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Assento 17/94, de 3 de Dezembro

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Sumário

O CONTRATO DE DESCONTO BANCARIO TEM NATUREZA FORMAL, PARA CUJA VALIDADE E PROVA E EXIGIDA A EXISTÊNCIA DE UM ESCRITO QUE CONTENHA A ASSINATURA DO DESCONTÁRIO, EMBORA TAL ESCRITO POSSA TER A NATUREZA DE DOCUMENTO PARTICULAR. (PROC. NUMERO 79 219 - 311FS)

Texto do documento

Assento 17/94
Processo 79219 (311 FS)
Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:
A - O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, E. P., neste momento já com a designação de Banco Espírito Santo, veio recorrer para o tribunal pleno do Acórdão deste Supremo de 26 de Setembro de 1988, proferido no processo 77933 (daqui em diante designado por acórdão recorrido), por entender que o mesmo se encontra em oposição com o Acórdão também deste Supremo de 5 de Maio de 1988, proferido no processo 75886 (daqui em diante designado por acórdão fundamento), acórdão este que transitou em julgado.

Alega, para tanto, que o acórdão fundamento decidiu no sentido de que o contrato de desconto bancário tem natureza formal, pelo que é válido mesmo que tenha sido realizado verbalmente, e pode, por isso, ser provado por qualquer meio, ao passo que o acórdão recorrido decidiu que tal contrato, para ser válido, tem de constar de documento escrito, ainda que meramente particular, assinado pelo descontário.

Pede que, a final, seja uniformizada a jurisprudência no sentido que ao problema foi dado pelo acórdão fundamento.

Pelo acórdão preliminar, a fls. 43 e seguintes, foi o recurso mandado prosseguir, por se ter verificado existir a invocada contradição de julgados, proferidos no domínio da mesma legislação e em relação ao mesmo ponto de direito.

O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, no seu parecer, defendeu também que deveria ser proferido assento no sentido da decisão do acórdão fundamento e propôs para o mesmo a seguinte redacção:

A prova da celebração do contrato de desconto bancário de títulos de crédito pode fazer-se por qualquer meio, por força do disposto no artigo 396.º do Código Comercial.

Foram corridos os devidos vistos.
B - Cumpre decidir.
1 - De acordo com o preceito do artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, a decisão preliminar sobre a oposição de acórdãos não tem carácter definitivo e pode ser novamente apreciada pelo plenário.

Dúvidas não podem, todavia, subsistir, atento o cotejo das decisões em análise, que a mesma questão de direito foi por elas decidida em sentidos divergentes, sendo certo que o acórdão fundamento transitou em julgado antes da interposição do presente recurso.

E respeitaram a situações concretas a que era aplicável e a que foi aplicada a mesma legislação, interpretada, porém, de forma diametralmente oposta pelos dois acórdãos.

Verificam-se, assim, os apontados pressupostos de admissibilidade de prolação de assento, constantes do artigo 763.º do Código de Processo Civil.

2 - Para se poder proceder à discussão da matéria que é objecto do presente pedido de uniformização de jurisprudência, torna-se necessário determinar adequadamente o que seja um contrato de desconto e se existe alguma realidade que deva ter a designação específica de contrato de desconto bancário.

Para tanto, é preciso indicar primeiramente o que seja o contrato de desconto, que, como é sabido, não vinha regulado no Código Comercial, mas resultava dos hábitos e prática do comércio (era referido, mas sem indicação de regulamentação, nos artigos 318.º e 362.º daquele Código, quando neles se consignava que «se aquele sobre que a letra é sacada a paga ou desconta antes do vencimento responde pela validade do pagamento» e «são comerciais todas as operações de banco tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis, e, em especial, os de câmbio, os arbítrios, empréstimos, descontos», bem como no artigo 4.º da Lei de 3 de Abril de 1896, que regulou o comércio bancário, e na subsequente e profusa legislação que, continuando a não definir o aludido contrato, regulamentou ou substituiu a legislação do comércio bancário, até aos Decretos-Leis 181/92, de 22 de Agosto e 298/92, de 31 de Dezembro).

O desconto é, na sua complexidade, um contrato entre o sacador ou, menos frequentemente, um portador por endosso do título cambiário (ou, em certos casos, de um título emitido a desconto, como resultado do artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 181/92, de 22 de Agosto) e uma entidade bancária, através do qual aquele legítimo portador entrega tal título ao banco, antes da data do respectivo vencimento, a troco do recebimento antecipado do respectivo valor, deduzido ou não (artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei 344/78, de 17 de Novembro) dos juros correspondentes ao período temporal que falta para essa data (no primeiro caso toma o nome de desconto por fora e, no segundo, o de desconto por dentro), e de uma comissão, que constitui o lucro específico do referido banco.

Costuma, com efeito, ensinar-se que o contrato de desconto bancário «é um contrato pelo qual o titular de um crédito (o descontário) o cede a um banco (o descontador), que dele fica sendo titular e cobra no seu vencimento, recebendo em troca, antecipadamente, o respectivo valor, deduzido do correspondente juro (prémio) e outras despesas».

