1 - Relatório
O Presidente da Assembleia da República (AR), ao abrigo dos artigos 51.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro) e 281.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), apresentou ao T. Const. um pedido de apreciação da constitucionalidade do Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, e do artigo 172.º do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril.Fundamenta o pedido do seguinte modo:
1.º A questão vem levantada por vários trabalhadores civis nos estabelecimentos fabris das Forças Armadas.
2.º Pelo Acórdão 31/84 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, de 17 de Abril, foi julgada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos Decretos-Leis n.os 381/82 e 434-A/82, ficando, assim, repristinadas as normas constantes do Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, e do artigo 152.º do Regulamento de Disciplina Militar, por força do disposto no artigo 282.º, n.º 1, da Constituição da República, com a redacção dada pela Lei Constitucional 1/82. [No requerimento mencionava-se, por lapso, o artigo 272.º da CRP, em vez do artigo 282.º] 3.º Ora, as normas legais repostas em vigor sofrem dos mesmos vícios de inconstitucionalidade que afectavam os diplomas que foram objecto de apreciação por parte do Tribunal.
4.º Relativamente ao Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, da autoria do Conselho da Revolução, não foi assegurada a participação dos cidadãos destinatários - trabalhadores dos serviços departamentais e dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas - através das suas estruturas representativas, quer associações sindicais, quer comissões de trabalhadores.
5.º Dada a natureza do Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, que versa sobre o regime de direitos, liberdades e garantias, da competência exclusiva da Assembleia da República, ter-se-ia verificado uma inconstitucionalidade orgânica, visto que, no texto constitucional de 1976, o Conselho da Revolução apenas tinha competência exclusiva para legislar sobre a organização, funcionamento e disciplinas das Forças Armadas, não podendo os trabalhadores civis integrar-se no conceito destas mesmas Forças.
6.º As matérias aprovadas pelo Decreto-Lei 33/80 devem considerar-se integradas no conceito de legislação laboral e, por força dos artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, na primitiva versão [por lapso, o requerimento menciona o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), da CRP, em vez do artigo 58.º, n.º 2, alínea a)], constituía direito dos trabalhadores, exercido através das suas organizações representativas, a participação na elaboração da legislação do trabalho, o que não se verificou.
7.º Sendo certo que a generalidade dos trabalhadores ao serviço dos serviços departamentais das Forças Armadas e seus estabelecimentos fabris se encontram sindicalizados e organizados em comissões de trabalhadores, verifica-se uma infracção directa aos artigos constitucionais mencionados.
8.º O artigo 172.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, sujeitou o pessoal civil à disciplina militar, ainda que transitoriamente.
9.º Também aqui se verifica inconstitucionalidade, porquanto não só a matéria disciplinar dos cidadãos não militares é da competência exclusiva da Assembleia da República, como também não houve participação por parte dos trabalhadores civis no processo legislativo do Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, e designadamente na norma do artigo 172.º Nesta conformidade, o requerente tira as seguintes conclusões:
1.ª O Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, sofre de inconstitucionalidade orgânica por ter violado as alíneas c) e m) do artigo 167.º da Constituição, sofrendo ainda de inconstitucionalidade formal por ter violado os artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), todos do texto constitucional originário;
2.ª O artigo 172.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, está também afectado de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 167.º, alíneas c) e m), da Constituição, sendo ainda inconstitucional, do ponto de vista formal, por infracção dos artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República, no texto originário.
O pedido veio acompanhado da cópia de uma petição dirigida ao requerente, subscrita por trabalhadores dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas, impetrando o accionamento da fiscalização da constitucionalidade das normas mencionadas.
Notificado para se pronunciar sobre o pedido (cf. o artigo 54.º da Lei 28/82), o Primeiro-Ministro, em resposta, enviou o parecer 53/84, da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, nele emitindo um despacho de concordância.
Nesse parecer extraíram-se as seguintes conclusões:
A) As normas constitutivas do Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, e do artigo 172.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, integram matéria militar de natureza organizatória e, como tal, da competência legislativa do Conselho da Revolução, nos termos dos artigos 148.º e 167.º da Constituição da República de 1976;
B) Considerando não ser pacífica a conclusão do Acórdão 31/84 do Tribunal Constitucional, e tendo em conta o parecer 17/81 da Comissão Constitucional, bem como a Resolução 211/81 do Conselho da Revolução, deve prevalecer a interpretação, possível e coerente do texto constitucional, que afasta o vício de inconstitucionalidade formal das mesmas normas, por violação do disposto na alínea d) do artigo 56.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 58.º da Constituição, versão originária. [Itálico originário.] Cumpre apreciar e decidir.
2 - Fundamentação
2.1 - Âmbito do pedido
Importa, antes de mais, proceder à exacta delimitação do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade, dados os termos em que vem formulado o requerimento.O requerente reportou o pedido ao Decreto-Lei 33/80 e ao artigo 172.º do RDM, considerando que o Acórdão 31/84 do T. Const., ao declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.os 381/82 e 434-A/82, repristinou, por força do artigo 282.º, n.º 1, da Constituição, aqueles preceitos.
Certo é, porém, que a repristinação só pode ter-se operado em relação às normas que tinham sido revogadas pelas normas cuja inconstitucionalidade foi declarada, com força obrigatória geral. Ora, o mencionado Acórdão 31/84, ao declarar a inconstitucionalidade das normas constitutivas do Decreto-Lei 381/82, não repristinou todas as normas do Decreto-Lei 33/80. É que aquele diploma continha apenas o Estatuto do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas (EPCEF), enquanto o Decreto-Lei 33/80 compreendia não apenas esse Estatuto, mas também o Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas (EPCSD). Coerentemente, o artigo 2.º do Decreto-Lei 381/82 apenas revogava o Decreto-Lei 33/80 «no respeitante ao Estatuto do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas». Quanto ao mais, isto é, quanto ao outro Estatuto (o EPCSD), esse diploma foi, aliás, igualmente revogado pelo Decreto-Lei 380/82, simultâneo do Decreto-Lei 381/82.
Deste modo, a referida declaração de inconstitucionalidade das normas constitutivas do Decreto-Lei 381/82 somente importou a reposição em vigor das normas constantes do anexo do Decreto-Lei 33/80 respeitante ao EPCEF.
Consequentemente, o pedido, nesta parte, tem de considerar-se limitado às normas constantes deste Estatuto.
