1 - O Provedor de Justiça requereu, em 27 de Março de 1987, ao Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa e 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que fosse apreciada e declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 46.º do Código da Estrada, por ofensa do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, já que se impõe aí «uma pena acessória como efeito acessório de certas sanções penais» e, nos termos do citado preceito constitucional, «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos».
Ouvido nos termos do artigo 54.º da citada Lei 28/82, remeteu o Primeiro-Ministro a este Tribunal um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, em que se concorda com o ponto de vista expresso no requerimento do Provedor de Justiça, ou seja, o de que «o n.º 2 do artigo 46.º do Código da Estrada viola o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, estando, assim, ferido de inconstitucionalidade material e superveniente», com ressalva, porém, da sua alínea f), em relação à qual, a considerar-se abrangida no pedido, «nenhum juízo de inconstitucionalidade deve ser formulado».
O processo foi distribuído em 26 de Maio de 1987 e redistribuído em 7 de Novembro de 1989, por o primitivo relator ter deixado de fazer parte do Tribunal.
Cumpre decidir.
2 - Dispõe o n.º 2 do artigo 46.º do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei 39672, de 20 de Maio de 1954):
São proibidos de conduzir veículos automóveis enquanto não forem reabilitados nos termos da lei:
a) Os indivíduos condenados três ou mais vezes pelos crimes seguintes:
1.º Ofensas corporais voluntárias;
2.º Dano voluntário;
3.º Homicídio, ofensas corporais ou dano involuntário, cometidos no exercício da condução;
b) Os condenados duas ou mais vezes em pena de prisão maior ou degredo;
c) Os condenados em pena maior fixa por qualquer dos seguintes crimes:
1.º Contra a segurança exterior ou interior do Estado;
2.º Homicídio voluntário;
d) Os que tenham sido declarados delinquentes habituais ou por tendência;
e) Os que tenham sofrido condenação a pena maior por virtude de qualquer crime cometido no exercício da condução de veículos, servindo estes de instrumento ou meio para auxiliar ou preparar a sua execução;
f) Os indivíduos sujeitos à medida de segurança de interdição do exercício da condução.
Convirá, antes de mais, prestar alguns esclarecimentos:
1.º A pena de degredo de que fala a alínea b) - ou sejam as penas 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª do artigo 55.º do Código Penal, aprovado por Decreto de 16 de Setembro de 1886, bem como as penas 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª e 6.ª do artigo 57.º do mesmo Código (estas, aplicáveis em alternativas) - passou a ser cumprida, por força do artigo 56.º do Decreto-Lei 26643, de 28 de Maio de 1936 (organização prisional), «como prisão maior nos estabelecimentos a esta pena destinados, reduzindo-se a sua duração de um terço»;
2.º A pena de prisão maior, a pena maior fixa e a pena maior, de que se fala nas alíneas b), c) e e), respectivamente - ou sejam as penas previstas nos citados artigos 55.º e 57.º (eram fixas as penas maiores 1.ª a 4.ª do artigo 55.º e as penas maiores 1.ª a 4.ª do artigo 57.º) -, foram substituídas pela designação penas maiores na nova redacção dada ao artigo 55.º pelo Decreto-Lei 39688, de 5 de Junho de 1954;
3.º Tendo o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, eliminado a pena de prisão maior, prevendo somente a pena de prisão (cf. o n.º 9 do relatório que precede o Código), o Decreto-Lei 402/82, da mesma data, veio, no seu artigo 51.º, considerar prisão daquela natureza a de medida superior a dois anos, e, posteriormente, a Lei 41/85, de 14 de Agosto, passou a considerar prisão maior ou pena maior a «pena de prisão cuja medida exceda três anos no seu limite máximo e que seja igual ou superior a seis meses no seu limite mínimo»;
4.º Pelo novo Código Penal deixou de ser crime o aqui chamado dano involuntário, ou seja, o crime previsto no artigo 482.º do Código de 1886;
5.º Dos delinquentes habituais e delinquentes por tendência, como tais considerados nos artigos 109.º e 110.º do citado Decreto-Lei 26643, ocupa-se hoje o capítulo I do título V do livro I do novo Código Penal, capítulo subordinado à epígrafe «Delinquentes por tendência», aos quais é aplicada uma «pena relativamente indeterminada» (sobre este ponto pode ver-se Prof.
Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, II - Penas e Medidas de Segurança, 1989, título I, capítulo II, § 2.º, n.º 2).
2.1 - Como resulta do que ficou dito, é posto em dúvida, no parecer junto com a resposta do Primeiro-Ministro, que o pedido abranja a alínea f) do n.º 2 do artigo 46.º do Código da Estrada.
É que - diz-se aí -, ao referir-se aos «indivíduos sujeitos à medida de segurança de interdição do exercício da condução», essa alínea «nada tem a ver, no seu conteúdo material, com os fundamentos da pretensão do Sr.
Provedor de Justiça, a qual se restringe às situações de condenação em pena de prisão».
Dispondo o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, parece, na verdade, pelo menos à primeira vista, que a questão de constitucionalidade só pode colocar-se relativamente a uma norma que imponha a perda de qualquer desses direitos como efeito necessário da aplicação de uma pena. E, quanto à norma da alínea f) do n.º 2 do artigo 46.º do Código da Estrada, é ela própria a declarar que são proibidos de conduzir veículos automóveis os indivíduos sujeitos a uma medida de segurança.
Mas, independentemente de saber se o preceito constitucional, ao falar em pena, não quererá abranger qualquer sanção criminal, pode argumentar-se, contra o ponto de vista expresso naquela resposta: em primeiro lugar, que o requerimento do Provedor de Justiça começa por pedir «a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade do artigo 46.º, n.º 2, do Código da Estrada», sem qualquer restrição, e termina do mesmo modo, isto é, dizendo que «deverá ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 46.º, n.º 2, do Código da Estrada, por ofensa do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República»; em segundo lugar, que no artigo 2.º do requerimento se diz expressamente estar em causa uma pena acessória como efeito acessório de certas sanções penais (e não apenas de certas penas).
Mas, se isto é assim, ou, por outras palavras, se do requerimento parece dever concluir-se que também a constitucionalidade da alínea f) é posta em causa, já outra ordem de considerações deverá levar-nos à conclusão oposta.
É que dizer que são proibidos de conduzir veículos automóveis os indivíduos sujeitos à medida de interdição do exercício da condução é pura e simplesmente redundante, tautológico ou pleonástico. Nada adianta dizer, em relação aos indivíduos sujeitos à medida de interdição do exercício da condução, que eles são proibidos de conduzir veículos automóveis.
Sendo, assim, tal alínea inteiramente inútil, inútil seria também apreciar a sua constitucionalidade.
2.2 - Liga o artigo 46.º do Código da Estrada a proibição de condução de veículos automóveis [excluída a sua alínea f)]:
a) À condenação por crimes de certa natureza: três ou mais vezes pelos crimes de ofensas corporais voluntárias, de dano voluntário e de homicídio, ofensas corporais ou dano involuntário, cometidos no exercício da condução [alínea a)];
b) À condenação em penas de determinada espécie: duas ou mais vezes em pena de prisão maior ou degredo [alínea b)];
c) À condenação por crimes de certa natureza em penas de determinada espécie:
Pena maior fixa por qualquer dos seguintes crimes: contra a segurança interior ou exterior do Estado e homicídio voluntário [alínea c)];
Pena maior por crime cometido no exercício da condução, servindo os veículos de instrumento ou meio para auxiliar ou preparar a sua execução [(alínea e)];
d) À declaração de habitualidade ou por tendência [alínea d)];
E a ligação é feita em termos de a lei impor tal proibição - isto é, a proibição de conduzir veículos automóveis - como efeito necessário da verificação de qualquer das referidas situações. O que estava de acordo com o determinado no artigo 83.º do Código Penal de 1886, ou seja, que «os efeitos das penas têm lugar em virtude da lei, independentemente de declaração alguma na sentença condenatória».