3 - Por força do aludido desconto, o mencionado portador beneficia de uma antecipação do recebimento de parte substancial da importância constante do título, mas, em contrapartida, assume, nos termos da lei, a co-responsabilidade de devolver o valor deste e seus juros no mesmo plano que o sacado, no caso de não pagamento do devido por este na data do seu vencimento.

Relativamente ao banco, por outro lado, verifica-se que este adquire uma posição em que beneficia das regras de um endosso não escrito, com beneficiário não determinado no próprio título (endosso em branco, de acordo com a terminologia legal), e das regras do penhor deste último, que passa a servir de garantia de cumprimento da obrigação de pagamento da importância constante do aludido título e seus acréscimos legais (juros compensatórios e moratórios, despesas de protesto quando a este haja lugar, etc.), embora tenha a obrigação de não colocar esse título cambiário na circulação ou giro comercial, salvo se tiver necessidade de proceder ao «redesconto do título» junto de outro banco.

Poder-se-á, desta forma, dizer que, em regra, o contrato de desconto implicará a conjugação das figuras do «endosso em branco» e do «endosso em garantia», a que se referem os artigos 16.º e 19.º da Lei Uniforme sobre Letras, Livranças e Cheques, embora com a inclusão de cláusulas específicas (cobrança de comissão, etc.).

4 - Deverá ter-se em atenção que como é sabido o contrato de desconto surge, na evolução das práticas comerciais, como um meio de permitir a inclusão dos organismos bancários em parte do circuito comercial respeitante a títulos de crédito pagáveis, ou em moeda diferente ou na mesma moeda (isto é, quando há ou quando não há lugar a «câmbio»), uma vez que, por força das regras dos sistemas jurídicos de diversos países, se não admitiu (nem admite normalmente) que os bancos, atenta a sua qualidade de intervenientes principais do mercado financeiro, pudessem funcionar como vulgares endossados (e, até, como normais sacados) nos documentos mais comuns das operações efectuadas no giro comercial corrente, representadas mais frequentemente pela circulação comercial das «letras de câmbio», e apenas se admitia que eles interviessem, nas operações consideradas típicas da actividade bancária, como o desconto, e outras.

De início, por conseguinte, e relativamente aos cinco tipos de títulos de crédito originais (cheques, letras, livranças, papel-moeda e cartas de crédito), só poderia estruturar-se um contrato de desconto quando àqueles que correspondessem a um valor não imediatamente exigível ou convertível em moeda sonante, por estarem sujeitos ao decurso de um prazo de vencimento da respectiva obrigação.

O termo «desconto», de resto, foi originado por essa característica, visto que o contrato em causa tem como característica a existência de um «desconto» sobre a importância constante do título, uma vez que o descontário recebe, como se referiu, um valor que corresponde ao do aludido título, descontado de certas importâncias (juros, comissão, etc.).

Por isso, na fase inicial, só se poderia pensar em falar em desconto em relação a letras e livranças, já que os restantes títulos de crédito não respeitavam a obrigações em vencimento diferido.

Posteriormente, ao passar-se da individualização das situações para a abstracção das figuras jurídicas, passaram a ser incluídas no âmbito dos títulos de crédito susceptíveis de serem objecto de operações de desconto os extractos de factura, os warrants (os quais poderão ser indicados como correspondentes a conhecimentos de depósito de mercadorias em armazéns gerais), e, mais tarde, certos títulos representativos de obrigações de sociedade admitidos a desconto.

5 - Este contrato, que inicialmente e durante séculos foi conhecido unicamente pela expressão «contrato de desconto», passou relativamente há poucos anos a ser conhecido também como «contrato de desconto bancário», uma vez que o desenvolvimento das relações comerciais veio permitir que certas operações de desconto pudessem ser praticadas por entidades não bancárias, mas às quais foram cometidas funções parabancárias (caixas de crédito agrícola, caixas económicas, sociedades de investimento, sociedades de factoring).

No entanto, a evolução das actividades desenvolvidas pelas entidades bancárias conduziu ao aproveitamento das regras do desconto para a estruturação de uma realidade um pouco diferente, no âmbito do direito comercial, a que igualmente se passou a chamar nalguns meios financeiros «contrato de desconto bancário» e que vieram inclusivamente a abranger um mecanismo diverso, conhecido como o «aceite bancário».

E a decisão sobre o objecto dos presentes autos tem de abranger todas essas realidades, em virtude de todas elas serem ou poderem ser incluídas na designação que lhes é comum de «contrato de desconto bancário».

6 - Vejamos, então, como funciona e como se estrutura tal contrato, nas suas modalidades mais recentemente introduzidas, que são também prática corrente actualmente, ao lado da modalidade mais antiga a que acima se fez referência.

Enquanto no desconto normal e inicial o banco assume, como se viu, o papel de endossado em branco e endossado em garantia e procede, dessa forma, a um financiamento ao sacador de um título cambiário representativo de uma relação cambiária já constituída, nesta segunda modalidade de desconto bancário a realidade é diferente, pois a pessoa ou sociedade que necessita de um financiamento o obtém mediante a emissão de um título de crédito, em que o financiado assume uma posição devedora, mas sem a existência de uma normal relação cambiária subjacente.

