1 - A questão
1.1 - O pedido
O Presidente da República requereu, em 25 de Outubro de 1982, ao Conselho da Revolução a apreciação e declaração da inconstitucionalidade do artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho - que, além do mais, revogou grande parte da Lei 56/79, de 15 de Setembro (Serviço Nacional de Saúde) -, com fundamento em violação, por parte do Governo, da competência legislativa reservada da Assembleia da República, então consignada no artigo 167.º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.Ao abrigo das normas constitucionais e legais então vigentes, foi solicitado à Comissão Constitucional o competente parecer sobre a questão, antes da decisão a tomar pelo Conselho da Revolução.
Todavia, entretanto entrou em vigor a Lei Constitucional 1/82 (primeira revisão da Constituição), pela qual o Conselho da Revolução foi extinto e a competência da Comissão Constitucional ficou reduzida - nos termos do artigo 246.º, n.º 3 - ao julgamento dos recursos de inconstitucionalidade, de acordo com o primitivo artigo 282.º da Constituição, isto enquanto não fosse constituído e entrasse em funções o Tribunal Constitucional.
Por esse motivo o processo não teve então seguimento, aguardando que, com a entrada em funções do Tribunal Constitucional, viesse a transitar para este, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro (lei do Tribunal Constitucional), o que só veio a ocorrer em 6 de Maio de 1983.
Nos termos da lei (artigo 54.º da Lei 28/82), foi o Primeiro-Ministro solicitado a pronunciar-se sobre o pedido, não tendo ele utilizado tal faculdade.
Nada havendo que obste à decisão da questão, cumpre conhecer do pedido.
1.2 - Âmbito do pedido
É do seguinte teor o requerimento do Presidente da República:1 - O artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho, revoga, além do mais, os artigos 18.º a 61.º, 64.º e 65.º da Lei 56/79, de 15 de Setembro. Tal revogação equivale à destruição ou inutilização do Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado pela Lei 56/79 e previsto no n.º 2 do artigo 64.º da Constituição. Com efeito, a orgânica própria daquele Serviço Nacional de Saúde não é, nem podia ser, substituída pelas «administrações regionais de cuidados de saúde» que o Governo nesse decreto-lei nem sequer prevê possam integrar-se no Serviço Nacional de Saúde.
2 - Ainda que a Lei 56/79 tenha sido aprovada pela Assembleia da República ao abrigo da alínea d) do artigo 164.º da Constituição, afigura-se-me que a criação do Serviço Nacional de Saúde, e, portanto, também a sua extinção ou alteração, constitui matéria da competência reservada da Assembleia da República por contemplar direitos fundamentais, face à sua inserção sistemática no texto da Constituição, onde o artigo 64.º integra a parte I, relativa a «direitos e deveres fundamentais», sob o título III, respeitante a «direitos e deveres económicos, sociais e culturais», ou, pelo menos, deverá ser considerado como «direitos de natureza análoga» (artigo 17.º).
3 - A dever ser acolhido este entendimento, porque o Governo, sem precedência de autorização legislativa, revoga e extingue nesse artigo 17.º do citado decreto-lei o Serviço Nacional de Saúde, invade a área de competência legislativa reservada da Assembleia da República [artigo 167.º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa] e por isso aquele normativo deverá ser considerado inconstitucional.
4 - Com estes fundamentos e ao abrigo do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição, requeiro ao Conselho da Revolução a apreciação e declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade do artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho.
Importa começar por verificar o alcance do questionado preceito do Decreto-Lei 254/82, diploma que veio proceder à revisão do regime das «administrações distritais de saúde», anteriormente contido no Decreto-Lei 488/75, de 4 de Setembro. É o seguinte o teor desse preceito:
São revogados o Decreto-Lei 488/75, de 4 de Setembro, e os artigos 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 54.º, 55.º, 56.º, 57.º, 58.º, 59.º, 60.º, 61.º, 64.º e 65.º da Lei 56/79, de 15 de Outubro.
O Decreto-Lei 488/75 é o diploma que anteriormente regulava a matéria agora objecto de novo regime, contido neste Decreto-Lei 254/82; a Lei 56/79 é a lei que instituiu o Serviço Nacional de Saúde.
Vê-se assim que o preceito contém duas partes bem distintas: uma (a primeira parte) revoga o Decreto-Lei 488/75, que era o diploma que anteriormente regulava a matéria e cujo regime é substituído pelo do novo diploma; outra (a segunda parte) revoga numerosas disposições da Lei 56/79, que criou e definiu as bases gerais do Serviço Nacional de Saúde, não sendo essas disposições substituídas por quaisquer outras.
Importa notar que o pedido de apreciação da inconstitucionalidade não abrange todo o preceito, antes se limita ao seu segundo segmento, aquele que revoga parte da Lei 56/79. Ainda que o texto do pedido do Presidente da República, na sua parte conclusiva, não faça qualquer restrição, a verdade é que do contexto global do pedido decorre inequivocamente que apenas é questionada a revogação dos artigos da lei do Serviço Nacional de Saúde.
Por isso, é somente sobre essa questão que vai incidir a apreciação e o juízo do Tribunal.
1.3 - A questão jurídico-constitucional
O problema posto à consideração do Tribunal parece claramente delimitado.
Alega o requerente que o preceito legal questionado, estando inserido num decreto-lei (ou seja num diploma legislativo do Governo) e revogando disposições de uma lei da Assembleia da República que contém as bases do Serviço Nacional de Saúde, está por isso a invadir a competência legislativa reservada da Assembleia da República, pois tal matéria, cabendo no âmbito de um dos direitos fundamentais (o direito à protecção da saúde, previsto no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa) e devendo gozar do regime dos «direitos, liberdades e garantias» referido no artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa, estava por isso mesmo abrangida na alínea c) do artigo 167.º da Constituição (no seu primitivo texto).
Tudo se parece analisar, portanto, numa questão de inconstitucionalidade orgânica, que se resume a esta simples pergunta: a matéria do Serviço Nacional de Saúde, à data do Decreto-Lei 254/82, pertencia à esfera da competência reservada da Assembleia da República? Realmente, é apenas este o fundamento de inconstitucionalidade explicitamente invocado pelo requerente. A única norma constitucioanl que se alega ter sido infringida é a do artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa (no texto então vigente) e o único vício expressamente apontado à norma legal questionada é o que decorre da alegada incompetência do Governo.
Todavia, o texto do pedido do requerente levanta ou suscita inquestionavelmente outro problema, além do da eventual inconstitucionalidade orgânica. Recorde-se que logo no ponto 1 do texto se afirma:
Tal revogação [a dos artigos da lei do Serviço Nacional de Saúde] equivale à destruição ou inutilização do Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado pela Lei 56/79 e previsto no n.º 2 do artigo 64.º da Constituição.
E, mais adiante, no ponto 3:
[...] O Governo [...] revoga e extingue nesse artigo 17.º do citado decreto-lei o Serviço Nacional de Saúde [...] [Itálicos acrescentados.] Parece óbvio que aqui está colocado outro problema relevante para efeitos de um juízo de inconstitucionalidade: já não um problema de inconstitucionalidade orgânica, mas sim um problema de inconstitucionalidade material. A ser verdade que a revogação dos mencionados preceitos da Lei 56/79 equivale à «Destruição ou inutilização do Serviço Nacional de Saúde» e sendo este uma forma de realização do direito à protecção da saúde, constitucionalmente garantido no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa, então estará em causa não apenas a incompetência do Governo para revogar tais normas, mas também, eventualmente, a própria admissibilidade constitucional de tal revogação.
Resta saber se, tendo o requerente invocado formal e explicitamente apenas a questão da inconstitucionalidade orgânica, será possível ao Tribunal levantar e apreciar outros fundamentos, para além (ou diferentes) dos enunciados no requerimento. Esta questão, porém, não oferece quaisquer dificuldades, estando, como está, directamente solucionada na Lei 28/82 (lei do Tribunal Constitucional), quando ela dispõe, no artigo 51.º, n.º 5, que «o Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, mas pode fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada».
O Tribunal não está, pois, impedido de conhecer outros eventuais vícios de inconstitucionalidade de que padeça a norma cuja apreciação lhe é requerida. E no caso concreto, tendo em conta que, embora a entidade requerente não invoque explicitamente a inconstitucionalidade material, ela acaba por suscitar efectivamente tal problema, o Tribunal Constitucional não deve abster-se de abordar também essa questão.
Identificados os problemas que há a resolver, cumpre buscar a solução para eles.
2 - A solução
2.1 - Enquadramento da questão
Antes de enfrentar propriamente os problemas a resolver, torna-se necessário proceder ao seu enquadramento histórico-legislativo, de modo a definir com nitidez o alcance da norma cuja constitucionalidade está em questão.Em 15 de Setembro de 1979 é publicada a Lei 56/79, aprovada em 28 de Junho do mesmo ano, tendo por objecto, como a sua rubrica explicita, o Serviço Nacional de Saúde. A referida lei teve por base o projecto de lei apresentado à Assembleia da República em Novembro de 1978 por deputados do PS (encabeçados pelo deputado António Arnaut, que, já antes, como ministro de anterior governo, havia preparado e submetido à discussão pública um projecto de Serviço Nacional de Saúde; outros dois projectos foram apresentados, um por banda de deputados do CDS, em Dezembro desse mesmo ano, o qual viria a ser rejeitado, e outro por deputados do PSD, bastante mais tarde, em Maio de 1979, não tendo chegado a ser votado (v. a publicação Serviço Nacional de Saúde, editada pela Assembleia da República, Lisboa, sem data, que inclui os textos dos vários projectos, bem como algumas peças da respectiva discussão parlamentar).
