1 Relatório
1.1 - O pedido
O Provedor de Justiça, na sequência de uma petição da Associação Portuguesa de Técnicos de Contas (APTC), requer ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos artigos 130.º e 131.º do Código do Imposto de Transacções (CIT) e dos artigos 147.º, 160.º e 161.º do Código da Contribuição Industrial (CCI), que prevêem, por um lado, a responsabilidade dos técnicos de contas por algumas infracções fiscais e, por outro lado, a suspensão ou cancelamento da respectiva inscrição oficial, seja por efeito directo de procedimento ou condenação penal, seja em consequência de decisão do Ministro das Finanças.No entendimento do Provedor, tais normas legais ofendem vários preceitos constitucionais, nomeadamente os «preceitos contidos no artigo 47.º (liberdade de escolha de profissão), 26.º (direito ao bom nome e reputação), 30.º, n.º 4 (limites das penas e das medidas de segurança), 32.º, n.os 1 e 2 (princípios da garantia de defesa do arguido e da presunção de inocência do mesmo até à condenação final), 18.º, n.º 2 (princípio da proporcionalidade nas restrições aos direitos fundamentais), 18.º, n.º 3 (carácter geral e abstracto das restrições aos direitos fundamentais), todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Chamado a pronunciar-se sobre o pedido, o Primeiro-Ministro fez remeter ao Tribunal um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros (AJPCM), o qual se pronuncia pela não inconstitucionalidade das referidas normas.
1.2 - Problemas a resolver
As normas em apreço devem dividir-se em três grupos, pois tantos são os diversos problemas que elas, separadamente, suscitam.A primeira norma é a do artigo 147.º do CCI, que prevê a responsabilidade penal dos técnicos de contas (juntamente com os contribuintes, directores, administradores, gerentes, etc.) por certas infracções fiscais, designadamente a recusa de exibição da escrita, dos livros legalmente exigidos ou dos documentos com ela relacionados, bem como a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação. Estando claramente abrangido no âmbito do pedido do Provedor, a verdade é que não se aduz nenhuma fundamentação específica da alegada inconstitucionalidade desse preceito.
O segundo grupo é o dos artigos 160.º da CCI e 130.º do CIT, cuja redacção é idêntica. Eles prescrevem que, em caso de instauração de procedimento por causa de certas infracções, tal facto será averbado no registo do técnico de contas, provocando a suspensão dos direitos derivados daquela inscrição (assim dispõe o corpo desses preceitos), inscrição que será mesmo cancelada em caso de condenação (é o que estipula o § único de ambas as disposições).
No entendimento do Provedor, essas normas violam, não somente a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º, n.º 1, da CRP), o direito ao bom nome e reputação (artigo 26.º, n.º 1), mas também o princípio que proíbe os efeitos automáticos das penas (artigo 30.º, n.º 4) e o princípio da presunção da inocência dos arguidos (artigo 32.º, n.º 2).
O pedido de apreciação da constitucionalidade não distingue as duas referidas componentes normativas destes dois preceitos, embora a sua análise esteja exclusivamente centrada sobre a figura da suspensão dos direitos do técnico de contas (prevista no «corpo» daquele preceito), sem referência ao cancelamento da inscrição (prevista no § único). Pode, por isso, questionar-se desde logo qual é o verdadeiro alcance do pedido nesta área.
O terceiro grupo de normas questionadas é formado pelos artigos 161.º do CCI e 131.º do CIT, que conferem ao Ministro das Finanças o poder de cancelar a inscrição dos técnicos de contas no caso de estes haverem subscrito declarações nas quais se verifiquem omissões ou inexactidões cuja responsabilidade deva ser-lhes imputada. No juízo do Provedor, tais normas, além de afectarem o conteúdo essencial do direito de escolha e exercício de profissão por parte dos técnicos de contas, ofende o princípio da tipificação, que é um princípio constitucional de âmbito geral em matéria de direito sancionatório.
2 Fundamentação
2.1 - Questões prévias
2.1.1 - A questão da revogação do CIT. - Não obsta ao conhecimento do pedido quanto às normas do CIT o facto de este ter sido entretanto revogado pelo Decreto-Lei 394-B/84, de 26 de Dezembro, que aprovou o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA). Tal revogação efectivou-se a partir da data da entrada em vigor desse novo Código (artigo 2.º, n.º 1), data que, tendo sido inicialmente fixada em 1 de Julho de 1985 (artigo 10.º, n.º 1), veio a ser protelada, primeiro por efeito da suspensão determinada pela Resolução 17/85 da AR (publicada na 1.ª série do DR, de 27 de Junho de 1985) e, depois, por determinação da Lei 42/85, de 22 de Agosto, que, tendo introduzido diversas alterações ao CIVA, fixou a sua entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1986.Apesar de o CIT já não se encontrar em vigor, mantém-se o interesse em apreciar a constitucionalidade das normas aqui em causa, visto que o referido diploma preambular do CIVA preceitua expressamente que a revogação do CIT não prejudica a punição das infracções cometidas até à data da entrada em vigor daquele, «continuando a aplicar-se as normas relativas a penalidades contidas nos diplomas reguladores dos impostos abolidos» (artigo 2.º, n.º 3).
(Aliás, registe-se, o novo CIVA contém normas em tudo idênticas às do CIT e do CCI naquilo que aqui importa, pois os artigos 120.º e 122.º são quase pura reprodução dos artigos 160.º e 161.º do CCI e 130.º e 131.º do CIT.) 2.1.2 - Delimitação do âmbito do pedido. - Ao dar-se conta do pedido do Provedor verificou-se que se suscitam dois problemas quanto à respectiva delimitação. É certo que, quer no intróito, quer na conclusão do pedido, se mencionam explicitamente os artigos 147.º, 160.º e 161.º do CCI e os artigos 130.º e 131.º do CIT. Tais preceitos vêm mesmo assinalados mediante sublinhado numa fotocópia que acompanha o pedido e que reproduz parte do articulado daqueles códigos (note-se, porém, que, seguramente por lapso, vem sublinhado também o artigo 147.º-A do CCI, que nem sequer é mencionado no pedido ...).
Pese embora essa aparente clareza do pedido na identificação das normas questionadas, a verdade é que uma análise mais cuidada faz levantar dois problemas.
O primeiro diz respeito ao artigo 147.º do CCI. Apesar de vir expressamente incluído no elenco das normas a apreciar, sucede que nenhum dos fundamentos de inconstitucionalidade aduzidos para justificar o pedido tem algo a ver com as suas normas.