Em qualquer dos casos, no entanto, aquele título fica conservado em carteira no próprio banco, uma vez que este último passa a ser legítimo detentor daquele através do aludido duplo mecanismo de «endosso em branco» e de «endosso garantia».

Desta forma, numa primeira fase desta segunda modalidade, a pessoa (em regra um comerciante) que pretendia obter um financiamento do banco através da emissão de um título cambiário recebia deste a indicação de que deveria intervir na emissão de um título dessa natureza, como sacadora ou como aceitante do mesmo, juntamente com outrem, que interviria no mesmo na qualidade complementar de sacador ou de aceitante, e de que deveria igualmente arranjar alguém que concedesse o seu aval no referido título, aval este que seria prestado a favor do co-obrigado pessoal que, na apreciação do banco, oferecesse melhores garantias de solvabilidade económica.

Surgiram, assim, as conhecidas «letras de favor», que não poucos problemas suscitaram quando se colocou o problema da obtenção do respectivo pagamento por parte daqueles que se teriam limitado a «emprestar» a sua assinatura no título para permitirem que o requerente do financiamento pudesse obter este.

Em seguida o banco ficava detentor do título de crédito, conservado em carteira por ele, uma vez que o mesmo passava a ser legítimo detentor daquele através do aludido duplo mecanismo de «endosso em branco» e de «endosso garantia».

E colateralmente, o banco, ao prevalecer-se da sua qualidade de credor endossado para pedir o pagamento da importância representada pelo título em causa, agia dentro do espírito que impõe que, nos títulos cambiários abstractos, as relações subjacentes sejam ininvocáveis quando o problema da satisfação do seu valor se coloque entre pessoas diversas das do sacador e do aceitante (no caso das letras) ou do subscritor e do beneficiário (no caso das livranças).

Para além disso, o contrato de «desconto bancário», em qualquer das modalidades apontadas, seria sempre completado com a inclusão de outras cláusulas específicas, algumas das quais definidas pelos «usos da praça» ou pelos costumes do comércio ou ainda pela maior ou menor confiança que o banco deposite no financiado (exigência ou não de fiador, taxa de juros compensatórios, taxa de juros moratórios, prazo de pagamento, qualificação ou não do pagamento a 90 dias como «a pronto», isto é, sem juros moratórios, existência inicial de um só ou mais títulos cambiários, modalidade da possível reforma dos títulos, etc.).

Por último, e devido a que diversos clientes do banco, por diversas razões, têm conveniência numa não emissão das indicadas «letras de favor», sucede que, em certos casos, o banco se contenta com uma emissão de uma letra em que o financiado ou aceita uma letra em que se não encontra indicada a pessoa do sacador ou, inclusivamente, nela intervém como sacador e o aceite fica em branco (situação esta compreensivelmente mais rara, já que, para essa hipótese, se tornará mais adequada não a emissão de uma letra mas a de uma livrança).

E nessas hipóteses, procede-se, da mesma forma que anteriormente foi indicada, ao «desconto bancário» do título em causa.

E numa fase mais evoluída, o mecanismo de «desconto» passou a ser aproveitado para os organismos bancários se ressarcirem de determinadas dívidas resultantes de negócios de concessão de crédito em que os mesmos figuram na posição de principal pagador de uma obrigação por eles assumida a favor de terceiro, mediante o recurso ao chamado «aceite bancário».

Na verdade, nos casos em que, em consequência de um contrato subjacente, um banco assume a obrigação de prestar uma garantia bancária a favor de um seu cliente e, por tal motivo, se vê, eventualmente, na posição de ter de emitir uma letra com o aceite do próprio banco, este último acaba por estruturar o negócio por forma a ser criada uma situação em que se emitem títulos de crédito de sinal e valor contrários, que ficam sujeitos ao apontado regime de «desconto».

7 - Vejamos agora como se inicia o processamento do contrato de desconto bancário.

Tal contrato inicia-se com contactos preliminares de pessoa ou entidade que pretende o financiamento com o funcionário responsável do organismo bancário, os quais culminam com uma proposta-pedido por escrito de desconto (que, mais tarde, ao ser aprovada pelo banco, se transforma num contrato-promessa de desconto) subscrita por aquela pessoa ou entidade e na qual se indicam, ainda que de forma muito sumária, as principais condições do dito contrato, como plano de pagamentos, título ou títulos a emitir, plano das reformas a efectuar, nomes dos fiadores exigido pelo banco e que este aceitará, etc.

Apresentada essa proposta-pedido, vai a mesma à aprovação de escalões superiores do banco, pois se não pode esquecer que cada nível - chefe de agência, subgerente e gerente de filial - tem o seu próprio tecto para a concessão de crédito a clientes e que, não obstante isso, se verifica uma possibilidade de responsabilização interna de tais funcionários pelos actos de concessão de crédito de que possa resultar uma situação de «crédito mal parado» para o banco.

E só depois de cumprido todo esse formalismo se acha perfeito o indicado contrato de desconto bancário, como é de todos sabido.

