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Acórdão 5/97, de 27 de Março

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Sumário

O Estado tem o direito de ser reembolsado, por via de sub-rogação legal, do total despendido em vencimentos (e em outros abonos) a um seu funcionário ausente de serviço e impossibilitado da prestação de contrapartida laboral por doença resultante de acidente de viação e simultaneamente de serviço causado por culpa de terceiro. (Proc. nº87639).

Texto do documento

Acórdão 5/97
Processo 87639. - Acordam, em plenário das secções cíveis, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - O Exmo. Magistrado do Ministério Público interpôs recurso para o tribunal pleno do Acórdão de 4 de Abril de 1995, proferido nos autos de revista n.º 86244, da 1.ª Secção, deste Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrente o Estado Português e recorrida a Companhia de Seguros Império, S. A., invocando oposição do mesmo com o Acórdão de 26 de Maio de 1993, proferido na revista n.º 83444, também dessa Secção, e publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, t. II, p. 127.

Por Acórdão de 18 de Janeiro de 1996, do plenário da 2.ª Secção, também deste Supremo, foi reconhecida a existência da alegada oposição e, perante isso, o recurso prosseguiu a sua ulterior tramitação.

Nas suas doutas alegações, de fl. 45 a fl. 104, aquele Exmo. Magistrado conclui pedindo a revogação do acórdão recorrido, e, com vista à uniformização da jurisprudência, propõe que seja proferido acórdão com a redacção seguinte:

«O Estado, ao pagar vencimentos a seu funcionário, sem contrapartida laboral, ausente de serviço por causa de doença decorrente de acidente de viação e simultaneamente de serviço, tem direito a ser reembolsado, por este terceiro, do que despendeu, por via de sub-rogação legal.»

A recorrida Império, em contra-alegações, pugna pela confirmação do decidido e requer se proceda à uniformização da jurisprudência com a prolação de acórdão no sentido de que «no caso de acidente em serviço que seja simultaneamente acidente de viação, o Estado não tem direito a ser reembolsado pelo responsável nem pela sua seguradora relativamente aos vencimentos e outros abonos que tiver pago a um seu funcionário acidentado».

II - Após os vistos, cumpre decidir:
A) Quanto à questão preliminar:
Começando por analisar de novo a questão preliminar, queremos salientar que nada temos a dizer em contrário do julgado no Acórdão de 18 de Janeiro de 1996, inserto de fl. 41 a fl. 42, que decidiu no sentido da existência de oposição entre os acórdãos recorrido e fundamento.

Na verdade, reexaminando as situações fáctico-jurídicas de tais arestos, é bem claro que entre eles se verifica a aludida oposição.

Os dois acórdão versaram idêntica matéria de facto, incidindo cada um deles sobre acidente de viação e simultaneamente de serviço em que o lesado era funcionário do Estado e, no tocante às despesas tidas com o mesmo no período da convalescença, no acórdão recorrido decidiu-se que o Estado não tinha direito ao seu reembolso, enquanto no acórdão fundamento se decidira precisamente o oposto, ou seja, que o Estado tinha direito a ser reembolsado.

Resulta do explanado que os dois julgados versaram sobre a mesma questão fundamental de direito, o direito de sub-rogação legal, e, ao decidir, optaram por soluções contrárias.

Mais se vê dos autos que aqueles arestos foram proferidos em processos diferentes e que se presume o trânsito em julgado do acórdão fundamento.

Além de que ambas as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação, como se explicitou no Acórdão de 18 de Janeiro de 1996.

Verificando-se todos os pressupostos - formais e substanciais - da admissibilidade do recurso, mantém-se o seu prosseguimento e passa a conhecer-se do seu objecto, como se segue.

B) Quanto ao objecto do recurso:
1 - A questão fundamental de direito a que se reporta o conflito de jurisprudência que constitui o objecto dos presentes autos consiste em saber se o Estado tem ou não direito a ser reembolsado do que despendeu em remunerações com o seu funcionário ou agente que, sem contrapartida laboral, se encontra ausente de serviço por causa de doença resultante de acidente de viação e simultaneamente de serviço da responsabilidade de terceiro.

E isso com base nos artigos 588.º e 592.º do Código Civil, e 8.º, 9.º, 13.º e 34.º do Decreto-Lei 19478, de 18 de Março de 1931, Decreto-Lei 49031, de 21 de Maio de 1961, artigos 1.º, 8.º e 10.º do Decreto-Lei 38523, de 23 de Novembro de 1951, 21.º do Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro, e 18.º e 40.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, base XXXVII da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, e artigos 27.º e seguintes do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro.

Sobre essa questão fundamental duas teses opostas estão em confronto: a do acórdão recorrido, defendida pela Companhia de Seguros Império, S. A., e a do acórdão fundamento, sustentada pelo Exmo. Magistrado recorrente.

Para tomar posição, vejamos cada uma delas:
a) O acórdão recorrido, de 4 de Abril de 1995, decidiu que o Estado não tem o direito de ser reembolsado pela recorrida seguradora do que despendeu em vencimentos e subsídios com um seu funcionário, durante o período de tempo em que aquele esteve incapacitado de trabalhar em virtude de acidente de viação e simultaneamente de serviço invocado como causa de pedir, por não se verificarem os pressupostos da sub-rogação legal ou do direito de regresso.

O raciocínio subjacente a tal decisão assentou nos pontos seguintes:
aa) O direito de regresso e a sub-rogação (artigos 524.º, 589.º e seguintes do Código Civil), diferenciado-se na sua estrutura e disciplina, têm idêntica função recuperatória, restabelecendo o equilíbrio de interesses nas relações internas, relacionam-se em concurso alternativo e, quando a solidariedade passiva (imperfeita) é estabelecida com escopo de garantia, o direito de regresso existe entre o co-obrigado garante e o devedor principal, mas não inversamente;

ab) Fundamentando inicialmente na sub-rogação a acção recuperatória da entidade patronal, o legislador passou a fundamentá-la no direito de regresso a partir da Lei 2127;

ac) A base XXXVII da Lei 2127 prevê que a vítima de acidente de trabalho causado por terceiro tem direito de acção contra o terceiro ou contra a entidade patronal, que responde assim objectivamente, mas, pagando esta a indemnização devida pelo acidente, tem direito de regresso contra terceiro;

ad) Pagando a indemnização, a entidade patronal não o faz como terceiro, como sucede no caso da sub-rogação, mas sim porque está obrigada ao pagamento com aquele terceiro, sendo ambos sujeitos da obrigação de satisfazer o interesse do credor; é, assim, um direito de regresso que exercita depois na acção recuperatória contra o terceiro causador do acidente;

ae) Seja quanto às despesas com os tratamentos seja quanto aos salários, a entidade patronal paga ao trabalhador acidentado uma indemnização (cf., v. g., as bases IX, XVI e XVII da Lei 2127);

af) Quando a lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pretendeu aplicar aos acidentes de serviço o disposto para os acidentes de trabalho, ressalvou sempre que tal se fazia na medida em que a legislação destes acidentes se pudesse adaptar ao disposto para os acidentes de serviço;

ag) Ora, se o artigo 8.º do Decreto-Lei 38523 constituiu o Estado na obrigação de pagar as despesas com os tratamentos dos acidentados de serviço, que assim ficam indemnes desse prejuízo, o artigo 10.º do mesmo diploma estabelecia, como posteriormente o n.º 3 do artigo 49.º do Decreto-Lei 497/88 (ou o artigo 98.º do Decreto-Lei 151/85), que as faltas ao serviço em consequência de acidentes no exercício do mesmo, causados ou não por terceiros, não suspendiam o direito ao vencimento;

ah) Quer isto dizer que tais faltas se consideram justificadas, mantendo-se a relação sinalagmática entre o exercício de funções e a retribuição, pagando o Estado vencimentos e não indemnizações como devedor em garantia de um verdadeiro lesado;

ai) E, se o funcionário ou agente da Administração Pública continua a receber os vencimentos durante a sua incapacidade para o serviço, o que sucede é que não sofreu qualquer dano; sendo assim, está excluída a possibilidade de cúmulo de indemnizações com dupla reparação do dano, ponto de partida dos que sustentam poder o Estado reaver do lesante os vencimentos que pagou ao lesado.

b) O acórdão fundamento, de 26 de Maio de 1993, decidiu que o Estado tem direito a ser reembolsado pela recorrida do que despendeu em vencimentos e demais abonos com dois funcionários, durante o período em que os mesmos não prestaram serviço por incapacidade de trabalhar em consequência do acidente de viação e simultaneamente de serviço invocado como causa de pedir.

As razões que deram lugar a essa decisão foram, em suma, as seguintes:
ba) O Estado despendeu as referidas quantias, em tal período, com os seus funcionários por força do disposto nos preceitos do Decreto-Lei 38523;

bb) Se tal acidente fosse apenas de serviço, o Estado seria o directo responsável pelos pagamentos que efectuou;

bc) Porém, sendo o acidente simultaneamente de viação e de serviço, a responsabilidade do Estado pelos pagamentos que efectuou não pode levar a isentar a recorrida seguradora da respectiva responsabilidade por virtude do evento danoso causado pelo condutor da viatura abrangida por contrato de seguro nela efectuado;

bd) Ao pagar, o Estado tem o direito de ser reembolsado pela mesma recorrida para a qual se transferiu a responsabilidade essencial derivada do acidente;

be) Se o acidente não fosse em serviço, o Estado nada seria obrigado a pagar;
bf) O direito de o Estado ser reembolsado decorre do estabelecido no artigo 18.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 522/85;

bg) Tal como uma entidade patronal de direito privado detém o direito de receber do segurador do responsável por acidente de viação aquilo que pagou ao seu empregado lesado, sendo o acidente simultaneamente de trabalho, o Estado tem o direito de receber aquilo que pagou aos seus servidores lesados nesse acidente da seguradora do veículo causador do evento danoso;

bh) Sendo o acidente de serviço simultaneamente de viação, a responsabilidade do Estado não é solidária com a do causador daquele, ou da respectiva seguradora, mas antes uma responsabilidade secundária; a responsabilidade primeira e principal é sempre do causador do evento danoso, face aos princípios que decorrem dos artigos 473.º e seguintes do Código Civil;

bi) Por isso o direito de reembolso do Estado é um direito de sub-rogação legal à luz do disposto no artigo 592.º, n.º 1, do Código Civil.

2 - Explanados os dados atinentes à compreensão da problemática a que os autos se reportam, vamos dar uma visão da jurisprudência e da doutrina relativas à questão sub judice, embora adiantemos já que no binómio de soluções aqui em confronto a nossa opção é em sentido idêntico ao do acórdão fundamento.

a) A questão ora equacionada dividiu a jurisprudência no decurso de vários anos e foram proferidos alguns acórdãos deste Supremo seguindo uma linha de rumo idêntica à que fez vencimento no acórdão recorrido (cf. Acórdãos de 26 de Março de 1965, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 145, p. 382, de 30 de Janeiro de 1981, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 303, p. 133, de 6 de Junho de 1989, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 388, p. 487, e de 22 de Fevereiro de 1994, processo 85074, da 1.ª Secção).

Mas, a partir de meados de 1990, este alto tribunal, confrontado com a solução de questões semelhantes à que constitui objecto deste recurso, passou a decidir quase uniformemente no sentido que foi adoptado no acórdão fundamento, como bem refere o Exmo. Magistrado recorrente nas alegações, e como o revelam os Acórdãos de 25 de Setembro de 1990, processo 79388, da 1.ª Secção, de 23 de Janeiro de 1992, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 413, p. 525, de 7 de Maio de 1992, processo 81753, da 2.ª Secção, de 14 de Janeiro de 1993, processo 82096, da 2.ª Secção, de 26 de Maio de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, t. II, p. 127, de 29 de Setembro e de 25 de Novembro de 1993, publicados na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, t. III, pp. 40 e 147, respectivamente, de 20 de Janeiro de 1994, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, t. I, p. 56, de 27 de Setembro de 1994, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, t. III, p. 63, de 21 de Fevereiro de 1995, processo 86580, da 1.ª Secção, e já também de 12 de Dezembro de 1996, processo 88301, da 2.ª Secção.

b) A doutrina pouco se tem pronunciado acerca do thema decidendum, não devendo, porém, olvidar-se o valioso contributo dado por Vaz Serra, que, em 1965, estando ainda a vigorar o Código Civil de Seabra, opinou na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 98.º, p. 315, em comentário ao Acórdão de 26 de Março de 1965, antes citado, no sentido de que, no caso de a pensão a um lesado em acidente poder ser acumulada com a indemnização, se a entidade patronal do mesmo paga a pensão, deve sub-rogar-se nos direitos do lesado contra o terceiro responsável pelo evento danoso.

Dario Martins de Almeida, no seu Manual de Acidentes de Viação, 3.ª ed., 1987, pp. 507 a 510, foca em pormenor a hipótese de o lesado, funcionário do Estado, ser vítima de acidente de viação e simultaneamente de serviço causado por um terceiro responsável.

E refere a propósito que, sempre que o Estado tenha proporcionado àquele lesado todo o tratamento e lhe tenha pago parte da pensão extraordinária por invalidez - devida até ele atingir a idade legal de aposentação (a partir da qual se cai no regime da pensão normal de aposentação) -, ficará sub-rogado nos direitos do servidor contra o responsável pelo acidente, nos termos do artigo 592.º, n.º 1, do Código Civil, o mesmo sucedendo no que tange a vencimentos e abonos de família pagos pelo Estado, durante a doença, ao funcionário sinistrado.

Não pode também esquecer-se o contributo que ao estudo desta temática tem sido dado, desde há anos, pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, com os seus doutos pareceres n.os 18/69, de 8 de Maio, 21/80, de 27 de Março, e 50/90, de 24 de Abril, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 192, p. 126, n.º 300, p. 98, e n.º 409, p. 9, respectivamente, em que se defendeu a tese de que «o Estado goza do direito de ser reembolsado do que despendeu em vencimentos pagos a seu funcionário ausente de serviço por doença resultante de acidente de viação e simultaneamente de serviço causado culposamente por terceiro».

3 - Após uma resenha dos elementos concernentes à questão que cabe decidir, passamos a debruçar-nos sobre a mesma, repetindo, porém, que a nossa opção se fará em sentido coincidente com a linha de rumo sufragada no acórdão fundamento, e afirmando, como lógica consequência e sem quebra do devido respeito, a nossa discordância das razões que fundaram a prolação do acórdão recorrido.

A análise dessa questão passa por duas fases:
Na primeira indagaremos se existe ou não, por parte do Estado, o direito de vir a ser reembolsado do que despendeu em remuneração a funcionário seu ausente de serviço por doença devida a acidente de viação e simultaneamente de serviço causado culposamente por terceiro.

E, caso venhamos a concluir pela existência de tal direito, numa segunda fase atentaremos na qualificação do meio jurídico através do qual o direito ao reembolso alcança a sua efectivação.

3.1 - Quanto ao eventual direito do Estado ao reembolso:
a) Considerações gerais:
Temos como ponto assente que não deve seguir-se o entendimento que foi adoptado no acórdão recorrido, pois que o mesmo, não obstante a perfeição formal e o brilho da explanação que nele se contêm, esquece as realidades da vida hodierna e a exigência cada vez mais notória de os tribunais procurarem soluções que, respeitando a lei vigente, sejam acima de tudo as mais justas.

É que nos dias de hoje o jurisconsulto não pode apenas ser um visionário dos horizontes do futuro, porque tem de ser também um homem enraizado no húmus do dia-a-dia dos seus concidadãos, com quem compartilha, além das várias dificuldades da vida corrente e do mundo contemporâneo em constante mutação, as preocupações de carácter social, económico e político da hora que passa.

E, não obstante as exigências culturais inerentes à função de julgar e ao necessário estudo para o efeito, não pode o juiz ser indiferente ao mundo em que está inserido, nem cair em soluções que rocem o absurdo.

O acórdão recorrido, demasiado eivado de uma lógica conceptualista, ao afastar-se da orientação largamente maioritária deste Supremo, não atentou que a mesma, além de conforme à lei vigente, é mais realista e justa que a tese nele acolhida, «truncada das realidades da vida e dos valores e interesses que uma visão interdisciplinar e actualista do direito deve iluminar [...] quer à luz de princípios irrecusáveis de justiça relativa e, daí, de igualdade de tratamento dos eventuais lesantes, quer à luz das normas jurídicas vigentes, interpretadas e aplicadas conjugadamente» (cf. citado Acórdão deste Supremo de 21 de Fevereiro de 1995).

b) Normas com interesse para a decisão:
As normas fulcrais para uma visão completa do problema são as dos artigos 8.º do Decreto-Lei 38523, de 23 de Novembro de 1951 (decreto-lei relativo à responsabilidade do Estado por acidentes de serviço por parte dos seus servidores subscritores da Caixa Geral de Aposentações), 21.º do Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro (decreto-lei que instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), 18.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro (decreto-lei que procedeu à revisão do regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), 49.º do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro (decreto-lei que estabelece o regime de férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes da Administração Pública e em cujo artigo 108.º se revogaram várias normas e, em especial, o artigo 10.º do Decreto-Lei 38523), e 592.º do Código Civil (artigo relativo à sub-rogação legal) e também da base XXXVII da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1951 (lei reguladora do regime jurídico dos acidentes de trabalho).

c) O acórdão recorrido:
ca) Seus fundamentos:
O raciocínio em que assenta o acórdão recorrido radica no facto de ter sido considerado - sobretudo à luz dos artigos 8.º do Decreto-Lei 38523, de 23 de Novembro de 1951, e 49.º, n.º 3, do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro - que o Estado apenas cumpriu a obrigação legal que sobre ele impende ao pagar vencimentos e outros abonos a um seu funcionário, vítima de acidente de viação e simultaneamente de serviço causado por culpa de terceiro, e que não poderia assim exigir do responsável pelos danos resultantes do acidente a quantia indemnizatória correspondente ao total do pagamento por si efectuado.

Além disso, e como elo mais forte da argumentação em que tal acórdão se funda, sustenta-se no mesmo que o Estado não tem direito ao reembolso porque o legislador assim o quis em 1979, ao elaborar o artigo 21.º, n.º 4, do Decreto-Lei 408/79, e o reafirmou em 1985, ao redigir a norma que o substituiu e que é o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85.

É que em ambas as normas - que estenderam aos acidentes de serviço, nos termos do Decreto-Lei 38523, o regime dos acidentes de trabalho relativo ao reembolso das indemnizações pagas - se lê a expressão «com as devidas adaptações».

Com base nessa expressão diz-se que o legislador pretendeu significar que o regime dos acidentes de trabalho não deveria ser aplicado na íntegra aos acidentes de serviço aludidos nesse decreto-lei, em virtude da especificidade da relação do Estado com os seus servidores e da sua responsabilidade para com eles, designadamente no que se refere ao pagamento dos respectivos vencimentos.

cb) Sua crítica:
É para nós evidente a impossibilidade de adesão à tese desenvolvida no acórdão recorrido, porque esta, afigurando-se muito lógica, a nosso ver e salvo o merecido respeito, desafia a lógica mais elementar.

Os direitos dos servidores do Estado previstos nos mencionados diplomas legais e a sua natureza em nada colidem com o direito do Estado a receber o que pagou ao seu trabalhador devido a acidente surgido por culpa de outrem, não podendo a expressão «com as devidas adaptações» ser entendida em termos tais que vá «atingir o essencial do sistema ali consagrado, ou seja, o direito de o Estado accionar o responsável pelo acidente para reaver o que com o seu servidor despendeu» (cf. parecer 50/90, já citado).

Para lá disso é de realçar que não se compreende, nem se justifica, à luz dos princípios basilares da responsabilidade civil e do estatuído nos artigos 483.º e 562.º do Código Civil, que um terceiro causador culposo de acidente de viação, em que ficou lesado um funcionário do Estado, ou de outro ente público, em serviço no momento da ocorrência, não responda na íntegra pelos danos daí resultantes.

Na verdade, «seria absurdamente aberrante, repugnaria ao senso comum, que o causador do acidente ficasse eximido da sua responsabilidade de indemnizar porque o Estado, no cumprimento de uma obrigação própria, tinha pago ao seu agente as respectivas indemnizações» (cf. Acórdão deste Supremo de 7 de Maio de 1992).

E também se não vê razão para que seja o Estado, estranho ao acidente, a suportar em definitivo a despesa relativa a vencimentos (e ou outros abonos) do funcionário ausente de serviço por doença devida a tal evento e por isso impossibilitado de prestar a sua contrapartida laboral.

Por último, não pode aceitar-se como curial - apesar das diferenças que se verificam entre o regime do funcionalismo público e o regime dos trabalhadores por conta de outrem - a prolação de decisões contrárias em igual questão de responsabilidade indemnizatória do terceiro lesante ou da seguradora para com a entidade patronal do sinistrado, seja ela o Estado ou uma empresa privada.

É que a expressão «com as devidas adaptações», usada nos já referidos artigos, não deve ser vista isoladamente, mas sim no contexto dos regimes legais que regulam os acidentes de viação e simultaneamente de trabalho e os acidentes de viação e simultaneamente de serviço, como aliás se frisou - e de modo aprofundado se demonstrou - no dito Acórdão deste Supremo de 29 de Setembro de 1993.

d) Posição assumida:
da) Em Portugal, os direitos dos servidores do Estado vítimas de acidente não estão sujeitos a um único regime legal.

O Decreto-Lei 38523, de 23 de Novembro de 1951, consagra no artigo 1.º, n.os 1 e 2, dois regimes distintos no que concerne aos direitos dos servidores do Estado vítimas de acidentes de serviço: um apenas aplicável àqueles que sejam subscritores da Caixa Geral de Aposentações e outro aplicável aos que não o sejam.

Tal decreto-lei surgiu face ao contido na Lei 2045, de 23 de Dezembro de 1950, em cujo artigo 16.º se previa a publicação de diploma a regular a situação dos funcionários do Estado subscritores da Caixa Geral de Aposentações e suas famílias em caso de acidentes ocorridos no exercício de funções e doenças profissionais.

É que, como então se assinalou, tais funcionários não estavam abrangidos pelo regime de assistência constante da Lei 1942, de 27 de Julho de 1936, vigente à data e mais tarde revogada pela Lei 2127.

Em consequência dessa problemática é que o Decreto-Lei 38523, no seu artigo 1.º, n.os 1 e 2, previu dois regimes diversos para os servidores do Estado.

Para os funcionários subscritores da Caixa Geral de Aposentações este preceito prevê um regime específico no seu n.º 1 e para os segundos, os não subscritores, estabelece no seu n.º 2 que «ser-lhes-á aplicada a legislação sobre acidentes de trabalho» (legislação essa que à época - 1951 - estava contida na Lei 1942, a que se refere o preâmbulo do próprio Decreto-Lei 38523, e agora se contém na Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, que lhe sucedeu e a substituiu).

Dado o preceituado no artigo 8.º do Decreto-Lei 38523 e também no artigo 49.º do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro - que continuou a reconhecer ao funcionário o direito ao vencimento de exercício em caso de falta por acidente em serviço ou doença profissional, direito esse que estava previsto no artigo 10.º do Decreto-Lei 38523, revogado pelo artigo 108.º do mesmo Decreto-Lei 497/88 -, o Estado encontra-se obrigado a proporcionar aos seus servidores, vítimas de acidente de serviço, «tratamento adequado» e a abonar-lhes os vencimentos durante o período de doença.

db) O regime legal a observar no tocante a acidentes de trabalho encontra-se definido na Lei 2127 e vê-se da base IX desta mesma lei que a entidade patronal está em situação idêntica à do Estado, porque está obrigada a prestar assistência e a pagar vencimentos aos seus trabalhadores no decurso do período de doença em resultado de acidente de trabalho.

A Lei 2127, na base XXXVII, n.os 1 e 4, dispõe o seguinte:
«1 - Quando o acidente for causado por companheiros da vítima ou por terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.

4 - A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.º 1, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente. Também à entidade patronal ou seguradora assiste o direito de intervir como parte principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que alude esta base.»

Resulta da norma transcrita, do seu n.º 4, que nela se consagra o direito ao reembolso da entidade patronal ou da seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente, atribuindo-se-lhes um chamado direito de regresso contra os responsáveis, sendo certo que o artigo 7.º da lei anterior - Lei 1942 - previa já aquele direito ao reembolso, mas falava antes em sub-rogação.

Não obstante a Lei 1942, primeiro, e a Lei 2127, depois, preverem tal direito ao reembolso, o Decreto-Lei 38523 é absolutamente omisso neste domínio, nem sequer contendo qualquer artigo que se refira à hipótese de acidente de serviço ocorrido por culpa de terceiro.

dc) As hipóteses por excelência em que a base XXXVII tem aplicação surgem nos casos de acidente de viação e simultaneamente de trabalho, como refere Cruz de Carvalho, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., p. 156, e o confirma inúmera jurisprudência da Secção Social deste Supremo Tribunal.

Dada a maior frequência dessas hipóteses, aquando da elaboração do Decreto-Lei 408/79 o legislador considerou oportuno alterar o regime à data em vigor e daí a redacção do artigo 21.º, cujos n.os 1 a 3 se referem ao acidente de viação e simultaneamente de trabalho e cujo n.º 4 se reporta ao acidente de viação e simultaneamente de serviço, «nos termos do Decreto-Lei 38523», e dispõe que a este último é aplicável «o disposto nos números anteriores [...] com as devidas adaptações».

O Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, ao rever o regime legal do seguro obrigatório previsto no Decreto-Lei 408/79, estabeleceu no artigo 18.º o seguinte:

«1 - Quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho, aplicar-se-ão as disposições deste diploma, tendo em atenção as constantes da legislação especial em acidentes de trabalho.

2 - O disposto no número anterior é aplicável, com as devidas adaptações, quando o acidente possa qualificar-se como acidente de serviço, nos termos do Decreto-Lei 38523, de 23 de Novembro de 1951

No n.º 1 do artigo 18.º (que sucedeu ao artigo 21.º deste último decreto-lei e o veio substituir), quanto ao acidente de viação e simultaneamente de trabalho, previu-se um regime igual ao vigente à data da publicação do Decreto-Lei 408/79, o que significa que se regressou ao regime da base XXXVII da Lei 2127.

No seu n.º 2, aquele artigo 18.º, acerca do acidente de viação e simultaneamente de serviço, manteve inalterado o regime que já existia à data da sua publicação, devendo salientar-se que a redacção desse n.º 2, na sua essência, é igual à do n.º 4 do artigo 21.º do Decreto-Lei 408/79, inclusive na expressão «com as devidas adaptações» (cf., a propósito, Garção Soares e J. Maia dos Santos, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, nota ao artigo 18.º).

Como já se disse, o Decreto-Lei 38523 não contempla nas suas previsões a hipótese da verificação de um acidente de serviço ter sido causado por culpa de terceiro, nem sequer para o exercício do direito de regresso, que na área do direito laboral está regulado no transcrito n.º 4 da base XXXVII da Lei 2127.

Para o caso de acidente de viação e simultaneamente de serviço, com a publicação do Decreto-Lei 408/79 e o contido no seu artigo 21.º, n.º 4, ficou ultrapassada a eventual lacuna existente, e, mais tarde, atento o preceituado no Decreto-Lei 522/85 e no seu transcrito artigo 18.º, n.º 2, devem ter-se por infundadas quaisquer dúvidas nesta matéria.

Na verdade, o legislador, ao instituir o regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com a publicação, primeiro, do Decreto-Lei 408/79, e, depois, do Decreto-Lei 522/85, aproveitou o ensejo para uniformizar o regime aplicável aos acidentes de todos os seus funcionários, independentemente de serem ou não subscritores da Caixa Geral de Aposentações.

De acordo com o último daqueles diplomas, passou a ser aplicável a todos os acidentes de viação sofridos por funcionários do Estado o regime constante da Lei 2127.

É certo que a aplicação da Lei 2127 aos acidentes de serviço deve ser feita «com as devidas adaptações».

Mas é por de mais evidente que se o legislador quis tal uniformização, não pode ter querido também que o essencial do regime constante da base XXXVII da Lei 2127 não fosse aplicado aos acidentes de serviço. Seria contraditório.

Aliás, e como muito bem se salientou no referido Acórdão deste Supremo de 29 de Setembro de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, t. III, p. 40: «O n.º 2 do artigo 18.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, só tem sentido quando se atente nessa equiparação, pois a dar-se outro entendimento [...] haveria que reconhecer tratar-se de uma norma inútil, despida de conteúdo, por repetitiva: tudo o que se vem a dizer já se encontrava no § único do artigo 1.º do Decreto-Lei 38523, que, como se apontou, manda aplicar a lei laboral aos acidentes de serviço em que a vítima seja servidor não inscrito na Caixa Geral de Aposentações.»

Conclui-se, pois, como nas alegações do recorrente, que, «seja a entidade patronal de direito público, seja a entidade patronal de direito privado, trate-se de acidente de serviço ou de acidente de trabalho, seja ou não o funcionário subscritor da Caixa Geral de Aposentações, a legislação actualmente aplicável é a que consagrou o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel».

E de tudo isto decorre, como necessária consequência, que o Estado tem direito ao reembolso dos vencimentos e outros abonos por si pagos, sem contrapartida laboral, a um seu funcionário ausente de serviço por doença devida a culpa de terceiro na ocorrência de um acidente de viação e simultaneamente de serviço, sendo certo que a tal terceiro cabe como lesante ou à sua seguradora satisfazer o montante total que foi pago.

Assim sendo, é óbvio que se não aceita como pertinente o argumentado pela recorrida nas suas contra-alegações e que, procedendo o recurso, se impõe revogar o doutamente decidido.

3.2 - Da qualificação do meio jurídico através do qual se efectiva o reembolso:

a) Tendo-se concluído pela existência do direito ao reembolso por parte do Estado, cabe-nos agora entrar na segunda fase da análise da questão e passar a qualificar juridicamente o meio pelo qual esse direito alcança a efectivação.

Fundamentalmente está em causa saber se esse meio deverá ser entendido como um direito de regresso, tal como o mesmo é definido no artigo 524.º do Código Civil, ou um «direito por dano próprio» (conforme expressão usada no citado Acórdão de 21 de Fevereiro de 1995), ou ainda como sub-rogação legal, nos termos do artigo 592.º, n.º 1, daquele Código.

Havendo argumentos para defender qualquer dessas posições e tendo de se optar por uma delas, cremos que bem tem andado este Supremo ao inclinar-se maioritariamente para o entendimento de que o Estado, ao pagar, se sub-roga à seguradora e ou ao lesante, fundando-se aqui o seu direito ao reembolso (cf. os acórdãos de que se fizeram transcrições, o acórdão fundamento e os de 25 de Novembro de 1993 e de 27 de Setembro de 1994, todos antes citados).

aa) Relativamente ao direito de regresso, devemos dizer que, não obstante a Lei 2127, no n.º 4 da base XXXVII (aplicável, como se referiu, nos termos do artigo 18.º do Decreto-Lei 522/88), usar essa terminologia, ao invés do artigo 7.º da Lei 1942, onde se falava em sub-rogação, tal não significa que realmente o direito ao reembolso assim deva qualificar-se.

No campo das obrigações solidárias prevê-se no artigo 524.º do Código Civil o direito de regresso, ou seja, o direito de o devedor solidário que satisfez o crédito poder exigir de cada um dos seus condevedores a parte que lhes cabia na responsabilidade comum (cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1994, 6.ª ed., pp. 570 a 572).

Sucede que no caso vertente não se verifica qualquer relação de solidariedade entre o Estado, que pagou, e a seguradora, que está legal e autonomamente vinculada ao pagamento em substituição do terceiro lesante, seu segurado.

À luz dos princípios resultantes dos artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes do Código Civil, em acidente de viação e simultaneamente de serviço de que seja vítima funcionário do Estado, a responsabilidade deste (relativa a assistência, a vencimentos e a outros abonos e decorrente dos artigos 8.º do Decreto-Lei 38523 e 49.º, n.º 3, do Decreto-Lei 497/88), no caso de culpa de terceiro na etiologia do evento danoso, não é solidária com a do lesante ou da sua seguradora, mas é sim e tão-somente uma responsabilidade secundária em relação à daqueles cuja responsabilidade é primeira e principal.

Não se aceita, assim, que o direito do Estado ao reembolso seja qualificável como direito de regresso.

ab) Quanto ao «direito por dano próprio», na perspectiva posta dubitativamente no dito Acórdão de 21 de Fevereiro de 1995, ou seja, na base do «interesse pessoal do pagante à margem do acto de pagamento», já não é linear a resposta negativa.

Sob o ângulo do interesse pessoal do pagante é inegável que «há um dano próprio da Administração Pública, pagando sem contrapartida laboral, visto que é de presumir que, se a Administração Pública tem determinados funcionários, é porque eles são necessários ao exercício das respectivas funções» e que «a falta de um funcionário sempre vai ocasionar [...] um prejuízo» àquela Administração.

Mas, salvo o devido respeito, temos para nós que uma coisa é o direito do Estado ao recebimento do despendido com o sinistrado nos termos do artigo 8.º do Decreto-Lei 38523 e do n.º 3 do artigo 49.º do Decreto-Lei 497/88, e uma outra coisa é o direito do Estado à reparação do dano directo a si mesmo causado em consequência da eclosão do evento danoso.

Relativamente ao ressarcimento do dano que a si próprio tenha produzido a ocorrência do acidente, nada impede o Estado de socorrer-se dos princípios previstos nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil e, com fundamento neles, accionar o lesante e ou a sua seguradora para obter a reparação do aludido dano.

Assim sendo, como nos parece que é, não podemos aderir à ideia de que, nesse caso, o meio pelo qual o Estado concretiza o seu direito ao reembolso deva ser visto como «direito por dano próprio» nos termos antes referidos.

ac) Cabe, por último, apreciar se o meio em causa deverá qualificar-se como sub-rogação legal, nos termos dos artigos 589.º e 592.º do Código Civil, como tem entendido a maioria da jurisprudência deste Supremo e como também se perspectivou dubitativamente no citado Acórdão de 21 de Fevereiro de 1995.

Tal como dissemos já, cremos que bem tem andado este Supremo ao inclinar-se maioritariamente para o entendimento de que o Estado deve obter o reembolso pela via da sub-rogação legal.

Vejamos, porém, se deveremos manter essa orientação.
A sub-rogação, que está prevista nos artigos 589.º a 594.º do Código Civil, pode definir-se, de forma puramente descritiva, como «a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento» (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 1990, 4.ª ed., p. 324).

E, segundo o mesmo autor, consoante a sua proveniência, podem distinguir-se na sub-rogação as modalidades de sub-rogação voluntária e sub-rogação legal, reguladas, respectivamente, nos artigos 590.º e 591.º e no artigo 592.º, todos daquele Código (cf. autor e ob. cits., pp. 326 a 332).

Enquanto a sub-rogação voluntária «resulta do acordo entre o terceiro que pagou e o credor primitivo, a quem é feito o pagamento, ou entre o terceiro e o devedor», a sub-rogação legal «é a que se produz directamente por força da lei, só existindo, portanto, na medida em que esta o permita» (cf. Almeida Costa, ob. cit., pp. 708 a 710).

No caso vertente não nos interessa focar a sub-rogação voluntária, porque é muito claro que ela não está em causa, na medida em que o Estado, ao pagar certas despesas e vencimentos, sem contrapartida laboral, a um seu funcionário vítima de acidente de viação e simultaneamente de serviço, não age assim por a tal se ter obrigado por acordo, mas sim por imperativo legal contido nas normas e diplomas já indicados por mais de uma vez.

Assim, havendo sub-rogação do Estado, ela só pode ser sub-rogação legal.
Acerca desta espécie de sub-rogação, dispõe o n.º 1 do artigo 592.º do Código Civil que, «fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito», e acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que «ao cumprimento é equiparada a dação em cumprimento, a consignação em depósito, a compensação ou outra causa de satisfação do crédito compatível com a sub-rogação».

Resulta do transcrito normativo que em virtude do pagamento efectuado por terceiro, se este tiver garantido o cumprimento da obrigação, ou estiver, por outra causa, directamente interessado na satisfação do crédito, a lei considera esse terceiro como sub-rogado nos direitos do credor.

O interesse directo de que fala a lei deve ser entendido como um interesse próprio de carácter jurídico e não de carácter moral ou afectivo.

A lei pode ainda, em casos especiais e por razões de equidade, conferir a sub-rogação, exista ou não o interesse directo (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1987, 4.ª ed., vol. I, pp. 607 a 609, e citado Acórdão deste Supremo de 27 de Setembro de 1994).

No caso sub judice, o Estado pagou os vencimentos do seu funcionário sinistrado por ter interesse directo na satisfação dos direitos do mesmo.

É que, por um lado, esses direitos reportam-se a obrigações suas impostas por lei, e, por outro lado, ao Estado interessa e incumbe solucionar os problemas sociais que afectam os trabalhadores em geral e, sobretudo, os seus próprios trabalhadores.

E tal interesse é mais reforçado quando estes são vítimas de acidentes de serviço ou simultaneamente de viação e de serviço.

Neste último caso - acidentes simultaneamente de viação ou de serviço -, em que se verifique «imputação culposa a terceiro, o Estado, que presta assistência e paga vencimento à vítima, seu servidor, tem direito de reembolso do que pagou, por via de sub-rogação» (cf. o dito Acórdão de 29 de Novembro de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, t. III, p. 40).

Por tudo isto temos como mais correcto o entendimento de que, no caso em discussão nestes autos, o direito do Estado ao reembolso se efectiva pela via da sub-rogação legal.

III - Em face do exposto, acorda-se em:
A) Julgar procedente o recurso e revogar o acórdão recorrido, ficando a subsistir a decisão da 2.ª instância;

B) Uniformizar a jurisprudência como se segue: «O Estado tem o direito de ser reembolsado, por via de sub-rogação legal, do total despendido em vencimentos a um seu funcionário ausente de serviço e impossibilitado da prestação de contrapartida laboral por doença resultante de acidente de viação e simultaneamente de serviço causado por culpa de terceiro.»

C) Condenar a recorrida nas custas da revista e do presente recurso.
Lisboa, 14 de Janeiro de 1997. - Joaquim Fonseca Henriques de Matos [ressalvo a emenda a seguir (cf. [...] dito [...])] - Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês - José Martins da Costa (com a declaração de que o direito reconhecido ao Estado se pode fundamentar também no «dano próprio» resultante da privação da actividade laboral do seu funcionário) - Fernando da Costa Soares (com a declaração de que o direito reconhecido ao Estado se pode fundamentar unicamente no «dano próprio», resultante da privação da actividade laboral do seu funcionário) - Fernando Machado Soares (com a declaração de voto expressa pelo Exmo. Conselheiro Dr. Martins da Costa) - António Manuel Guimarães de Sá Couto [vencido (com a declaração de voto do Sr. Conselheiro Martins da Costa)] - Luís Filipe Metello de Nápoles - Jorge Alberto Aragão e Seia (com a declaração de que o Estado tem de ser considerado terceiro prejudicado com o acidente e, portanto, titular de um direito próprio, já que, por motivo dele e da consequente incapacidade do ofendido, seu funcionário, se vê obrigado a prestar, por intermédio de terceiro, serviços que aquele não pode realizar) - João Fernando Fernandes de Magalhães (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Martins da Costa) - Ilídio Gaspar Nascimento Costa - Rui Manuel Brandão Lopes (junto declaração de voto) - José Pereira da Graça - Manuel José de Almeida e Silva - Armando Figueira Torres Paulo (voto com o Exmo. Conselheiro Costa Soares) - Fernando Adelino Fabião (votei o acórdão, mas com a declaração que junto) - António César Marques - Roger Bennett da Cunha Lopes (vencido, nos termos da declaração que junto) - Ramiro Luís d'Herbe Vidigal (votei a decisão com a declaração do Exmo. Conselheiro Martins da Costa) - António Pais de Sousa (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Martins da Costa) - José Miranda Gusmão de Medeiros - Jaime Octávio Cardona Ferreira (sem prejuízo da declaração escrita que junto) - Mário Fernandes da Silva Cancela - Manuel Nuno de Sequeira Sampaio da Nóvoa - António Costa Marques (subscrevendo a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Cardona Ferreira) - João Augusto de Moura Ribeiro Coelho (com a declaração idêntica à do Exmo. Conselheiro Lopes Pinto) - Armando Augusto Tomé de Carvalho (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Lopes Pinto) - José da Silva Paixão (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Lopes Pinto).


Declaração de voto
Existe direito ao reembolso, mas por direito próprio (não se verificam os pressupostos da sub-rogação), o qual pode não se estender ao total despendido, sentido em que uniformizaria a jurisprudência. - Rui Manuel Brandão Lopes Pinto.