Artigo 147.º - A recusa de exibição da escrita, dos livros exigidos pelos artigos 133.º e 133.º-A ou dos documentos com uma e outros relacionados, ou a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação, serão punidas com multa de 40000$00 a 1000000$00, de 10000$00 a 200000$00 e de 2500$00 a 50000$00, consoante se trate de contribuintes dos grupos A, B ou C, na qual incorrerão, com os contribuintes, os directores, administradores, gerentes, membros do conselho fiscal, liquidatários, administradores da massa falida e técnicos de contas que forem responsáveis, sem prejuízo de procedimento criminal que no caso couber.
...
§ 3.º Transitada em julgado a decisão que aplicou a multa, o tribunal participá-lo-á, nos oito dias seguintes, ao agente do Ministério Público competente, nos termos e para os efeitos do artigo 164.º do Código de Processo Penal, independentemente da participação, no mesmo prazo, a outras entidades que devem tomar conhecimento da infracção para eventual procedimento disciplinar contra o respectivo técnico de contas e outros responsáveis.
É fácil verificar que não existe nenhuma relação entre este texto e os preceitos constitucionais invocados para fundamentar o pedido de declaração de inconstitucionalidade, a saber, os artigos 47.º, 26.º, 30.º, n.º 4, 32.º, n.os 1 e 2, e 18.º, n.os 2 e 3. Acresce que uma disposição em tudo idêntica àquela existe também no CIT (artigo 109.º), sem que ela venha mencionada no requerimento do Provedor, o que seria sobremodo incongruente se efectivamente se tivesse querido questionar o referido preceito do CCI.
De todo o modo, não basta que os pedidos de declaração de inconstitucionalidade refiram as normas a apreciar. Torna-se necessária a indicação - ainda que implícita - das regras ou princípios constitucionais ofendidos (artigo 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro). É o que falta na ocorrência. Logo, deve concluir-se que em relação ao preceito em causa não deve conhecer-se do pedido.
O segundo problema que o pedido suscita quanto à sua delimitação objectiva diz respeito ao § único do artigo 160.º do CCI e ao § único do artigo 130.º do CIT. Também em relação a estas normas se verifica, por um lado, que o enunciado conclusivo do pedido as inclui - pois se refere genericamente a esses artigos, sem distinguir entre as normas do respectivo corpo e as dos parágrafos - e, por outro lado, igualmente, que não existe nenhuma referência expressa a elas na fundamentação do pedido, a qual se debruça explicitamente apenas sobre as normas do corpo desses dois preceitos - que prevêem a suspensão da inscrição dos técnicos de contas na pendência de processo penal-fiscal - e as dos artigos 161.º do CCI e 131.º do CIT - os quais se referem ao cancelamento da inscrição por decisão do Ministro das Finanças -, ao passo que os §§ únicos daqueles dois primeiros preceitos prevêem uma outra espécie de cancelamento, que decorre automaticamente da condenação em que haja incorrido o técnico de contas por determinadas infracções fiscais.
Apesar disso, é inegável que os fundamentos de inconstitucionalidade aduzidos no pedido do Provedor contra a suspensão automática se aplicam, por maioria de razão, ao cancelamento automático. Por isso, não se pode aqui afirmar que falta indicação dos fundamentos de inconstitucionalidade. Daí que se tenha de concluir que o pedido abarca também as duas referidas normas.
2.2 - Os técnicos de contas e a administração fiscal
Antes de abordar directamente os problemas de constitucionalidade levantados pelas normas aqui em apreciação, torna-se conveniente ter em conta o regime jurídico que rege o exercício da profissão dos técnicos de contas, designadamente quanto ao seu estatuto perante a administração fiscal e quanto às modalidades de efectivação da sua responsabilidade penal e disciplinar.
Importa considerar sobretudo os artigos 48.º, 52.º e 53.º do CCI, que prevêem a figura do técnico de contas responsável, e a Portaria 420/76, de 14 de Julho, que regula a inscrição oficial dos técnicos de contas. Nos termos do artigo 48.º daquele Código, as declarações para efeitos de contribuição industrial relativas aos contribuintes do grupo A têm de ser assinadas não apenas pelos contribuintes, mas também pelo respectivo técnico de contas responsável. Logo o artigo 52.º determinou que, até se proceder à regulamentação legal do exercício da profissão de técnico de contas, só poderão ser considerados técnicos de contas responsáveis para efeitos do artigo 48.º os que estiverem inscritos como tais na Direcção-Geral das Contribuições e Impostos (DGCI). É dos requisitos de inscrição e do respectivo regime que se ocupa a citada Portaria 420/76. Finalmente, o artigo 53.º prescreve que os contribuintes do grupo A comunicarão à DGCI os elementos de identificação do seu técnico de contas responsável.
Deste regime importa salientar alguns aspectos mais directamente relevantes para o presente processo. Primeiro, os técnicos de contas intervêm necessariamente em certos actos concernentes à administração fiscal;
depois, existe um registo público obrigatório, sujeito a publicidade (pois, nos termos da referida portaria, será publicada periodicamente no Diário da República uma lista dos técnicos de contas inscritos, sendo igualmente publicadas as suspensões e cancelamentos das inscrições); em terceiro lugar, a inscrição, está sujeita a vários requisitos, designadamente quanto a habilitações académicas e profissionais. Enfim, os técnicos de contas exercem uma função de interesse público, sujeita a uma certa disciplina pública, tornando-os a lei co-responsáveis pelo cumprimento de algumas importantes obrigações fiscais.
A inscrição no registo público é condição para que os técnicos de contas possam subscrever declarações para efeitos fiscais como «técnicos de contas responsáveis». A suspensão ou cancelamento da inscrição implica a impossibilidade de assumirem tais funções, com a inerente amputação dos seus direitos profissionais.
2.3 - O artigo 160.º do CCI e o artigo 130.º do CIT
Dispõe o primeiro desses preceitos:
Artigo 160.º - A instauração de procedimento para aplicação de multas estabelecidas no artigo 147.º será averbada na inscrição do técnico de contas responsável e terá como efeito a suspensão dos direitos dela emergentes durante a pendência do processo.
§ único. Se a decisão for condenatória a inscrição será cancelada.
[Sublinhados acrescentados.] A redacção do artigo 130.º do CIT é idêntica naquilo que aqui importa, mas o regime de suspensão e cancelamento aplica-se a mais transgressões do que aquela que é prevista no CCI.
