Acórdão 1/98
Processo 1134/96. - Acordam em plenário das subsecções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
José Armando da Silva Ferreira, com os sinais dos autos, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão da Relação de Lisboa proferido em 5 de Março de 1996, no processo 20/5/96, em que é ofendido o recorrente e arguido Paulo Alexandre Soares de Aguiar.
Considera-se no aludido acórdão que o prosseguimento do processo penal para apreciação da responsabilidade civil, permitido pelo determinado no artigo 12.º, n.º 1, da Lei 23/91, de 4 de Julho, encontra-se sujeito ao normado no artigo 77.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, fazendo-se depender o referido prosseguimento da existência de dedução de acusação penal.
Em sentido oposto, o mesmo Tribunal da Relação, em Acórdão de 20 de Setembro de 1993, proferido no processo 30926/93, da 3.ª Secção, decidiu que a lei da amnistia, no seu artigo 12.º, n.º 2, não faz depender a apreciação do pedido cível de dedução prévia de acusação, mas apenas da extinção da acção penal e da tempestividade do pedido.
Em «conferência» realizada em 13 de Fevereiro de 1997 constatou-se a existência da oposição entre tais arestos da Relação de Lisboa, ambos transitados em julgado, proferidos de forma expressa no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito que foi referenciada e respeitante a saber-se se, extinto o procedimento criminal por amnistia, a apreciação do pedido cível, deduzido em prazo, está ou não dependente de dedução prévia de acusação.
O recorrente, como se verifica a fls. 48 e seguintes, após explanação condizente, emite posição no sentido de ser fixada jurisprudência, nos termos seguintes:
«Para efeitos de apreciação de pedido de indemnização cível deduzido, por adesão, em acção penal extinta por amnistia pela Lei 23/91, de 4 de Julho, nos termos do artigo 12.º, n.º 2, da mesma lei, não se torna necessária a prévia dedução de acusação, mas apenas a extinção da responsabilidade criminal e a tempestividade do pedido.»
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Supremo Tribunal, nas suas mais bem estruturadas alegações a fls. 64 e seguintes, emite opinião no sentido da resolução do presente conflito jurisprudencial do modo seguinte:
«Extinta a acção penal por força da aplicação da amnistia, poderá o ofendido requerer o prosseguimento da acção penal, nos termos do artigo 12.º, n.º 2, da Lei 23/91, de 4 de Julho, para apreciação do pedido cível, independentemente de não ter sido deduzida acusação.»
Esta é a questão que se passa a analisar, após a aposição nos autos dos vistos dos Exmos. Conselheiros intervenientes.
1 - Os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação (no artigo 7.º da Lei 15/94, de 11 de Maio, reproduz-se, essencialmente, o contido no artigo 12.º da Lei 23/91, de 4 de Julho).
Não admitindo recurso ordinário, ambos transitaram em julgado.
Sobre a mesma questão de direito foram adoptadas soluções opostas: no acórdão fundamento decidiu-se que a Lei 23/91, no seu artigo 12.º, n.º 2, não faz depender a apreciação do pedido cível da existência de prévia acusação, mas simplesmente da extinção da acção penal (por amnistia) e da reformulação tempestiva de tal pedido; no acórdão recorrido entendeu-se que o prosseguimento do processo, tendo-se em vista a apreciação da responsabilidade civil, permitida pelo artigo 12.º, n.os 1 e 2, da Lei 23/91, de 4 de Julho (o artigo 7.º da Lei 15/94 reproduz, no essencial, o conteúdo do aludido artigo 12.º, n.os 1 e 2), faz depender o referido prosseguimento da existência de acusação.
2 - A questão a resolver é a seguinte: se a apreciação da responsabilidade civil no processo penal, cujo prosseguimento é propiciado pelo normado no artigo 12.º da Lei 23/91, de 4 de Julho, depende da prévia existência de acusação.
3 - Importa, pois, solucionar o problema, lançando mão de dados conexos.
