagra, não podem deixar de ser havidos como fazendo parte do «regime geral [...] da expropriação por utilidade pública», a que se refere o artigo 168.º, n.º 1, alínea e), da Constituição. A esse regime geral pertencem, seguramente, os seguintes princípios:
a) A expropriação há-de surgir sempre como última ratio: primeiro, deve tentar-se a aquisição dos bens pelo recurso a instrumentos jurídico-privados (cf. artigo 2.º, n.º 1).
É essa uma exigência do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso;
b) À expropriação só deve ser atribuído carácter urgente, quando a obra de interesse público a que ela se destina o justifique (cf. artigo 13.º, n.os 1 e 2);
c) Devendo a decisão que atribua carácter urgente à expropriação ser sempre fundamentada (cf. artigo 13.º, n.º 2), tem ela de constar sempre de acto administrativo - recte, do acto administrativo que declarar a utilidade pública da expropriação -, e não, genericamente, de um diploma legislativo.
Não será dispiciendo transcrever aqui algumas passagens da já referida Introdução ao Código das Expropriações, de Fernando Alves Correia. Escreve este autor, a pp. 15 e 16, o seguinte:
Num Estado de direito como o nosso [cf. os artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição], as medidas restritivas e ablativas dos direitos dos cidadãos devem obedecer ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou da «proibição do excesso» (cf. os artigos 18.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, da lei fundamental).
Configurando-se a expropriação como um acto aniquilador ou destruidor do conteúdo essencial do direito fundamental da propriedade privada (cf. o artigo 62.º da Constituição), natural é que ela constitua um espaço privilegiado de aplicação do aludido princípio.
O princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou da «proibição do excesso» (Ubermassverbot) desdobra-se em três subprincípios: o da adequação (Geeignetheitsprinzip), o da necessidade (Erforderlichkeitsprinzip) e o da proporcionalidade em sentido estrito (Verhaltnismassigkeitsprinzip).
Foi justamente no âmbito do subprincípio da necessidade ou da exigibilidade da expropriação que o recente Código trouxe uma inovação de grande significado, ao consagrar, no artigo 2.º, um pressuposto geral de legitimidade da expropriação: esta só pode ter lugar após o esgotamento da possibilidade de aquisição do bem ou direito a expropriar pela via do direito privado, salvo nos casos em que a necessidade da expropriação decorra de calamidade pública ou de exigências de segurança interna e de defesa nacional (cf. o artigo 37.º, n.º 2), ou naqueles em que seja atribuído pelo Governo carácter de urgência à expropriação, nos termos do artigo 13.º do Código.
O novo Código encara, assim, sem qualquer subterfúgio, a expropriação como última ratio, como um instituto de carácter subsidiário em relação aos instrumentos jurídico-privados de aquisição de bens. Por nossa parte, já no domínio do anterior Código das Expropriações, defendemos que só era legítima a realização de uma expropriação quando não fosse possível atingir o fim público com outras soluções que, sob o ponto de vista jurídico ou económico, pudessem substituir a expropriação, nomeadamente a utilização de meios contratuais de direito privado (cf. a nossa obra O Plano Urbanístico, cit., pp. 486 e 487).
Sendo isto assim, só a Assembleia da República (ou o Governo por ela autorizado) pode legislar sobre aqueles princípios que fazem parte do «regime geral das expropriações». Nunca a Assembleia Legislativa Regional dos Açores, que, assim, ao editar o artigo 80.º, violou o artigo 229.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, conjugado com o artigo 168.º, n.º 1, alínea e), também da Constituição.
6.4 - Aqui chegados, desnecessário se torna ir averiguar se, no caso, o artigo 80.º viola (ou não) o princípio da proporcionalidade, que se extrai (entre outros) do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição (no caso, conjugado com o artigo 62.º, n.º 2, também da Constituição).
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade - por violação do artigo 229.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 168.º, n.º 1, alíneas c) e e), respectivamente, da Constituição - das normas constantes dos artigos 78.º e 80.º do decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores em 17 de Março de 1994 (recebido, para assinatura, em 29 de Abril de 1994) relativo ao Estatuto das Vias de Comunicação Terrestre da Região Autónoma dos Açores.
Lisboa, 25 de Maio de 1994. - Messias Bento - Armindo Ribeiro Mendes - José de Sousa e Brito - Bravo Serra - Antero Alves Monteiro Dinis - Fernando Alves Correia - Maria Fernanda Palma - Maria da Assunção Esteves - Alberto Tavares da Costa - Guilherme da Fonseca - Vítor Nunes de Almeida - Luís Nunes de Almeida.