O regime que decorre desses preceitos é o seguinte: o técnico de contas que for condenado por certas transgressões fiscais terá a sua inscrição cancelada;
a mera instauração do procedimento penal implica o averbamento no registo de inscrição e a suspensão dos direitos emergentes da inscrição, durante a pendência do processo.
À partida, pode afastar-se qualquer dúvida sobre a constitucionalidade dos preceitos citados na parte que prevê o averbamento da instauração do processo pelas transgressões aí mencionadas. Já assim não sucede quanto à parte restante dos preceitos (que é a principal ...).
A simples instauração do procedimento implica ipso jure a suspensão dos direitos específicos emergentes da inscrição - independentemente da natureza da infracção e do tipo de responsabilidade imputada ao técnico de contas -, sendo a inscrição mesmo cancelada se o processo terminar com uma condenação (qualquer que seja a sua gravidade e o montante da pena).
A suspensão de direitos e o cancelamento da inscrição não são penas a que os técnicos de contas hajam de ser condenados pelos tribunais fiscais, mas sim consequência directa da própria instauração do procedimento penal fiscal, ou da condenação. Essas consequências operam ipso jure (suspensão dos direitos) ou por simples execução administrativa (cancelamento da inscrição).
É certo que o § 3.º do artigo 147.º do CCI - acima transcrito - fala expressamente em «procedimento disciplinar», podendo, portanto, ser interpretado no sentido de remeter, não para o § único do artigo 160.º (cancelamento automático), mas sim para o artigo 161.º (cancelamento por decisão do Ministro das Finanças). Também no CIT existe uma norma idêntica no artigo 128.º (que não está questionado no presente processo). Todavia, o teor dos artigos 130.º do CIT e 160.º do CCI excluem manifestamente, nas hipóteses neles consideradas, todo e qualquer processo disciplinar. A referência a este só pode entender-se, portanto, no quadro dos artigo 131.º do CIT e 161.º do CCI, de que adiante se tratará.
Que o regime dos preceitos agora considerados é independente de todo e qualquer procedimento disciplinar, sobre isso são pacíficas a doutrina e a jurisprudência. O próprio parecer enviado pelo Primeiro-Ministro compartilha deste entendimento. Ele é corroborado por uma circular da Direcção de Serviços da Fiscalização Tributária (DSFT), cuja cópia acompanha o referido parecer da AJPCM.
Reza assim a alínea c) dessa circular:
Quando os técnicos de contas forem indiciados nos autos de notícia levantados nos termos dos artigos 147.º do C. C. Industrial e 109.º do C. I.
Transacções, os chefes de repartição de finanças comunicarão o facto à Repartição de Finanças Geral para efeitos de averbamento e suspensão dos direitos da inscrição, comunicando depois ainda as respectivas decisões, para, se as mesmas forem condenatórias, se proceder ao respectivo cancelamento. [Sublinhados acrescentados.] Quanto ao parecer da AJPCM, esse não hesita em dar o autêntico nome às coisas:
[...] o cancelamento da inscrição, embora decorrendo automaticamente da aplicação de uma pena pelo tribunal, este deve comunicá-la à DGCI, com vista à sua execução. [Sublinhados acrescentados.] Na apreciação da legitimidade constitucional destes preceitos, é conveniente considerar separadamente cada uma das figuras em causa: a suspensão e o cancelamento da inscrição. Por comodidade de exposição, aborde-se primeiro esta última figura.
É inquestionável que o cancelamento a que se referem os preceitos referidos não é uma punição disciplinar aplicada por decisão de entidade competente, precedendo processo disciplinar, mas sim uma consequência automática de outra pena, que a Administração se limita a «executar».
Ora, sendo assim, esse regime não é harmonizável com o princípio constitucional que decorre do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, segundo o qual nenhuma pena pode ter como efeito automático a perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
Mas isso é, seguramente, o que aqui ocorre. Por um lado, o cancelamento da inscrição traduz-se manifestamente na perda de um direito profissional (porventura o mais importante dos direitos profissionais dos técnicos de contas) e, por outro lado, não é uma pena aplicada pelo próprio juiz, mas sim uma consequência mecânica que a lei faz decorrer da condenação.
O facto de se não tratar aqui do terreno criminal não impede a aplicação do princípio constitucional do artigo 30.º, n.º 4. Se às penas criminais não pode acrescentar-se, a título de efeito de pena, a perda de direitos profissionais, por maioria de razão isso está vedado quando se trate de penas sem carácter criminal.
O princípio constitucional do artigo 30.º, n.º 4, não proíbe que a lei possa definir como penas a privação de direitos profissionais (interdições profissionais, etc.), a serem aplicadas judicialmente de acordo com as regras competentes (princípio de culpa, regra da tipificação, adequação entre a gravidade da infracção e a pena, etc.). O que ele proíbe é que a privação de direitos profissionais seja uma simples consequência - por via directa da lei - da condenação por infracções de qualquer tipo. Valem aqui, mutatis mutandis, as considerações dos Acórdãos deste Tribunal n.os 16/84 e 91/84 sobre o alcance do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
Nestes termos, não podem deixar de considerar-se inconstitucionais os preceitos em causa, na parte aqui considerada, ou seja, no que se refere aos respectivos §§ únicos.
Falta considerar a figura da suspensão, a que se refere o corpo desses preceitos.
Já se viu que se trata de uma consequência imediata e automática da simples instauração do procedimento penal por certa infracção fiscal imputável ao técnico de contas.
No pedido de apreciação o Provedor sustenta, por um lado, que uma tal solução ofende igualmente o artigo 30.º, n.º 4, da CRP - argumentando que «por maioria de razão a mesma proibição constitucional deverá valer para a eficácia de mera 'instauração de procedimento' de transgressão» - e, por outro lado, que ela contraria o princípio de proporcionalidade, que é um princípio constitucional geral aplicável a todas as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias.
Afigura-se não poder aderir-se à tese da aplicação directa do artigo 30.º, n.º 4, da CRP ao caso das medidas cautelares ou preventivas, como é aquele de que agora se trata, visto que aquele preceito constitucional só refere os «efeitos das penas», e não os efeitos dos procedimentos cautelares. Já se apresenta com evidente pertinência a questão da violação do princípio de proporcionalidade. A suspensão é automática, não depende de nenhum juízo sobre a sua necessidade no contexto de cada caso concreto (responsabilidade imputada ao técnico de contas, gravidade da falta, etc.).
Nestes termos, ela tem de considerar-se como afrontosa do princípio constitucional invocado, o qual encontra afloramento no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e sempre há-de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cf. o artigo 2.º da CRP).