4 - No artigo 71.º do Código de Processo Penal está consagrado o princípio da interdependência ou da adesão obrigatória da acção cível ao processo penal.
Este regime colheu a sua inspiração no doutrinado pelo Prof. Doutor Figueiredo Dias (cf. «Sobre a reparação de perdas e danos arbitrados em processo penal», estudo in memoriam do Prof. Doutor Beleza dos Santos, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1966), aparecendo a sua confirmação nos artigos 82.º e 377.º do mesmo Código.
Ao contrário do que sucedia no Código de Processo Penal de 1929, as indemnizações não podem ser atribuídas oficiosamente, devendo o interessado (lesado) solicitá-las por requerimento (petição) dirigido ao tribunal. Há a adesão obrigatória da acção civil à acção penal, pelo que o direito à indemnização por perdas e danos resultantes da prática de um crime, como regra, só pode ser exercido no próprio processo penal.
«Neste sistema os interessados só podem, em princípio, obter compensação para os prejuízos sofridos que o crime 'colando-se' ao processo penal e fazendo aí desencadear um expediente com esse fim, apenas lhes sendo permitido implementar o pedido em separado nos casos previstos na lei» (cf. Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal, vol. 1.º, 1966, p. 331).
Além de serem evitados os julgamentos contraditórios quanto ao ilícito criminal a julgar, o sistema de adesão tem a vantagem de num mesmo e único processo se resolverem todas as questões resultantes do evento criminoso, sem haver necessidade de recurso e mecanismos processuais diferentes e em sedes autónomas.
5 - Interessa também fazer-se uma abordagem do consignado nas leis de amnistia, relativamente ao legislado, no tocante à apreciação da responsabilidade civil em processo penal.
Nos Decretos-Leis 43309, de 12 de Novembro de 1960, 46503, de 25 de Agosto de 1965, 47702, de 15 de Junho de 1967, 204/70, de 12 de Maio e 607/73, de 14 de Novembro, o legislador entendeu ali plasmar o que se encontrava no § 1.º do artigo 125.º do Código Penal de 1886, ou seja, que a amnistia não extinguia a responsabilidade civil.
Nos Decretos-Leis 259/74, de 15 de Junho, 727/75, de 22 de Dezembro e 758/76, de 22 de Outubro, e nas Leis 74/79, de 23 de Novembro, 3/81, de 13 de Março e 17/82, de 2 de Julho, além de se voltar a reafirmar o contido no § 1.º do artigo 125.º do Código Penal de 1886, quando os ofendidos já tivessem formulado pedido cível relativamente aos crimes amnistiados, era-lhes concedida a possibilidade de, em «certo prazo», requererem o prosseguimento dos autos, a fim de ser fixada a indemnização.
Os diplomas de 1974 a 1982 consagram um conteúdo legislativo equivalente à segunda parte do n.º 2 dos artigos 12.º das Leis 16/86, de 11 de Junho e 23/91, de 4 de Julho, com a diferença de apenas não coincidirem os prazos concedidos para ser requerida a prossecução do processo. E se até à Lei 17/82 os interessados deveriam tomar a iniciativa de requerer o prosseguimento do processo, já nas leis de 1986 e 1991 foi estabelecido no sentido da sua notificação expressa para requererem, em 10 dias, o prosseguimento dos autos. Importa ainda realçar um pormenor de relevância para o caso em apreço: o que à data da entrada em vigor da lei da amnistia o interessado (lesado) houvesse já deduzido (o correspondente) pedido civil.
Fazendo-se uma apreciação dos diplomas legais citados, constata-se que tem havido uma manifesta evolução no sentido de acautelar, e cada vez mais e de modo mais incisivo, os interesses dos ofendidos por esses crimes.
Na verdade, se até ao Decreto-Lei 259/74 era afirmado que a amnistia não prejudicava a possibilidade de os interessados poderem exigir a responsabilidade civil, a partir daí inicia-se a possibilidade do prosseguimento dos processos em que já fora formulado o pedido de indemnização civil. Nas leis de amnistia dos anos de 1986 e 1991 ainda se avançou mais na defesa dos direitos dos ofendidos e no aspecto concernente com a possibilidade de se obter a indemnização civil.