8 - É, pois, a partir dos elementos deste contrato que cumpre caracterizá-lo para se poder determinar, em primeiro lugar, se todas as realidades apontadas correspondem ou não a um legítimo «desconto bancário», em segundo lugar, se existem ou não razões para se excluírem algumas delas do regime legal de desconto e, em terceiro lugar, se o contrato de desconto, tal como vier a ser caracterizado, pode ser provado por qualquer meio ou se tem sempre de constar de escrito, ainda que de natureza particular, divergência esta que, como se indicou oportunamente, constitui o cerne da questão jurisprudencial que é objecto do presente pedido de uniformização de jurisprudência.

9 - A doutrina e uma grande parte da jurisprudência têm entendido que o contrato de desconto bancário de que nos estamos a ocupar corresponde, fundamentalmente, a um contrato misto de mútuo e de dação pro solvendo (cf. os Profs. Varela e Vaz Serra, nas citações feitas pelo Acórdão de 29 de Abril de 1981, in Colectânea, ano VI, t. II, pp. 212 e seguintes), não subsumível aos requisitos de forma indicados no artigo 1143.º do Código Civil (escritura pública ou documento assinado pelo mutuário, consoante o mútuo respeite a quantia superior a 200000$00 ou a 50000$00), com a natureza de operação comercial e, como tal, sujeito às regras da lei comercial.

Quer-nos parecer, no entanto, e salvo sempre o devido respeito, que a verdadeira natureza do contrato em causa não será essa, mas aquela que acima foi indicada: um contrato de endosso em branco e em garantia de um título cambiário, a favor do banco.

Note-se, no entanto, que este diferente enquadramento jurídico do contrato de desconto bancário tem, na análise do problema dos autos, um relevo de menor importância, uma vez que os elementos que em seguida se analisarão conduzem a uma solução idêntica quanto ao aspecto de se determinar se aquele contrato se pode provar por qualquer meio ou se, pelo contrário, só pode ser provado por escrito, ainda que de natureza particular.

10 - Efectivamente, ninguém põe em dúvida que o contrato de desconto bancário não tem a natureza de contrato civil, regulado pela lei civil, e todos aceitam que é um contrato regido pelo direito comercial, embora haja quem defenda que ele pertence a um ramo especial deste direito, o direito bancário (no sentido de que tal direito regula, especificamente, os actos de natureza comercial relativos ao crédito, ao financiamento e às outras actividades que só podem ser exercidas pelos bancos ou organismos parabancários).

Nessa medida, a sua disciplina jurídica resultará, fundamentalmente, da aplicação das regras do direito comercial (Código Comercial e sua legislação complementar - cambial, bancária e parabancária incluídas), e não das do Código Civil, que só subsidiariamente poderão ser aplicadas.

Por isso, as disposições legais a que, primacialmente, há que atender serão as seguintes:

O Decreto-Lei 32765, de 29 de Abril de 1943, que determinou, no seu artigo único, que os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, possam provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante;

O artigo 396.º do Código Comercial, que estabelece que o empréstimo mercantil entre comerciantes admite, seja qual for o seu valor, todo o género de prova; e

As disposições da Lei Uniforme sobre Letras, Livranças e Cheques, bem como as outras da lei comercial sobre extractos de factura, sobre warrants, sobre «títulos admitidos a desconto» (artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 181/92, de 22 de Agosto), ou sobre factoring (Decreto-Lei 56/86, artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 2) ou ainda sobre «aquisições a crédito por sociedades financeiras» (Decreto-Lei 49/89, de 22 de Fevereiro, artigo 2.º).

E são precisamente as disposições legais indicadas em último lugar aquelas que, além do artigo já referido do Código Comercial, expressamente se referem ao «desconto».

11 - Como já atrás foi frisado, o «desconto» pressupõe a existência de um negócio subjacente, seja ele de natureza puramente cambiária (emissão de uma letra, de uma livrança, de um extracto de factura), ou respeitante a bens em depósito e susceptíveis de transmissão (conhecimentos de depósitos, warrants) ou ainda a negócios de natureza mais próxima da financeira do que da cambial (emissão de títulos sujeitos a desconto, factoring, aquisição a crédito por sociedades financeiras).

Nestas condições, parece que as situações que atrás se indicaram, em que o «desconto» surge a cobrir um negócio inicial de financiamento que acaba por ser mascarado através da emissão de títulos cambiários, corresponderão não a uma real hipótese de «desconto» mas a contratos manifestamente simulados, cujo valor jurídico deverá ser aquele que, em harmonia com a lei, possa ser dado aos negócios dessa natureza.

E será quanto a tais contratos, na medida em que possam vir a ser considerados como válidos, que adquirirá inteira validade a posição doutrinária tradicional que refere ser o contrato de «desconto» um contrato misto de empréstimo (financiamento) e de dação pro solvendo, ao passo que, relativamente aos «descontos» respeitantes a contratos preexistentes de natureza cambiária, se deverá antes entender que a sua natureza é regulada pelas já mencionadas leis sobre títulos cambiários (recebimento, por endosso em branco e em garantia, contra um pagamento antecipado do respectivo valor, «descontado» de diversas verbas, em harmonia com as regras legais e usuais).