Acresce, de resto, que, estando a suspensão organicamente ligada ao cancelamento automático previsto no mesmo artigo, não pode aquela subsistir quando este é considerado inconstitucional. Passará a faltar o próprio pressuposto de tal medida cautelar, que é justamente o ulterior cancelamento automático (registe-se que em relação ao cancelamento disciplinar previsto nos artigos 131.º do CIT e 161.º do CCI, de que abaixo se tratará, não se prevê a suspensão preventiva). Por isso, sempre a suspensão haveria de considerar-se inconstitucional a título consequencial.
2.4 - O artigo 161.º do CCI e o artigo 131.º do CIT
É o seguinte o teor desses preceitos:
O Ministro das Finanças poderá ordenar o cancelamento das inscrições referentes aos técnicos de contas que houverem subscrito declarações nas quais se verifiquem omissões ou inexactidões cuja responsabilidade deva imputar-se-lhes, sem prejuízo das penalidades imputáveis aos contribuintes.
Prevê-se aqui uma outra modalidade de cancelamento da inscrição, bem diferente daquela que acima se analisou. Além, o cancelamento da inscrição decorria automaticamente de uma condenação do técnico de contas por certas transgressões. Aqui, o cancelamento é uma medida autónoma, decidida pelo Ministro como punição de certos actos imputados ao técnico de contas. Em suma, trata-se de uma verdadeira pena administrativa de carácter inequivocamente disciplinar.
Que de poder disciplinar se trata, isso decorre explicitamente da lei, quando manda que os tribunais fiscais, após transitada em julgado uma decisão condenatória, a participem «às entidades que devam tomar conhecimento da infracção para eventual procedimento disciplinar contra o respectivo técnico de contas» (artigo 128.º do CIT, bem como, no mesmo sentido, o § 3.º do artigo 147.º do CCI, acima transcrito, embora este se refira apenas à infracção nele prevista, enquanto aquele se refere, ao invés, às infracções por cuja condenação não decorre automaticamente o cancelamento da inscrição, nos termos do artigo 130.º do CIT).
Este ponto exige clarificação, pois não é evidente a legitimidade constitucional da sujeição ao poder disciplinar do Estado de pessoas que não são funcionários ou agentes do Estado e que, portanto, não estão integradas numa relação de sujeição hierárquica. É certo que a Constituição só se refere especificamente ao processo disciplinar no contexto da função pública (artigo 269.º, n.º 3). Todavia, não é forçoso restringir a esse domínio o direito disciplinar público. O próprio facto de a Constituição se referir a um «regime geral de punição das infracções disciplinares», ao enunciar o elenco das matérias integrantes da reserva de competência legislativa da AR [artigo 168.º, n.º 1, alínea d)], sem qualquer ligação com o regime da função pública - por sinal, referida na alínea u) do mesmo preceito -, indica que o direito disciplinar público não é exclusivo da relação entre a Administração e os seus funcionários e agentes.
Não existe nenhuma razão para concluir que a Constituição tenha tornado ilegítima a utilização da punição disciplinar pública nas relações que envolvem uma relação especial de subordinação de terceiros à Administração, por exemplo, no caso de utentes de serviços públicos (alunos de escolas públicas, frequentadores de bibliotecas públicas, beneficiários da segurança social) e dos titulares de profissões dotadas de um estatuto público ou, pelo menos, «vigiadas pelo poder público», para utilizar a expressão de Manzini (Tratatto di diritto penale italiano, I vol., pp. 114 e 115).
O tema não é, aliás, inédito na jurisprudência constitucional portuguesa. A antiga Comissão Constitucional teve oportunidade de o abordar, e fê-lo nos seguintes termos:
Cumpre averiguar se é constitucionalmente admissível o estabelecimento de uma relação de sujeição disciplinar entre a Administração e particulares que, por não se encontrarem ao seu serviço a qualquer título, não podem ser considerados como seus agentes.
Não se descortinando na Constituição norma expressa que regule esta questão, o problema reconduz-se a saber se, em termos gerais, se pode configurar como ilícito disciplinar a violação de certos deveres aos quais se encontram especialmente sujeitas determinadas categorias de pessoas, ou se, pelo contrário, tal violação deve ser, obrigatoriamente, remetida para o campo do ilícito penal [...] Tem-se entendido com frequência, quer na doutrina nacional, quer na doutrina estrangeira, que o ilícito disciplinar administrativo se caracteriza pela inobservância de deveres relativos a «relações de supremacia especial» (ou seja, particulares estados de subordinação) e não pela inobservância de deveres gerais que incumbem a todos os cidadãos. Do mesmo modo se tem também entendido que tais relações de supremacia especial ou subordinação particular não supõem uma integração na hierarquia da Administração Pública, pois se podem verificar mesmo quando se trate de profissões ou de actividades livres, desde que sujeitas a um especial regime de vigilância por parte da autoridade pública [...] Na verdade, o exercício de certas actividades - quer pelo seu especial interesse público, quer pela sua perigosidade, quer por suporem uma relação funcional com a Administração, quer ainda por se traduzirem na utilização pessoal de um serviço público com carácter de permanência - não é compatível com a mera imposição de deveres de omissão, antes exige o cumprimento de certos deveres de acção, relativamente aos quais se tornam insuficientes os poderes de polícia da Administração Pública, que têm natureza eminentemente negativa. Nestes casos, é indispensável, para salvaguarda dos interesses colectivos, submeter o exercício de tais actividades a uma vigilância especial e dotar a Administração de poderes disciplinares sobre os eventuais infractores, colocando-os numa relação especial de subordinação face à mesma Administração.
[Parecer 7/78, em Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 4.º, pp. 337 e segs.; notas originárias omitidas, sublinhados acrescentados.] Não se vêem razões para alterar este ponto de vista, sendo esta doutrina claramente aplicável ao caso concreto dos técnicos de contas, que, como se mostrou acima (supra, 2.2), exercem uma actividade de evidente relevância pública, sujeita inclusive a registo público obrigatório.