A lei do Serviço Nacional de Saúde comporta 65 artigos, os quais se dividem por 8 títulos. O título I ocupa-se das disposições gerais (artigos 1.º a 7.º); o título II versa o estatuto dos utentes (artigos 8.º a 13.º); o título III enuncia os cuidados de saúde (artigos 14.º a 17.º); o título IV regula a organização e funcionamento do Serviço Nacional de Saúde e é o mais longo, dividindo-se em 4 capítulos, sucessivamente dedicados aos princípios gerais (artigos 18.º a 23.º), aos órgãos centrais (artigos 24.º a 36.º), aos órgãos regionais e locais (artigos 37.º a 41.º) e aos serviços prestadores dos cuidados de saúde (artigos 42.º e 43.º); o título V da lei contém o estatuto do pessoal (artigos 44.º a 49.º); o título VI refere-se ao financiamento (artigos 50.º e 51.º); o título VII trata da articulação com o sector privado (artigos 52.º e 53.º); finalmente, o título VIII enumera as disposições finais e transitórias.
Embora não se qualifique a si mesma como simples lei quadro, a verdade é que a lei do Serviço Nacional de Saúde é efectivamente apenas uma lei de bases, que se não basta a si mesma e que carece de desenvolvimento legislativo mediante decreto-lei (e não de simples regulamentação de execução mediante diplomas regulamentares). É por isso que no artigo 65.º a lei estabelece:
O Governo elaborará, no prazo de 6 meses, a contar da publicação da presente lei, os decretos-leis necessários à sua execução.
Assim, algum tempo depois, o Governo aprova vários diplomas legislativos e um diploma regulamentar sobre a matéria: o Decreto-Lei 519-N1/79, de 29 de Dezembro (carreira médica dos serviços públicos de saúde), o Decreto-Lei 519-O2/79, de 29 de Dezembro (sobre as administrações distritais de saúde), o Decreto-Lei 530/79, de 31 de Dezembro (criando o Departamento de Cuidados Primários da Administração Central de Saúde), e, finalmente, o Decreto Regulamentar 85/79, de 31 de Dezembro (criando os centros comunitários de saúde e regulamentando os órgãos locais do Serviço Nacional de Saúde).
Entretanto, tendo havido novas eleições para a Assembleia da República e, em consequência, tendo o Governo sido substituído, logo o Decreto-Lei 81/80, de 19 de Abril, vem revogar todos aqueles diplomas (os três decretos-leis e o decreto regulamentar), com efeitos retroactivos e com reposição em vigor da legislação que tinha sido revogada por eles, ao mesmo tempo que prorroga até 15 de Setembro desse ano o prazo referido no artigo 65.º da lei do Serviço Nacional de Saúde, ou seja, o prazo a que o próprio Governo se achava legalmente obrigado para a publicação dos respectivos decretos-leis de desenvolvimento da lei, prazo que já havia caducado.
Submetido este diploma a ratificação da Assembleia da República em 22 de Abril (ratificação n.º 323/I, in Diário da Assembleia da República, 2.ª série, de 23 de Abril de 1984), não chegaria o respectivo processo a ter seguimento antes do termo do mandato dessa Assembleia da República, pelo que caducou.
Mais tarde o Governo solicita e obtém da Assembleia da República - mediante a Lei 17-A/81, de 8 de Agosto - uma autorização legislativa para, nos termos do artigo 1.º dessa lei, «alterar a legislação sobre o Serviço Nacional de Saúde, com revogação da Lei 56/79, de 15 de Setembro, e sua substituição por nova lei do Serviço Nacional de Saúde e mais legislação complementar».
Porém, esta autorização legislativa não chega a ser utilizada, e o Governo nem solicita a sua renovação nem procede à revogação e substituição da lei do Serviço Nacional de Saúde, até que, no ano seguinte, surge o Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho, que, apesar de só marginalmente contender com a Lei 56/79, vem revogar, pura e simplesmente, a maior parte dos artigos da lei do Serviço Nacional de Saúde.
Com efeito, dos 65 artigos da lei, só não são revogados os dos 3 primeiros títulos (artigos 1.º a 17.º), além dos artigos 62.º e 63.º, que se referem à extensão do Serviço Nacional de Saúde, respectivamente, às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e ao território de Macau. São assim revogados todos os preceitos respeitantes à organização e funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, ao estatuto do seu pessoal, ao seu financiamento, à sua articulação com o sector privado, bem como as disposições finais e transitórias da lei, as quais, entre outras coisas, proviam sobre o tempo e o modo de aplicação da lei.
Neste acidentado processo legislativo distinguem-se nitidamente duas fases: uma que abrange a aprovação da lei do Serviço Nacional de Saúde e o começo da sua aplicação; outra que começa com a revogação dos diplomas complementares da lei do Serviço Nacional de Saúde e acaba com a revogação da maior parte dessa mesma lei. Nesta segunda fase, porém, nota-se uma clara mudança de posição do Governo. Num primeiro momento, ao proceder à revogação dos decretos-leis e do decreto regulamentar que haviam dado início à implementação da lei, o Governo, no preâmbulo do Decreto-Lei 81/80, para além de justificar tal revogação, limita-se, no que concerne à própria lei do Serviço Nacional de Saúde, a anunciar a sua «revisão» e a protelar por alguns meses o prazo que essa lei previa para a sua concretização legislativa. Num segundo momento, o Governo solicita autorização à Assembleia da República não já apenas para rever a lei do Serviço Nacional de Saúde, mas sim para a «revogar», com «substituição por nova lei do Serviço Nacional de Saúde» (artigo 1.º da Lei 17-A/81); aliás, do debate parlamentar da proposta de lei que deu origem a este diploma depreende-se que o Governo transmitiu aos deputados um projecto de decreto-lei contendo a propugnada nova lei do Serviço Nacional de Saúde. Num terceiro momento, afinal, o Governo abandona a ideia de «rever» ou «substituir» a lei do Serviço Nacional de Saúde, prescinde mesmo de qualquer autorização legislativa da Assembleia da República e, no final de um diploma que só em pequeníssima medida toca no âmbito da lei do Serviço Nacional de Saúde, determina a sua pura e simples revogação. (Basta notar que o Decreto-Lei 254/82 tem por objecto a definição do regime das administrações distritais de saúde, que no esquema da Lei 65/79 são apenas a estrutura regional transitória do Serviço Nacional de Saúde, e que de entre todos os artigos revogados somente 5 deles - os artigos 37.º a 41.º - têm, pois, algo a ver com a matéria regulada naquele diploma.) É, pois, desta forma ultradiscreta - dir-se-ia que através de uma disposição mais ou menos «clandestina» e a despropósito (é de referir que o, aliás longo, preâmbulo do decreto-lei nem sequer menciona tal revogação) - que a lei do Serviço Nacional de Saúde, aprovada pela Assembleia da República ao fim de intenso debate (dentro e fora dela), se vê amputada da maior parte (e, também, da parte principal) do seu conteúdo legislativo.
Qual é o efeito da revogação desses artigos sobre a lei do Serviço Nacional de Saúde? É fácil verificar que foi revogada toda a parte institucional e organizatória da lei, a qual ficou reduzida a um pequeno conjunto de princípios materiais orientadores da política de saúde e dos serviços de saúde em geral, mas não do Serviço Nacional de Saúde, pois esse deixou de existir. Uma leitura da Lei 56/79 que se limite aos artigos que não foram revogados mostra imediatamente que o Serviço Nacional de Saúde, enquanto tal, foi efectivamente revogado e que, das disposições subsistentes, algumas (como as dos artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.º 2) deixaram de ter qualquer conteúdo e as restantes apenas continuam a valer como normas aplicáveis aos serviços públicos de saúde em sentido genérico ou às prestações públicas de saúde em geral, mas não a uma realidade caracterizada como era o Serviço Nacional de Saúde. A instituição Serviço Nacional de Saúde, essa, foi extinta. Sintomaticamente, o Orçamento Geral do Estado, que incluía uma rubrica especial no orçamento das despesas do ministério competente dedicado ao Serviço Nacional de Saúde, deixou de a mencionar a partir de 1983.
Afigura-se estarem já reunidos os elementos suficientes para enfrentar os problemas jurídico-constitucionais que cumpre solucionar. Pode dar-se por adquirido que:
a) A Lei 56/79, criando o Serviço Nacional de Saúde, é uma forma de realizar um direito fundamental, o direito à protecção da saúde, contemplado no artigo 64.º da Constituição, designadamente cumprindo a tarefa constitucional consignada no n.º 2 desse preceito constitucional;
b) A Lei 56/79 é uma lei em que a Assembleia da República se limitou a definir as bases gerais do regime jurídico do Serviço Nacional de Saúde, confiando ao Governo o seu desenvolvimento legislativo, mediante decreto-lei;
c) Através do artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, ao revogar a maior parte dos preceitos da Lei 56/79, o Governo legislou em matéria do direito à saúde e extinguiu na verdade o Serviço Nacional de Saúde, instituído por aquela lei.