12 - Feita esta observação, passemos a determinar o regime legal aplicável ao contrato em causa.

Como é sabido, o Código Civil de Seabra determinava, no seu artigo 1534.º, que o mútuo de quantia superior a determinado valor só podia ser provado por documento assinado pelo próprio mutuário e reconhecido como autêntico e que o mútuo de quantia superior a uma outra ainda mais elevada só podia ser provado por escritura pública e determinava ainda que à prova da quitação do mútuo se aplicavam as mesmas regras.

Com excepção da referência à prova da quitação e com actualização dos respectivos valores, o artigo 1143.º do actual Código Civil veio manter, nas suas linhas básicas, um regime semelhante (para a validade do contrato exige-se documento assinado pelo mutuário para os mútuos de valor entre 50000$00 e 200000$00 e escritura pública para os de valor superior a 200000$00).

No intervalo temporal entre a publicação do Código de Seabra (1867) e o Código actual (1966), foram publicados em 1888 o Código Comercial, ainda vigente, e em 1943 o já mencionado Decreto-Lei 32765.

E é igualmente sabido que o Código Comercial, para afastar a aplicabilidade das exigências de ordem formal constantes do Código Civil relativas ao mútuo, veio estabelecer que o empréstimo (ou mútuo mercantil) entre comerciantes (sublinhado nosso) admite qualquer meio de prova, seja qual for o seu valor.

13 - Por essa razão, a partir de 1888, passaram a vigorar dois regimes distintos da prova dos mútuos; o geral, da lei civil, aplicável aos mútuos entre particulares ou entre um comerciante e um particular, e o especial, unicamente aplicável ao mútuo mercantil entre comerciantes.

Em 1943, o citado decreto-lei veio introduzir uma alteração significativa no regime de prova de certos mútuos comerciais (os mútuos de qualquer valor, feitos por estabelecimentos bancários autorizados, ainda que o mutuário não tivesse a qualidade de comerciante).

E conforme entendimento uniforme, esse diploma, por ter natureza especial e pertencer ao ramo do direito comercial (ou, mais propriamente, ao do direito bancário, o qual, por sua vez, tem também natureza especial quanto ao direito comercial propriamente dito), não foi revogado pelo Decreto-Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o Código Civil vigente, pelo que o mesmo continua em vigor.

Por outro lado, a publicação do Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro, que regulou em novo diploma unificado a actividade bancária, ao revogar especificadamente variadíssimos diplomas legais sobre esta matéria, não procedeu à revogação daquele Decreto-Lei 32765, o que significa que também a essa luz se não pode considerar revogado este decreto-lei.

14 - Desta forma, e uma vez que o desconto bancário é uma figura específica do direito bancário e é um acto que só pelos bancos, como descontadores, pode ser praticado, para quem defenda a posição clássica de tal contrato ser um contrato misto de mútuo e de dação pro solvendo, a regra aplicável tem de ser a que resulta da aplicação do artigo único do mencionado Decreto-Lei 32675, isto é, o aludido «desconto» tem de ser provado, seja qual for o seu valor, por documento assinado pelo descontário, sem que lhe possa ser aplicado o regime do artigo 396.º do Código Comercial (prova com recurso a qualquer meio).

Da mesma forma, para quem defenda a solução, atrás propugnada, de o contrato de «desconto» se subsumir às regras reguladoras da validade, transmissibilidade e prova dos títulos cambiários, por ser uma antecipação de pagamento com dedução de certos valores pecuniários, a troco de um endosso em branco e em garantia (dos artigos 16.º e 19.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças), a necessidade de prova da existência do desconto mediante documento assinado pelo descontário resultará da aplicação do regime genérico da mesma Lei Uniforme, na medida em que esta exige implicitamente que o título cambiário seja assinado pelo aceitante (uma vez que só em casos excepcionais o sacador pode proibir a apresentação ao aceite, nos termos do artigo 22.º da dita Lei), ou na medida em que, quando se verifique a falta ou a recusa de aceite, a mesma Lei exige, no seu artigo 44.º, uma comprovação formal de tal falta, mediante o recurso ao protesto por falta de aceite.

Isto é, os princípios fundamentais do direito cambiário exigem que os respectivos contratos tenham de ser provados por documento assinado pelo devedor, embora sem sujeição, obviamente, à regras gerais de prova do artigo 1143.º do Código Civil e igualmente sem possibilidade de aplicação do regime do artigo 396.º do Código Comercial.

15 - Resulta do exposto que, como mais acima foi referido, seja qual for o enquadramento teórico-jurídico do contrato de «desconto bancário», se tem de concluir que, para a respectiva prova, não seja suficiente qualquer meio, pois é sempre exigível um documento assinado pelo descontário, que pode ser particular, uma vez que a lei se contenta com um simples documento particular e não impõe que aquele se conforme com os requisitos de prova consignados no Código Civil.