O direito disciplinar profissional é, aliás, um dos campos tradicionais do direito disciplinar público. É certo que, as mais das vezes, tal poder disciplinar é exercido pelas próprias associações profissionais, dotadas de poderes públicos para o efeito, as quais normalmente (mas não necessariamente) possuem um estatuto de associações públicas («ordens», «câmaras»,etc.). É o que sucede entre nós quanto a profissões de algum modo afins, como a Câmara dos Despachantes Oficiais (Decreto 40363, de 25 de Outubro de 1955) e com a Câmara dos Revisores Oficiais de Contas (Decreto-Lei 519-L2/79, de 29 de Dezembro, artigos 114.º e seguintes). Mas nada impede que, na falta de tais associações públicas ou com poderes públicos - como aqui ocorre -, seja o Estado a usar directamente o poder disciplinar sobre os que exerçam uma profissão que justifique um regime de direito disciplinar público. Nem está excluído, sequer, que as duas modalidades coexistam, de tal modo que o poder disciplinar da associação pública competente não dispense o poder disciplinar da própria Administração.
Os técnicos de contas não estão organizados em associação pública, à qual o Estado pudesse devolver, no todo ou em parte, o poder disciplinar profissional (como sucede entre nós em relação a várias outras profissões e como se verifica em alguns países em relação aos próprios técnicos de contas). Por isso, tem de ser a própria Administração a exercer esse poder disciplinar.
Por conseguinte, quanto a este aspecto, os preceitos em análise não podem ser atacados quanto à sua conformidade com a Constituição (e, aliás, não é por aí que eles são atacados no requerimento do Provedor de Justiça). Mas também não podem ser atacados pelo facto de não estar regulado nesses Códigos o competente processo disciplinar, nem se garantir explicitamente ao arguido o necessário direito de defesa. A verdade é que, no silêncio da lei, se têm de considerar directamente aplicáveis os princípios constitucionais que regem a matéria e o regime geral a que se refere a Constituição [artigo 168.º, n.º 1, alínea d)], recorrendo, na falta deste, ao estatuto disciplinar dos funcionários públicos, na parte aplicável. As normas em apreço em nada obstaculam tal entendimento. Tem de concluir-se, portanto, que, podendo aquelas penas ser legitimamente aplicadas precedendo processo disciplinar com direito do arguido a defender-se, não podem as normas em apreço ser consideradas inconstitucionais pelo motivo invocado.
O principal fundamento invocado pelo Provedor de Justiça tem a ver, porém, com a falta de tipificação das infracções disciplinares que podem justificar o cancelamento da inscrição. O argumento exige atenção.
É tradicional afirmar que no direito disciplinar não tem aplicação o princípio da tipicidade na definição das infracções e na própria previsão das penas.
Todavia, mesmo admitindo que uma tal tese seja compatível com as exigências do princípio do Estado de direito democrático, a verdade é que ela tem de ser reexaminada quando as penas envolvidas implicarem a privação ou restrição de um direito fundamental (pressupondo que tais privações ou restrições podem constituir objecto de medidas disciplinares, ponto que aqui não precisa de ser abordado). Nesse caso, as regras constitucionais que condicionam e limitam tais retrições - designadamente o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2) - implicam que tais penas só sejam previstas para situações que justifiquem a sua gravidade. Basta recordar a tipificação das infracções que no regime disciplinar da função pública podem dar lugar às penas de inactividade (sempre temporária) e de aposentação compulsiva e demissão (artigos 25.º e 26.º do Decreto-Lei 24/84, de 16 de Janeiro, que define o regime disciplinar dos funcionários e agentes da administração central, regional e local). O respeito pelo princípio da tipificação verifica-se também nos casos referidos dos despachantes oficiais (Decreto-Lei 46312, de 27 de Março de 1965, artigo 466.º) e dos revisores oficiais de contas (Decreto-Lei 519-L2/79, artigo 102.º), quanto às penas semelhantes às de cancelamento da inscrição dos técnicos de contas.
Ora não sobra dúvida de que o cancelamento da inscrição afecta gravemente o exercício da profissão ao técnico de contas que sofra tal pena. Não seria apropriado à situação defender a ideia de que a suspensão ou cancelamento «não têm reflexo directo no exercício da profissão, não obstando, designadamente, a que o técnico punido continue ao serviço da empresa» (como se lê no parecer da AJPCM). A verdade é que ele deixa de poder subscrever as declarações e documentos exigidos por lei, pelo que os contribuintes terão de recorrer a outro técnico de contas, dispensando, naturalmente, os serviços daquele que tem a inscrição cancelada. A suspensão ou o cancelamento da inscrição traduzem-se numa amputação essencial da capacidade profissional do técnico de contas.
Por outro lado, porém, não é seguro que os preceitos em análise não delimitem minimamente o tipo de infracções cuja prática pode dar lugar ao cancelamento da inscrição. É certo que se fala genericamente em os infractores terem «subscrito declarações nas quais se verifiquem omissões ou inexactidões cuja responsabilidade deva imputar-se-lhes». Todavia, tais omissões ou inexactidões, embora não sejam qualificadas, só podem ser relevantes se praticadas nos documentos a que a lei se refere, ou seja, aqueles por que os técnicos de contas sejam responsáveis, nos termos das leis fiscais em causa. Trata-se - tudo o indica - daquelas «omissões» ou «inexactidões» que são consideradas em ambos os códigos como infracções fiscais e que fazem incorrer os seus responsáveis nas penalidades previstas naqueles. Quando elas sejam imputáveis aos técnicos de contas, podem dar lugar - conforme os casos - ao cancelamento automático da sua inscrição por efeito da condenação pela transgressão (como se viu acima), ou ao cancelamento como pena disciplinar aplicável pelo Ministro (nos termos dos preceitos agora em consideração).
Entretanto, se não existem razões suficientemente seguras para considerar desrespeito o princípio da tipificação (na medida em que ele deva considerar-se aplicável ao direito disciplinar), já tem de chegar-se a conclusão diversa quando se considere o já mencionado princípio da proporcionalidade.
Com efeito, as tais «omissões» ou «inexactidões» podem assumir a mais variada gravidade. Por um lado, deve, desde logo, considerar-se que as infracções aqui previstas hão-de ter-se por menos graves do que aquelas que, nos termos dos artigos 160.º do CCI e 130.º do CIT, conduzem ao cancelamento automático da inscrição dos técnicos de contas; por outro lado, e sobretudo, sempre existirá uma grande diferença de gravidade dessas mesmas omissões ou inexactidões. Basta referir que o artigo 147.º-A do CCI prevê para elas multas que vão de 30000$00 a 50000$00, de 20000$00 a 2000000$00 ou de 5000$00 a 1000000$00, conforme se trate de contribuintes dos grupos A, B ou C. Também o CIT previa no artigo 110.º uma multa de 1000$00 a 100000$00. Mas, enquanto no plano da responsabilidade penal-fiscal existe tal diferença de penas, no plano da responsabilidade disciplinar prevê-se, como única pena, para todo e qualquer caso, a medida drástica do cancelamento da inscrição.