É agora altura de procurar responder aos dois problemas já identificados:
1) Podia o Governo alterar ou revogar a Lei 65/79? 2) Podia o Serviço Nacional de Saúde, criado pela Lei 65/79, ser pura e simplesmente extinto? Todavia, é fácil ver que a resposta à primeira questão depende, em boa medida, da natureza do direito à protecção da saúde enquanto direito fundamental e que a resposta à segunda depende, em certa perspectiva, da natureza da tarefa constitucional imposta pela Constituição ao Estado no sentido de instituir um serviço nacional de saúde como modo de realização do direito à saúde.
A resposta àquelas duas perguntas exige assim uma prévia indagação - ainda que limitada em função do propósito que aqui importa - do sentido e conteúdo do direito à saúde, consignado no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa e da natureza e alcance da obrigação constitucional de instituição do Serviço Nacional de Saúde.
2.2 - A questão da inconstitucionalidade orgânica do artigo 17.º do Decreto-Lei
n.º 254/82
2.2.1 - A natureza do direito à saúde
Em abstracto, o direito à protecção da saúde - doravante designado abreviadamente por direito à saúde -, tal como a generalidade dos restantes «Direitos sociais» em cuja categoria genérica se integra, comporta, entre o mais, duas componentes distintas, a saber:
a) Uma, que se pode designar por vertente negativa, consiste em dar ao seu titular (os cidadãos em geral) o direito de exigir que ninguém (desde logo e em particular o Estado) actue ou tome qualquer medida lesiva da saúde do cidadão ou dos cidadãos em geral;
b) Outra, a que se poderá chamar vertente positiva, consiste em conferir ao cidadão direito a exigir do Estado a actividade e as prestações necessárias para salvaguardar a saúde e tratar as doenças.
Está generalizado na doutrina este modo de ver os chamados direitos sociais. Não é outra coisa o que escreve, por exemplo, M. Bothe na sua comunicação ao colóquio de 1979 da Academia de Direito Internacional da Haia, subordinado ao tema «O direito à saúde enquanto direito do homem», intitulada «Os conceitos fundamentais do direito à saúde».
Descrevendo esses dois aspectos (além de um terceiro que designa por aspecto igualitário, que não é mais do que o princípio geral da igualdade aplicado aos direitos fundamentais), ele escreve:
1 - O aspecto negativo. - Neste sentido, «direito à saúde» significa: o indivíduo tem direito a que o Estado se abstenha de qualquer acto que possa fazer perigar a saúde desse indivíduo. Está-se aí no domínio dos direitos fundamentais tradicionais [...] 2 - O aspecto positivo. - No aspecto positivo propriamente dito, o direito à saúde significa o direito a um conjunto de medidas estaduais visando a prevenção de doenças e o tratamento do doente. [...] Trata-se, por um lado, da criação de certas condições quadro por parte do Estado [...] e, por outro lado, de certas prestações estaduais ou prestações determinadas pela legislação estadual [...] [Actas do Colóquio, ed. por René-Jean Dupuy, Alphen aan den Rijn, 1979, pp. 14-15.] Na sua vertente «negativa», o direito à saúde compartilha das características dos tradicionais direitos de liberdade, ou seja, dos direitos «negativos», dos direitos à não interferência ou intervenção do Estado; na sua vertente «positiva», pelo contrário, o direito à saúde configura-se como um direito a acções do Estado, a medidas legislativas, à criação e funcionamento de instituições, a certas prestações (incluindo de carácter financeiro), etc.
No entanto, é só na sua vertente positiva, enquanto «direito social» propriamente dito, que o direito à saúde assume configuração própria e autonomia, enquanto direito fundamental específico; e é predominantemente nessa veste que ele adquire lugar autónomo nas cartas internacionais de direitos sociais e nas constituições de muitos países. É também especialmente nessa perspectiva que no seu artigo 64.º a Constituição da República Portuguesa encara o direito à saúde, enquanto direito fundamental, integrado no subgrupo dos «direitos sociais», do grupo dos «direitos económicos, sociais e culturais».
Elemento característico da definição do direito à saúde enquanto direito social é o que deriva do n.º 2 do artigo 64.º, onde a Constituição enuncia os instrumentos de realização desse direito. À cabeça deles surge a «criação de um serviço nacional de saúde».
A criação do Serviço Nacional de Saúde é, pois, elemento essencial do âmbito legislativo referente ao direito à saúde. Perguntar se o Governo pode legislar sobre o Serviço Nacional de Saúde equivale a perguntar se ele pode legislar em matéria de direito à saúde, em particular, ou em matéria de direitos sociais, em geral.
O Serviço Nacional de Saúde foi instituído por via de lei da Assembleia da República:
resta saber se se trata de matéria da sua competência legislativa reservada, que seja vedado ao Governo tratar.
À data do Decreto-Lei 254/82 a competência legislativa reservada da Assembleia da República estava definida no artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa (na sua versão originária). Em nenhuma das suas alíneas estava mencionada explicitamente a matéria do direito à saúde. Também nenhuma delas referia genericamente os «direitos sociais» ou os direitos fundamentais em geral, de modo a abranger também o direito à saúde.
No requerimento que desencadeou o presente processo é mencionada a alínea c) do referido artigo 167.º, o qual incluía na esfera reservada da Assembleia da República os «direitos, liberdades e garantias». Tudo se resume então a saber se o direito à saúde é um dos «direitos, liberdades e garantias» ou se, não o sendo directamente, goza do respectivo regime a título de «direito fundamental análogo», nos termos do artigo 17.º da Constituição da República, segundo o qual «o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga».
Que o direito à saúde, previsto no artigo 64.º, não é um dos «direitos, liberdades e garantias» previstos no título II da parte I da Constituição da República Portuguesa é evidente, pois este estendia-se apenas, na primitiva versão da Constituição da República Portuguesa, do artigo 25.º ao artigo 49.º, e a revisão constitucional de 1982, embora tendo ampliado o elenco (que passou a abarcar os artigos 24.º a 52.º), não incluiu aí o direito à saúde.
Resta, pois, saber se o direito à saúde constitui um «direito fundamental de natureza análoga» (Artigo 17.º) para efeitos de gozar do respectivo regime, incluindo a reserva de competência legislativa da Assembleia da República (pressupondo que este elemento faz parte integrante daquele regime, o que, não sendo indiscutível, é, todavia, posição dominante e quase pacífica na doutrina e na jurisprudência).
No entanto, não se pode sustentar convincentemente a opinião de que o direito à saúde seja um dos direitos fundamentais de natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias» propriamente ditos.
Com efeito, o que caracteriza essencialmente a esmagadora maioria dos direitos fundamentais integrados no capítulo II da parte I da Constituição da República Portuguesa é o facto de se tratar predominantemente ou de direitos de liberdade de feição clássica (ou seja de direitos à não intromissão do Estado na esfera de liberdade do cidadão), ou de direitos de participação e intervenção política, lato sensu. É certo que nem todos os direitos fundamentais aí incluídos possuem essa natureza nem os direitos tradicionais aí inseridos se reduzem apenas a essa vertente «negativa», ou de «participação», mas é indiscutível que é essa a feição dominante e é essa que constitui a diferentia specifica que identifica e distingue a categoria dos «direitos, liberdades e garantias».
O direito à saúde é, ao invés, um direito social propriamente dito, e o que o caracteriza essencialmente é o facto de ser um direito «positivo», ou seja, um direito às adequadas actividades e prestações do Estado. É, não um direito à abstenção do Estado, mas sim um direito a acções do Estado. É certo que o direito à saúde (tal como outros direitos sociais) também não é apenas isso, comportando igualmente, como acima se referiu, uma vertente «negativa», uma componente idêntica àquela que caracteriza especificamente os «direitos, liberdades e garantias» enunciados nos artigos 24.º a 58.º da Constituição da República Portuguesa; todavia, não é esse o aspecto que avulta no direito à saúde, sendo indiscutível que o artigo 64.º tem em vista esse direito especificamente na sua veste de direito social propriamente dito. E a lei do Serviço Nacional de Saúde, ao regular um dos aspectos mais importantes desse direito social, mantém-se claramente dentro desse quadro.
Assim encarado, o direito à saúde não pode considerar-se como um dos «direitos fundamentais de natureza análoga» a que se refere o artigo 17.º e não pode, portanto, reclamar-se, só por isso, do regime específico dos «direitos, liberdades e garantias», designadamente da reserva de competência legislativa da Assembleia da República. O direito à saúde, e logo a regulamentação do Serviço Nacional de Saúde, não poderia pois ter-se por abrangido na alínea c) do artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa.
É certo que hoje, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa, pertence à reserva da competência legislativa da Assembleia da República a matéria das «bases do [...] Serviço Nacional de Saúde». Mas isso é por efeito desse preceito específico acrescentado pela revisão constitucional de 1982 - e que, portanto, não é aplicável ao caso em apreço, pois o Decreto-Lei 254/82, é anterior à revisão -, e não por efeito da alínea b) desse mesmo artigo, que reproduz a antiga alínea c) do artigo 167.º O aditamento introduzido pela primeira revisão constitucional veio incluir na esfera da competência legislativa reservada da Assembleia da República uma nova matéria, que anteriormente lá não constava.
Aqui, a alteração constitucional não se traduziu em explicitar aquilo que já antes podia ler-se no texto constitucional, antes se tratou de um verdadeiro e próprio aditamento, na linha do alargamento sensível da competência legislativa reservada da Assembleia da República operada pela revisão constitucional.