Para além do que se deixa indicado, a circunstância de, como oportunamente se notou, do contrato de desconto fazerem parte cláusulas remissivas para os «usos da praça», os quais são variáveis dentro de certos limites temporais, e de implicarem estipulação de taxas de juros susceptíveis de, em certa amplitude, serem negociadas entre o descontante e o descontário e esquemas específicos de eventuais «reformas» do título original, originaria necessariamente a aplicabilidade do regime do § 1.º do artigo 102.º do Código Comercial, que dispõe que a taxa de juros comerciais só pode ser fixada por escrito, o que determinaria igualmente a obrigação de redução a escrito do contrato de desconto.

E se é certo que se poderia ter discutido se a doutrina deste § 1.º podia ou não ser aplicada durante o período de vigência do Decreto 21730, de 14 de Outubro de 1932, cujo artigo 2.º determinou que a taxa de juros convencionais deixara de ser livre, não é menos certo que, no regime actual, em que voltou a haver liberdade na fixação da taxa de juros convencionais, tal doutrina continua perfeitamente válida e invocável, com a consequência, acabada de indicar, de que, também pelo aspecto dos juros, há necessidade de documento escrito, assinado pelo descontário, para que se possa fazer a prova de desconto bancário (a assinatura deste último terá, assim, o valor de uma confissão sobre a existência do aludido contrato, ou, pelo menos, e nos moldes gerais, de uma promessa unilateral sua a respeito do mesmo, quando o contrato não contenha a assinatura do descontador).

16 - O problema posto pela divergência dos acórdãos em análise, no entanto, não se esgota no simples aspecto da prova de contrato de desconto bancário, uma vez que o acórdão fundamento proferiu decisão no sentido de que, para que esse contrato seja válido, ele tem de constar de documento escrito.

Isto é, para além dos aspectos da prova do contrato (por escrito ou por qualquer outro meio admissível em direito), a oposição dos acórdãos situa-se igualmente no plano de, no caso de se entender ser necessária a existência de um documento para a respectiva prova, tal documento tem unicamente a finalidade de servir para essa prova (documento ad probationem) ou, pelo contrário, é indispensável para a própria existência e validade do contrato (documento ad substantiam).

Uma vez que, pelos dados antecedentemente indicados, se deve chegar à conclusão de que a prova do contrato de desconto bancário tem de ser feita por escrito, ainda que este último possa ser um mero documento particular assinado pelo devedor, isto é, pelo descontário, torna-se agora indispensável saber se esse mesmo documento tem apenas a finalidade de servir de prova do contrato ou se é indispensável para a validade do mesmo.

Poderia, sem dúvida, defender-se que o contrato de desconto não está sujeito a qualquer forma especial, embora haja a necessidade da existência de um determinado tipo de documento para se provar a sua existência, à semelhança do que já foi consignado no nosso direito para o arrendamento (para a validade do respectivo contrato não era exigida forma especial, mas a respectiva prova, na falta de contrato escrito, apenas poderia ser feita através da exibição do recibo de renda, assinado pelo senhorio), mas não parece, salvo o devido respeito, que seja essa a correcta solução do problema.

17 - Com efeito, como atrás ficou indicado, são os próprios organismos bancários que exigem a redução a escrito da proposta de desconto, com indicação das cláusulas significativas, por força das suas normas internas de funcionamento, para validarem dentro da hierarquia dos respectivos serviços uma determinada autorização de efectivação de um desconto bancário e para poderem responsabilizar o funcionário que o autoriza, no caso de se verificar infracção funcional das aludidas regras internas.

Ou seja, são os próprios bancos que, a nível interno, não aceitam que o contrato de desconto possa ser por eles celebrado sem se terem rodeado de um conjunto de cautelas destinadas a provar a existência do contrato e das suas condições especiais, as garantias de que podem beneficiar para reaverem a quantia que por eles seja desembolsada e a fornecer elementos para uma adequada fiscalização da actuação dos seus funcionários.

Dito de outra maneira, para a vida interna dos referidos organismos bancários, o contrato em causa tem uma natureza vincadamente formal, em que a respectiva validade depende da existência do documento «proposta de desconto», o qual, assim, é essencial para a substância do contrato.

Ora, se assim é, não se vislumbra que tal essencialidade do documento para a validade do contrato só possa ter valor para a entidade descontadora e unicamente para efeitos internos, por forma que venha a considerar-se que o aludido contrato não tenha necessidade de se revestir de um determinado formalismo para poder ser válido juridicamente.

18 - Disto resulta que se entenda que igualmente este aspecto da oposição entre os dois apontados acórdãos deva ser resolvido no sentido de que o documento exigido para a sua prova seja também essencial para a validade do contrato de desconto.

C - Nestes termos e dado o que fica exposto, confirmam a doutrina expendida pelo acórdão recorrido e fixam a seguinte doutrina:

O contrato de desconto bancário tem natureza formal, para cuja validade e prova é exigida a existência de um escrito que contenha a assinatura do descontário, embora tal escrito possa ter a natureza de documento particular.