Ora, prever como única pena para toda e qualquer falta, independentemente da sua natureza e gravidade e do grau de responsabilidade do agente, a pena de cancelamento da inscrição, isso ofende frontalmente o princípio da necessidade e da proporcionalidade enunciado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, o qual vale directamente para todas as medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias - como é o caso, sem dúvida - e que exige, entre o mais, que as penas previstas para cada tipo de infracções não sejam desproporcionadas à sua natureza. Este princípio não vale apenas para a aplicação das penas; ele rege antes do mais a previsão legal delas.
Eis por que também estas normas hão-de ser, nessa medida, consideradas inconstitucionais.
3 Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se, de acordo e para os efeitos do artigo 282.º da CRP, declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das seguintes normas:a) Do corpo dos artigos 160.º do Código da Contribuição Industrial e 130.º do Código do Imposto de Transacções, na parte em que determinam, a suspensão dos direitos emergentes da inscrição dos técnicos de contas, por infracção do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;
b) Do § único dos artigos 160.º do Código da Contribuição Industrial e 130.º do Código do Imposto de Transacções, por ofensa do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição;
c) Dos artigos 161.º do Código da Contribuição Industrial e 131.º do Código do Imposto de Transacções, por violação das normas conjugadas dos artigos 47.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.
Lisboa, 21 de Outubro de 1986. - Vital Moreira (relator) - Antero Alves Monteiro Diniz - Martins da Fonseca - Mário de Brito - Luís Nunes de Almeida - José Magalhães Godinho - Messias Bento (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - Raul Mateus (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - Mário Afonso (vencido em parte, conforme declaração de voto junta) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
São as seguintes as razões da nossa discordância:
1 - Quanto ao âmbito do pedido
O Provedor de Justiça em parte alguma do seu requerimento pede, de forma expressa ou sequer implícita, que se declare a inconstitucionalidade da norma do § único do artigo 130.º do CIT ou a do § único do artigo 160.º do CCI, que prevêem, como efeito da condenação, o cancelamento da inscrição do técnico de contas responsável. Pede, isso sim, a declaração de inconstitucionalidade dos mencionados artigos 130.º e 160.º Ao que acresce - decisivamente - que, quando, na petição, aborda a questão do cancelamento da inscrição, fá-lo com referência tão-somente às normas dos artigos 131.º e 161.º do CIT e do CCI, respectivamente, que prevêem, para certos casos, a aplicação daquela sanção pelo Ministro das Finanças.Por isso, sem discutir que as razões invocadas pelo Provedor para fundamentar a inconstitucionalidade da suspensão de inscrição possam valer, por maioria de razão, para o seu cancelamento, uma coisa é certa: o artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, vedava ao Tribunal o conhecimento da (in)constitucionalidade das normas dos mencionados §§ únicos. Preceitua ele, na verdade, que «o Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade [...] de normas cuja apreciação tenha sido requerida [...]».
O Tribunal não podia - e, por isso, não devia - conhecer de tal questão de constitucionalidade.
2 - Quanto ao artigo 130.º do CIT e ao artigo 160.º do CCI
2.1 - Estes normativos prevêem que, instaurado procedimento penal pela prática de certas infracções fiscais, isso seja averbado na inscrição do técnico de contas responsável, o qual, durante a pendência do processo, ficará suspenso dos direitos emergentes da inscrição - o que o impede de subscrever declarações para efeitos fiscais.
A suspensão do técnico de contas responsável tem, assim, como pressuposto o cometimento de determinados ilícitos fiscais. E ilícitos a que corresponde, para além de pena de multa, a de interdição do exercício das funções de técnico de contas responsável, uma vez que, em caso de condenação, seguir-se-á o cancelamento da inscrição (cf. os §§ únicos daqueles artigos 130.º e 160.º). É uma medida que só vale durante a pendência do processo, pois que, findo ele, em caso de condenação, é a inscrição cancelada, e, na hipótese inversa, é a suspensão levantada.
A suspensão de que aqui se trata é, pois, uma medida de natureza cautelar, não caindo, assim, na proibição do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, que só se refere aos efeitos automáticos das penas - como, de resto, no acórdão se reconhece.
2.2 - Os preceitos sub iudicio também não violam o princípio da proporcionalidade. Desde logo, a suspensão só é aplicada quando os ilícitos fiscais praticados revistam certa gravidade - mais precisamente, quando, como se viu, lhes seja aplicável a pena de cancelamento da inscrição, ou seja, a interdição do exercício das funções de técnico de contas responsável. Ora esta «relação de gravidade» entre a pena aplicável e a possibilidade de decretamento da medida cautelar de suspensão do exercício de direitos é precisamente a que se observa noutros domínios do direito público sancionatório. Para tanto, basta ver o que dispõe, v. g., o artigo 3.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei 19/84, de 14 de Janeiro (contra-ordenações marítimas), o artigo 52.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei 191-D/79, de 25 de Junho, e o artigo 200.º, n.º 1, alínea b), do Projecto do Código de Processo Penal.
Mas, para além disso, exige-se que os técnicos de contas a quem a suspensão é aplicada sejam «indiciados nos autos de notícia levantados» (cf.
a circular da DSFT de 17 de Junho de 1981) - o que significa que se requer que os factos delituosos verificados sejam imputáveis ao técnico de contas responsável. Ora a simples circunstância de se exigir um juízo sobre a responsabilidade pelas infracções constatadas afasta toda a ideia de um funcionamento «cego» (automático) da medida de suspensão: suspenso será apenas o técnico de contas responsável que se indicie como agente de infracções fiscais graves. De infracções de gravidade tal que, a provarem-se e a ser o técnico de contas por elas condenado, seguir-se-á, relativamente a ele, a interdição da faculdade de continuar a actuar como técnico de contas responsável.
2.3 - As normas em questão são, porém, consequencialmente inconstitucionais. E são-no pelas razões que a esse propósito se aduzem no acórdão.
3 - Quanto ao artigo 131.º do CIT e ao artigo 161.º do CCI
Estas normas não são inconstitucionais.
3.1 - Os preceitos em causa prevêm que o Ministro das Finanças poderá ordenar o cancelamento da inscrição dos técnicos de contas que houverem subscrito declarações de impostos em que se verifiquem inexactidões ou omissões cuja responsabilidade deva imputar-se-lhes.