Ora, é isto precisamente que, segundo o Provedor de Justiça, atenta contra o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição. Não podendo as penas envolver como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, afigura-se, na verdade, ao requerente «estar completamente em crise a pena acessória de proibição de conduzir prevista no artigo 46.º, n.º 2, do Código da Estrada».
2.3 - «Pena acessória» chama o Provedor à interdição de conduzir veículos automóveis. Será essa a natureza da medida? A questão não é pacífica.
Assim, Vítor Faveiro, «O direito de viação em face de um sistema preventivo-repressivo» (no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 15, Novembro de 1949, p. 78), IV, e Prevenção Criminal - Medidas de Segurança, 1952, n.º 6, considerava a «apreensão da carta», ainda à face do Código da Estrada de 1930 (Decreto 18406, de 31 de Maio) e do Decreto-Lei 36840, de 19 de Abril de 1948, ora como uma medida de segurança, quando aplicada, não por virtude de um facto criminoso, mas sim em consequência de um estado de perigosidade, ora como uma pena complementar ou pena acessória, que acrescia à pena principal, quando aplicada a «certas infracções».
Já no domínio do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 39672, João de Deus Pinheiro Farinha, «Problemas do direito estradal - Interdição do direito de conduzir como medida de segurança» (na Scientia Iuridica, t. V, 1956, p. 177) e Código da Estrada Anotado, 2.ª ed., 1961, nota 7 ao artigo 61.º, qualificava como complemento ou efeito da pena a interdição nos casos do artigo 46.º, n.º 2, alíneas a), n.os 1.º e 2.º, b), c) e d), isto é, nos seguintes casos: três ou mais condenações por ofensas corporais voluntárias ou dano voluntário n.os 1.º e 2.º da alínea a)]; duas ou mais condenações em pena maior [alínea b)]; condenação em pena maior fixa por crime contra a segurança exterior ou interior do Estado ou crime de homicídio voluntário [alínea c)]; e declaração de habitualidade ou por tendência [alínea d)]. Nos casos do citado artigo 46.º, n.º 2, alínea a), n.º 3.º - três ou mais condenações pelos crimes de homicídio, ofensas corporais ou dano involuntário, cometidos no exercício da condução - e alínea e) - condenação a pena maior por crime cometido no exercício da condução de veículos automóveis, servindo estes de instrumento ou meio para auxiliar ou preparar a sua execução -, a interdição do exercício da condução é antes uma medida de segurança.
Justificando a distinção, escreveu o autor, no lugar citado em último lugar:
Em matéria de trânsito, podemos considerar a interdição do direito de conduzir como medida de segurança, sempre que se destine a impedir o cometimento de violações do direito estradal, previsível em face da conduta verificada no condutor.
E mais adiante:
[...] em tais casos [nos casos referidos em primeiro lugar] não se pode colher na actuação do condutor como tal um sintoma de perigo na estrada. A inibição em tais casos é, antes, um prolongamento da pena imposta.
O Prof. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Parte Geral II, 1982, n.º 375, II, c), ensinava:
Esta inibição [a inibição do direito de conduzir automóveis] constitui uma inabilidade ou incapacidade (privação do exercício de um direito), que pode tomar a natureza de pena (enquanto efeito da pena), ou de medida de segurança.
Será efeito de pena quando constitui uma incapacidade resultante de uma ou várias condenações penais.
Será medida de segurança quando a interdição é decretada judicialmente, autonomamente ou como acessória de uma pena, e não em consequência de condenações anteriores.
Sobre a questão se ocupou o juiz de Alenquer Adélio Pereira André, mas sem tomar posição definitiva, em despacho de 27 de Outubro de 1979 (na Scientia Iuridica, t. XXIX, 1980, p. 186).