Custas pelo recorrente.
Lisboa, 11 de Outubro de 1994. - Figueiredo de Sousa - Martins da Fonseca - Mário de Noronha - Sá Nogueira - Roger Lopes - Ramiro Vidigal - Costa Raposo - Araújo Ribeiro (com a reserva da declaração de voto já apresentada pelo Exmo. Conselheiro Faria de Sousa) - Raul Mateus - Sá Couto - Dias Simão (com a declaração de voto apresentada pelo Exmo. Conselheiro Faria de Sousa) - Costa Pereira - Sousa Guedes - Santos Monteiro - Cardoso Bastos - Carlos Caldas - Pereira Cardigos - Silva Cancela - Calixto Pires (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Faria de Sousa) - Machado Soares - Correia de Sousa - Silva Reis - Gelásio Rocha - Faria de Sousa (com a declaração de voto que pede vénia para juntar) - Costa Marques (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Faria de Sousa) - Sampaio da Nóvoa (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Faria de Sousa) - Sousa Inês - Cura Mariano - Ferreira Vidigal - Miranda Gusmão (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Faria de Sousa) - Torres Paulo - Pedro Marçal - Lopes Rocha - Afonso de Melo (votei a decisão) - Joaquim de Matos - Martins da Costa (vencido, conforme declaração que junto, na qual se toma ainda posição sobre a inconstitucionalidade dos assentos, em face do Acórdão do Tribunal Constitucional de 7 de Dezembro de 1993) - Ferreira da Silva (vencido. Teria votado o assento em termos idênticos à redacção proposta na primeira parte do texto final apresentado pelo conselheiro Martins da Costa) - Fernando Fabião (vencido nos termos da declaração do Sr. Conselheiro Dr. Martins da Costa, com a qual concordo inteiramente) - César Marques (vencido nos termos da primeira parte da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Martins da Costa) - Cardona Ferreira (com a declaração de que, a meu ver, o desconto é essencialmente um empréstimo e datio pro solvendo e que o escrito apenas deve ser havido como elemento ad probationem) - Teixeira do Carmo (com a declaração de que entende somente que o contrato de desconto bancário exige, para a sua prova, a existência de um escrito que contenha a assinatura do descontário, embora tal escrito possa ter a natureza de documento particular. Tal posição, assim o cremos, é a que mais se adequa ao espírito tendencialmente não formalista do Código Comercial, em contraste com o Código Civil) - Oliveira Branquinho (com a declaração de que votei a conclusão. Quanto à fundamentação, entendo, como o voto do Exmo. Sr. Conselheiro Faria de Sousa, que a abertura de crédito não é subsumível à figura do desconto bancário) - Sousa Macedo (vencido parcialmente, nos termos da declaração de voto junta) - Lopes de Melo (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Martins da Costa) - Miguel Montenegro (vencido pelas razões constantes da declaração de voto que junto).


Declaração de voto
O desconto bancário, na sua estrutura formal, pode corresponder a diversos tipos de negócio jurídico, em especial:

Venda de títulos cambiários pelo portador a entidade bancária;
Mútuo, com intervenção no título cambiário do mutuário-descontário e, acessoriamente, de garantes;

Misto de mútuo e de dação pro solvendo (por endosso dos títulos cambiários).
Nos casos dos acórdãos em oposição, identifica-se este terceiro tipo negocial, sendo os intervenientes (descontário e descontante) comerciantes.

Apresenta-se como contrato misto por justaposição: mútuo mais dação pro solvendo.

Assim, haverá que aplicar aos elementos integrantes das espécies justapostas a disciplina que lhes corresponda.

Daí que a forma deve responder às exigências do contrato de mútuo, ou seja:
Entre comerciantes, sem sujeição a forma especial, nos termos do artigo 396.º do Código Comercial;

Entre não comerciante e entidade bancária, com sujeição a escrito particular, nos termos do artigo único do Decreto-Lei 32765, de 29 de Abril de 1943.

Formularia assento do seguinte teor:
O contrato de desconto bancário entre comerciantes, enquanto contrato misto de mútuo e dação pro solvendo, admite qualquer meio de prova.

Pedro de Lemos e Sousa Macedo.

Declaração de voto
A nossa lei não define o que se deva entender por desconto bancário.
O artigo 362.º do Código Comercial limita-se a prescrever:
São comerciais todas as operações do banco tendentes a realizar lucros sobre numerários, fundos públicos ou títulos negociáveis, e em especial as de câmbio, os arbítrios, empréstimos, descontos, cobranças, aberturas de crédito, emissões e circulação de notas ou títulos fiduciários pagáveis à vista ou ao portador.

O conceito de desconto tem sido assaz controvertido.
O Código italiano de 1942, no seu artigo 1853.º, diz textualmente:
E il sconto è il contratto con quale la banca, previa deduzione dell'interesse, antecipa al cliente l'importo di un credito verso terzi non ancore scaduto, mediante la cessione, salvo buon fine, del credito stesso.

Entre nós, e tradicionalmente, o desconto foi configurado como uma compra-venda.

A Carta Régia de 1802 dizia que «o desconto de letras de câmbio não é simplesmente o contrato de um mútuo, mas uma outra espécie de convenção, que envolve seguro e risco, sendo os descontadores não mutuantes, mas compradores das letras, e como tais considerados pelos escritores que tratam da jurisprudência cambial (apud Ferreira Borges, in Dicionário Jurídico Comercial, p. 117).