Aqui, o cancelamento da inscrição surge como uma pena disciplinar que o Ministro pode aplicar ao técnico de contas responsável. O Ministro há-de, naturalmente, aplicar a medida em causa ali onde a gravidade da infracção e o grau de culpa do agente o justifiquem. Essa aplicação haverá de fazer-se num processo onde o arguido possa defender-se. A decisão que aplique a medida há-de ser devidamente fundamentada e está sujeita a recurso contencioso (cf.
o artigo 268.º, n.os 2 e 3, da Constituição).
3.2 - As normas questionadas, ao preceituarem que «o Ministro das Finanças poderá ordenar o cancelamento das inscrições [...]», não estabelecem, pois, uma sanção desproporcionada ou excessiva. Limitam-se, antes, a cometer ao julgador o encargo de, em cada caso, decidir como for mais adequado à gravidade da situação: a aplicação (ou não) da pena disciplinar de cancelamento da inscrição.
Isso, porém - garantidos que estão os meios de defesa -, é constitucionalmente legítimo. Está-se, na verdade, num domínio - o disciplinar - onde as infracções não têm de ser inteiramente tipificadas. Um domínio em que, correspondentemente, se não prevê, em regra, para cada infracção, uma punição precisa. Essa punição há-de o julgador determiná-la em face da gravidade de cada caso concreto, escolhendo-a, por norma, de entre a panóplia de medidas que o legislador coloca à sua disposição.
Desproporcionada, pois, não é a medida prevista, uma vez que ela pode ser (ou não) aplicada. Desproporcionada será, isso sim, a eventual aplicação de tal medida a um caso cuja gravidade o não justifique. Nessa hipótese, porém, o arguido não fica à mercê do titular do poder disciplinar, pois lhe estão garantidos os necessários meios de defesa, máxime o direito de recurso aos tribunais.
Os preceitos em causa não violam, pois, o princípio da proporcionalidade e da necessidade.
3.3 - As normas dos citados artigos 131.º e 161.º também não violam o princípio da tipicidade.
O princípio da legalidade («nullum crimen, nulla p(ver símbolo doc. original)na, sine lege»), tendo como corolário a regra da tipicidade das infracções, só vale, qua tale, no domínio penal, e não em todos os outros domínios do direito público sancionatório (cf. o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição).
A Comissão Constitucional, expressando embora dúvidas, pronunciou-se no sentido de que a exigência da tipicidade não valia no domínio das contra-ordenações (cf. o parecer 1/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 18.º, pp. 81 e segs., especialmente p. 89). E noutra ocasião exprimiu-se assim: «a insuficiente tipicização, só por si, não envolve qualquer problema de inconstitucionalidade, até porque é própria do ilícito disciplinar» (cf. o parecer 7/78, in Pareceres ..., cit., vol. 4.º, p. 344).
Na doutrina, Eduardo Correia refere que «não há, no ilícito disciplinar, tipicização integral», mas acrescenta que «a tendência é aqui para a tipicização» (cf. Direito Criminal, I, Coimbra, 1968, p. 36).
Sendo o direito disciplinar um direito sancionatório, os preceitos que revistam natureza punitiva hão-de, naturalmente, ser «desenhados» por forma a impedir que os seus destinatários fiquem à mercê de puros actos de poder. Para isso, porém, basta que, quando se prevejam sanções do tipo da que aqui está em causa - cancelamento da inscrição -, se cumpra um mínimo de determinabilidade, de modo que seja possível saber-se qual o tipo de actuação que pode conduzir à inflicção dessa pena.
Pois esse mínimo de determinabilidade observou-o, seguramente, o legislador nas normas em apreço. De facto, a lei circunscreve com suficiente precisão as hipóteses em que o Ministro das Finanças pode ordenar o cancelamento da inscrição dos técnicos de contas: trata-se (cf., de resto, o próprio texto do acórdão) das situações em que se verificam «omissões ou inexactidões» (que devam imputar-se-lhes) nas «declarações» tributárias por eles subscritas, ou seja, das situações previstas na segunda parte dos artigos 142.º do CCI e 107.º do CIT e aí qualificadas como infracções penais-fiscais. São tais infracções - e só elas - as que igualmente podem integrar, nos termos das normas ora em causa, um ilícito «disciplinar» dos técnicos de contas. E reportando-se essas infracções às declarações «a apresentar nos termos do», ou «exigidas» pelo correspondente código (cf. os artigos 142.º e 107.º citados), fica o seu âmbito - como fica o âmbito do correspondente ilícito disciplinar - perfeitamente delimitado através deste reenvio (interno) para os preceitos de cada um dos códigos que impõem aos contribuintes (e técnicos de contas) deveres de declaração de diversa índole.
Assegurada está, pois, a suficiente determinabilidade da infracção disciplinar em apreço, e nem se vê que se pudesse e devesse ir muito mais além. Em boa verdade, a exigência de um maior nível ou grau de determinabilidade das infracções disciplinares, numa matéria como a fiscal, onde se verifica uma forte propensão para a fraude e para a evasão, acabaria por desservir o Estado de direito, pois que redundaria em ineficácia do sistema. - Messias Bento - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
1 - Discordei em alguns pontos do acórdão. De seguida se assinalarão os lugares de divergência e as razões de tal distanciamento.2 - Ainda no domínio das questões prévias - e este é o primeiro ponto em que não acompanhei o acórdão -, votei no sentido do conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 147.º do CCI.
No requerimento do Provedor de Justiça tal norma é especialmente visada no pedido, e este - a um nível formal, o nível que neste momento importa considerar - é devidamente fundamentado. De facto, na parte conclusiva de tal requerimento, de imediato transcrita, é o Provedor de Justiça a esse respeito plenamente elucidativo:As normas dos artigos 130.º e 131.º do Código do Imposto de Transacções e as dos artigos 147.º, 160.º e 161.º do Código da Contribuição Industrial ofendem assim os preceitos contidos nos artigos 47.º (liberdade de escolha de profissão), 26.º (direito ao bom nome e reputação), 30.º, n.º 4 (limites das penas e das medidas de segurança), 32.º, n.os 1 e 2 (princípios das garantias de defesa do arguido e da presunção de inocência do mesmo até à condenação final), 18.º, n.º 2 (princípio da proporcionalidade nas restrições aos direitos fundamentais), 18.º, n.º 3 (carácter geral e abstracto das restrições aos direitos, liberdades e garantias), razão pela qual venho solicitar a esse V. Tribunal Constitucional a declaração, com força obrigatória geral, da sua inconstitucionalidade.