Quanto ao artigo 172.º do RDM, verifica-se que a sua repristinação não decorreu directa a imediatamente da declaração de inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.os 381/82 e 434-A/82, constante do Acórdão 31/84.
Na verdade, a reposição em vigor daquele preceito do RDM só ocorreu por via do artigo 116.º, n.º 3, do EPCEF, aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, que expressamente remete para ele.
Importa ter em conta a evolução legislativa a esse respeito.
O artigo 172.º do RDM, que contém «disposições transitórias sobre pessoal civil» (tal é a sua epígrafe), dispõe:
1 - Enquanto não for publicado estatuto próprio, o pessoal civil fica entretanto sujeito ao estatuto de cada estabelecimento ou serviço a que esteja afecto e, subsidiariamente, aos deveres constantes do artigo 4.º do RDM e demais legislação militar, na parte aplicável.
2 - O pessoal civil fica sujeito às penas em seguida designadas, se outras não estiverem preceituadas no estatuto privativo do estabelecimento ou serviço a que esteja afecto, quando no cumprimento das suas obrigações cometa faltas de que resulte ou possa resultar prejuízo ao serviço ou à disciplina militar:
1.ª Repreensão;
2.ª Repreensão agravada;
3.ª Suspensão de funções e vencimento até 180 dias;
4.ª Despedimento do serviço.
Como se vê pela locução em itálico, tratava-se de uma norma transitória, destinada a vigorar apenas até à entrada em vigor do(s) estatuto(s) específico(s) do pessoal civil, que naturalmente haveria(m) de dispor sobre o regime disciplinar próprio desse pessoal.
Todavia, o artigo 116.º, n.º 3, do EPCEF, aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, determinou que o disposto naquele preceito do RDM continuaria em vigor, mesmo depois da publicação do Estatuto, «enquanto não for publicado o regulamento previsto no artigo 87.º», ou seja, o «regulamento disciplinar», que haveria de desenvolver o regime disciplinar previsto no Estatuto. Esta situação foi reiterada no estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 381/82 (artigos 90.º e 119.º, n.º 3).
O referido regulamento disciplinar veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei 434-A/82, de 29 de Outubro (que aprovou igualmente o Regulamento Disciplinar do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas), deixando então de vigorar o questionado preceito do RDM.
Com a declaração de inconstitucionalidade dos dois últimos diplomas, por via do Acórdão 31/84 (quanto ao Decreto-Lei 434-A/82, apenas no que se refere ao Regulamento Disciplinar do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas), foi reposto em vigor o regime disciplinar preexistente, incluindo, portanto, o artigo 172.º do RDM, por força do artigo 116.º, n.º 3, do estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 33/80. Por conseguinte, a revivescência daquela disposição do RDM é mediatizada pelo estatuto constante do Decreto-Lei 33/80.
Poderia, por isso, pensar-se que não tem interesse considerar autonomamente tal preceito. Todavia, há que observar que, atento o teor dessa norma, ela reviverá por si, no caso de vir a ser declarada a inconstitucionalidade do estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, visto que voltará a verificar-se a situação que, segundo ele mesmo, justificava a sua existência, a saber, a inexistência de um estatuto, desaparecendo a condição que determinara o fim da sua vigência (justamente a existência do Estatuto).
Nestes termos, no caso de se concluir pela inconstitucionalidade do Estatuto - incluindo o artigo 116.º, n.º 3 -, será reposto em vigor o artigo 172.º do RDM, com o seu sentido originário, pelo que só então é que se haverá de colocar, de forma autónoma, a questão da sua eventual inconstitucionalidade.
Considera-se, por isso, justificado que a abordagem dessa questão se faça apenas depois de decidir a questão de constitucionalidade relativa ao Estatuto.
Mas também em relação a este preceito do RDM cabe advertir que ele só aqui importa na medida em que dispõe não para todo o pessoal civil (no âmbito das Forças Armadas, bem entendido, que só disso nele se trata), mas apenas para o pessoal civil dos estabelecimentos fabris, que é o que está em causa no presente processo (não se cuidando aqui, portanto, de saber se e em que medida é que aquele preceito do RDM tem, neste momento, qualquer significado para outro pessoal civil no âmbito da organização militar).
2.2 - Uma questão prévia
Interessa ainda apreciar uma outra questão prévia. Sucede que não é a primeira vez que as normas do EPCEF, aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, são objecto de apreciação em sede de fiscalização abstracta.Com efeito, a Resolução 211/81 do Conselho da Revolução (CR), publicada no Diário da República, 1.ª série, de 1 de Outubro de 1981, não declarou nem a inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei 33/80, nem a inconstitucionalidade formal dos artigos 109.º, 113.º, 114.º, 117.º, 122.º e 123.º do EPCEF.
Pronunciou-se, assim, o CR, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 146.º e no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição, na sua versão originária, sobre parte do pedido que ora nos ocupa, a solicitação do Provedor de Justiça e, separadamente, do Presidente da AR (entidade que é também o requerente no presente processo).
Estará, por isso, vedado a este Tribunal pronunciar-se agora sobre o pedido? A resposta é claramente negativa.
Com efeito, ao contrário da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a não declaração de inconstitucionalidade (anteriormente pelo CR ou, actualmente, pelo T. Const.) não constitui caso julgado.
É a solução que decorre da natureza «negativa» da fiscalização de constitucionalidade, como se lê na doutrina (v., por todos, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.ª ed., de Gomes Canotilho e Vital Moreira, p.
504, e Direito Constitucional, 3.ª ed., p. 747, de Gomes Canotilho). É que, como se salientou também no Acórdão 66/84 deste Tribunal, «a fiscalização da constitucionalidade tem [...] uma função de garantia. [...] É justamente aí que se há-de ir procurar a razão por que as únicas decisões capazes de precludirem a possibilidade de nova apreciação judicial da constitucionalidade de uma norma são as que, sendo preferidas em sede de fiscalização abstracta sucessiva, declaram a sua inconstitucionalidade. Só elas, com efeito, têm força obrigatória geral, precisamente porque são só elas que expurgam do ordenamento jurídico as normas inquinadas do vício da inconstitucinalidade [...]».
Por consequência, a mencionada resolução do CR não obsta a novo juízo de constitucionalidade por parte deste Tribunal.
2.3 - O Decreto-Lei 33/80
Como se mostrou acima, o EPCEF, aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, foi reposto em vigor em consequência da declaração de inconstitucionalidade do estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 381/82, que revogara aquele. O Acórdão 31/84 considerou que, tratando-se de legislação do trabalho e não tendo havido participação das organizações dos trabalhadores na sua elaboração, se verificou uma violação dos artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, na sua primitiva redacção, que eram as normas constitucionais vigentes à data do diploma, as quais reconhecem às comissões de trabalhadores e às associações sindicais, respectivamente, o direito de participarem na elaboração da legislação do trabalho.O problema que se coloca é, pois, apenas o de saber se a mesma doutrina não é aplicável, em toda a linha, ao estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 33/80 e se, portanto, a verificar-se também não ter existido tal participação das organizações dos trabalhadores na sua elaboração, não se deverá concluir igualmente pela inconstitucionalidade. Cabe aqui, de resto, mencionar que idêntica conclusão foi alcançada pelo Tribunal no recente Acórdão 451/87 (in Diário da República, 1.ª série, de 14 de Dezembro de 1987), no caso, em quase tudo paralelo, do EPCSD, aprovado pelo Decreto-Lei 380/82, de 15 de Setembro.
Não existe nenhuma razão - diga-se desde já - para alterar o entendimento alcançado nos dois arestos referidos. Basta, por isso, sublinhar aqui apenas os traços essenciais da fundamentação deles constante e que conduzem à conclusão de que:
a) O EPCEF contém, todo ele, matéria que entra na categoria constitucional da legislação do trabalho, para efeitos do disposto nos artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da CRP, na sua versão originária;
b) Por isso se devia ter proporcionado às organizações dos trabalhadores interessadas, ou seja, às comissões de trabalhadores das empresas em causa e aos sindicatos do sector, a possibilidade de intervirem na elaboração dessa legislação;
c) No caso de não ter havido oportunidade de exercer tal direito, se violou o disposto nos mencionados preceitos da lei fundamental.
Na verdade, não podem restar dúvidas de que as normas do Estatuto em apreço contêm legislação do trabalho, como se demonstrou desenvolvidamente no Acórdão 31/84 (e se retomou no Acórdão 451/87) a propósito de normas afins das que agora estão em apreciação.
«É que», lê-se no Acórdão 451/87, «muito embora a Constituição não defina o conceito de legislação do trabalho, parece que esta há-de ser 'a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações' (cf. o parecer 17/81, Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16.º, p. 14), ou, se assim melhor se entender, há-de abranger a 'legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição' (cf. o Acórdão 31/84, cit.).» Qualquer que seja a perspectiva adoptada, o Estatuto enquadra-se na noção de legislação do trabalho. Aliás, tal enquadramento decorre, sem dúvida, do disposto na Lei 16/79, de 26 de Maio, diploma que justamente dispõe sobre o processo de participação das organizações dos trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho. No artigo 2.º desse diploma contém-se um enunciado do conjunto de matérias integrantes da noção de legislação do trabalho para esse efeito, que, salvo demonstração em contrário, há-de considerar-se uma adequada densificação legislativa do conceito constitucional.
É de assinalar que o Estatuto trata de matérias como as da constituição e cessação da relação de serviço, das carreiras e quadros, dos direitos e deveres dos trabalhadores, das suas responsabilidades e garantias, das condições da prestação de trabalho, da suspensão da prestação de trabalho, da apreciação e preparação profissionais e dos critérios de fixação das remunerações. E não se vê como se possa sustentar que elas não se integram na noção de «legislação do trabalho».
Tratando-se de legislação do trabalho, assistia às organizações dos trabalhadores - comissões de trabalhadores e associações sindicais - o direito de participarem na sua elaboração, de acordo com a Constituição.
Como se demonstrou exaustivamente no Acórdão 31/84, os trabalhadores dos estabelecimentos fabris militares gozam dos direitos constitucionais de criarem comissões de trabalhadores e de se associarem sindicalmente e de, através das comissões de trabalhadores e associações sindicais respectivas, participarem na elaboração da legislação do trabalho (desde logo, daquela que lhes diz específica e exclusivamente respeito).
A este propósito, os trabalhadores dos estabelecimentos fabris militares não gozam de menos direitos do que os demais trabalhadores de outras empresas (sejam privadas, sejam pertencentes a entidades públicas).
No que respeita, em particular, às comissões de trabalhadores, ainda que se entenda que a Constituição (cf. o artigo 54.º, n.º 1) só reconhece o direito de as criar e só garante os seus próprios direitos quando se trate de empresas (v. o Acórdão 22/86), isso não exclui o exercício do direito aqui em causa no âmbito dos estabelecimentos fabris, justamente porque estes se hão-de considerar como empresas, ao menos para este efeito, como se concluiu, com desenvolvida argumentação - que aqui se reassume -, no Acórdão 31/84.
Efectivamente, não estabelecendo o referido preceito constitucional qualquer distinção, há-de concluir-se que «o direito de constituir comissões de trabalhadores existe em relação a todas as empresas, qualquer que seja o seu tipo ou natureza e qualquer que seja o seu estatuto legal», devendo, por isso, qualificar-se como empresas, para este efeito, «os estabelecimentos de carácter industrial, comercial ou agrícola do Estado e demais entidades públicas, mesmo que não possuam personalidade jurídica autónoma, nem sejam legalmente qualificados como empresas» (Vital Moreira e J. J. Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., p.
295, anotação III ao artigo 54.º).
Impõe-se, por isso, a conclusão a que chegou o Acórdão 31/84:
Flui, assim, do deixado exposto, face ao preceituado no n.º 1 do artigo 55.º e na alínea d) do artigo 56.º da Constituição, na sua versão originária, que os trabalhadores dos estabelecimentos fabris tinham direito a criar comissões de trabalhadores logo após a entrada em vigor da Constituição, sem dependência de qualquer mediação legislativa, e a tais comissões assistia o direito, constitucionalmente reconhecido, de participar na elaboração da legislação do trabalho.
Esta conclusão é válida, por maioria de razão, para as associações sindicais e para os direitos que a Constituição lhes reconhece, nomedamente o de participarem na elaboração da legislação do trabalho [artigos 57.º e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, na sua versão originária]. Com efeito, os direitos de carácter sindical nem sequer estão constitucionalmente dependentes de relações laborais de natureza empresarial, pelo que assistem a todos os trabalhadores, qualquer que seja a natureza da organização de trabalho em que estejam integrados.