De resto, a questão da eventual reserva de competência da Assembleia da República para legislar sobre o Serviço Nacional de Saúde não foi sequer reclamada ou suscitada na Assembleia da República ou fora dela durante todo o processo de aprovação da Lei 56/79 ou depois, quando foi anunciado o propósito da sua revisão ou substituição.
É verdade que em certa altura o Governo solicitou à Assembleia da República uma autorização legislativa para «Substituir» a lei, o que só se justificaria jurídico-constitucionalmente se o Governo não tivesse competência legislativa própria para isso; mas é igualmente verdade que ele fez questão de afirmar que solicitava a autorização, não porque entendesse carecer de competência legislativa para se ocupar da matéria, mas sim por razões de conveniência política, e tal posição não foi sequer contestada na Assembleia da República (v. o debate parlamentar da proposta de lei que deu lugar à Lei 17-A/81, in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 89, de 30 de Junho de 1981, pp. 3596 e segs., e n.º 90, de 1 de Junho de 1981, pp. 3640 e segs.).
Em conclusão: se não falha a argumentação até agora desenvolvida, haverá de concluir-se que o direito à saúde, enquanto direito social típico, não pode considerar-se como direito fundamental de natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias», pelo que não podia considerar-se abrangido na alínea c) do artigo 167.º da Constituição, na sua versão originária, não integrando, portanto, a competência legislativa reservada da Assembleia da República. O artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82 não infringiu, por aí, a Constituição.
2.2.2 - A natureza da lei do Serviço Nacional de Saúde e a questão da
legitimidade da sua revogação mediante decreto-lei
A Lei 56/79 não é uma lei qualquer. É uma lei de bases, isto é, uma daquelas leis que se limitam a definir as bases gerais dos regimes jurídicos (no caso do Serviço Nacional de Saúde). A lei do Serviço Nacional de Saúde não se autoqualifica expressamente como «lei de bases», embora o projecto que lhe deu origem se intitulasse expressamente «projecto de lei de bases do Serviço Nacional de Saúde» e a lei tenha sido assim designada frequentemente no debate parlamentar. Mas também não era preciso autodefinir-se: basta que o seja. Ponto é que ela contenha predominantemente preceitos qualificáveis como «normas de bases» e que a sua implementação careça e fique dependente não (ou não apenas) de execução regulamentar, mas sim de um prévio e intermédio desenvolvimento legislativo, mediante decreto-lei.
Ora, é disso precisamente que se trata. A lei do Serviço Nacional de Saúde é, na verdade, um conjunto de bases do Serviço Nacional de Saúde e, por outro lado, estava dependente de desenvolvimento legislativo através de decretos-leis nos termos do seu artigo 65.º, que assinalava ao Governo o prazo de 6 meses para os elaborar.
Foi assim, aliás, que os já referidos decretos-leis que vieram implementar a lei (designadamente o Decreto-Lei 519-N1/79, o Decreto-Lei 519-O2/79 e o Decreto-Lei 530/79) puderam todos eles invocar, no final dos seus preâmbulos, directamente a alínea c) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o qual, precisamente, confere ao Governo competência para «fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam».
Será que esta natureza particular da lei do Serviço Nacional de Saúde é susceptível de introduzir algum dado novo na questão da admissibilidade da sua revogação pelo Governo? Pode o Governo revogar uma lei quando está obrigado por essa mesma lei a implementá-la? É indiscutível o princípio de que o Governo tem competência legislativa originária em matérias não reservadas à Assembleia da República - é a alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição que o diz. Não limitando a Constituição, tem de aceitar-se que o poder legislativo do Governo pode ser não apenas praeter legem (entenda-se: em matérias não reguladas por lei da Assembleia da República), mas também contra legem (isto é: alterando ou revogando leis da Assembleia da República).
Poderá, porém, argumentar-se que isso só é válido em geral, mas não no caso especial das leis de bases da Assembleia da República, que reclamam o seu desenvolvimento legislativo pelo Governo. Nesses casos, o poder legislativo do Governo terá de ser exercido de acordo com a lei, pois só se desenvolve aquilo que se respeita. Ora, se o Governo está obrigado a desenvolver legislativamente uma lei e se, nessa tarefa, tem de respeitar a lei, será absurdo que, em vez de dar-lhe vida, desenvolvendo-a, a matasse, revogando-a; ou, noutras palavras, que o Governo, em vez de cumprir o «mandato» imposto pela Assembleia da República, não só o não cumpra como chegue a revogar o próprio «mandato». Em resumo: uma lei de bases que cometa ao Governo a tarefa do seu desenvolvimento legislativo, subordina a si o poder legislativo do Governo, que não poderia ultrapassá-la.
Uma tal linha de raciocínio poderia, aliás, confortar-se na ideia da supremacia legislativa que a assembleia representativa há-de ter num Estado democrático e na incongruência a que conduziria a admissão de que o Governo, que está obrigado a desenvolver uma lei da Assembleia da República, possa autodispensar-se dessa incumbência, revogando a própria lei que lha cometeu ... No caso concreto, de resto, este absurdo é sublinhado pelo facto de o Governo, depois de ter solicitado à Assembleia da República autorização para revogar a sua lei e substituí-la por um decreto-lei, acaba, tempos depois, já caducada a autorização, por revogar pura e simplesmente a lei, num preceito apendiculado (dir-se-ia: «contrabandeado») num decreto-lei sobre outra matéria.
A verdade, porém, é que não se vê onde encontrar no texto primitivo da Constituição suficiente arrimo para uma conclusão como aquela que decorreria da argumentação precedente. Por mais chocante que se afigure o resultado, parece não existirem meios bastantes para uma censura jurídico-constitucional do decreto-lei que, em vez de implementar, como é devido, uma lei de bases, a revogue pura e simplesmente.
Hoje existe na Constituição da República Portuguesa um preceito (artigo 115.º, n.º 2) que estatui claramente uma regra de prevalência da lei de bases sobre os respectivos decretos-leis de desenvolvimento, regra que pode tornar possível, se não mesmo necessário, um raciocínio do tipo do que acima se ensaiou. Todavia, esse preceito só foi introduzido no texto constitucional por via da revisão de 1982, e nada permite afirmar que esse aditamento seja apenas a «interpretação autêntica», ou a explicitação, de princípio que já anteriormente houvesse de ter-se por contido na lei fundamental. É certo que a ideia da subordinação dos decretos-leis às respectivas leis de bases já era defendida à face do texto originário da Constituição da República Portuguesa (v., por exemplo, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1978, pp. 388-389). Contudo, é bem duvidoso que a partir dessa ideia - que aliás nem sequer era pacífica - se pudesse, directamente, saltar para a proibição pura e simples de alteração (ou mesmo revogação) de uma lei de bases por parte do Governo.
Faltava um preceito constitucional que pudesse chamar-se à colação para interpretar restritivamente a alínea a) do n.º 1 do artigo 203.º da Constituição da República - que consagra a competência legislativa do Governo fora da área reservada à Assembleia da República -, acrescendo que todo o sistema de distribuição da competência legislativa entre a Assembleia da República e o Governo continuava demasiado próximo do esquema da Constituição de 1933 (na sua última versão), o que limitava a própria possibilidade de inovação nesta matéria por parte da doutrina e da jurisprudência, impedindo-as de tirarem todas as consequências de uma leitura valorizadora do princípio do Estado democrático (consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa) e das suas implicações no sentido de uma interpretação restritiva do poder legislativo de órgãos outros que não a assembleia representativa, exercido fora do contexto do debate contraditório e da publicidade crítica, pressupostos inerentes ao conceito democrático da lei.
Como quer que devesse entender-se a solução mais conforme a essa filosofia, o certo é que o resultado que mais apoio encontrava no texto constitucional não era de molde a considerar ilícita a revogação por via de decreto-lei de uma lei de bases (naturalmente desde que fora do domínio reservado da Assembleia da República), ainda quando esta cometesse explicitamente ao Governo a obrigação de a desenvolver legislativamente.
2.3 - A extinção do Serviço Nacional de Saúde e a questão da
inconstitucionalidade material do artigo 17.º do Decreto- Lei 254/82.
2.3.1 - O Serviço Nacional de Saúde como tarefa estadual
O direito à saúde, como a generalidade dos direitos sociais, consiste fundamentalmente num direito dos cidadãos a determinadas acções ou prestações estaduais, com a contrapartida da obrigação do Estado em praticá-las ou prestá-las.
A Constituição da República Portuguesa não se bastou com estabelecer o direito à saúde. Avançou no sentido de enunciar um conjunto de tarefas estaduais destinadas a realizá-lo. À frente delas a lei fundamental colocou a «criação de um serviço nacional de saúde» (artigo 64.º, n.º 2).
A criação de um serviço nacional de saúde é, pois, instrumento - o primeiro! - de realização do direito à saúde. Constitui, por isso, elemento integrante de um direito fundamental dos cidadãos e uma obrigação do Estado.
Na tipologia das normas constitucionais de natureza «positiva», «directiva» ou «dirigente» - isto é, daquelas que, em vez de interdizerem, requerem certa acção do Estado -, a norma que determina a criação de um serviço nacional de saúde assume a natureza de uma verdadeira e própria imposição constitucional, no sentido específico que a doutrina atribui a esta expressão (v., por todos, J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pp. 289 e segs.). Trata-se não de uma simples «norma programática» no sentido corrente da expressão, abstracta e temporalmente indeterminada, mas sim de uma obrigação constitucional do Estado, concreta e permanente.