Aliás, no texto do acórdão, isto mesmo não deixa de ser reconhecido. Mas quase de seguida, e por se considerar «que nenhum dos fundamentos de inconstitucionalidade aduzidos para justificar o pedido tem algo a ver com tal preceito», o do artigo 147.º do CCI, se contrapõe:
De todo o modo, não basta que os pedidos de declaração de inconstitucionalidade refiram as normas a apreciar. Torna-se necessária a indicação - ainda que implícita - das regras ou princípios constitucionais ofendidos (v. o artigo 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro). É o que falta na ocorrência. Logo, deve concluir-se que em relação ao preceito em causa não deve conhecer-se do pedido.
A esta argumentação, que na sua ponta conclusiva descreve uma situação bem longe da realizada, não se adere de todo em todo.
Na verdade, o que o artigo 51.º, n.º 1, da Lei 28/82 exige é que no pedido de apreciação da constitucionalidade se especifiquem, «além das normas cuja apreciação se requer, as normas ou os princípios constitucionais violados».
Ora isto foi satisfeito: o pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 147.º do CCI tem efectivamente causa de pedir. Se a causa de pedir, in casu, injustifica a procedência do pedido, é algo que tem a ver com a questão de fundo, é, em última análise, e neste plano, de todo em todo irrelevante.
Deveria, pois, e porque satisfeitos os pressupostos legalmente exigidos, haver-se conhecido deste trecho do pedido.
3 - Tal como se entendeu no acórdão, também entendi que as normas dos §§ únicos dos artigos 160.º do CCI e 130.º do CIT eram inconstitucionais, pois que, determinando o cancelamento da inscrição do técnico de contas por efeito automático da aplicação de certa pena, interrompiam bruscamente a ordem normativa, em clara violação ao disposto no artigo 30.º, n.º 4, da CRP.
Sem rejeitar em absoluto as razões em que se fundou a declaração de inconstitucionalidade das normas dos corpos dos artigos 160.º do CCI e 130.º do CIT, enquanto estipulam que a instauração de procedimento para aplicação de multas pelos ilícitos fiscais ali referidos teria como efeito a suspensão, durante o processo, dos direitos emergentes para o técnico de contas da sua inscrição oficial, votei que mais simplesmente se considerasse esta inconstitucionalidade como consequencial da inconstitucionalidade das normas dos §§ únicos dos artigos 160.º do CCI e 130.º do CIT. Com efeito, preanunciando as medidas cautelares as medidas a tomar, e em definitivo, pelo tribunal, alinhando-se ambas, ainda que a distâncias diversas, em torno do mesmo eixo, tive por evidente que carecia de qualquer lógica, dentro da arquitectura dos citados artigos 160.º do CCI e 130.º do CIT, dar ainda por subsistente a medida preventiva (suspensão dos efeitos da inscrição), uma vez inconstitucionalizada a medida definitiva (cancelamento da inscrição). A função claramente instrumental da medida preventiva postulava assim - e preferentemente a meu ver - aquela solução, uma solução que implicava uma resposta de inconstilucionalidade consequencial para os segmentos em questão dos corpos dos artigos 160.º do CCI e 130.º do CIT.
4 - Relativamente às normas dos artigos 161.º do CCI e 131.º do CIT - e este é o último ponto de desacordo com o aresto -, votei no sentido de não serem declaradas inconstitucionais.
Na realidade, não vejo que com esses preceitos haja sido violado o princípio da proporcionalidade estabelecido no artigo 18.º, n.º 2, da CRP para a restrição de direitos fundamentais (no caso, o direito fundamental em causa era o do direito à livre escolha de profissão, previsto no artigo 47.º, n.º 1, da CRP). A minha discordância com essa rotulação foi, de facto, total.
É que uma interpretação sistemática de tais dispositivos - que não podem ser lidos desintegrados de outros preceitos da legislação fiscal - necessariamente exige que a declaração subscrita pelo técnico de contas, bem como as omissões ou inexactidões nela contidas, estejam necessariamente relacionadas com a definição, mediata ou imediata, da responsabilidade tributária do contribuinte a cujo serviço se encontra.
Nesta perspectiva - a perspectiva hermenêutica que se julga correcta -, não se tem por desmesurada a previsão de uma sanção disciplinar do tipo da contemplada nos artigos 161.º do CCI e 131.º do CIT, sanção que, sublinhe-se, não inibe em absoluto o técnico de contas do exercício de toda a sua actividade profissional, mas apenas de uma certa dimensão dessa actividade, rectius, da sua dimensão pública. E tal medida disciplinar configura-se tanto mais adequada quanto é certo que o microcosmo típico, próprio dos técnicos de contas, é um mundo muito particular, caracterizado em boa parte pelos apertados deveres desses técnicos para com a administração fiscal, deveres cuja violação - muito em especial quando envolvam fraude ou evasão fiscal - não pode deixar de ser correspondentemente sancionada.
Não se regista, assim, qualquer desencontro com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. - Raul Mateus.
Declaração de voto
1 - Votei vencido apenas quanto às normas contidas nos artigos 130.º do CIT e 160.º do CCI. Entendo que a suspensão aí estabelecida pode considerar-se como uma medida cautelar de procedimento para aplicação das multas, bem como do cancelamento da inscrição, quando esta não seja aplicada como efeito necessário da pena de multa. Não me parece que se trate de medida necessariamente desproporcionada, por se poder considerar exigível pela conveniente instrução do processo penal-fiscal, ou do processo disciplinar, atenta a relevante posição que o técnico de contas, caso não fosse suspenso, poderia assumir no obscurecimento da verdade material.2 - As normas do § único de cada um dos referidos artigos 130.º e 160.º não poderiam ser objecto de juízo de inconstitucionalidade, por se não conterem no pedido.
Na verdade, embora na introdução do pedido e na conclusão se solicite a declaração de inconstitucionalidade dos mencionados artigos 130.º e 160.º sem exclusão dos respectivos parágrafos, certo é, porém, que, ao deduzirem-se os fundamentos do pedido, apenas se faz referência à suspensão da inscrição, considerada no corpo de cada um desses artigos, e ao cancelamento da inscrição por decisão ministerial, a que se reportam os artigos 131.º do CIT e 161.º do CCI.
A suspensão vem considerada no capítulo I da fundamentação - n.os 3.º a 10.º, inclusive.
Ao cancelamento por decisão do Ministro das Finanças e do Plano refere-se o capítulo II da fundamentação - n.os 11.º a 14.º, inclusive.
Em parte nenhuma se alude ao cancelamento da inscrição como efeito necessário da condenação. - Mário Afonso.