E o mesmo se diga de Manuel de Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, nas suas várias edições (v., por último, a 5.ª edição, 1988, notas ao artigo 61.º).
Para o Supremo Tribunal de Justiça a interdição do exercício da condução tem sido considerada medida de segurança: assim, nos Acórdãos de 2 de Fevereiro de 1955, 14 de Outubro de 1959, 18 de Maio de 1960, 13 de Março de 1968 e 9 de Julho de 1986 (no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 47, p.
242, n.º 90, p. 423, n.º 97, p. 218, n.º 175, p. 191, e n.º 359, p. 358), bem como no Assento de 9 de Dezembro de 1959 (no Diário do Governo, 1.ª série, de 7 de Janeiro de 1960, e no citado Boletim, n.º 92, p. 301). No Acórdão de 9 de Julho de 1986 diz-se expressamente que «a interdição da faculdade de conduzir constitui uma verdadeira medida de segurança, embora não em sentido tecnicamente rigoroso».
O actual Código da Estrada fala, como já se disse, no artigo 46.º, n.º 2, alínea f) - sem qualquer distinção -, na medida de segurança de interdição do exercício da condução.
E a Lei 3/82, de 29 de Março - condução automóvel sob a influência do álcool -, também qualifica essa medida de medida de segurança na epígrafe do artigo 14.º - «Não suspensão da medida de segurança» -, cujo texto é o seguinte:
A suspensão da execução da pena, quando admitida, não abrange em caso algum a inibição da faculdade de conduzir.
E que tal designação cabe não só à interdição decretada isoladamente, mas também à interdição imposta cumulativamente com uma pena, resulta não só dos próprios termos desse artigo, mas também da circunstância de ele estar colocado no capítulo (capítulo II), que versa as «responsabilidades e garantias dos condutores», e no qual se prevê precisamente a aplicação dessa medida, sem mais - inibição por um período de seis meses a três anos aos condutores declarados alcoólicos habituais (artigo 10.º) -, e a aplicação de tal medida em conjunto com multa (artigo 7.º).
Mas o actual Código Penal apenas prevê como medidas de segurança o «internamento de inimputáveis» (artigos 91.º a 95.º) - medida que, em relação a estrangeiros pode ser substituída pela expulsão do território nacional (artigo 96.º) - e a «interdição de profissões» (artigos 97.º e 98.º). Prevê, sim, a interdição do exercício de direitos no artigo 69.º, mas como pena acessória.
Depois de, nos artigos 66.º, 67.º e 68.º, regular a «pena de demissão» e a «suspensão temporária da função», preceitua, com efeito, esse artigo 69.º, subordinado à epígrafe «Interdição do exercício de outras profissões ou direitos»:
1 - O disposto no artigo 66.º, n.os 1 e 2, no artigo 67.º e no artigo 68.º é aplicável à interdição de profissões ou actividades cujo exercício depende de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública; nestes casos o tribunal pode determinar, em vez da demissão, a proibição do exercício da profissão ou actividade.
2 - À prática de certos crimes pode ainda corresponder, por força da lei, a incapacidade para eleger o Presidente da República, os membros de assembleias legislativas ou de autarquias locais, para ser eleito como tal, para ser jurado, ou ainda para exercer o poder paternal, a tutela, a curatela ou a administração de bens.
Também o Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, ao estabelecer novo regime sancionatório da condução sob a influência do álcool, abandonou a designação da «medida de segurança» para a inibição da faculdade de conduzir que, nos termos do seu artigo 4.º, acresce às penas cominadas nos seus artigos 2.º e 3.º, isto é, às penas aplicáveis a quem conduzir veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, apresentando uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l (crime previsto no artigo 2.º), ou a quem praticar esse facto, apresentando uma taxa de álcool no sangue inferior a 1,20 g/l e igual ou superior a 0,50 g/l (contravenção prevista no artigo 3.º).
Diz-se, na verdade, nesse artigo 4.º (n.º 1) que às penas previstas nos artigos 2.º e 3.º acresce a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir.
No artigo 12.º faz-se, por seu lado, acrescer, à pena de prisão aplicável ao condutor que se recusar ao exame de pesquisa de álcool a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir.
Só no artigo 14.º, ao prever-se a prática dos factos descritos nos artigos 2.º e 3.º por um alcoólico habitual ou com tendência para abusar de bebidas alcoólicas, se fala na inibição de conduzir sem a classificar como sanção acessória.
Mas o próprio preâmbulo do diploma qualifica a inibição da faculdade de conduzir como pena acessória.
Diga-se, entretanto, que este Decreto-Lei 124/90 ainda não entrou em vigor, porque, devendo ele entrar em vigor, por força do seu artigo 21.º, com a regulamentação prevista no artigo 20.º, já foi publicado o decreto regulamentar a que se refere o n.º 2 desse artigo - trata-se do Decreto Regulamentar n.º 12/90, de 14 de Maio -, mas não a portaria a que se refere o n.º 3 do mesmo artigo.
Seja como for em geral, surgindo-nos, no caso a proibição de conduzir veículos automóveis como consequência necessária da condenação do condutor por crime de certa natureza ou em pena de certa espécie, sempre essa proibição deverá considerar-se como um efeito da pena.
Será isto inconstitucional? Mais precisamente: ofenderá isso o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição? 2.4 - Dispõe esse preceito, que não constava da redacção originária da Constituição e foi aditado ao artigo pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro - primeira revisão da Constituição:
Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Vejamos os seus antecedentes.
Dizia o artigo 76.º, incluído no capítulo II - «Das penas acessórias» - do título III do livro I do Código Penal - projecto da parte geral -, elaborado pelo Prof.
Eduardo Correia em 1963 na sequência do Decreto-Lei 43488, de 28 de Janeiro de 1961 (separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 127):
Nenhuma pena implica automaticamente a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Na discussão a que se procedeu no seio da Comissão Revisora e de que resultou a aprovação (por maioria) do princípio contido no projecto - conforme se vê da acta da 25.ª sessão que ocorreu no dia 2 de Abril de 1964 (no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 148, p. 69) -, teve o autor do projecto ocasião de chamar a atenção para que, devendo presidir ao sistema punitivo do Código futuro a chamada «teoria unitária da pena», não havia necessidade de se ligarem «automaticamente» certos efeitos a certas espécies de penas e que «o carácter automático de tais efeitos é um dos maiores óbices à readaptação social dos delinquentes». Por seu lado, o Prof. Ferrer Correia ponderou que «o automatismo das chamadas penas acessórias [...] briga claramente com o fim da pena que se reputa essencial: o da recuperação social do delinquente».
Na primeira revisão ministerial do referido projecto, parte geral, 1966 (separata do Boletim, n.º 157), esse preceito passou a constar do artigo 77.º, com a seguinte redacção:
1 - Nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
2 - Se, porém, o agente for funcionário público, a condenação em pena de prisão não inferior a oito anos implica a demissão da função pública.
A Constituição de 1976, na sua versão originária, não continha, como se disse, qualquer preceito sobre a matéria:
Mas o deputado Jorge Miranda propôs uma redacção para o artigo 31.º, com o n.º 4, do seguinte teor:
Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Segundo ele próprio escreveu, em Um Projecto de Revisão Constitucional, 1980, nota 4 a esse artigo, este n.º 4 - que aliás já constava do seu projecto de Constituição de 1975 (artigo 49.º, n.º 2) - teve «por fonte o artigo 76.º do anteprojecto de parte geral do Código Penal, da autoria de Eduardo Correia».
Além desse projecto foram apresentados dois outros, em que figuravam normas idênticas.
Assim, no projecto do Partido Comunista Português (PCP) propunha-se que ao texto do artigo 30.º fosse aditado um n.º 5, assim redigido:
As penas não poderão envolver como efeito necessário a perda de quaisquer direitos para além dos que delas expressamente decorram.
E a coligação formada pelo Partido Socialista (PS), a ASDI e a UEDS (FRS) propôs que o n.º 4 do mesmo artigo fosse substituído por:
4 - Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
O PCP acabou por aderir à redacção proposta pela FRS, como se vê do Diário da Assembleia da República, 2.ª série, 2.º suplemento ao n.º 6, de 28 de Outubro, p. 70-(53).
Disse a propósito o deputado Vital Moreira:
Tratava-se de inconstitucionalizar explicitamente, segundo o Código Penal actual, certo tipo de penas, independentemente da sua natureza, apenas decorrente da gravidade da pena de prisão que lhe compete, que implicaria, de imediato, como efeito secundário - sei lá!? -, a impossibilidade de exercer funções públicas, a perda de direitos políticos, etc.
Portanto, o gravame sobre qualquer pessoa por efeito de um crime será apenas aquele que decorre do tipo profundo desse crime, e não haverá, automática e genericamente, efeitos secundários.
E o texto definitivo ficou a ser o que constava do projecto da FRS, como resulta do que ficou dito.
O Código Penal de 1982 reproduz, aliás, esse texto no artigo 65.º:
Nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
Comentando esse artigo, disse o Prof. Doutor Eduardo Correia, «As grandes linhas da reforma penal» (nas Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, fase I, 1983, p. 17), n.º 18, que «o Código, aliás em consonância com a Constituição, fez desaparecer o efeito infamante das penas, não considerando seu efeito automático a perda de direitos civis, políticos ou profissionais».
Por sua vez, o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, «Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro» (na Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, Janeiro-Abril, 1983, p. 5), IV, depois de dizer que «tanto a vertente social como a vertente liberal da ideia do Estado de direito material conduzem a que a pena, com a extensão, o sentido e os fundamentos assinalados, constitua um instrumento liberto, em toda a medida possível, de efeito estigmatizante», acrescentou, justamente como «implicação directa fundamental», dessa tendência político-criminal, que «nenhuma pena deve envolver, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos».
O sentido do preceito constitucional é, pois, o de que a perda de tais direitos, como efeito da pena, não pode produzir-se ope legis ou, por outras palavras, não pode provir directamente da lei.
Como diz o Prof. Cavaleiro de Ferreira, citadas Lições, 1989, título II, capítulo I, n.º 5, alínea d), «tem em geral de ser apreciada a sua aplicação pela decisão judicial, segundo os critérios apontados na lei».
Ora, constituindo a faculdade de conduzir veículos automóveis um direito civil, a sua perda como efeito necessário da condenação em prisão maior ou prisão equivalente é contrária ao n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, sendo assim inconstitucionais as normas do n.º 2 do artigo 46.º do Código da Estrada que tal impõem.
Mas, como se começou por dizer, este preceito do Código da Estrada proíbe de conduzir veículos automóveis não só os condenados em pena maior ou pena equivalente, como também os condenados por crimes de certa natureza.
Será que neste ponto o preceito [concretamente a alínea a), nos seus três números] não é inconstitucional? 2.5 - Sustenta o Dr. Mário Torres, no Comentário que fez ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 16/84, de 15 de Fevereiro (no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Maio de 1984, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º vol., p. 367), e ao Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de Julho de 1983, comentário subordinado ao título «Suspensão e demissão de funcionários ou agentes como efeito de pronúncia ou condenação criminais» (na Revista do Ministério Público, ano 7.º, n.º 25, Janeiro-Março, 1986, p. 111, e n.º 26, Abril-Junho, 1986, p. 161), n.º 3, que «a Constituição apenas proíbe que a condenação em certa pena implique automaticamente a perda de quaisquer direitos profissionais, civis ou políticos; não proíbe que estas consequências se sigam necessariamente à condenação por certos crimes».
Em abono do seu ponto de vista invoca o facto de o Prof. Eduardo Correia, na discussão do artigo 76.º do projecto do Código Penal, conforme consta da acta da 25.ª Sessão da Comissão Revisora, já atrás citada, ter admitido que «certos crimes podem implicar, automaticamente, certos efeitos».
Este Tribunal tem-se, porém, pronunciado pela inconstitucionalidade, por violação do citado artigo 30.º, n.º 4, de normas que impõem a perda daqueles direitos como efeito necessário da condenação por certas infracções. Assim:
No Acórdão 165/86, de 20 de Abril (no Diário da República, 1.ª série, de 3 de Junho de 1986), declarou-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do artigo 37.º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 141/77, de 9 de Abril, segundo o qual «a condenação de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente por crime de ultraje à bandeira nacional, deserção, falsidade, infidelidade no serviço, furto, roubo, prevaricação, corrupção, burla e abuso de confiança produz a demissão, qualquer que seja a pena imposta»;
No Acórdão 255/87, de 26 de Junho (no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Agosto de 1987), julgou-se inconstitucional a norma do n.º 2 desse artigo 37.º, que preceituava que «a condenação pelos mesmos crimes de oficial ou sargento dos quadros de complemento, bem como das praças graduadas em situação militar equivalente, produz a baixa de posto»;
No Acórdão 282/86, de 21 de Outubro (no Diário da República, 1.ª série, de 11 de Novembro de 1986), declararam-se inconstitucionais, com força obrigatória geral, a norma do § único do artigo 160.º do Código da Contribuição Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei 45103, de 1 de Julho de 1963, que punia com o cancelamento da inscrição o técnico de contas condenado por determinadas infracções, bem como a norma do § único do artigo 130.º do Código do Imposto de Transacções, aprovado pelo Decreto-Lei 47066, de 1 de Julho de 1966, de conteúdo semelhante;
No Acórdão 284/89, de 9 de Março (no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Junho de 1989), julgou-se inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 18.º da Lei 9/77/M, de 27 de Agosto, que proibia de entrar nos casinos (de Macau) os indivíduos condenados pelos crimes previstos nos artigos 14.º e 15.º dessa lei.
É que, conforme se acentuou neste último acórdão, «com tal preceito constitucional [o n.º 4 do artigo 30.º] pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos [...]».
3 - Pelo exposto, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, das normas do artigo 46.º, n.º 2, alíneas a), b), c), d) e e), do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 39672, de 20 de Maio de 1954.
Lisboa, 26 de Junho de 1990. - Mário de Brito - Vítor Nunes de Almeida - Fernando Alves Correia - Messias Bento - Armindo Ribeiro Mendes - Maria da Assunção Esteves - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino - José de Sousa e Brito - Bravo Serra - José Manuel Cardoso da Costa (com a declaração junta).
Declaração do voto
Votei o acórdão, que vai na linha de jurisprudência anterior do Tribunal, também por mim subscrita.Mas devo declarar que o fiz agora com muito maior reserva e dúvida - reserva e dúvida que são as de saber se, nessa jurisprudência e no presente acórdão, o Tribunal não vem atribuindo um alcance excessivo ao disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
O ponto está desde logo em saber se não deverá ver-se aí apenas (de acordo com um certo entendimento doutrinal, de que se dá nota no acórdão) a proibição de efeitos automáticos das penas (que não dos crimes) - como parece, em bom rigor, haver sido o sentido com que o princípio em causa foi originariamente consagrado no nosso direito, no Código Penal de 1982.
O que significaria - a entenderem-se as coisas antes deste outro modo - que a eferição da conformidade constitucional de preceitos como os em causa no presente processo haveria de fazer-se, em vez de recorrendo simplesmente ao artigo 30.º, n.º 4, pelo recurso e à luz de outros princípios ou exigências constitucionais relevantes (ou susceptíveis disso) para a conformação da legislação penal substantiva, como serão, por exemplo, os princípios da necessidade e da proporcionalidade, ou, se bem vejo as coisas, desde logo o próprio princípio da tipicidade. - José Manuel Cardoso da Costa.