Podem-se estabelecer marcos balizados quanto à situação evolutiva do problema ligado à possibilidade de serem demandados também civilmente os arguidos pelos respectivos lesados, quando os ilícitos criminais que servem de suporte à existência da acção penal se mostrem amnistiados.
Assim, até ao Decreto-Lei 259/74 vincou-se o não ser prejudicada a responsabilidade civil pela amnistia. A partir do referido diploma legal amnistiou-se o prosseguimento dos processos onde já se havia formulado o pedido de indemnização cível. Na Lei 16/86, de 11 de Janeiro, e na Lei 23/91, de 4 de Julho, foram vertidas outras soluções mais avançadas ou inovadoras, como se verifica do seu artigo 12.º
Nas situações aludidas, no essencial, ressalta o seguinte, como explana o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nas suas alegações:
«Para além de se consentir o prosseguimento dos processos em que havia pedido cível formulado, agora com a garantia da notificação expressa para o efeito, inovou-se a possibilidade de permitir a formulação de pedido (caso não se tenha esgotado o prazo que a lei geral do processo estabeleça para a hipótese) e, sobretudo, ainda se inovou a faculdade de, sendo a amnistia aplicada por força do artigo 1.º, alíneas a), b) ou c), quando já havia despacho de pronúncia ou equivalente, se requerer o prosseguimento do processo apenas para fixação da indemnização a que os ofendidos tenham direito, independentemente de não terem deduzido oportuno pedido indemnizatório - n.º 3 do artigo 12.º»
No n.º 3 do artigo 12.º teve-se em vista - e ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, em que as indemnizações cíveis eram oficiosamente atribuídas - evitar que os ofendidos, nos crimes amnistiados de harmonia com o preceituado no artigo 1.º, alíneas a), b) e c), da Lei 16/86 vissem postergadas as suas legítimas expectativas, no sentido de receberem a indemnização civil, se não houvesse amnistia.
Apesar de ser esta a posição legislativa no domínio do Código de Processo Penal de 1929, com a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, todavia, esta matéria não sofreu qualquer alteração, pois a Lei 23/91 é idêntica à Lei 16/86.
O que leva a considerar que o legislador, tendo em mente as novas alterações processuais penais (cf. o Código de Processo Penal de 1987), manteve o regime anterior no que toca à indemnização cível em processo penal, no caso de o ilícito criminal ficar eliminado por efeito da amnistia.
No processo 20/5/96, em que foi proferido o acórdão recorrido, o recorrente foi admitido a intervir nos autos como assistente.
No decurso da inquirição, e enquanto corria termos na Polícia Judiciária, foi publicada a Lei 23/91, de 4 de Julho. Este diploma legal, no seu artigo 1.º, alínea b), declarou amnistiado o crime participado, pelo que o digno representante do Ministério Público junto do DIAP, por imperativo legal, ordenou o arquivamento dos autos e o cumprimento do determinado no artigo 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
O recorrente e ofendido, após a notificação de tal despacho, ocorrida em 25 de Março de 1993, veio requerer, em 30 de Março de 1993, e nos termos do artigo 12.º, n.º 2, da citada lei, o prosseguimento dos autos, para ser feita a apreciação do pedido de indemnização civil que, entretanto, dera entrada no tribunal de instrução criminal em 11 de Setembro de 1991.
O que se questiona é saber se os autos devem prosseguir, apesar de não ter sido deduzida acusação.
Perante o estatuído no artigo 12.º, n.º 3, a resposta tem de ser negativa, na medida em que é necessário haver despacho de pronúncia ou o que designe dia para o julgamento, o que não se configura na situação em apreço.
Resta saber se o prosseguimento dos autos é viável, com fundamento no disposto no n.º 2 do mesmo preceito.