Cumpre ainda sublinhar que o facto de tratar de estabelecimentos fabris dependentes das Forças Armadas não envolve nenhuma alteração dos dados da questão Repetindo as palavras do Acórdão 31/84, deve dizer-se que «o pessoal civil dos estabelecimentos fabris não tem estatuto militar ou militarizado, e daí que não possa falar-se, a seu respeito, de qualquer relação especial de poder no âmbito das Forças Armadas», pelo que «neste domínio não se pode aceitar qualquer limitação ou restrição do direito das associações sindicais».
Por outro lado, é de reiterar igualmente o entendimento de que é irrelevante a natureza do estatuto jurídico das relações de trabalho dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas, nomeadamente quanto a saber se é de natureza jurídico-privada ou jurídico-pública. Como quer que seja, a Constituição não distingue - nem distinguia na sua versão originária - entre trabalhadores cujas relações de trabalho são regidas pela lei do contrato individual de trabalho e os demais, para efeitos de efectuar discriminações entre eles quanto aos direitos constitucionais que aqui estão envolvidos (v. o Acórdão 451/87, § 6.º).
Finalmente, é de dar por assente que as organizações dos trabalhadores interessadas não foram chamadas a exercer o seu direito de participação na elaboração do Estatuto em apreciação.
É certo que, tal como já sucedera nos processos que deram origem aos Acórdãos n.os 31/84 e 451/87, o órgão legislativo que emitiu as normas em causa - que foi o antigo CR - não pôde ser ouvido sobre a questão, por já ter sido extinto à data deste processo, por efeito da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro (primeira revisão constitucional).
Todavia, tal como se concluiu nesses dois processos também agora se há-de entender que na elaboração do compêndio normativo em causa neste processo também não foram ouvidas as organizações dos trabalhadores.
«Com efeito», lê-se no Acórdão 451/87, «a referência a tal audição, caso tivesse existido, haveria de constar do preâmbulo do diploma em causa, o que não acontece. Assim sendo, tem de se presumir que ela não ocorreu.» Ora, o mencionado direito de participação das organizações dos trabalhadores não pode deixar de analisar-se, pelo menos, no direito ao conhecimento dos projectos legislativos e no direito de aquelas se poderem pronunciar junto do órgão legislativo acerca desses projectos antes da sua conversão em lei. Na falta desses requisitos, tem de concluir-se pela violação do aludido direito, que, na versão originária da Constituição, eram um dos «direitos fundamentais dos trabalhadores», a que, por força do artigo 17.º, cabia já o regime constitucional próprio dos «direitos, liberdades e garantias», sendo-lhe, nomeadamente, aplicáveis as regras do artigo 18.º sobre a sua aplicação imediata e sobre a proibição ou condicionamento de restrições por via legal.
Só resta, em suma, concluir pela inconstitucionalidade das normas constantes do Estatuto em questão, por ofensa dos referidos preceitos constitucionais.
Alcançada esta conclusão, torna-se naturalmente desnecessário abordar o outro motivo de inconstitucionalidade invocado no processo, ou seja, a inconstitucionalidade orgânica (fundamento este que, de resto, não foi considerado procedente no Acórdão 31/84, a propósito do Decreto-Lei 381/82, também emitido pelo CR).
2.4 - O artigo 172.º do RDM
Como já se referiu (supra, n.º 2.1), este preceito foi reposto em vigor por via da remissão expressa constante do artigo 116.º, n.º 3, do EPCEF de 1980, este repristinado por efeito da declaração de inconstitucionalidade do estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 381/82 e do regulamento disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei 434-A/82.Todavia, atingida a conclusão da inconstitucionalidade das normas do Estatuto, incluindo o mencionado artigo 116.º, n.º 3, nem por isso deixará de continuar em vigor aquela disposição do RDM. O que sucede é que ela passa a vigorar por si mesma, autonomamente, e não por efeito da remissão do Estatuto. Na verdade, deixando de haver Estatuto, repõe-se em vigor o referido artigo 172.º do RDM, dado que ele dispõe, no seu n.º 1, exactamente que «enquanto não for publicado estatuto próprio o pessoal civil fica entretanto sujeito [...] subsidiariamente aos deveres constantes do artigo 4.º do RDM e demais legislação militar, na parte aplicável».
A questão que aqui surge é a de saber se o Tribunal pode apreciar a inconstitucionalidade do artigo 172.º do RDM, considerado em si mesmo, autonomamente, tornado revivido pela inconstitucionalidade do estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 33/80. E isso passa por saber se, num mesmo processo, pode apreciar-se a eventual inconstitucionalidade de normas que seriam repostas em vigor pelas normas que venham a ser declaradas inconstitucionais nesse processo.
A questão já foi abordada pelo Tribunal, que lhe deu resposta positiva no Acórdão 103/87 (in Diário da República, 1.ª série, de 6 de Maio de 1987), em que se conheceu da inconstitucionalidade de normas do Regulamento Disciplinar da PSP de 1955, que seriam repostas em vigor pela declaração de inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar de 1982 (Acórdão citado, § 38.º).
Não há razões para não continuar a perfilhar tal doutrina. Os dados do problema são semelhantes: também aqui se trata de uma norma que retomaria vigência (melhor: que voltaria a ter vigência autónoma, sem ser por efeito de remissão de outra norma) em consequência da declaração de inconstitucionalidade de outras normas; igualmente aqui se verifica que aquela norma vem também expressamente impugnada no pedido.
Havendo que apreciar a questão da inconstitucionalidade do artigo 172.º do RDM, então há apenas que remeter para o que se disse acima acerca das normas do próprio EPCEF, pois também se trata de legislação do trabalho e também se tem de concluir que houve violação do direito das organizações dos trabalhadores de participarem na sua elaboração.
Cabe apenas assinalar que, apesar de inserida no RDM, a norma em causa dispõe não sobre a disciplina dos militares, mas sim sobre a disciplina laboral do pessoal civil (no que aqui importa, dos trabalhadores dos estabelecimentos fabris militares). Ora, o regime disciplinar laboral faz parte integrante da noção de legislação do trabalho. Tal decorre claramente, aliás, da Lei 16/79, acima referida, que no elenco das matérias compreendidas na definição de legislação do trabalho menciona o regime do contrato individual de trabalho, que, como é sabido, inclui o regime disciplinar (v. o Decreto-Lei 49408, de 24 de Novembro de 1969 - lei do contrato individual de trabalho -, artigos 26.º e segs.). De resto, o Tribunal considerou implicitamente que a matéria disciplinar faz parte da «legislação do trabalho», quando declarou a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris (Acórdão 31/84) e quando declarou a inconstitucionalidade do EPCEF e do EPCSD (Acórdãos n.os 31/84 e 451/87, respectivamente) em toda a sua extensão, sem excluir os respectivos capítulos sobre matéria disciplinar.
2.5 - Limitação dos efeitos da inconstitucionalidade
Desde a data da entrada em vigor das normas que vão ser declaradas inconstitucionais foram praticados inúmeros actos jurídicos ao abrigo delas.
Designadamente, e como é óbvio, processaram-se admissões, verificaram-se progressões e promoções nas carreiras, terão sido aplicadas penas disciplinares, criaram-se expectativas.
Da declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex tunc (cf. CRP, artigo 282.º, n.º 1) resultaria a invalidade de todos esses actos, praticados ao abrigo de normas afinal constitucionalmente viciadas.
E, embora não seja claro se todos eles poderiam ainda vir a ser questionados quanto à sua validade, independentemente da sua consolidação jurídica, a verdade é que, até por isso, se suscitaria uma situação de indesejável insegurança jurídica e, eventualmente, se multiplicariam os casos de iniquidade.
Ora, este Tribunal dispõe dos meios necessários para remediar estas situações, usando da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da lei fundamental. Por isso, é inteiramente justificável que, por razões de equidade e de segurança jurídica, sejam ressalvados os efeitos produzidos até à data da publicação da presente declaração de inconstitucionalidade (sem prejuízo, naturalmente, da possibilidade de anulação contenciosa daqueles actos jurídicos que estejam pendentes de impugnação ou cujo prazo de impugnação ainda não tenha expirado à data da publicação do acórdão).
3 - Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação das normas dos artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, na sua versão originária, das normas do Estatuto do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, e do artigo 172.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, na medida em que ele abrange o pessoal civil dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas;
b) Ressalvar, por razões de equidade e de segurança jurídica, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, os efeitos produzidos pelas normas aqui declaradas inconstitucionais até à data da publicação deste acórdão no Diário da República.
Lisboa, 14 de Janeiro de 1988. - Vital Moreira - (Assinatura ilegível.) - Luís Nunes de Almeida - Mário de Brito - Antero Alves Monteiro Dinis - Martins da Fonseca - Mário Afonso (vencido, de harmonia com a declaração de voto) - José Manuel Cardoso da Costa [vencido, no que se refere ao julgamento de inconstitucionalidade, em termos similares aos da declaração que apus ao Acórdão 31/84 e, bem assim, aos da declaração que juntei ao parecer 17/81 da Comissão Constitucional (no vol. 16.º dos Pareceres da mesma Comissão, p. 21), parecer esse que esteve na base da Resolução 211/80 do Conselho da Revolução, citada no acórdão, e na qual se não declarou a inconstitucionalidade, inter alia, do Decreto-Lei 33/80] - Raul Mateus (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto que anexei ao Acórdão 31/84) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
Votei vencido pelas razões que em seguida passo a anotar:1 - A alínea a) do n.º 1 do artigo 148.º da CRP, na redacção primitiva, conferia competência ao CR, na «qualidade de órgão político e legislativo em matéria militar», para «fazer leis e regulamentos sobre a organização, funcionamento e disciplina das Forças Armadas».
Invocando o uso dessa competência, o CR editou o Decreto-Lei 33/80, que, como se disse, aprovou o EPCEF, ora em causa.
Sobre a competência do CR para editar o Decreto-Lei 33/80 e, mais tarde, executando a determinação estabelecida no artigo 121.º do referido Estatuto, acima mencionado, o Decreto-Lei 381/82, pronunciaram-se, quanto ao primeiro diploma, aquele Conselho, pela sua Resolução 211/81, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 1 de Outubro de 1981, e, quanto ao segundo, este Tribunal, pelo Acórdão 31/84, de 30 de Março, publicado no Diário da República, 1.ª, série, de 17 de Abril de 1984.
Ambos os órgãos de fiscalização da constitucionalidade decidiram não declarar a inconstitucionalidade orgânica dos diplomas por eles apreciados.
Com efeito, quer na citada resolução, tirada no mesmo sentido do parecer 17/81 da Comissão Constitucional (C. Const.), que a precedeu (in Pareceres, vol. 16.º, pp. 3 e segs.), quer no mencionado acórdão, entendeu-se que o CR gozava de competência para editar os referidos diplomas.
No acórdão apresentaram-se com grande desenvolvimento as razões que fundamentavam esse entendimento e fez-se a análise crítica dos argumentos aduzidos em sentido contrário.
Designadamente, escreveu-se no mesmo acórdão:
O poder organizatório atribuído pela Constituição ao Conselho da Revolução e o complexo de funções que as Forças Armadas, enquanto organização, devem prosseguir impõem que na determinação do seu conceito se conceda primazia ao estatuto funcional e objectivo sobre a caracterização técnica e subjectiva.
Se, num plano teórico e abstracto, é possível conceber e pensar as Forças Armadas constituídas e integradas apenas por militares, parece seguro que a organização militar não pode prescindir, na sua estrutura global, da integração de pessoal civil, sem o que a organização ficaria privada de alguns dos meios materiais e humanos necessários à prossecução dos fins que lhe estão confiados.
Não podendo a organização militar prescindir dos seus serviços complementares e do pessoal civil neles integrado, tem de admitir-se que dela fazem parte integrante como parcelas de um todo organizacional.
Como corolário lógico desta conclusão, tem de reconhecer-se competência legislativa ao Conselho da Revolução nas matérias relativas ao pessoal civil dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas, na medida em que estes respeitam à organização e funcionamento da organização militar.
E mais adiante acrescenta-se:
Por isso se considera, numa interpretação harmónica dos artigos 148.º e 167.º da Constituição, na sua versão primitiva, que, se o Conselho da Revolução não podia legislar sobre os direitos fundamentais dos membros da organização militar enquanto cidadãos, já o poderia fazer quando estavam em jogo direitos relativos não ao seu estatuto civil, mas simplesmente ao seu estatuto funcional. A não ser assim, o Conselho da Revolução não disporia dos instrumentos legais e regulamentares indispensáveis ao seu exercício como governo e órgão supremo da Administração em matéria militar.
No Acórdão 75/85, de 6 de Maio, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 23 de Maio de 1985, este Tribunal reeditou a mesma doutrina.
Não vemos razões para alterar esta jurisprudência, firmada por este Tribunal nos referidos arestos, e que provinha já, como acentuámos, da citada resolução do CR, na sequência do mencionado parecer 17/81 da C. Const.
Mantemo-la, pois, integralmente.
Assim, entendemos que o conceito de Forças Armadas, antecedente lógico da definição da competência legislativo-militar do CR, assenta num critério organizativo-funcional.
Na verdade, às Forças Armadas, segundo o artigo 273.º, n.os 1 e 3, da Constituição, na redacção originária, é atribuída a função de garantes da independência nacional, da unidade do Estado, da integridade do território, do regular funcionamento das instituições democráticas e do cumprimento da Constituição.
Consequentemente, como postulado do exercício das suas funções, não poderá deixar de se formular uma compreensão plena da sua orgânica, por forma a nela se abranger, além dos militares, o respectivo pessoal civil, in casu o dos estabelecimentos fabris, porquanto a estes incumbe fornecer-lhes o apoio dos meios técnicos absolutamente indispensáveis à sua operatividade logística e institucional.
Por isso, no preâmbulo quer do Decreto-Lei 33/80, que ora nos ocupa, quer do Decreto-Lei 380/82, sobre que versou o Acórdão 31/84 deste Tribunal, se dizia:
A organização das Forças Armadas exige, para o cabal desempenho das missões que lhes estão confiadas, a integração na sua estrutura de pessoal civil em apoio e complemento do pessoal militar.
Aliás, a Lei de Defesa Nacional - Lei 29/82, de 11 de Dezembro - parece ter aderido a estes conceitos ao expressar, no seu artigo 73.º, a propósito da actualização da legislação, a obrigatoriedade de revisão dos diplomas nele enumerados de carácter militar, neles se incluindo, no seu n.º 2, alínea f), o Estatuto do Pessoal Civil das Forças Armadas.
Acresce que no n.º 2 do artigo 1.º do mencionado Estatuto se dá a noção desse pessoal nestes termos:
A designação de pessoal civil dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas abrange todos os indivíduos não militares nem militarizados que prestam serviço naqueles estabelecimentos, sob a direcção e a disciplina dos respectivos órgãos. [O itálico é nosso.] Por todo o exposto e abonando-nos, ainda, com a restante argumentação expendida, nesta parte, no referido Acórdão 31/84, para que nos remetemos, entendemos que o Decreto-Lei 33/80 não enferma de inconstitucionalidade orgânica.
1.2 - Passe-se agora à verificação da inconstitucionalidade formal assacada ao mesmo diploma.
1.2.1 - Nos termos do artigo 56.º, alínea d), da CRP de 1976, na sua versão originária, constitui direito das comissões de trabalhadores:
Participar na elaboração da legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplem o respectivo sector.
De acordo com o n.º 2, alínea a), do seu artigo 58.º, constitui direito das associações sindicais:
Participar na elaboração da legislação do trabalho.
A Constituição não dá qualquer noção de legislação do trabalho.
Na Lei 16/79, de 26 de Maio, artigo 2.º, n.º 1, encontra-se a seguinte definição de legislação do trabalho;
Entende-se por legislação do trabalho a que vise regular as relações individuais e colectivas, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações, designadamente:
a) Contrato individual de trabalho;
b) Relações colectivas de trabalho;
c) Comissões de trabalhadores, respectivas comissões coordenadoras e seus direitos;
d) Associações sindicais e direitos sindicais;
e) Exercício do direito à greve;
f) Salário mínimo nacional;
g) Formação profissional;
h) Acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.ª ed., p. 150, escreveram:
Na falta de qualquer definição constitucional, deve entender-se que está abrangida pelo menos a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição.
Os mesmos autores, op. cit., 2.ª ed., p. 300, ensinam que a noção de legislação do trabalho «abrange toda e qualquer produção normativa (sobretudo legislativa), incluindo a aprovação de convenções internacionais, que vise aspectos do estatuto jurídico dos trabalhadores e das relações de trabalho em geral, incluindo, naturalmente, os que tenham a ver com os direitos constitucionalmente reconhecidos aos trabalhadores [...]».
Assim, o legislador constituinte, pelos citados artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea c), pretendeu conferir aos trabalhadores o direito de, através das suas organizações representativas, intervirem no processo de elaboração normativa de carácter laboral ou relativa aos seus direitos constitucionalmente reconhecidos.
Na expressão do Acórdão 31/84 do T. Const., publicado no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Abril de 1984, o «escopo destes preceitos constitucionais consiste em assegurar aos trabalhadores, através das suas comissões e das suas associações sindicais, uma intervenção efectiva no processo legislativo laboral. Intervenção essa que se destina não só a permitir que o órgão legislativo tome conhecimento das posições assumidas pelos trabalhadores, mas também e fundamentalmente a garantir que possam, com inteiro conhecimento de causa, exercer a sua influência sobre determinadas políticas que, em especial, os afectem; de contrário, não se justificaria que aquela participação fosse constitucionalmente concebida e reconhecida como um direito».
2.2 - Em execução do princípio da participação dos representantes dos trabalhadores na elaboração de leis do trabalho, dispõe o artigo 3.º da Lei 16/79:
Nenhum projecto ou proposta de lei, projecto de decreto-lei ou proposta de decreto regional, relativo à legislação do trabalho, pode ser discutido ou votado pela Assembleia da República, pelo Governo da República, pelas assembleias regionais e pelos governos regionais sem que as organizações de trabalhadores referidas no artigo 1.º se tenham podido pronunciar sobre ele.
Lê-se no imediato artigo 4.º 1 - Para efeitos do disposto no artigo anterior, e para mais ampla divulgação, os projectos e propostas são publicados previamente em separata das seguintes publicações oficiais:
.........................................................................................................................
b) Boletim do Trabalho e Emprego, tratando-se de legislação a emanar do Governo da República.
.........................................................................................................................
3 - A Assembleia da República, o Governo da República [...] farão anunciar, através dos órgãos de comunicação social, a publicação da separata e designação das matérias que se encontram em fase de apreciação pública.
2.3 - Por certo que o Decreto-Lei 33/80, na parte em que aprovou as normas do EPCEF, versa sobre matéria integradora do conceito de legislação do trabalho em sentido genérico, na medida em que define os direitos do mesmo pessoal na qualidade de trabalhadores, como se conclui da sua leitura.
Efectivamente, o diploma, depois de, no capítulo I, se referir ao seu âmbito de aplicação, define, em seguida, a constituição e cessação da relação de serviço - capítulo II -, carreiras e quadros - capítulo III -, direitos e deveres - capítulo IV -, responsabilidades e garantias - capítulo V -, condições da prestação de trabalho - capítulo VI -, suspensão da prestação de trabalho - capítulo VII -, apreciação e preparação profissionais - capítulo VIII -, regime disciplinar - capítulo IX -, segurança social - capítulo X -, modalidade e órgãos de participação - capítulo XI - e critérios gerais para afixação das remunerações e condições de trabalho - capítulo XII.
2.4 - Todavia, para o efeito de aplicação do regime estabelecido nos mencionados artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da CRP de 1976, na sua redacção originária, a legislação em causa não pode tipicar-se como legislação de trabalho.
2.4.1 - Na verdade, os estabelecimentos fabris das Forças Armadas, considerando a sua referida função de apoio absolutamente indispensável à operacionalidade militar, stricto sensu, dever-se-ão qualificar não como empresas públicas, mas como serviços públicos ou, pelo menos, como «empresas de tipo especial, mais próximas de um serviço público do que de uma empresa pública típica» (v. voto de vencido do conselheiro Messias Bento, exarado no dito Acórdão 31/84).
Mesmo olhados como empresas públicas, parecem-nos perfeitamente ajustadas as observações feitas por Manuel Afonso Vaz, Direito Económico, p.
206, reportando-se ao Decreto-Lei 260/76, de 7 de Abril:
O próprio Decreto-Lei 260/76, e independentemente dos especiais privilégios ou prerrogativas de autoridade que os estatutos dessas empresas possam consagrar, aponta para um regime quase público quando se trate de empresas que [...] assegurem actividades que interessem fundamentalmente à defesa nacional [...] E mais abaixo:
[...] b) O estatuto jurídico do pessoal de tais empresas pode ser definido, em certos aspectos, de acordo com um regime administrativo baseado no Estatuto do Funcionalismo Público, ao contrário das restantes empresas, em que o estatuto pessoal se deve basear no regime do contrato individual de trabalho (artigo 30.º).
O eminente interesse público subjacente a tais estabelecimentos leva a considerar que o respectivo pessoal se integra na categoria de trabalhadores da função pública. Por isso, e considerando a integração desse pessoal no âmbito das Forças Armadas, os seus direitos serão necessariamente plasmados sob a influência desses interesse público e integração.
Foram, sem dúvida, estas ideias basilares que ditaram a redacção do artigo 1.º do Estatuto. Nele expressamente se define o pessoal nos termos acima transcritos, onde avulta a submissão desse pessoal à direcção e disciplina dos órgãos das Forças Armadas.
Do teor do seu artigo 4.º, que se transcreve, ressalta reforçada a ideia de enquadramento do mencionado pessoal na função pública e de os estabelecimentos fabris das Forças Armadas assumirem a natureza de serviço público:
1 - O exercício de funções com carácter permanente e a título definitivo em lugares dos quadros, através de nomeação, dá ao respectivo titular a qualidade de funcionário.
2 - O exercício de funções com carácter temporário e fora dos quadros ou, a título precário, em lugares dos quadros, assegurado através de contrato de direito público, dá ao respectivo titular a qualidade de agente.
3 - O exercício de funções com contrato nos termos da legislação geral de trabalho dá ao respectivo titular a qualidade de empregado.
4 - ...
Anote-se ainda que os n.os 1 e 5 do artigo 48.º do mencionado Estatuto se encontram formulados nos seguintes termos:
Artigo 48.º
Responsabilidade e garantias disciplinares
1 - Os funcionários, agentes ou empregados são disciplinarmente responsáveis perante as Forças Armadas, representadas para o efeito pela respectiva hierarquia, pelas acções ou omissões que lhes sejam imputáveis e que hajam praticado com infracção dos deveres gerais ou especiais estabelecidos nas leis e disposições aplicáveis.
.........................................................................................................................
5 - O pessoal civil, porque integrado na estrutura das Forças Armadas, deverá ter sempre presente que isso o vincula à organização militar e o obriga a prestigiá-la e defendê-la, designadamente preservando os seus valores éticos, a sua coesão, unidade e disciplina.
Deste modo, o pessoal civil dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas deve considerar-se, em conformidade, também, com o mencionado Estatuto, integrado na categoria de trabalhadores da função pública.
Aliás, as peculiares incumbências constitucionais, de garantes da independência nacional, da unidade do Estado e da integridade do território, assinaladas às Forças Armadas (citado artigo 273.º, n.º 1), de que os seus trabalhadores civis fazem parte, postulam uma relação de poder particularmente vinculativa no conspecto dos restantes trabalhadores da função pública, constituindo uma categoria à parte.
Por isso que o n.º 1 do artigo 274.º estabelece:
As Forças Armadas Portuguesas constituem uma instituição nacional e a sua organização [...] é única para todo o território. [Itálico acrescentado.] E pela mesma razão o artigo 167.º, alínea l), da Constituição considera como reserva da competência da AR a:
l) Organização da defesa nacional e definição dos deveres desta decorrentes.
Paira também aqui, e tem necessariamente de pairar, pela própria natureza das coisas, toda uma conceitualização organizativo-funcional de Forças Armadas a que nos referidos já.
Tudo isto leva a concluir que a aplicação do princípio da concordância prática dispensaria o legislador de se ater aos direitos fundamentais de participação dos trabalhadores na elaboração das leis com carácter laboral que lhes respeitem, em cumprimento dos citados artigos 56.º, alínea c), e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, justificando-se a sua liberdade de conformação legislativa para editar as normas ora sindicadas.
2.5 - Mas, ainda que equiparássemos os trabalhadores civis dos estabelecimentos fabris das Forças Armadas aos restantes trabalhadores da função pública, chegaríamos à mesma conclusão.
Aceitamos, embora, em termos genéricos, que os trabalhadores da função pública possam constituir comissões de trabalhadores e sindicados para defesa dos seus interesses de classe.
Todavia, não podemos esquecer que entre trabalhadores da função pública e o Estado interfere uma especial relação de poder, corolário do específico vínculo firmado no n.º 1 do artigo 271.º da Constituição da República, que diz:
1 - Os funcionários e agentes do Estado e as demais entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público, tal como é definido, nos termos da lei, pelos órgãos competentes da Administração.
Por isso é que, e isto consente-nos ver claro o pensamento constitucional neste domínio, a lei fundamental, na alínea m) do seu artigo 167.º, estabelece como reserva da lei parlamentar:
m) Regime e âmbito da função pública [...] Iluminados por estes princípios, debrucemo-nos sobre o problema da constituição de comissões de trabalhadores ou de sindicatos, através dos quais poderiam exercitar o seu eventual direito de participação na elaboração das respectivas leis de cariz laboral.
2.5.1 - O direito de constituição de comissões de trabalhadores apenas encontra garantia constitucional no domínio empresarial.
Sobre este ponto escreveram J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., p. 269:
Note-se que, em relação a alguns direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, a sua fruição parece estar constitucionalmente garantida para os trabalhadores de organizações empresariais - como acontece com o direito às CTs (artigos 54.º e 55.º) e com o direito à actividade sindical nos locais de trabalho (artigo 56.º, n.º 2, alínea a)], o que, no âmbito da Administração Pública (sem sentido amplíssimo), só abrange directamente as empresas públicas (cujos trabalhadores, porém, não possuem normalmente um estatuto de função pública) e os estabelecimentos agrícolas, industriais ou comerciais do Estado geridos sob a forma de serviço administrativo. Todavia, não está a lei impedida de estender tais direitos aos demais trabalhadores da função pública.
Por empresas devem entender-se, porém, e tão-somente, as organizações cujo objecto se traduza na prossecução de interesses de pura feição económica (cf. Barbosa de Melo, in As Fundações e as Comissões de Trabalhadores, separata da Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVI, pp.
9 e 28).
Por tudo quanto ficou dito nos antecedentes n.os 5.1 e 5.2.4, para que nos remetemos, aos estabelecimentos fabris das Forças Armadas de modo algum se poderá assinalar um escopo puramente económico.
Assim, independentemente de, porventura, existirem comissões de trabalhadores do pessoal civil dos mencionados estabelecimentos, a verdade é que o direito de as constituírem não encontra garantia constitucional.
Consequentemente, não poderia considerar-se como direito fundamental desses trabalhadores a sua participação na elaboração do Estatuto em causa, através das respectivas comissões de trabalhadores.
2.5.2 - Embora se possa reconhecer, genericamente, aos trabalhadores da função pública o direito de se associarem sindicalmente, a verdade é que, tendo em conta a especial relação de poder que, sob o ponto de vista organizatório-funcional, os liga ao Estado, entendemos ser necessário que lei da AR ou por ela autorizada defina o âmbito desse direito e, com ele, o direito de participação estatuído no citado artigo 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
Ao tempo da edição do diploma em apreço inexistia, porém, tal normação legislativo-formal.
2.6 - Concluímos, pois, que o Decreto-Lei 33/80, na parte em que aprovou o mencionado Estatuto, não padece dos acusados vícios de inconstucionalidade orgânica e formal.
2.7 - Nos termos expostos, não se declararia a inconstitucionalidade do Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, na parte em que aprova o EPCEF, e consequencialmente o artigo 172.º do RDM, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, na sua aplicação ao mencionado pessoal civil. - Mário Afonso.
Declaração de voto
1 - O T. Const., segundo o meu voto, não deveria ter declarado a inconstitucionalidade das normas do EPCEF, aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, de 13 de Março, e do artigo 172.º do RDM, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, na medida em que ele abrange o pessoal civil daqueles estabelecimentos fabris.De facto, a prévia auscultação de comissões de trabalhadores e sindicatos não era condição, em perspectiva constitucional, da validade formal daquelas normas.
2 - Segundo os artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, texto primitivo, constituía direito das comissões de trabalhadores e sindicatos participar na elaboração da legislação do trabalho.
Já no Acórdão 75/85 do T. Const. (Diário da República, 1.ª série, n.º 118, de 23 de Maio de 1985) - e na linha da doutrina traçada no Acórdão 31/84 deste mesmo Tribunal (Diário da República, 1.ª série, n.º 91, de 17 de Abril de 1984) e já antes no parecer 17/81 da C. Const. (Pareceres, edição oficial, vol.
16.º, p. 3) - se entendeu que o pessoal civil de certos serviços das Forças Armadas estava integrado na organização militar e fazia parte, numa visão funcional e objectiva, a que era natural à lei fundamental, texto de 1976, das próprias Forças Armadas, sendo, por isso, o CR competente, nos termos do artigo 148.º, n.º 1, alínea a), para editar os diplomas em que se situam as normas ora em causa. Na verdade, dispunha esse preceito da Constituição, forma originária, que, na qualidade de órgão político e legislativo em matéria militar, competia ao CR fazer leis e regulamentos sobre a organização, o funcionamento e a disciplina das Forças Armadas.
Nesta mesma óptica, e sem embargo de a norma em questão tratar de matéria laboral, certo é que a vertente dominante é ainda a militar, pelo que as normas do EPCEF, aprovado pelo Decreto-Lei 33/80, e do artigo 172.º do RDM, aprovado pelo Decreto-Lei 742/77, enquanto abrange aquele pessoal civil, não são legislação do trabalho no sentido exigido pelos artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, redacção de 1976.
A ausência no iter legislativo da tramitação prevista naquele preceito constitucional, a verificar-se, seria assim irrelevante.
De qualquer forma, regista-se que não ficou positivamente provado que o CR tenha deixado de ouvir comissões de trabalhadores e sindicatos.
Sendo assim, mesmo nos quadros da análise adversa, e por dúvidas sobre a efectiva existência de um dos elos da cadeia de raciocínio por que se moveu o acórdão, não seria de chegar à declaração de inconstitucionalidade. - Raul Mateus.