Torna-se necessário analisar o alcance dessa imposição constitucional.
O Serviço Nacional de Saúde, cuja criação a Constituição determina, não é apenas um conjunto de prestações - é uma estrutura organizatória; não é apenas um conjunto mais ou menos avulso de serviços (hospitais, etc.) -, é um serviço em sentido próprio. É, portanto, uma estrutura a se, um complexo de serviços, articulado e integrado.
Todos os elementos de interpretação convergem no sentido de confirmar este entendimento do que há-de ser o Serviço Nacional de Saúde previsto na constituição.
Desde logo, e sobretudo, o preceito constitucional fala em «serviço nacional de saúde», não havendo qualquer razão para não se ler exactamente o que escrito está; depois, a comparação com a estrutura de outros direitos sociais, onde se não refere a Criação de idênticos serviços nacionais, mostra que a Constituição da República Portuguesa pretendeu, no caso da saúde, acentuar especificamente este aspecto (note-se que se não impõe a criação de um «serviço nacional de habitação», ou de um «serviço nacional de ambiente», nem sequer de um «serviço nacional de ensino»); finalmente, a revisão constitucional de 1982 veio confirmar este entendimento, pois, ao determinar que o «serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada» (n.º 4 do artigo 64.º, aditado pela Lei Constitucional 1/82), deixa claro que o Serviço Nacional de Saúde há-de ser um serviço público unitário, embora de gestão descentralizada, ou seja, integrado não na administração directa do Estado, enquanto serviço directo do Estado, mas sim na administração mediata, dotado de identidade própria e de autonomia. Enfim:
enquanto em relação à generalidade dos direitos sociais, a Constituição da República Portuguesa não impôs ao Estado a criação de estruturas determinadas, deixando livre, nesse aspecto, a escolha dos meios e formas de realização desses direitos, no caso do direito à saúde - tal como, aliás no caso do direito à segurança social, em que a Constituição impõe a criação de um «sistema de segurança social unificado e descentralizado», nos termos do artigo 63.º, n.º 2 -, a Constituição da República Portuguesa não se bastou com a consagração genérica do direito à saúde, antes impôs a criação de um serviço próprio, de uma estrutura específica, que, assim, se torna em condição imprescindível e garantia necessária do direito à saúde.
Ao criar um serviço nacional de saúde, a Lei 56/79 limitou-se a dar cumprimento a uma obrigação constitucional do Estado. Se não a tivesse cumprido o Estado teria incorrido em inconstitucionalidade por omissão. Resta saber se, uma vez instituído um serviço nacional de saúde, é lícito ao Estado aboli-lo, sem com isso atentar contra o próprio direito fundamental por ele garantido. Nisto consiste o acima mencionado problema da inconstitucionalidade material do artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82.
2.3.2 - A extinção do Serviço Nacional de Saúde e o direito à saúde
Com efeito, a revogação parcial da Lei 56/79 não produziu apenas uma correspondente amputação quantitativa da sua extensão normativa. Traduziu-se também, como se afirma (aí certeiramente) no texto do requerimento do Presidente da República, na «destruição ou inutilização do Serviço Nacional de Saúde», pois a orgânica própria daquele Serviço Nacional de Saúde não é nem podia ser substituída pelas administrações regionais de saúde, que o Governo, nesse decreto-lei, nem sequer prevê possam integrar-se no Serviço Nacional de Saúde.
Já acima se mostra que:
a) O Serviço Nacional de Saúde, na concepção da lei fundamental, há-de ser uma estrutura organizatória própria, um complexo institucional, um «serviço nacional»;
b) A revogação dos preceitos da lei do Serviço Nacional de Saúde operada pelo artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82 traduz-se efectivamente na extinção daquele serviço, juridicamente instituído por aquela lei.
Na sua construção constitucional, o Serviço Nacional de Saúde é um serviço nacional, geral e universal, ou seja, integra, numa estrutura de âmbito nacional todos os serviços públicos que prestam cuidados de saúde. Ora, os serviços regionais de saúde constituem entidades separadas, não estão englobados em nenhuma estrutura de âmbito nacional - e portanto não constituem um serviço nacional -, nem sequer abrangem todos os serviços públicos de saúde existentes a nível regional (estando excluídos, designadamente, os hospitais). Aliás, recorde-se, os serviços regionais de saúde são anteriores à Lei do Serviço Nacional de Saúde e, ao serem integrados neste, passaram a não ser mais do que estruturas regionais do Serviço Nacional de Saúde (cf. os artigos 37.º a 40.º e 64.º da Lei 56/79).
Como se vê, o Decreto-Lei 254/82 não substituiu um serviço nacional de saúde por outro; limitou-se a alterar o regime de estruturas pré-existentes que haveriam de integrar-se no Serviço Nacional de Saúde e revogou pura e simplesmente este.
Depois de, num primeiro momento, ter anunciado a revisão da lei do Serviço Nacional de Saúde e de, num segundo momento, ter pedido uma autorização legislativa para revogar a lei, substituindo-a por outra lei do Serviço Nacional de Saúde, o Governo, não tendo feito nem uma coisa nem outra, acabou por decidir-se pela nua extinção do Serviço Nacional de Saúde.
Esta conclusão não pode ser infirmada nem com o argumento de que, não tendo a lei do Serviço Nacional de Saúde sido implementada, a sua revogação nada extinguiu, nem com o argumento de que, mesmo com a sua revogação, não deixou de haver execução de direito constitucional à saúde.
O primeiro argumento é constitucionalmente absurdo. É certo que a Lei 56/79 não tinha sido ela mesma implementada à data da sua revogação (ou melhor, tinha começado a sê-lo, mas sem êxito, como se viu supra, 2.1); mas isso apenas servirá para provar que o Governo continuava incurso na obrigação de lhe dar cumprimento, e nunca para justificar a revogação da própria lei. Ao revogar a lei do Serviço Nacional de Saúde, o Governo não se limitou a «dispensar-se» da obrigação que ela (e a Constituição) lhe cometiam de a desenvolver; extinguiu também o que ela já havia criado, e cuja existência prática dele dependia. O facto de o Serviço Nacional de Saúde ainda não fazer parte integrante da efectiva organização da saúde não implica que ela não fizesse já parte da efectiva ordem jurídica da saúde. A lei do Serviço Nacional de Saúde deu execução ao nível primário (o primeiro e o imprescindível) da tarefa constitucional do artigo 64.º, n.º 2; foi esse nível que foi destruído por quem estava obrigado a executar o nível subsequente.
Não é mais sustentável o argumento de que, mesmo com a revogação da maior parte da Lei 56/79, ainda assim não se retirou execução ao artigo 64.º, n.º 2, da Constituição. Primeiro, do Serviço Nacional de Saúde propriamente dito, tal como foi concebido pela respectiva lei, nada de substancial restou (como se mostrou acima, 2.1). Depois, as «administrações distritais de saúde», que o Decreto-Lei 254/82 regula, são figura jurídica anterior à Lei 56/79 e anterior à própria Constituição.
Ora qualquer que deva ser o perfil da figura constitucional do Serviço Nacional de Saúde, a verdade é que ele tem de ser mais e outra coisa em relação aquilo que existia antes dele e antes da Constituição que mandou criá-lo (o que seria absurdo, se ele não fosse mais do que aquilo que já existia ...). Ora, a Constituição não permite que o direito à saúde seja realizado de qualquer modo: exige que o seja pela via constitucionalmente determinada, ou seja, pela via de um serviço nacional de saúde. A Constituição não se basta com a existência de quaisquer serviços públicos de saúde: exige um serviço nacional de saúde. É a criação de um serviço nacional de saúde que o artigo 64.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa impõe; foi um serviço nacional de saúde que a Lei 56/79 instituiu; foi esse Serviço Nacional de Saúde que o Decreto-Lei 254/82 extinguiu. Com isso foi revogada a execução que a norma do artigo 64.º, n.º 2, principiara a ter.
2.3.3 - A inconstitucionalidade da revogação da lei do Serviço Nacional de
Saúde
Ao extinguir o Serviço Nacional de Saúde, o Governo coloca o Estado, de novo, na situação de incumprimento da tarefa constitucional que lhe é cometida pelo artigo 64.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe está tão cometidas, isso só poderá ser objecto de censura constitucional, em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas, quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção.
Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa - a criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica -, então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a protecção directa da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. Quando, por exemplo, em cumprimento do artigo 101.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que ordenava a extinção do regime de colonia, este veio a ser efectivamente extinto, o Estado não pode, posteriormente, vir a revogar a extinção da colonia e a restaurar essa figura. Se o fizesse, incorreria em violação positiva do artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa.
Se isto é assim em geral para as normas que impõem concretas e definidas tarefas constitucionais, por maioria de razão há-de valer quando se trate de direitos fundamentais.
É que aí a tarefa constitucional a que o Estado se acha obrigado é uma garantia do direito fundamental, constitui ela mesma objecto de um direito dos cidadãos.
Quando a tarefa constitucional consiste na criação de um determinado serviço público (como acontece com o Serviço Nacional de Saúde) e ele seja efectivamente criado, então a sua existência passa a gozar de protecção constitucional, já que a sua abolição implicaria um atentado a uma garantia institucional de um direito fundamental e, logo, um atentado ao próprio direito fundamental. A abolição do Serviço Nacional de Saúde não significa apenas repor uma situação de incumprimento, por parte do Estado, de uma concreta tarefa constitucional; uma vez que isso se traduz na revogação da execução dada a um direito fundamental, esse acto do Estado implica uma ofensa ao próprio direito fundamental.
Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar, certas instituições públicas sistemas escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas, após terem sido criadas, a Constituição para a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.
Quer isto dizer que, a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação, positiva, para se transformar (ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.
Este enfoque dos direitos sociais faz hoje parte integrante da sua concepção na teoria constitucional, mesmo lá onde é escasso o elenco constitucional de direitos sociais e onde, portanto, eles têm de ser extraídos de cláusulas gerais, como a cláusula do «Estado social».
Assim, por exemplo, Jorg Paul Müller, na sua obra Soziale Grundrechte in der Verfassung?, depois de discriminar três «níveis de eficácia» dos direitos sociais (a saber: «nível programático», «nível interpretativo» ou «harmonizador-normativo» e «nível legalmente concretizado»), escreve a propósito deste último:
Eles os direitos fundamentais hão-de assegurar jurídico-constitucionalmente o status quo alcançado sob o ponto de vista do Estado social [...] A este domínio parcial poderá chamar-se o nível legalmente concretizado dos direitos sociais [ob.
cit., 2.ª ed., 1981, pp. 186-187; itálico no original].
No mesmo sentido vai Konrad Hesse, na sua contribuição sobre os direitos fundamentais incluído no Hundbuch des Verfassungsrechts, organizado por Benda, Maihoffer e Vögel (Berlim, 1983):
Na medida em que o programa dos direitos sociais seja realizado, esses direitos, sobretudo no domínio da segurança social, podem alcançar a eficácia de uma garantia constitucional do Besitzstandes social [ob. cit., pp. 98-99].
Menos dificuldades tem a doutrina lá onde as respectivas leis fundamentais incluem grande número de normas positivas, sobretudo em matéria de direitos sociais. É assim que, na Itália. um autor como G. Balladore Pallieri pôde escrever (aliás referindo-se expressamente à norma da Constituição italiana sobre o direito à saúde):
Existem no nosso ordenamento meios para impedir o legislador de legislar em certas matérias que lhe estejam vedadas; mas não existem para forçá-lo a legislar nos casos em que lhe é imposto que o faça. Estas normas da Constituição têm assim uma eficácia assaz menor do que as outras dependendo, em última análise, da boa vontade do legislador ordinário. Todavia, produzem um efeito, ao menos indirecto, notabilíssimo. Elas prescrevem uma via a seguir à legislação ordinária;
não conseguem constranger juridicamente o legislador a seguir essa via, mas compelem-no pelo menos a não seguir uma via diferente. Seria anticonstitucional a lei que dispusesse de maneira contrária à que a Constituição ordena. E, além disso, uma vez dada execução à norma constitucional, o legislador ordinário não pode retornar sobre os seus passos [autor citado, Diritto Costituzionale, 11.ª ed., Milão, 1956, pp. 405-406; itálico acrescentado].
A questão é tudo menos desconhecida para a doutrina constitucional portuguesa, onde a solução da inconstitucionalidade é igualmente adoptada.
Assim, J. J. Gomes Canotilho, na sua obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador (Coimbra, 1983), após distinguir também vários níveis de relevância jurídica dos direitos sociais («dimensão subjectiva», «dimensão programática» e «dimensão igualitária») e depois de afirmar que essa «dimensão subjectiva» resulta, além do mais, da «radicação subjectiva de direitos através da criação por lei, actos administrativos, etc., de prestações, instituições e garantias necessárias à concretização dos direitos constitucionalmente reconhecidos», conclui pela irreversibilidade dessa concretização (aliás num enquadramento teórico mais vasto):
É neste segundo sentido que se fala de direitos derivados a prestações (assistência social, subsídio de desemprego, etc.) que significam o direito de judicialmente ser reclamada a manutenção do nível de realização e de se proibir qualquer tentativa de retrocesso social [ob. cit., p. 374; itálico no original].
No mesmo sentido vai Jorge Miranda, que, num texto tão concludente quanto prudente - com a particularidade de se referir precisamente a uma hipótese igual ao caso de que trata o presente acórdão -, escreveu:
Maiores dúvidas provocará a revogação de lei que dê exequibilidade a certa norma constitucional sem ser acompanhada da emissão de nova lei (v. g. a revogação pura e simples da lei sobre o serviço nacional de saúde). Haverá inconstitucionalidade material do acto revogatório em virtude de produzir uma omissão? Poderá supor-se que sim: o legislador tem, certamente, a faculdade de modificar qualquer regime legislativo; o que parece não ter é a faculdade de subtrair supervenienternente a qualquer norma constitucional a exequibilidade que tenha adquirido [autor citado, Manual de Direito Constitucional, vol. I, tomo II, Coimbra, 1981, p. 670; itálico acrescentado].
Note-se que, em qualquer caso, se está perante normas constitucionais bem qualificadas:
a) São verdadeiras e próprias «imposições constitucionais» e não simples «normas programáticas»;
b) Prescrevem concretas e definidas tarefas constitucionais ao Estado e não vagas e abstractas linhas de acção;
c) Constituem meios de realização de direitos fundamentais.
Por mais propenso que se seja para desvalorizar a eficácia jurídico-constitucional das normas positivas da Constituição (aquilo a que se pode chamar a Constituição «directiva» ou «dirigente»), sempre os preceitos que revistam estas 3 características hão-de alcançar adequada eficácia normativa.
Impõe-se a conclusão: após ter emanado uma lei requerida pela Constituição para realizar um direito fundamental, é interdito ao legislador revogar essa lei repondo o estado de coisas anterior. A instituição, serviço ou instituto jurídico por ela criados passam a ter a sua existência constitucionalmente garantida. Uma nova lei pode vir alterá-los ou reformá-los, nos limites constitucionalmente admitidos, mas não pode vir extingui-los ou revogá-los.
Esta conclusão decorre naturalmente da concepção constitucional do direito à saúde como verdadeiro e próprio direito fundamental e do Serviço Nacional de Saúde como garantia institucional da realização desse direito.
E contra ela nenhum argumento de peso milita. Não se diga, designadamente, que uma tal tese equivaleria a conferir à lei do Serviço Nacional de Saúde valor da lei constitucional e a atribuir neste caso carácter paraconstituinte ao poder legislativo ordinário. Não se trata de nada disso. Em primeiro lugar, o facto de não ser constitucionalmente legítimo extinguir o Serviço Nacional de Saúde não significa que não seja lícito alterar ou mesmo revogar a Lei 56/79 (desde que ela seja substituída por outra lei do Serviço Nacional de Saúde). Não é o Serviço Nacional de Saúde concretamente estabelecido pela Lei 56/79 que goza de garantia constitucional; é, sim, a existência de um serviço nacional de saúde que se conforme com os requisitos constitucionais. Não há, portanto, qualquer constitucionalização da lei ou do seu conteúdo concreto.
Em segundo lugar, a garantia do Serviço Nacional de Saúde advém directamente da Constituição, e não de qualquer virtude particular da lei do Serviço Nacional de Saúde. Esta não goza de mais protecção do que qualquer outra lei que tenha criado um órgão, serviço ou instituição constitucionalmente necessários (a lei do Provedor de Justiça, a lei do Conselho de Comunicação Social, a lei do Conselho Nacional do Plano, etc.) ou que tenha criado ou extinto qualquer instituto jurídico cuja criação ou extinção fosse exigida pela Constituição (a lei que criou o ensino pré-escolar, a que extinguiu a colonia, a que vier a criar o imposto único sobre o rendimento, etc.). Ao criar o Serviço Nacional de Saúde, a Lei 56/79 limitou-se a dar cumprimento a uma tarefa constitucionalmente exigida ao Estado (e desde logo ao legislador); a protecção de que o Serviço Nacional de Saúde goza não é a que lhe advém de qualquer natureza especial da Lei 56/79 - que a não possui! -, mas sim e apenas de ele ser uma estrutura constitucionalmente necessária para realizar um direito fundamental. Enfim, não é a Lei 56/79, em si mesma, que não pode ser revogada - é apenas o Serviço Nacional de Saúde, que, uma vez criado, não pode ser abolido.
A lei pode ser revogada, desde que outra a substitua e mantenha o Serviço Nacional de Saúde. O Serviço Nacional de Saúde pode ser modificado; só a existência de um serviço nacional de saúde passou a ser um dado adquirido no património do direito à saúde, sendo, como tal, irreversível (a não ser mediante revisão constitucional que o permitisse).
À data em que o Governo extinguiu o Serviço Nacional de Saúde estava obrigado a implementá-lo. A sua inércia era censurável, mas não havia meio jurídico-constitucional de o impedir de continuar a não realizar o Serviço Nacional de Saúde; todavia, ao extinguir o Serviço Nacional de Saúde, o Governo incorreu numa acção inconstitucional, cujo resultado pode e deve ser impedido em sede de fiscalização da constitucionalidade. A obrigação que impunha ao Estado a constituição do Serviço Nacional de Saúde transcende-se em obrigação de o não extinguir. Ao fazê-lo, o Estado viola, por acção, esta obrigação constitucional.
Se uma lei, que veio dar execução a uma norma constitucional que a exigia, colmatando assim uma omissão inconstitucional, for revogada por outra, que, desse modo, repõe a anterior situação de inexecução da norma constitucional e de omissão inconstitucional, então a revogação ofende directamente a Constituição e consubstancia uma inconstitucionalidade por acção.
3 - Conclusão
De todo o exposto cabe apurar duas conclusões:a) Não há razões para entender que o artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82 seja inconstitucional por motivo de incompetência do Governo para legislar em matéria do direito à saúde;
b) Em contrapartida, deve entender-se que a revogação da maior parte da Lei 56/79, traduzindo-se na extinção do Serviço Nacional de Saúde, contende com a garantia do direito à saúde consignado no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa.
Assim, acordam no Tribunal Constitucional em declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, nos termos e para os efeitos dos artigos 281.º e 282.º da Constituição, do artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho, na parte em que revogou os artigos 18.º a 61.º e 64.º e 65.º da Lei 56/79, de 15 de Setembro.
Tribunal Constitucional, 11 de Abril de 1984. - Vital Moreira (relator) - José Magalhães Godinho- Jorge Campinos - Luís Nunes de Almeida - Raul Mateus - Mário de Brita - Antero Alpes Monteiro Dinis - José Martins da Fonseca - Joaquim Costa Aroso (com a declaração de voto anexa) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos da declaração anexa) - Messias Bento (vencido, em parte, nos termos da declaração de voto que junto) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
Não votei a declaração de inconstitucionalidade material do artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho, por violação do artigo 64.º da Constituição, pelas seguintes razões:Mesmo que se admita que antes da Lei 56/79 existiria uma inconstitucionalidade por omissão por falta de emissão de medidas legislativas tendentes a criar um «serviço nacional de saúde», o que é duvidoso, pois ela não depende apenas da omissão legislativa de normas tendentes à criação de um serviço nacional de saúde com as características constitucionais da unidade organizativa e outras, mas também de condições de ordem política (v. g., possibilidades em meios humanos, técnicos e financeiros em determinada conjuntura), será que a simples revogação da lei. aliás parcial (por só ter abrangido precisamente a parte organizatória unitário e integral daquele serviço), se transmudará em inconstitucionalidade por acção? Não envolverá tal revogação apenas a repristinação da inconstitucionalidade por omissão pressuposta? É que, no fundo, a acção e omissão legislativas têm um denominador comum - a vontade legislativa do incumprimento de normas constitucionais.
Daí para nós a génese da dúvida.
Os autores citados no projecto de acórdão (Jorge Miranda e Belladore Pallieri) não são peremptórios e conclusivos quanto à solução preconizada.
Por outro lado, não vemos que com aquela lei os cidadãos tenham conquistado todos os direitos às múltiplas prestações materiais (v. g., cuidados médicos e outros em que se desdobra o «direito à protecção da saúde»). Tinham simplesmente uma perspectiva (tal como antes da emissão da lei) nessa conquista, um direito ainda não concretizado.
Será que a simples normação da parte organizativa do serviço já constitui uma garantia institucional, se tal organização ainda não estava implantada e só o seria, aliás, progressivamente (artigos 57.º, 58.º e 59.º da lei) à data da revogação? A situação real dos utentes tem, aliás, progredido com a criação e progressiva implantação de serviços regionais (ou distritais) de saúde, e estão desse modo a ser criadas condições, e no mesmo sentido ainda outras (v. g. carreiras médicas).
Assim, é previsível que em futuro mais ou menos longínquo se criará e implantará a nível central a complexa organização que estava prevista na lei.
E depois pergunta-se: se se reconhecia que o País não estava preparado para, mesmo a nível regional, prestar aos utentes toda a gama de prestações e cuidados de saúde enunciados por falta de infra-estruturas (v. g. hospitais) a nível regional e local, que adiantava a instalação ou a simples criação da referida máquina administração central? Para quê tão grandiosa máquina administrativa, sem a prévia instalação de tais infra-estruturas a nível regional e local? Tratar-se-ia de uma máquina que teria de ficar em grande medida desaproveitada durante largo tempo, com os desperdícios de toda a ordem consequentes.
Isto vem para concluir que o endireito à protecção da saúde do n.º 1 do artigo 64.º da Constituição não tinha adquirido - e cremos que nunca poderá adquirir - a natureza dos clássicos «direitos, liberdades e garantias», a tal ponto que possam ver-se inconstitucionalidade em tudo que não represente o cumprimento hic et nunc de todas as normas organizatórias e funcionais da lei em causa (v. g., por não emissão dos inúmeros diplomas legais e regulamentares nela previstos) e das prestações materiais em matéria de saúde pública.
Para a tese vencedora tudo se passa como se a lei em causa tivesse adquirido força constitucional e, como tal e a esse título, «irreversível». E teríamos de acrescentar mais uma alínea ao artigo 290.º da Constituição.
Não estará a; o reconhecimento implícito de que só com tal entendimento fica demonstrada a inconstitucionalidade por acção?! É que, na verdade, só com esse entendimento se poderia aceitar - e, então, sem qualquer resistência intelectual - a tese da inconstitucionalidade material, por acção do próprio legislador ordinário.
Ao fim e ao cabo, como tal entendimento não é viável, só temos com liquidez uma solução possível para o problema - repristinação da «pressuposta» inconstitucionalidade por omissão anterior à lei do Serviço Nacional de Saúde.
Não pode esquecer-se que o artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho, revogando certos artigos ou normas dessa lei, com exclusão, por sinal, das normas mais substantivas (artigos 1.º a 17.º), só revogou, afinal, uma lei ordinária, aliás com o mesmo nível e a mesma força do decreto-lei, isto é, só desrespeitou essa lei, e não a Constituição.
Para mais não se trata de uma abolição (ou banimento), como a cada passo se lê no acórdão, porque não se teve - nem podia ter - o propósito de fazer desaparecer da ordem jurídica portuguesa todo e qualquer e «serviço nacional de saúde». Isto é:
não se trata daquelas leis como as que aboliram o instituto do aforamento, o da colonia (n.º 2 do artigo 101.º da Constituição) ou das que, em passado próximo ou remoto, aboliram a PIDE/DGS e a LP, a monarquia, o colonialismo, a escravatura, a pena de morte, a pena de prisão perpétua, etc.
Nem a abolição (no sentido indicado) era viável dado o disposto no artigo 64.º da Constituição.
A «protecção do direito à saúde» (e não propriamente como se diz, às vezes, brevitatis causa «direito à saúde») vai sendo realizada, melhor ou pior, com as leis e com os meios disponíveis, quer anteriores à Constituição, quer posteriores.
Joaquim Costa Aroso.
Declaração de voto
Votei no sentido de que o artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, na parte em que revogou os artigos 18.º a 61.º e ainda os artigos 64.º e 65.º da Lei 56/79, não era de considerar materialmente inconstitucional. Este meu entendimento funda-se, por um lado, numa «compreensão» das normas constitucionais «positivas» (e ao fim, se se quiser, numa «teoria constitucional») que não é coincidente com a acolhida no acórdão, e por outro lado, numa diferente avaliação da situação fáctico-normativa ocorrente no caso sub judice. Não me sendo possível, em razão do tempo, desenvolver aqui amplamente os 2 aspectos referidos, e em especial o primeiro, cingir-me-ei, de seguida, a uma indicação esquemática dos pontos essenciais.Assim:
a) Não excluo que as normas ou princípios constitucionais «positivos» - como o do artigo 64.º, n.º 2 da Constituição - desenvolvam, ou possam desenvolver, também uma eficácia «negativa», do tipo daquela que levou a maioria do Tribunal a concluir, na hipótese em apreço, pela inconstitucionalidade do artigo 17.º, do Decreto-Lei 254/82: isto é, a eficácia de tornarem ilegítima a revogação de normas legais destinadas a dar-lhes cumprimento. Só que, entendendo essa Constituição «positiva» como um quadro normativo «aberto», em cujo largo espectro há-de caber a pluralidade de opções político-legislativas correspondentes à diversidade e ao pluralismo das concepções acerca do progresso social e dos seus caminhos acolhidas em cada momento na comunidade histórica concreta e um quadro normativo cuja «efectivação» está necessariamente dependente da utilização de recursos (v. g., humanos e materiais) que são por natureza escassos, entendendo assim as coisas, sou compreensivelmente levado a concluir que essa particular eficácia das normas constitucionais «positivas» há-de ocorrer em hipóteses decerto muito contadas e apenas sob condições e pressupostos muito precisos. E com isso concluo também que nesta área e em sede de apreciação contenciosa da constitucionalidade - justamente aquela onde será visível a dita eficácia das normas em causa - se exige seguramente das instâncias de controle, e nomeadamente do Tribunal Constitucional, uma especial e prudente contenção.
b) Em meu modo de ver - e precisando a orientação acabada genericamente de apontar -, para que a revogação de normas concretizadoras de um princípio constitucional «positivo» seja susceptível de gerar a inconstitucionalidade da correspondente norma revogatória é necessário: primeiro, que o princípio constitucional em causa já seja, na sua expressão a esse nível, suficientemente claro e afirmativo para dele se retirar (para o legislador dele dever retirar) uma indicação inequívoca quanto à direcção e sentido a seguir e quanto aos meios a utilizar, na sua efectivação; mas depois, e além disso, que essa revogação se tenha traduzido na completa aniquilação de uma situação jurídica e institucional que, vindo dar realização a tal princípio, haja criado já à sua volta um «consenso profundo e alargado», de tal modo que se tenha radicado «na consciência jurídica geral a convicção da sua obrigatoriedade constitucional» (são expressões de Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, p. 309, cuja orientação neste ponto inteiramente acompanho). Ou seja, e numa palavra: só é de considerar ilegítima e inadmissível a revogação de uma regulamentação concretizadora da Constituição (v. g., de um direito fundamental «positivos») quando dela tenha derivado a destruição, completa e efectiva, de algo que, embora dispondo directamente apenas de uma cobertura normativa «legal», já entrara a fazer parte do «acquis constitucional».