Declaração de voto
Um dos casos em que o n.º 1 do artigo 592.º do Código Civil admite a sub-rogação legal é quando tal é previsto «noutras disposições da lei», e uma destas é o n.º 4 da base XXXVII da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965 - mal-grado este preceito legal falar em direito de requerer, do que verdadeiramente se trata é de sub-rogação (Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.º, pp. 30 e 31, e Das Obrigações em Geral, vol. I, 7.ª ed., pp. 695 a 697; Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, 111.º, pp. 67 e 68).

E não se diga que o Estado não pode ficar sub-rogado no quantitativo das prestações que pague, relativas ao tratamento médico-medicamentoso e hospitalar, ou antes qualquer exigido pela gravidade da lesão e aos vencimentos durante o período de doença, e a que estava obrigado por força do Decreto-Lei 38523, de 23 de Novembro de 1951, e do Decreto-Lei 497/88, de 31 de Dezembro, porquanto esta obrigação, própria do Estado, e a obrigação do terceiro responsável pelo acidente de viação estão, para a lei, em planos diferentes, pois que esta última está graduada em primeiro lugar, quanto ao pagamento, por tal forma que, ficando o Estado sub-rogado nos direitos do lesado até ao limite das prestações que lhe cabe conceder, é o responsável pelo acidente de viação quem acaba por pagar o que o Estado pagou, ficando este último como se nada tivesse desembolsado. Sendo assim, pode dizer-se que, verdadeiramente, em termos económicos, o Estado apenas se limitou a adiantar pagamentos que acabaram por ser, em definitivo, efectuados pelo responsável pelo acidente de viação, não obstante o Estado também estar obrigado a cumprir. Bem se pode, pois, concluir que o Estado é responsável pela obrigação, mas apenas a título provisório, e que, ao fim e ao cabo, cumpre uma obrigação alheia, a do responsável pelo acidente de viação, o qual responde em definitivo perante o Estado que se apresenta sub-rogado nos direitos do lesado. - Fernando Adelino Fabião.


Declaração de voto
Vencido quanto a fundamentar o reembolso em sub-rogação legal.
Embora tenha tido opinião ou opiniões diferentes, penso que o reembolso encontra fundamento no preceito contido no n.º 2 do artigo 495.º do Código Civil, interpretado extensivamente, uma vez que abrange, numa primeira linha, a assistência prestada voluntariamente, mas pode abranger a assistência prestada por imposição da lei, e é como consagração do princípio de protecção e assistência do Estado que o dever de pagamento de vencimentos em casos como o dos autos foi imposto no Decreto-Lei 38523, de 23 de Novembro de 1951. - Roger Bennett da Cunha Lopes.


Declaração de voto
Assinei o acórdão que antecede porque concordo com o seu traço essencial, que até poderia ser o único em termos uniformizadores: o Estado tem direito a ser reembolsado. O resto, a meu ver, é fundamentação. E, neste particular, entendo, ressalvando o devido respeito por outras opiniões, que o caso não é de sub-rogação, porque o lesante não tem obrigação de pagar salários. Esta obrigação, é, in casu, do Estado, que não tem, juridicamente, interesse mas, sim, dever de pagar (nesta linha, v. g., artigo 49.º do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro). O que acresce, a meu ver, é que, pagando sem a contrapartida laboral que justifica o dever de pagamento, o Estado fica com direito próprio a ser reembolsado daquilo que entregou sem causa concreta por via do acto do lesante, que, assim, deverá ressarcir o Estado. Entender o contrário é começar pelo fim, porque sem o evento acidental o lesante não tem dever de pagar salários. - Cardona Ferreira.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/80439.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1936-07-27 - Lei 1942 - Presidência do Conselho

    Regula o direito às indemnizações por efeito de acidentes de trabalho ou doenças profissionais.

  • Tem documento Em vigor 1950-12-23 - Lei 2045 - Presidência da República

    Autoriza o Governo a arrecadar durante o ano de 1951 as contribuições e impostos e demais rendimentos e recursos do Estado, de harmonia com os princípios e as leis aplicáveis, e a empregar o respectivo produto no pagamento das despesas legalmente inscritas no Orçamento Geral do Estado respeitante ao mesmo ano.

  • Tem documento Em vigor 1951-11-23 - Decreto-Lei 38523 - Ministério das Finanças - Direcção Geral da Contabilidade Pública

    Regula a situação dos servidores civis do Estado subscritores da Caixa Geral de Aposentações que forem vítimas de acidentes em serviço.

  • Tem documento Em vigor 1965-08-03 - Lei 2127 - Presidência da República

    Promulga as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.

  • Tem documento Em vigor 1969-05-27 - Decreto-Lei 49031 - Presidência do Conselho - Secretariado da Reforma Administrativa

    Revê alguns aspectos do regime jurídico dos servidores do Estado, nomeadamente relativos ao limite de idade para provimento de cargos públicos, a faltas e licenças dos funcionários e assalariados, à elevação do montante do subsídio por morte e à contagem de tempo de serviço para efeitos de aposentação - Torna extensivo ao pessoal que presta serviço aos governos civis, administrações dos bairros e autarquias locais, bem como aos agentes do Ministério Público junto das auditorias administrativas, com determin (...)

  • Tem documento Em vigor 1979-09-25 - Decreto-Lei 408/79 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Institui o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  • Tem documento Em vigor 1985-05-09 - Decreto-Lei 151/85 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Administração Interna a das Finanças e do Plano

    Aprova o Estatuto da Polícia de Segurança Pública (PSP).

  • Tem documento Em vigor 1985-12-31 - Decreto-Lei 522/85 - Ministério das Finanças

    Revê o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  • Tem documento Em vigor 1988-12-30 - Decreto-Lei 497/88 - Ministério das Finanças

    Estabelece o regime jurídico das férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes da administração central, regional e local incluindo os institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos. Prevê a organização, pelos serviços e organismos, em cada ano, de listas de actividade dos funcionários com referência a 31 de Dezembro do ano anterior.

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