Convenhamos que este normativo não se mostra imbuído da necessária clareza e sobre o seu alcance e interpretação não se encontra nada doutrinado. E a jurisprudência ainda não se debruçou sobre caso idêntico.
No entanto, poder-se-á encontrar arrimo ou auxílio para uma resposta ou solução afirmativa no Acórdão deste Supremo Tribunal de 19 de Outubro de 1988
(v. Boletim, n.º 380, p. 255), que a dado passo refere:
«Aqui (no n.º 2 do artigo 12.º) já a lei é algo mais exigente, impondo a expressa dedução de pedido cível por dependência da acção penal extinta, mediante notificação, se o ofendido ainda o não tiver feito.»
No caso presente e sob apreciação, importa realçar que o ofendido (aqui recorrente) já tinha deduzido o pedido cível há mais de um ano. O atraso do inquérito, evento que lhe é verdadeiramente estranho, impediu que ele não tivesse podido deduzir acusação, com o oferecimento da prova necessária.
Perante esta situação, afigura-se injusta a solução encontrada no acórdão recorrido.
Importa agora verificar se o decidido no acórdão fundamento tem apoio legal.
Para uma melhor clarificação do assunto, deve ser salientado o que se deixou referido no tocante à elaboração das leis da amnistia: nota-se uma evidente evolução tendente a preservar e a acautelar, cada vez mais eficazmente, os interesses dos ofendidos pelos crimes amnistiados.
Do que se pode inferir que, de modo cada vez mais vincado, o legislador quis conferir ao lesado o poder de optar em deduzir o pedido de indemnização civil no tribunal civil ou no tribunal criminal, mesmo no caso de arquivamento.
Esta maneira de posicionar e de solucionar o problema colhe o assentimento no Acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Novembro de 1996, processo 45037, onde se assinala:
«Conhecido é como do enxerto derivam vantagens gerais, por exemplo, o aproveitamento das provas - e, sobremaneira, vantagens para vítima - máxime em economia de tempo e dinheiro - o que tudo o legislador quis atender e proteger.»
E ainda no mesmo acórdão e a dado passo se afirma:
«Dependendo a dedução do pedido em separado, perante o tribunal civil, da vantagem do interessado, é evidente que a lei de processo admite que o faça no processo penal, ainda que não tenha sido formulada a acusação contra o presumível responsável, embora a tanto o não obrigue.»
Perante a afirmação de uma justiça condenada à realidade e alicerçada na protecção ético-jurídica do interesse em debate, perante o alcance e finalidade das normas vertidas nos artigos 12.º da Lei 23/91 e 7.º da Lei 15/94 (neste preceito assiste-se a uma reprodução do essencial contido no artigo 12.º) e tendo-se em consideração a evolução que ressalta das mais recentes leis da amnistia, adere-se à tese defendida no citado aresto deste Supremo Tribunal datado de 6 de Novembro de 1996.
Conclusão:
Termos em que se decide conceder provimento ao presente recurso
extraordinário e fixar, como obrigatória, a jurisprudência seguinte:
Quando, por aplicação da amnistia, se extingue a acção penal, e apesar de ainda não ter sido deduzida acusação, poderá o ofendido requerer o prosseguimento da acção penal para apreciação do pedido cível, nos termos do artigo 12.º, n.º 2, da Lei 23/91, de 4 de Julho.
Sem tributação.
Lisboa, 16 de Outubro de 1997. - José Pereira Dias Girão (relator) - Augusto Alves - Joaquim Dias - Manuel Andrade Saraiva - João Martins Ramires - Norberto Brito Câmara - Manuel António Lopes Rocha - Emanuel Leonardo Dias - Luís Flores Ribeiro - José Mariano Pereira - Virgílio António Fonseca Oliveira - Florindo Pires Salpico - António Sousa Guedes - José Moura Nunes da Cruz - Sebastião Duarte da Costa Pereira - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira - Álvaro José Guimarães Dias - Hugo Afonso dos Santos Lopes - Manuel Fernando Bessa Pacheco - Carlindo Rocha da Mota Costa - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães.