Acórdão 544/2001/T. Const. - Processo 194/01. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1 - Em 26 de Outubro de 1992, Luís Manuel Machado Marques interpôs, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação de um despacho do Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território datado de 17 de Agosto de 1992 que indeferiu o recurso hierárquico que havia interposto para o Ministro do Planeamento e da Administração do Território da resolução que recaiu sobre o parecer da Comissão de Coordenação da Região (CCR) de Lisboa e Vale do Tejo desfavorável ao seu projecto de loteamento industrial de uma parcela de terreno, sito no Seixalinho, freguesia e concelho do Montijo.
A entidade recorrida, na resposta de fls. 22 e seguintes, pugnou pela absolvição da instância e, subsidiariamente, pelo não provimento do recurso.
Nas respectivas alegações (fls. 38 e segs.) o recorrente apresentou, entre outras, as seguintes conclusões:
"[...]
4.ª O acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, tendo violado os artigos 168.º, n.os 1, alínea a), e 2, da CRP, 4.º e 17.º do Decreto-Lei 93/90, e 24.º, n.º 3, e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei 400/84, pois:
a) O Decreto-Lei 93/90 restringiu o direito de propriedade (artigo 62.º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias, ex vi do artigo 17.º da CRP, sem que tenha existido prévia lei de autorização legislativa, violando o disposto no artigo 168.º, n.os 1, alínea a), e 2, da Constituição da República Portuguesa (v. acórdãos do Tribunal Constitucional in Diário da República, 2.ª série, de 20 de Novembro de 1991);
[...]."
A entidade recorrida apresentou também alegações (fls. 60 e segs.), tendo nomeadamente sustentado o seguinte:
"[...]
Pretende o recorrente que o acto impugnado incorre no vício de violação de lei, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma inconstitucional e padecer de erros sobre os pressupostos de facto e de direito.
Desde logo advoga que o regime da REN configura uma clara limitação do direito de propriedade, contemplado no artigo 62.º da CRP.
A este respeito dir-se-á que o direito de propriedade, como direito constitucionalmente garantido, não é um direito absoluto, antes comporta restrições necessárias à defesa de outros direitos e interesses com igual consagração constitucional.
Haja em vista os denominados direitos sociais, designadamente a defesa do património cultural, da protecção da natureza e do equilíbrio ecológico - n.º 2 do artigo 66.º da CRP.
Haverá, pois, que conjugar o poder de gozo do bem objecto do direito de propriedade com uma das tarefas fundamentais do Estado, plasmadas na alínea e) do artigo 9.º do texto constitucional, que se transcreve:
'Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território.'
Definindo-se este como a tradução, no espaço, das políticas económica, social, cultural e ecológica da sociedade (v. Carta Europeia de Ordenamento do Território), pressupõe a utilização racional dos recursos naturais, tendo por base o solo e por finalidade o desenvolvimento equilibrado das populações urbanas e rurais, com vista a uma melhoria das condições de vida.
Na demarcação de espaços onde uma classe de uso do solo é dominante, haverá que contrapor, no caso dos autos, espaços naturais (onde as medidas de salvaguarda dos recursos naturais dominam sobre as actividades produtivas), de que são exemplos, de entre outros, os cordões dunares, estuários, sapais, zonas húmidas, florestas de protecção, parques e reservas naturais, praias e formações geológicas, e espaços industriais, onde se pretende efectivar a operação de loteamento, com os riscos ambientais que isso envolve, podendo 'vir a afectar o equilíbrio ecológico da área, que se considera de manter' - fl. 214 do instrutor.
Invoca, ainda, o recorrente que o regime da REN foi estabelecido por decreto-lei, sem autorização prévia da Assembleia da República.
Deliberadamente (e diz-se deliberadamente porque o enfoque à Lei de Bases do Ambiente - Lei 11/87, de 7 de Abril - é feito no próprio preâmbulo do Decreto-Lei 93/90), o recorrente ignorou que este diploma foi publicado depois daquela Lei de Bases, que define 'as bases da política de ambiente, em cumprimento do disposto nos artigos 90.º e 66.º da Constituição da República', seu artigo 1.º - política de ambiente de que são instrumentos a RAN e a REN - alínea d) do n.º 1 do artigo 27.º
Logo, o Governo apenas necessitaria de autorização legislativa para estabelecer o regime da REN, se a Assembleia da República não tivesse aprovado, em data anterior, a Lei de Bases do Ambiente.
E não foi o caso.
O acto recorrido baseou-se, pois, em normas que não diminuem o alcance do conteúdo dos preceitos constitucionais, estando a sua conformidade constitucional salvaguardada pelo n.º 2 do artigo 18.º da CRP, inexistindo, em consequência, o alegado vício de violação de lei, por desrespeito de normas constitucionais.
[...]"
O representante do Ministério Público, no parecer de fl. 74 v.º a fl. 75.º v.º, sustentou que o recurso não merecia provimento.
2 - Por Acórdão de 21 de Janeiro de 1998, a 1.ª Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, entre outros pelos seguintes fundamentos (fls. 81 e segs.):
"[...]
Alega mais o recorrente - conclusão 4.ª, alínea a) - que o acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de facto e direito e, designadamente, por aplicação de normas inconstitucionais, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma inconstitucional à luz do artigo 168.º, n.os 1, alínea b), e 2, da Constituição [por lapso refere-se a alínea a)].
Este diploma, porém, não foi emitido 'a descoberto', mas, como diz a entidade recorrida e resulta do expresso no seu relatório preambular e se considerou no Acórdão deste STA de 25 de Junho de 1992 (apêndice ao Diário da República, de 16 de Abril de 1996, p. 4276) no seguimento do disposto no artigo 27.º da Lei de Bases do Ambiente - Lei 11/87, de 7 de Abril - que fixou as directrizes essenciais, a disciplina básica do regime jurídico em matéria da política do ambiente, de que é instrumento a REN.
E trata-se de um decreto-lei de desenvolvimento daquela lei, que não desrespeita, mantendo-se dentro dos seus princípios fundamentais, e que não dispõe sobre matéria abrangida na alínea b) do referido artigo 168.º
Improcede, assim, este arguido vício de violação de lei.
[...]"
3 - Luís Manuel Machado Marques recorreu do referido acórdão para o pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (fl. 101), tendo nas respectivas alegações (fls. 105 e seguintes) apresentado, entre outras, as seguintes conclusões:
"[...]
8.ª O acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, tendo violado os artigos 168.º, n.os 1, alínea b), e n.º 2, da CRP, 4.º e 17.º do Decreto-Lei 93/90, e 24.º, n.º 3, e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei 400/84, merecendo o douto acórdão recorrido censura por haver decidido em contrário, pois (cf. texto n.os 14 a 17):
a) O Decreto-Lei 93/90 restringiu o direito de propriedade (artigo 62.º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias (e ao regime de reserva legislativa), ex vi do artigo 17.º da CRP, sem que tenha existido prévia lei de autorização legislativa, ou sem que a Lei 11/87 contenha suficiente densificação dos princípios gerais aplicáveis ao instituto, que permitam aferir da conformidade do regime legal instituído com aquela lei reforçada, violando o disposto no artigo 168.º, n.os 1, alínea b), e 2, da CRP;
b) O pedido de loteamento formulado pelo recorrente não contemplou qualquer construção na faixa de 200 m interior à linha de preia-mar, destinando-se essa faixa a zona verde, como expressamente foi admitido pela entidade recorrida;
c) Não estando prevista nenhuma acção para aquela faixa, o equilíbrio ecológico daquela área nunca poderia ser prejudicado, não se justificando a sua sujeição ao regime previsto nos artigos 17.º e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 93/90, uma vez que a ratio daqueles preceitos abrange apenas as acções que pela sua expressão física directa ou potencialidade imediata possam pôr em causa o equilíbrio ecológico, o que não se verifica no caso em apreço;
d) A simples inclusão de uma parcela de terreno em zona sujeita a regime transitório da REN - o que se impugna no caso vertente - não permite per se indeferir as pretensões dos praticantes (cf. artigos 4.º, n.º 2, e 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei 93/90);
e) O prédio a lotear não se integra em qualquer das alíneas do anexo II ao Decreto-Lei 93/90, pois encontra-se na sua quase totalidade atulhado e terraplanado, não apresentando, em resultado da transformação, características que o tornem apto a integrar a REN;
g) A parte não terraplanada e atulhada é composta de salinas, categoria não prevista em qualquer das alíneas do referido anexo;
[...]"
A entidade recorrida também alegou (fls. 129 e segs.), sustentando que o recurso jurisdicional devia ser rejeitado ou, se assim não se entendesse, julgado improcedente.
O recorrente respondeu a certas questões prévias suscitadas pela entidade recorrida (fls. 140 e segs.).
O Ministério Público, no parecer de fls. 150 e 150 v.º, pronunciou-se no sentido da rejeição do recurso.
4 - Por Acórdão de 16 de Janeiro de 2001, o pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso (fls. 155 e segs.). Pode ler-se no texto do acórdão, para o que aqui releva, o seguinte:
"[...]
8.2.2 - Alega ainda o recorrente na conclusão 8.ª que o acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, violando os artigos 168.º, n.os 1, alínea b), e 2, da CRP, 4.º e 17.º do Decreto-Lei 93/90, e 24.º, n.º 3, e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei 400/84, merecendo o acórdão recorrido censura por haver decidido em contrário, porquanto o Decreto-Lei 93/90 restringiu o direito de propriedade (artigo 62.º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias (e ao regime de reserva legislativa) ex vi do artigo 17.º da CRP, sem que tenha existido prévia autorização, ou sem que a Lei 11/87 contenha suficiente densificação que permitam aferir da conformidade do regime legal instituído com aquela lei reforçada, violando o disposto no artigo 168.º, n.os 1, alínea b), e 2, da CRP.
O acórdão recorrido decidiu, e bem, que o Decreto-Lei 93/90 não foi emitido 'a descoberto', mas antes no seguimento do disposto no artigo 27.º da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril), que naquele normativo [n.º 1, alínea a)] determina ser instrumento de política do ambiente e do ordenamento do território, além da Reserva Agrícola Nacional, a Reserva Ecológica Nacional.
Trata-se, assim, de uma lei de bases, sendo o Decreto-Lei 93/90 um decreto-lei de desenvolvimento que está submetido à respectiva lei de bases (n.º 2, 2.ª parte, do artigo 115.º da CRP). Não explica o recorrente onde é que aquele diploma legal extravasa os parâmetros ou quadro legal de desenvolvimento fixados na lei de bases, e era a ele que o competia fazer, para este tribunal pleno poder emitir pronúncia sobre tal questão.
Acresce que, hoje, o direito de propriedade constitucionalmente reconhecido não é um direito absoluto, estando, antes, sujeito a limites intensos, sendo particularmente relevantes os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir - jus aedificandi - ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção), pelo que a utilização do uso dos solos está sujeita a uma rede complexa de planos de ordenamento, autorizações, licenças, proibições, materialmente constitutivos de ónus ou restrições socialmente adequadas, nuns casos, ou de sacrifícios especiais ligitimadores de um direito indemnizatório, noutros casos (para maior desenvolvimentos, v. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pp. 333 e 349).
Não se vislumbra, assim, em que é que o acórdão recorrido violou as invocadas leis constitucionais e leis ordinárias que lhe são assacadas na conclusão 8.ª
Quanto aos erros nos pressupostos de facto incluídos nas diversas alíneas b) a g) da referida conclusão 8.ª, não pode sobre eles emitir pronúncia este tribunal pleno, atentas as limitações de cognição impostas pelo n.º 1 do citado artigo 21.º do ETAF.
Improcede, assim, também a conclusão 8.ª da alegação do recorrente.
[...]"
5 - Luís Manuel Machado Marques interpôs recurso do referido Acórdão de 16 de Janeiro de 2001 para o Tribunal Constitucional (fl. 184), ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na inconstitucionalidade orgânica e material do Decreto-Lei 93/90, de 10 de Março, por violação dos artigos 62.º e 168.º, n.os 1, alínea b), e 2, da Constituição ["na redacção vigente no momento em que a questão foi suscitada nos autos", a que correspondem actualmente os artigos 62.º e 165.º, n.º 1, alínea b)].
O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho a fl. 186.
Já no Tribunal Constitucional, foi proferido o despacho de fls. 189 e 189 v.º, mandando notificar o recorrente para completar o requerimento de interposição do recurso, indicando quais as normas do Decreto-Lei 93/90, aplicadas na decisão recorrida, que considera inconstitucionais e que pretende submeter à apreciação deste Tribunal, qual a norma ou princípio constitucional violado por cada uma dessas normas, bem como qual a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade.
Notificado deste despacho, o recorrente veio dizer o seguinte (fls. 190 e 190 v.º):
"1 - As normas do Decreto-Lei 93/90, de 10 de Março, aplicadas na decisão recorrida e que o recorrente considera inconstitucionais, pretendendo submeter à apreciação deste Tribunal, são todas as normas legais constantes do citado diploma (Decreto-Lei 93/90, de 10 de Março) e em especial, dados os seus efeitos, as normas que constam dos artigos 3.º, 4.º e 17.º desse mesmo diploma (as quais estabelecem um regime proibitivo de uso de solos - áreas REN).
2 - No entendimento do recorrente, o supracitado diploma legal - o conjunto de todas as suas normas e em particular os seus artigos 3.º, 4.º e 17.º - enfermam de inconstitucionalidade orgânica por regularem matéria atinente 'a direitos, liberdades e garantias' sem terem sido precedidos da necessária autorização legislativa da Assembleia da República [violando desse modo o artigo 165.º, n.os 1, alínea b), e 2, da CRP, por referência aos artigos 62.º e 17.º do diploma fundamental] e de inconstitucionalidade material por ofensa ao 'direito de propriedade privada'.
3 - Mais esclarece que a inconstitucionalidade das supracitadas normas foi suscitada pelo recorrente logo na conclusão 4.ª, alínea a), das alegações de recurso apresentadas junto do Supremo Tribunal Administrativo e na conclusão 8.ª das alegações de recurso interposto para o pleno desse Tribunal."
Notificado para produzir alegações, Luís Manuel Machado Marques nelas concluiu do seguinte modo (fls. 194 e segs.):
"1.ª O relacionamento entre leis manifesta-se a diferentes níveis, sendo que 'a mais frisante diferença de funções entre actos legislativos ocorre em duas hipóteses distintas: entre leis de autorização legislativa e decretos-leis publicados no uso de autorização e entre leis de princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos e decretos-leis em seu desenvolvimento' [...]
2.ª O Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, padece de inconstitucionalidade orgânica ao restringir um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e ao consubstanciar uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos [v. artigo 168.º, n.º 1, alíneas b) e l), da Constituição, na redacção em vigor em 1990], sem que para tanto dispusesse da necessária lei de autorização legislativa que legitimasse o Governo a intervir no âmbito da reserva relativa de competências legislativas da Assembleia da República - v. artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e l) da CRP [...]
3.ª Não legislando ao abrigo de uma qualquer lei de autorização legislativa ou em referência à Lei de Bases do Ambiente - Lei 11/87 - o Decreto-Lei 93/90 padece de inconstitucionalidade formal, já que decretou a disciplina jurídica da Reserva Ecológica Nacional ao abrigo da alínea a) do artigo 201.º da CRP (actual artigo 198.º), isto é, mediante um decreto-lei independente [...]
4.ª Registe-se, aliás, que este entendimento não é de modo algum posto em causa pela argumentação que se utilizou no acórdão recorrido, segundo a qual a inconstitucionalidade não existiria pelo facto do Decreto-Lei 93/90 ter sido exarado pelo Governo em desenvolvimento das bases da lei do ambiente, pois:
a) Legislar em desenvolvimento de leis de bases não pode significar uma dispensa do cumprimento das regras de repartição de competência da Assembleia da República constantes da Constituição, pois é a própria Constituição que determina que nos casos em que exista essa reserva de competência é necessária lei de autorização legislativa que, em conformidade com o constante do artigo 168.º, n.os 2 e 3, da Constituição, na redacção em vigor à data do Decreto-Lei 93/90, defina 'o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada', sendo certo que 'as autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República' (v. n.º 4 do artigo 168.º da Constituição);
b) Contrariamente ao defendido no acórdão do STA sub judice, tem de se referir que o próprio legislador do Decreto-Lei 93/90 não quis legislar em desenvolvimento da Lei de Bases do Ambiente, pois, expressamente, editou o Decreto-Lei 93/90 ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, na redacção em vigor em 1990 - decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República -, e não ao abrigo da alínea c) desse mesmo preceito - decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes contidos em leis que a eles se circunscrevam;
c) Desse modo, não pode o intérprete entender que tal Decreto-Lei 93/90 foi editado pelo Governo em execução de uma lei de bases, quando é o próprio Governo que entendeu fazer tal decreto-lei por considerar que não se tratava de matéria da competência da Assembleia da República;
d) Entender de modo diferente seria admitir que por via de uma lei de bases se ultrapassasse a necessidade constitucional de ter uma lei de autorização legislativa que claramente definisse 'o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização' (v. artigo 168.º, n.º 2, citado); seria admitir que por via de uma lei de bases a pressuposta autorização legislativa que o STA pretende ver na Lei de Bases não caducaria com 'a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República' (v. artigo 168.º, n.º 4); seria admitir, em suma, uma violação das regras de competência da Assembleia da República constantes do artigo 168.º, n.os 1, alíneas b) e l), 2, 3 e 4 da Constituição, na sua redacção à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 93/90.
5.ª O Decreto-Lei 93/90 viola o disposto nos artigos 62.º, 65.º, n.º 4, e 266.º, n.º 1, da CRP, ao delimitar as áreas de REN com a aplicação de regras que, ao invés de denunciarem respeito pelos direitos dos particulares e pela justa ponderação entre o interesse público e o interesse privado, antes revelam uma grande margem de arbitrariedade, sendo certo que, contemplando o regime da REN uma forma de intervenção dos poderes públicos no regime dos solos por motivos de interesse público, só o poderia fazer mediante a previsão da correspondente indemnização, como o exigia o disposto nos artigos 83.º e 168.º, n.º 1, alínea l), da Constituição na redacção em vigor em 1990, indemnização essa que o Decreto-Lei 93/90 não contempla, pelo que também por este motivo enferma de inconstitucionalidade;
6.ª Restringindo o direito de propriedade privada com recurso a este tipo de regras, o Decreto-Lei 93/90 padece de inconstitucionalidade material, na medida em que viola os princípios constitucionais tão importantes como o princípio da igualdade, da justiça e da proporcionalidade e o princípio da prossecução do interesse público e da boa administração [...]"
A entidade recorrida (o Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território) foi notificada das alegações produzidas pelo recorrente, mas não respondeu (fl. 232).
II
A) Delimitação do objecto do recurso
6 - No recurso em apreço vem suscitada a questão da inconstitucionalidade orgânica, formal e material das normas constantes do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março.
Este diploma, à data da interposição do recurso contencioso de anulação que deu origem aos presentes autos, já havia sido alterado pelo Decreto-Lei 316/90, de 13 de Outubro, que deu nova redacção aos seus artigos 3.º, 9.º e 17.º, bem como pelo Decreto-Lei 213/92, de 12 de Outubro, que modificou o disposto nos seus artigos 3.º, 4.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 17.º e 21.º. Posteriormente à data da interposição de tal recurso, foi ainda aprovado o Decreto-Lei 79/95, de 20 de Abril, que introduziu alterações no seu artigo 3.º
O recorrente não especifica, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e nas respectivas alegações, qual a redacção do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, que haverá a considerar.
Mas, no que toca à alegada inconstitucionalidade orgânica e formal, está obviamente apenas em causa, no presente recurso, o próprio Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, já que tais vícios não são directamente assacados pelo recorrente aos subsequentes diplomas que o alteraram, e o Tribunal Constitucional não pode conhecer do que lhe não é pedido.
Já no que diz respeito à alegada inconstitucionalidade material das normas do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, cumpre saber qual a redacção de tal diploma que foi considerada na decisão recorrida, dado que o presente recurso de constitucionalidade só pode ter como objecto normas que tenham sido efectivamente aplicadas.
Compulsando o texto da decisão recorrida, verifica-se que nela se tomou em consideração o Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, na redacção do Decreto-Lei 316/90, de 13 de Outubro. É o que resulta da leitura da seguinte passagem de fl. 171:
"[...]
Está em causa uma operação de loteamento [...], a qual está sujeita a parecer obrigatório e vinculativo da CCRLVT [...] e ainda a autorização da mesma entidade pública por se tratar de terreno a integrar na delimitação da Reserva Ecológica Nacional (REN), aprovada pelo Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março [por lapso, escreveu-se 10 de Março], e alterado pelo Decreto-Lei 316/90, de 13 de Outubro (ibidem, artigos 3.º, 4.º e 17.º), ao tempo em vigor.
[...]"
É, pois, esta a redacção do diploma a ter em conta, na apreciação da questão de inconstitucionalidade material suscitada pelo recorrente.
7 - A apreciação das várias questões colocadas pelo recorrente exige que se comece por apreender os traços mais relevantes, quer da Lei de Bases do Ambiente em vigor à data da publicação do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, quer deste mesmo diploma.
A Lei 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), foi aprovada pela Assembleia da República, nos termos dos artigos 164.º, alínea d), 168.º, n.º 1, alínea g), e 169.º, n.º 2, todos da Constituição (texto emergente da 1.ª revisão constitucional).
O artigo 164.º, alínea d), da Constituição (texto emergente da 1.ª revisão constitucional) estabelecia a competência da Assembleia da República para fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo; o artigo 168.º, n.º 1, alínea g), atribuía exclusiva competência à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, para legislar sobre as bases do sistema de protecção da Natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural; o artigo 169.º, n.º 2, por fim, estabelecia que certos actos revestiam a forma de lei.
De acordo com o artigo 27.º, n.º 1, alínea d), da Lei 11/87, de 7 de Abril, a Reserva Ecológica Nacional constitui um dos instrumentos da política de ambiente e de ordenamento do território. Essa Reserva não é, porém, definida nem desenvolvida na lei.
Dispõe, por seu turno, o artigo 37.º, n.º 1, do mesmo diploma, que "[c]ompete ao Governo, de acordo com a presente lei [...], a adopção das medidas adequadas à aplicação dos instrumentos previstos na presente lei". E o n.º 2 deste preceito legal acrescenta que "[o] Governo e a administração regional e local articularão entre si a implementação das medidas necessárias à prossecução dos fins previstos na presente lei, no âmbito das respectivas competências".
Refira-se ainda que a Lei de Bases do Ambiente contém algumas proibições e prevê alguns condicionamentos destinados à salvaguarda do ambiente. Assim: as proibições de pôr em funcionamento certos empreendimentos que poluam o ar (artigo 8.º, n.º 3), de eliminar certa vegetação (artigo 9.º, n.º 5), ou de explorar certos empreendimentos que poluam as águas (artigo 10.º, n.º 5) e o condicionamento da utilização e ocupação do solo para fins urbanos e industriais e da implantação de equipamentos e infra-estruturas pela sua natureza, topografia e fertilidade (artigo 13.º, n.º 5).
8 - O Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março - aprovado, portanto, já depois da publicação da referida Lei de Bases do Ambiente -, reviu o regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN).
8.1 - O regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional havia sido primeiramente estabelecido pelo Decreto-Lei 321/83, de 5 de Julho, sendo que as normas dos seus artigos 2.º, n.º 1, alínea c), e 3.º, n.º 1, foram várias vezes julgadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea g), da Constituição, na redacção de 1982.
A mencionada norma do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 321/83, de 5 de Julho, integrava as arribas, incluindo uma faixa até 200 m para o interior do território a partir do respectivo rebordo, na REN. Por seu lado, a norma do n.º 1 do artigo 3.º do mesmo diploma determinava que "[n]os solos da REN são proibidas todas as acções que diminuam ou destruam as suas funções e potencialidades, nomeadamente vias de comunicação e acessos, construção e edifícios, aterros e escavações, destruição do coberto e vida animal".
Considerou o Tribunal Constitucional, nomeadamente no Acórdão 152/92, de 8 de Abril (Diário da República, 2.ª série, n.º 172, de 28 de Julho de 1992), que:
"[...] as normas em causa integram as bases do sistema jurídico de protecção da Natureza e equilíbrio ecológico.
[...]
Ora, a competência para legislar sobre as bases do sistema de protecção da Natureza e do equilíbrio ecológico só podia ser exercida pelo Governo mediante autorização legislativa da Assembleia da República [...] Tal autorização legislativa não existiu no caso, e assim o Governo só tinha competência legislativa própria para fazer decretos-leis de desenvolvimento das bases gerais previamente estabelecidas pela Assembleia da República - artigo 201.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, na mesma versão.
Na realidade, não só tal autorização não ocorreu como nem sequer existia na altura qualquer diploma específico sobre as bases da protecção da Natureza e equilíbrio ecológico; a primeira codificação de tal matéria só viria a ser feita mais tarde pela Lei 11/87, de 7 de Abril, que definiu 'as bases da política de ambiente', nela inserindo, como instrumentos privilegiados, 'a Reserva Agrícola Nacional e a Reserva Ecológica Nacional' - artigos 1.º e 27.º, n.º 1, alínea d), desta lei.
[...]
[...] o sistema jurídico anterior ao questionado Decreto-Lei 321/83 já comportava normas sobre o ordenamento do território nas áreas a que se refere o artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do diploma.
[...]
Todavia, nenhuma das referidas restrições [que eram as constantes do Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro] aponta para a proibição da realização de obras ou construções, designadamente de vias de acesso, edificações, aterros ou escavações, ou destruição do coberto vegetal e vida animal, conforme passou a estabelecer-se nos artigos 2.º, n.º 1, alínea c), e 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 321/83. Portanto, estas normas vieram, afinal, alterar totalmente o princípio básico decorrente das normas referidas no Decreto-Lei 468/71, proibindo o que até então estava meramente sujeito a licença administrativa.
Assim, e porque, como vimos, o Governo carecia de competência para as decretar sem a necessária autorização legislativa, as normas referidas do Decreto-Lei 321/83 violam o disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea g), da Constituição (versão de 1982)."
Através do Acórdão 368/92, de 25 de Novembro (Diário da República, 1.ª série-A, n.º 4, de 6 de Janeiro de 1993), o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação da alínea g) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, das referidas normas do Decreto-Lei 321/83, de 5 de Julho. Nesse acórdão lê-se, de entre o mais, o seguinte:
"[...] o tribunal, nos acórdãos fundamentadores do pedido em apreço, tendo em conta:
Por um lado, a circunstância de a regulação ínsita nas normas sub specie ter introduzido no ordenamento jurídico preexistente um princípio básico que ali se não consagrava (qual seja o de proibir a realização de obras, construções, aterros, escavações, destruição do coberto vegetal ou da vida animal nas arribas, incluindo uma faixa até 200 m para o interior do território contados a partir do respectivo rebordo), desta sorte efectuando uma fundamental e verdadeira inovação;
Por outro, que a matéria objecto das ditas normas faz parte de um sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico; e
Ainda, por um outro, que o diploma em que tais normas se encontram não foi emitido a coberto de autorização parlamentar;
concluiu pela inconstitucionalidade orgânica dos preceitos em análise.
[...] Não se vislumbra que seja necessário aditar qualquer outra fundamentação à argumentação carreada nos mencionados arestos, argumentação essa que agora se reitera [...]"
Portanto, e em suma, o carácter inovatório das normas em análise, aliado à circunstância de versarem sobre matéria inserida num sistema de protecção da Natureza e do equilíbrio ecológico, bem como à de figurarem num diploma que não havia sido emitido a coberto de autorização parlamentar, conduziram à declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dessas normas.
As normas das alíneas d), b) e e) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 321/83, de 5 de Julho, foram também julgadas inconstitucionais por acórdãos subsequentes do Tribunal Constitucional (cf. os Acórdãos n.os 515/93, de 26 de Outubro, 203/95, de 20 de Abril, 218/99, de 21 de Abril, e 204/2000, de 4 de Abril), basicamente pelos fundamentos anteriores.
8.2 - Retornando ao diploma em apreço no presente recurso - o Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março -, assinale-se, em primeiro lugar, que no respectivo preâmbulo se lê o seguinte:
"[...]
Com o presente diploma, e no seguimento do disposto no artigo 27.º da Lei de Bases do Ambiente - Lei 11/87, de 7 de Abril -, pretende-se salvaguardar, de uma só vez, os valores ecológicos e o homem, não só na sua integridade física como no fecundo enquadramento da sua actividade económica, social e cultural, conforme é realçado na Carta Europeia do Ordenamento do Território.
Incumbindo ao Estado, de acordo com o previsto na própria Constituição, o ordenamento do espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas, constituindo para o efeito organismos próprios, a criação, no âmbito do Ministério do Planeamento e da Administração do Território, da comissão da Reserva Ecológica Nacional resulta claramente do cumprimento necessário de um imperativo constitucional.
Assim:
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
[...]"
Portanto - e é este o primeiro aspecto a reter - o Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, foi emitido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição -, aliás, também o foram os Decretos-Leis 316/90, de 13 de Outubro, 213/92, de 12 de Outubro e 79/95, de 20 de Abril, que o alteraram -, alínea essa que, no texto emergente da revisão constitucional de 1989, determinava que competia ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República. Não foi emitido ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição que, também no texto dessa revisão, atribuía competência ao Governo, no exercício de funções legislativas, para fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevessem.
De qualquer modo, o preâmbulo daquele decreto-lei refere expressamente o artigo 27.º da Lei de Bases do Ambiente, a que o normativo aprovado pretendia dar seguimento.
Sublinhe-se ainda que à data da publicação do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, o artigo 168.º, n.º 1, da Constituição determinava, respectivamente nas suas alíneas b) e g), que a matéria dos direitos, liberdades e garantias e a das bases do sistema de protecção da Natureza e do equilíbrio ecológico se inseriam na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Ora, a regulação do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março - na redacção do Decreto-Lei 316/90, de 13 de Outubro -, pode, em traços gerais e para o que aqui releva, ser assim descrita:
a) Definição da REN como estrutura biofísica que pressupõe o condicionamento à utilização de certas áreas (artigo 1.º);
b) Caracterização das áreas abrangidas pela REN (artigo 2.º e anexos I e III) e atribuição, a certas entidades administrativas, de competência para proceder à delimitação dessa Reserva (artigo 3.º);
c) Proibição do desenvolvimento de certas actividades, nomeadamente operações de loteamento e obras de urbanização, nas áreas incluídas na REN, e atribuição às comissões de coordenação regional de competência para confirmar a possibilidade, excepcionalmente prevista no próprio diploma legal, de realizar certas actividades nas áreas incluídas na Reserva, bem como de competência para condicionar o exercício de tais actividades (artigo 4.º);
d) Condicionamento do licenciamento de certas actividades em terrenos do domínio público hídrico (artigo 5.º);
e) Inaplicabilidade do disposto no artigo 4.º a certas áreas e operações (artigo 6.º);
f) Regime dos recursos dos pareceres desfavoráveis emitidos ao abrigo do artigo 4.º (artigo 7.º);
g) Competência e constituição da comissão da REN (artigos 8.º e 9.º);
h) Obrigatoriedade de demarcação, em todos os instrumentos de planeamento que definam ou determinem a ocupação física do solo, das áreas integradas na REN e das áreas sujeitas ao regime transitório (artigo 10.º);
i) Competência para a fiscalização do cumprimento do diploma em causa (artigo 11.º);
j) Tipificação de certas condutas como contra-ordenações, competência para a instrução dos processos contra-ordenacionais e aplicação de coimas e destino do produto das coimas (artigos 12.º e 13.º);
k) Competência para embargar demolir obras e fazer cessar certas condutas (artigo 14.º);
l) Consideração como nulos dos actos administrativos que infrinjam o disposto nos artigos 4.º e 17.º, e responsabilidade civil de certas entidades administrativas por prejuízos que advenham, para certos particulares, dessa nulidade (artigos 15.º e 16.º);
m) Sujeição de certas áreas (as mencionadas nos anexos II e III), que ainda não tenham sido objecto da delimitação referida no artigo 3.º, a um regime transitório, materializado na necessidade de aprovação, pela comissão de coordenação regional, das obras e empreendimentos mencionados no n.º 1 do artigo 4.º, com possibilidade de recurso, para a Comissão da REN, da decisão desfavorável (artigo 17.º, n.os 1 a 5). Possibilidade de avocação do processo por certos ministros, no caso de indeferimento do pedido de aprovação por esta Comissão (n.º 6);
n) Previsão da vigência do regime transitório até à aprovação da portaria de delimitação da REN prevista no n.º 1 do artigo 3.º (artigo 18.º);
o) Exercício transitório das competências da Comissão da REN pela Direcção-Geral do Ordenamento do Território (artigo 19.º);
p) Revogação dos Decretos-Leis 321/83, de 5 de Julho e 411/83, de 23 de Novembro (artigo 20.º);
q) Condicionamento da aplicação do normativo em causa na Madeira e nos Açores (artigo 21.º).
9 - Depois destas referências ao conteúdo do diploma em apreço no presente recurso, bem como ao dos diplomas conexos que o antecederam e seguiram, cumpre apreciar a questão colocada pelo recorrente.
Mas não sem antes fazer uma precisão: é que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não é possível, no presente recurso, apreciar a conformidade constitucional de todas as normas constantes do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março.
E isto porque, como facilmente se depreende da leitura do próprio diploma em análise e, especialmente, do texto do acórdão recorrido, não foram aplicadas, na decisão recorrida, todas as normas do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março.
Compulsando o texto do acórdão recorrido, verifica-se que nele apenas se faz referência aos artigos 3.º, 4.º, 17.º [este último em conjugação com a alínea d) do anexo II] e 15.º, todos do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março.
E nem todas estas normas foram aplicadas na decisão recorrida, no sentido de constituírem o seu fundamento. Não foram, desde logo, aplicadas as normas do artigo 3.º, dado que este preceito regula a delimitação da REN e, à data da instauração do processo que deu origem aos presentes autos, tal delimitação ainda não tinha ocorrido, estando o terreno que o recorrente se propunha lotear sujeito a um regime transitório. Como se lê no texto do acórdão recorrido (cf. fl. 171), tratava-se apenas de "terreno a integrar na delimitação da REN". Também as normas dos n.os 2 a 7 do artigo 4.º não foram aplicadas, dado que pressupõem tal delimitação da REN. Finalmente, não se vê como possa ter sido aplicada a norma do artigo 15.º, que considera nulos e de nenhum efeito os actos administrativos que violem os artigos 4.º e 17.º, dado que a decisão recorrida não versou sobre tal hipotética violação (nem ao Tribunal Constitucional compete, como é óbvio, sobre ela se debruçar).
Em suma, a decisão recorrida apenas aplicou as normas do artigo 17.º, n.os 1 [em conjugação com o n.º 1 do artigo 4.º e com a alínea d) do anexo II] a 6, do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, normas essas que, em certas áreas ainda não delimitadas nos termos do artigo 3.º (isto é, ainda não definitivamente incluídas ou excluídas da REN), sujeitam a aprovação certas obras e empreendimentos e regulam o procedimento tendente a tal aprovação.
As restantes normas não foram aplicadas. Quer por serem consumidas pelas normas apontadas [caso da norma do artigo 1.º ou da norma do artigo 8.º, alínea d)], quer por pressuporem uma delimitação da REN que ainda não havia ocorrido ao tempo da instauração do presente processo [caso das normas dos artigos 2.º a 4.º, 6.º, 7.º, 8.º, alíneas a), b) e c)], quer por manifestamente nenhuma repercussão terem no caso dos autos [caso da norma do artigo 5.º, que regula o domínio público hídrico, ou das normas do artigo 8.º, alíneas e) e f), que regulam certas competências genéricas da Comissão da REN, ou ainda da norma do artigo 9.º, que rege sobre a sua constituição]. Afigura-se, finalmente, óbvio que os preceitos relativos a demarcação obrigatória em instrumentos de planeamento, fiscalização do cumprimento do diploma, contra-ordenações e correspondentes processos, embargos e demolições, responsabilidade civil da Administração, vigência do regime transitório, direito transitório e legislação revogada, nenhuma relevância tiveram na resolução do caso dos autos.
Assim delimitado o objecto do presente recurso - a apreciação da conformidade constitucional das normas do artigo 17.º, n.os 1 [em conjugação com o n.º 1 do artigo 4.º e com a alínea d) do anexo II] a 6, do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março -, cumpre dele conhecer.
B) Apreciação das questões de constitucionalidade suscitadas
10 - Cabe analisar, em primeiro lugar, se as normas do artigo 17.º, n.os 1 [em conjugação com o n.º 1 do artigo 4.º e com a alínea d) do anexo II] a 6, do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, padecem de inconstitucionalidade orgânica, por, segundo o recorrente [cf. conclusões 1.ª, 2.ª e 4.ª, alíneas a) e d), das alegações], dizerem respeito a matérias da competência relativa da Assembleia da República: direitos, liberdades e garantias e meios e formas de intervenção nos solos por motivos de interesse público [artigo 168.º, n.º 1, alíneas b) e l), da Constituição, na versão emergente da 2.ª revisão, que é a de 1989].
As normas em apreciação estabelecem, como se viu, condicionamentos às operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição do coberto vegetal, na medida em que sujeitam tais actividades à aprovação de certas entidades administrativas. Por outras palavras, tais actividades não são proibidas, contrariamente ao que sucederia se se desenvolvessem numa área incluída na REN (cf. artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março), mas são simplesmente condicionadas, já que dependem de aprovação.
Será que tais condicionamentos consubstanciam uma restrição do conteúdo do direito de propriedade de certos imóveis, como pretende o recorrente?
Uma resposta afirmativa pressuporia que o direito de propriedade de um imóvel abrange naturalmente a faculdade de lotear ou construir, para só referir algumas das operações condicionadas pelas normas em apreço. Pressuporia, em suma, que o titular de um direito de propriedade sobre um imóvel tem, pelo facto de ser titular desse direito, tal faculdade, consubstanciando a abolição de tal faculdade uma restrição do direito.
A este propósito, cumpre recordar o que se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 329/99, de 2 de Junho (Diário da República, 2.ª série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, p. 10 576), em que estava em causa a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do Decreto-Lei 351/93, de 7 de Outubro (diploma que estabelece o regime de caducidade dos pedidos e dos actos de licenciamento de obras, loteamento e empreendimentos turísticos emitidos anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território):
"[...]
4 - As questões de inconstitucionalidade orgânica:
[...]
4.2 - As normas sub judicio e o direito de propriedade:
A recorrente sustenta também que, tendo o Decreto-Lei 351/93, de 7 de Outubro, sido editado sem autorização legislativa, as normas sub iudicio são organicamente inconstitucionais, uma vez que versam sobre o direito de propriedade - recte, sobre uma faculdade nele incluída (o ius aedificandi) -, que é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, inscrevendo-se, por isso, na reserva parlamentar constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, na versão de 1989 [cf., hoje, o artigo 165.º, n.º 1, alínea b)].
A recorrente não tem, porém, razão.
Não a tem quando se entenda, com Fernando Alves Correia (Estudos, citados, pp. 51 e 52), que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada, 'sendo antes o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos' - ou seja, 'um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas' (cf., também do mesmo autor, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1990, pp. 372 a 383). E isso, apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias [cf., neste sentido, Acórdãos n.os 404/87 e 257/92 (publicados no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Dezembro de 1987 e de 18 de Junho de 1993); o Acórdão 431/94 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 21 de Junho de 1994); e ainda os Acórdãos n.os 1/84 e 14/84 (publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1984, o primeiro, e de 10 de Maio de 1984, o segundo)] e gozar, consequentemente - ex vi do disposto no artigo 17.º da Constituição -, do respectivo regime naquilo que nele reveste essa natureza análoga.
De facto, não sendo o ius aedificandi inerente ao direito de propriedade do solo, o Governo, ao editar o Decreto-Lei 351/93, de 7 de Outubro - e, assim, ao sujeitar a verificação de conformidade as licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, e ao determinar a 'caducidade' das que não forem confirmadas -, não editou normas sobre o direito de propriedade. Mas, sendo assim, é obvio que o Governo, com a edição do Decreto-Lei 351/93, de 7 de Outubro, não invadiu a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias.
Mas, mesmo quem entenda que o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade privada, por ser uma das faculdades em que tal direito se analisa, acontecendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração [cf., neste sentido, entre outros, Diogo Freitas do Amaral ('Apreciação da dissertação de doutoramento do licenciado Fernando Alves Correia', in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, pp. 99 a 101)], não tem forçosamente que concluir, como fazem alguns autores [cf. Diogo Freitas do Amaral e Paulo Otero (Direito do Ordenamento do Território e Constituição, Coimbra, 1998, pp. 29 e 30) e J. M. Sérvulo Correia e J. Bacelar Gouveia (Direito do Ordenamento, citado, p. 151)], que toda a normação que contenha alterações ao ius aedificandi (e, concretamente, a que se contém no mencionado Decreto-Lei 351/93) haja de ser produzida (ou autorizada) pela Assembleia da República.
É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no Acórdão 373/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 7 de Novembro de 1991), cabem na reserva legislativa parlamentar "as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos 'direitos análogos', por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias".
Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62.º, n.os 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urba nísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9.º, alínea e), 65.º, n.º 4, e 66.º, n.º 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter de ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos.
Fernando Alves Correia fala do direito de propriedade urbana como 'um direito planificado'; e afirma que os planos urbanísticos são instrumentos que definem 'o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo', sem que, ao menos em regra, tenham natureza expropriativa (Estudos, citados, pp. 47 e 50).
A conclusão a que acaba de chegar-se não é posta em crise pelo facto de a licença em causa nos autos já ter sido concedida no momento da edição das normas sub iudicio - e de, assim, se estar perante uma ablação de um direito (no caso, do direito de lotear) que, uma vez validamente concedido, passou a integrar a esfera patrimonial (é dizer, a propriedade) do titular da licença. De facto, a ablação desse direito, sendo, embora, susceptível de originar uma obrigação de indemnizar, não tem a virtualidade de transmudar a essência do direito de propriedade, por forma a fazer incluir nela faculdades que a garantia constitucional não cobre (recte, as faculdades de lotear, urbanizar e construir).
[...]"
Portanto, e aplicando a doutrina do acórdão acabado de mencionar: quem entenda que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada, há-de concluir que o Governo, ao editar as normas em apreciação no presente recurso, não invadiu a reserva parlamentar estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (versão de 1989), dado que não editou normas sobre o direito de propriedade privada; mas ainda que se entenda que os direitos de urbanizar, lotear e edificar assumem a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, há que reconhecer que não estão em causa faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição, pelo que o Governo, ao editar as normas em apreciação no presente recurso, não invadiu a referida reserva parlamentar. Com efeito, tal reserva parlamentar abrange apenas "as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos 'direitos análogos', por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias".
Refira-se, por último, que em acórdãos ainda mais recentes o Tribunal Constitucional defendeu a orientação a que se aderiu (v. a fundamentação constante do Acórdão 517/99, de 22 de Setembro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 263, de 11 de Novembro de 1999, p. 17 054, bem como do Acórdão 602/99, de 9 de Novembro, inédito).
Relativamente à alegada inconstitucionalidade orgânica decorrente de as normas em referência consubstanciarem uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos por motivo de interesse público [cf. artigo 168.º, n.º 1, alínea l), da Constituição, na versão de 1989], é evidente que o recorrente não tem razão. Na verdade, se se considerasse que a regulação da REN necessariamente consubstancia um meio ou forma de intervenção nos solos, perderia sentido a atribuição, à Assembleia da República, de competência reservada para legislar apenas sobre as bases do sistema de protecção da Natureza e do equilíbrio ecológico [cf. a alínea g) daquele mesmo artigo]. Por outras palavras, todo o regime da protecção da natureza e do equilíbrio ecológico deveria, já que forçosamente implica uma "intervenção nos solos", no sentido utilizado pelo recorrente, cair no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República.
Portanto, e sob pena de a referência às "bases", constante da mencionada alínea g) do n.º 1 do artigo 168.º perder qualquer conteúdo útil, é manifesto que a expressão "meios e formas de intervenção nos solos" não pode significar a regulação dos instrumentos de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico. Como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 674), a alínea l) do n.º 1 do artigo 168.º deve ser relacionada com o artigo 83.º, relativo aos requisitos de apropriação colectiva, sendo o seu âmbito idêntico.
11 - Cabe agora analisar uma segunda questão.
A circunstância de as normas em análise terem sido expressamente emitidas ao abrigo de um preceito constitucional que, ao tempo, dispunha sobre a competência legislativa do Governo em matérias não reservadas à Assembleia da República, aliada àqueloutra de apenas no preâmbulo do diploma do Governo se fazer referência à Lei de Bases do Ambiente, redundará na respectiva inconstitucionalidade formal [cf. conclusões 3.ª e 4.ª, alíneas b) e c), das alegações do recorrente]?
Como é óbvio, não interessa agora analisar esta questão sob o ponto de vista da falta de referência, no diploma do Governo, a uma qualquer lei de autorização legislativa (cf., ainda, conclusão 3.ª das alegações do recorrente), já que, como se explicou, as normas em apreço no presente recurso não se relacionam com as matérias a que aludem as alíneas b) e l) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (versão de 1989). Apenas cumpre saber se o Governo, ao emitir tal diploma, devia ter feito uma referência à Lei de Bases do Ambiente diversa daquela que fez, e se essa irregularidade origina inconstitucionalidade formal das normas constantes de tal diploma.
A Constituição (versão de 1989, em vigor à data da aprovação do decreto-lei do Governo em causa) nada determinava sobre a necessidade de o Governo, ao legislar sobre matérias da reserva relativa da Assembleia da República ou ao desenvolver bases gerais de regimes jurídicos, expressamente invocar a alínea do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição ao abrigo da qual exercia tal competência legislativa. Apenas no n.º 3 do artigo 201.º se exigia que, aquando do uso das competências legislativas aí mencionadas, o Governo indicasse a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da qual aprovava um determinado diploma.
Ora, se a Constituição não exigia que o Governo indicasse a alínea do preceito constitucional ao abrigo da qual exercia determinada competência, não pode vislumbrar-se qualquer vício susceptível de gerar inconstitucionalidade formal na circunstância de o Governo errar na indicação da alínea ao abrigo da qual legislava. Apenas podia configurar tal vício a omissão de indicação do diploma da Assembleia da República à sombra do qual o Governo exercia funções legislativas: a partir do momento em que, por exemplo, o Governo desenvolvia as bases gerais de um regime jurídico, era imperioso mencioná-lo no diploma.
Em conclusão: não gera inconstitucionalidade formal a alegada "errada indicação" da alínea ao abrigo da qual o Governo exerceu a sua competência legislativa, aquando da aprovação do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, redundando tal vício em mera irregularidade.
Apenas cabe perguntar se a exigência contida no n.º 3 do artigo 201.º pode considerar-se satisfeita, quando o Governo apenas no preâmbulo do diploma por si aprovado indica a lei de bases (no caso, a Lei de Bases do Ambiente).
E a resposta a esta questão deve ser afirmativa. O n.º 3 do artigo 201.º da Constituição não exigia que a invocação da Lei de Bases fosse feita num local preciso do diploma aprovado pelo Governo. Bastava que essa invocação fosse expressa, o que certamente ocorreu. Diz-se, na verdade, no preâmbulo do diploma: "[c]om o presente diploma, e no seguimento do disposto no artigo 27.º da Lei de Bases do Ambiente - Lei 11/87, de 7 de Abril - [...]".
Resolvida a questão da inconstitucionalidade formal que, pelas razões expostas, se não aceita, há que passar às restantes questões suscitadas pelo recorrente.
12 - Padecerão as normas em apreço de inconstitucionalidade material?
Afirma o recorrente (cf. conclusões 4.ª e 5.ª, de fl. 230 a fl. 231) que tais normas violam o disposto nos artigos 62.º, 65.º, n.º 4, e 266.º, n.º 1, da Constituição (versão de 1989). Na actual versão da Constituição mantém-se, no essencial, o teor destes preceitos.
O artigo 62.º tutelava e tutela o direito de propriedade privada; o artigo 65.º, n.º 4, dispunha que "[o] Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização" e, actualmente, dispõe que "[o] Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística"; por fim, o artigo 266.º, n.º 1, determinava e determina que "[a] Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos".
O recorrente apela ainda aos princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público e boa administração.
Para decidir a questão da inconstitucionalidade material das normas ora em causa, é importante recordar o que se disse no já citado Acórdão 329/99, de 2 de Junho:
"[...]
5 - As questões de inconstitucionalidade material:
5.1 - As normas sub iudicio e o direito de propriedade:
5.1.1 - A recorrente sustenta que as normas sub iudicio são ainda inconstitucionais, por violação do artigo 18.º, n.º 3, da Constituição, na medida em que, impondo 'a confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos praticados em data anterior à publicação do PROT e do próprio Decreto-Lei 351/93', e encurtando 'o prazo de caducidade daqueles actos', 'estabelecem restrições retroactivas em matérias incluídas nos direitos fundamentais de propriedade privada, iniciativa económica privada e ius aedificandi'.
Também neste ponto falece razão à recorrente.
De facto, quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito.
Mas, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção decorrentes dos planos urbanísticos (tal como as impostas pela REN, pela RAN ou pelo facto de determinada área ser qualificada como protegida) - e, naturalmente, as limitações e condicionamentos impostos ao direito de edificar por esses instrumentos de gestão dos solos - resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a medida em que tal seja possível, ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são, em parte, sacrificados.
Significa isto que a especial situação da propriedade - seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem - importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional.
Claro é que isto não dispensa o legislador de criar instrumentos ou mecanismos de perequação das mais-valias, de modo a garantir o respeito da justiça material, a qual só se observará se os proprietários ou titulares de outros direitos reais dos terrenos abrangidos pelos planos urbanísticos forem tratados com igualdade. Por isso, aqueles instrumentos ou mecanismos hão-de corrigir os efeitos desigualitários criados pelos planos urbanísticos. De contrário, eles não se libertarão da 'sombra desqualificante da desigualdade' que sobre eles pesa (cf. Fernando Alves Correia, in Problemas Actuais, citado, p. 19).
As normas sub iudicio não violam, assim, neste ponto, o artigo 18.º, n.º 3, conjugado com o artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.
[...]
5.2 - As normas sub iudicio e o dever de indemnizar:
A recorrente sustenta ainda que, como não prevêem 'a atribuição de qualquer indemnização aos lesados pela prática de acto ablativo de não confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos perfeitamente válidos e eficazes à data da sua prolação, nem pela caducidade resultante dos novos prazos estabelecidos para o exercício dos direitos emergentes daqueles actos' - acto de não confirmação que pode constituir 'verdadeiro acto expropriativo do direito de construir concretizado através de licenças urbanísticas válidas e eficazes' - as normas do Decreto-Lei 351/93, de 7 de Outubro, 'enfermam de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da justa indemnização, igualdade e proporcionalidade' (artigos 13.º, 18.º, 62.º e 266.º da Constituição).
Vejamos, então:
Disse-se atrás que a especial situação da propriedade - seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem - importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo.
Por isso, a proibição de construir decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização. Mas já assim não será - sublinha Fernando Alves Correia, Estudos de Direito do Urbanismo, citado, p. 47 e n. 10 e 11, 68, 112 e 120 - quando essa proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação, à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
[...]
O trecho do acórdão acabado de transcrever transmite-nos as seguintes ideias centrais, perfeitamente pertinentes para a questão ora em análise: quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, a proibição de construir num determinado solo não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção impostas pela REN e, naturalmente, as limitações e condicionamentos por ela impostos ao direito de edificar, resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de protecção da Natureza e do equilíbrio ecológico, sendo impostas pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade e, portanto, não podendo ser havidas como inconstitucionais; a proibição de construir (e, obviamente, a de lotear e urbanizar) decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização, só assim não sendo quando a proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
Aplicando estas ideias à questão a apreciar, temos que a sujeição a aprovação das operações de loteamento em certas áreas sujeitas ao regime transitório da REN, se se entender que não traduz qualquer restrição do direito de propriedade, nem sequer coloca o problema da ofensa dos preceitos e princípios constitucionais apontados pelo recorrente; ainda que se entenda que tal restrição ocorre, ela seria perfeitamente justificada pela hipoteca social que onera a propriedade privada do solo e, como tal, conforme com a tutela constitucional da propriedade privada e com os princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público e boa administração (este último também aflorado no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição), contrariamente ao sustentado pelo recorrente.
Relativamente à norma do n.º 4 do artigo 65.º da Constituição (artigo que, na redacção emergente da 2.ª revisão constitucional, tinha como epígrafe "Direito à habitação" e que, actualmente, tem como epígrafe "Habitação e urbanismo"), cuja violação o recorrente também invoca, é patente a sua falta de conexão com o assunto em debate. Na verdade, as normas em apreciação no presente recurso não põem em causa - porque pura e simplesmente não é esse o seu objecto - a competência do Estado e outros entes públicos para definir regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos ou para proceder à expropriação de determinados solos.
Finalmente, a circunstância de as normas em apreço não preverem (talvez porque pura e simplesmente ao diploma em que se inserem não competisse dispor sobre o assunto) a atribuição de indemnização pela não aprovação de pedidos de loteamento não tem qualquer relevo na apreciação da questão ora em análise. Desde logo, porque nem tal indemnização esteve em discussão nos presentes autos nem a decisão recorrida se pronunciou sobre ela: como tal, nunca no presente recurso se poderia aferir a conformidade constitucional de tais normas no sentido de não conferirem indemnização pela não aprovação de um projecto de loteamento.
III
13 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2001. - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida - Artur Maurício - José Manuel Cardoso da Costa.