c) Sendo assim, na emissão de qualquer juízo de constitucionalidade da espécie em causa, não poderá deixar de intervir como tópico da maior importância - cumpre sublinhá-lo - a consideração da situação de facto realmente produzida pela legislação revogada: ou seja, a consideração não apenas dos preceitos desta última, mas sobretudo da situação institucional por ela criada. Decisiva é aqui, por outras palavras, ou vistas as coisas de outro ângulo, a realidade constitucional.
d) Posto isto, e voltando à hipótese sub judice, caberia antes de tudo interrogarmo-nos sobre se o artigo 64.º, n.º 2, da Constituição exige, na verdade, a instituição de um «serviço nacional de saúde» como estrutura organizatória inteiramente unificada (tal como se sustenta e descreve no acórdão) para dar realização efectiva ao direito à protecção da saúde reconhecido no n.º 1 do mesmo artigo. Mas, mesmo não considerando este ponto (cuja análise deixo, por minha parte, imprejudicada), subsiste, de qualquer modo, que um «serviço nacional de saúde» com essas características não chegou efectivamente a implantar-se entre nós, não obstante a emissão da Lei 56/79: ao nível institucional, semelhante «serviço», de facto, nunca existiu. E, não tendo chegado a existir, é óbvio que também não entrou a fazer parte do acquis constitucional, tal como acima ficou caracterizado. A revogação da Lei 56/79 não implicou, assim, a destruição ou a aniquilação de qualquer parcela deste acquis. De resto, revogado esse diploma, não pode dizer-se que tenha ficado «nada», em termos de cumprimento pelo Estado da sua obrigação de dar conteúdo efectivo ao direito fundamental do artigo 64.º, n.º 1:
antes ficou, por assim dizer, «tudo», já que o Estado continuou a desincumbir-se dessa tarefa através dos meios institucionais preexistentes (apenas com as alterações entretanto introduzidas pelo próprio diploma revogatório), meios institucionais esses, aliás, muito amplos e generalizados (indiferente sendo se anteriores à Constituição ou não).
e) Eis, pois, quanto me basta para, atento o que antes ficou referido, concluir - mesmo sem indagar (repito) qual o preciso significado da referência ao «serviço nacional de saúde» feita no artigo 64.º n.º 2, da Constituição - que a revogação da Lei 56/79 pelo artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82 não consubstanciou uma violação desse preceito da lei fundamental.
José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Do meu ponto de vista, o artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho - revogando os artigos 18.º a 61.º, 64.º e 65.º da Lei 56/79, de 15 de Outubro -, não violou o artigo 64.º, n.º 2, da Constituição.De facto:
1 - O direito à protecção da saúde analisa-se numa pretensão jurídica, e não num poder de exigir do Estado uma determinada prestação. O seu conteúdo depende, por isso, no essencial, da vontade do legislador ordinário, que, aí, dispõe de um poder de conformação autónomo, pois, confrontado como está com a escassez dos meios - designadamente financeiros - para acudir a todas as necessidades sociais, tem que fazer opções num quadro de prioridades que ele próprio há-de traçar.
2 - Deste modo, quando o artigo 64.º, n.º 2, da Constituição prevê que o direito à protecção da saúde seja realizado, designadamente através de um serviço nacional de saúde - a criar -, o que nele se contém é uma directiva para o legislador: este fica obrigado a assegurar aos cidadãos, ao menos, o conteúdo mínimo do direito à protecção da saúde - além do mais -, criando um «serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito».
A norma do artigo 64.º, n.º 2, é, assim, uma norma impositiva de legislação.
3 - O legislador interveio, editando a Lei 56/79, com a qual visou criar um serviço nacional de saúde. Esse serviço, porém, não chegou nunca a ser montado, pois os decretos-leis de desenvolvimento necessários à implementação daquela lei (v. artigo 65.º) não vieram a ser publicados.
Significa isto que, em direitas contas, nunca chegou a existir qualquer serviço nacional de saúde.
Por isso, não se pode dizer que, com a emissão do artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, o legislador tenha vindo a extinguir ou abolir um serviço nacional de saúde que antes criara: não pode extinguir-se o que apenas existiu no papel (na letra da lei), o que nunca chegou a funcionar, por nunca ter sido, sequer, montado.
Isto é quanto basta para - em meu entender - não poder falar-se, aqui, em inconstitucionalidade, quando esta se queira ver numa pretensa privação dos cidadãos de direitos antes concedidos pelo legislador, decorrente da apontada revogação de preceitos da Lei 56/79.
E isto muito simplesmente porque esse direito não chegou a subjectivar-se.
Na verdade, não tendo tal serviço nacional de saúde chegado a existir, não havendo passado a fazer parte do património de benefícios sociais, comunitariamente adquiridos, não é razoável - face à revogação das normas legais que visavam a sua estruturação - dizer que o legislador tenha vindo violar qualquer direito subjectivo dos cidadãos. Um tal direito só existiria se os cuidados de saúde tivessem passado a ser prestados por aquele serviço. Mas isso não sucedeu.
4 - Ainda, porém, que o serviço instituído pela Lei 56/79 houvesse chegado a funcionar, ainda assim, não ficava o legislador, só por isso, impedido de voltar atrás.
Ele só não poderia, sem inconstitucionalidade, extinguir um tal serviço se este se houvesse radicado na «consciência jurídica dominante», formando-se um espécie de communis opinio a respeito da sua essencialidade. Então - e só então - se poderia falar em inconstitucionalidade da norma que, revogando o quadro legal que o estruturara, o tivesse vindo extinguir.
O artigo 64.º, n.º 2, da lei fundamental só nessa medida garante aos cidadãos a estabilidade das prestações que o legislador lhes conceder. Para além desse nível, não é razoável qualquer imposição visando proibir o retrocesso social.
Sempre que, movendo-se no quadro das opções por si próprio traçadas, o legislador conceda aos cidadãos um direito de prestação, nem por isso a «situação jurídica recomendada», contida no respectivo preceito constitucional, se transmuda em direito fundamental. Esse direito continua a ser um direito concedido, que por isso mesmo, continua na disponibilidade - embora limitada - do legislador.
Nem poderia, de resto, ser de outro modo. Pois se o legislador, uma vez concedido o direito, ficasse amarrado a ele e, assim, impedido de alterar o nível da sua realização, os direitos sociais passavam a ser direitos mais fortes que os próprios direitos, liberdades e garantias: estes, com efeito - respeitado que seja o contendo essencial dos respectivos preceitos constitucionais -, sempre admitem restrições (v. artigo 18.º, n.os 2 e 3). Depois, uma tal vinculação do legislador equivaleria a atribuir-lhe, num primeiro momento, poderes autenticamente constituintes, para, de seguida, o descaracterizar, remetendo-o para tarefas de mera execução, porque destituídas das características verdadeiramente distintivas da função legislativa: a liberdade constitutiva e auto-revisibilidade (v., sobre tudo isto, J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Coimbra, 1983, pp.
302 e segs.).
A concepção de constituição que um tal entendimento das coisas pressuporia é, no entanto, uma concepção que, de todo, não perfilho: a lei fundamental, tal como a entendo, não se pode confundir com um mero programa de governo; há-de ser antes - e sempre - um quadro normativo, aberto à criatividade e à inventiva do poder democrático. Há-de permitir a este que - empenhado na criação de condições de justiça social, capazes de possibilitar a cada homem uma cada vez mais completa realização da sua personalidade - rasgue caminhos vários que cada um, atento às exigências do bem comum, possa livremente percorrer em busca do seu próprio modelo de bem-estar.
5 - A tudo quanto vem de dizer-se no sentido da inexistência da pretendida inconstitucionalidade do mencionado artigo 17.º do Decreto-Lei 254/82, acresce ainda mais o seguinte: com a revogação operada, os cidadãos não ficaram desmunidos em matéria de protecção do direito à saúde nem menos protegidos do que estiveram durante o tempo em que vigorou a Lei 56/79. Os vários serviços que prestavam cuidados de saúde, designadamente hospitalares (ADSE, Serviços Médico-Sociais, Serviço Social do Ministério da Justiça, etc.), continuaram a prestá-los, tal como antes. E, além disso, o referido Decreto-Lei 254/82 reestruturou as administrações distritais dos serviços de saúde - criadas pelo Decreto-Lei 488/75, de 4 de Setembro -, transformando-as em administrações regionais de cuidados de saúde (ARS).
Significa isto que o nada que era o Serviço Nacional de Saúde instituído pela Lei 56/79 - nada porque sem existência real - substitui-o o legislador pelas várias «estruturas do sector oficial e do sector privado de saúde», encarregando as ARS de «planear e gerir coordenadamente as acções que envolvam a promoção da saúde, prevenção e tratamento das doenças e reabilitação», que, para tanto, devem promover «o máximo aproveitamento, ao menor custo, dos recursos existentes» naquelas estruturas (v. artigo 3.º do citado Decreto-Lei 254/82).
Messias Bento.