A mesma natureza jurídica lhe é atribuída pelo Código Comercial de 1833.
Adriano Antero (in Comentário ao Código Comercial Português, vol. II, p. 327) ensina, na mesma linha de pensamento, que «desconto, em geral, é o abatimento de alguma parcela de soma; porém, no tráfico de papéis comerciais, de que se trata aqui, é a sua compra a dinheiro antes do vencimento delas pelo preço por que o comprador e o vendedor se podem ajustar».

A doutrina francesa segue orientação semelhante, propendendo a qualificar o contrato como uma compra de crédito a termo, pagando o preço a pronto, e efectuada através do endosso. (Cf. Wahl, in Précis Théorique et Pratique de Droit Comercial, p. 632; Hamel, in Banque et Operations de Banques, t. II, p. 746.)

Palma Carlos (in Caracteres do Desconto - Operações de Banco - Alegações em Recurso de Revista) configurou-o como um empréstimo retribuído e Fernando Olavo (in Desconto Bancário, pp. 238 e seguintes) estrutura-o como um contrato misto - um mútuo retribuído e uma datio pro solvendo.

Já se sustentou também que era uma cessão de créditos com escopo de mútuo passivo - ou uma conjunção de mútuo com delegação imperfeita.

Cunha Gonçalves (in Comentário ao Código Comercial Português, vol. I, p. 380), após ter rejeitado a teoria da compra e venda, escreve:

O desconto é, sob outro nome, o contrato cambiário de endosso, que produz o efeito de transmitir a propriedade do título.

Tem-se por certo que o desconto é um contrato autónomo que se não resolve numa pura operação cambiária. Se assim fosse, seria pacífico qualificá-lo de endosso, forma por que invariavelmente se realiza.

Na realidade, e na lição de Fernando Olavo, o desconto efectua-se para operar a dação do crédito mediante a cobrança do qual o descontador se embolsará da importância adiantada ao descontário, que fez essa dação por se ter vinculado pelo contrato a fazê-la em consequência de lhe cumprir satisfazer a importância recebida do descontador; o endosso constitui tão-só um acto que integra um dos aspectos do contrato.

Na sua realidade económica, o desconto resume-se na operação pela qual o portador de um título de crédito ainda não vencido é abonado da respectiva importância, diminuída dos juros até ao vencimento e das comissões a que houver lugar, aceitando transferir o título mediante endosso (preenchido ou em branco) ao descontador.

Com a jurisprudência dominante opta-se por qualificá-lo como um contrato misto - um mútuo retribuído e uma datio pro solvendo.

Não se cuidará de apreender, na sua totalidade, a fisionomia jurídica e económica do contrato de abertura de crédito bancário.

Sublinhar-se-á que «a abertura de crédito é a operação mediante a qual o banco se dispõe a confiar, por certo período de tempo, os seus capitais até determinado limite a um cliente que necessita de auxílio financeiro» (v., por todos, Pinto Coelho, Operações de Banco, 4.º, p. 34).

Na sua forma mais rudimentar é o próprio banco quem paga ao creditado, por uma vez ou em diversas parcelas, as importâncias que sobre ele saca o cliente, sendo indiferente o processo para efectuar o levantamento (conta corrente, cheque, letra ou livrança, etc.).

Elemento característico, individualizado, inalterável, de tal contrato é o «pôr à disposição do cliente determinada quantia».

A abertura de crédito é considerada, assim, uma figura contratual aberta, na qual se pode inserir um contrato diverso, tendo como conteúdo a utilização concreta do crédito concedido.

Quer se conceba como um contrato autónomo ou definitivo quer se partilhe a doutrina do contrato preliminar, o elemento «pôr à disposição do cliente determinada quantia» permanece inalterável e constante.

Como se aflorou, o contrato em causa pode, na prática, revestir as mais diversas modalidades.

Salvo as restrições que as leis impõem para salvaguarda do interesse público, têm os bancos a maior liberdade de ajustar com os clientes as cláusulas ou condições que melhor se adaptam à matéria dos negócios que o creditado tem em vista realizar, atendendo, naturalmente, à pessoa do cliente e ao crédito que este merece, quer pelos seus recursos quer pela sua honorabilidade.

Assim, tanto pode ser «a descoberto», como «com garantia».
E é frequente a garantia ser constituída por uma ou várias letras ou livranças que o cliente entrega ao banco com a sua assinatura e, além dela, a de outra ou de outras pessoas de quem o banco possa exigir o montante do crédito utilizado, quer como garantes quer como responsáveis directos.

É indiferente a posição que os terceiros garantes assumam no título, nele podendo intervir como sacadores, como aceitantes ou como avalistas.

Essa letra ou essa livrança representa, no contrato de abertura de crédito, a mesma função que na venda de mercadorias representa a letra representativa do preço, que o comprador entrega com o seu aceite ao devedor.

Sendo uma duplicação do débito emergente da utilização do crédito concedido, destina-se a facilitar ao banco, através da comodidade da acção cambiária, a efectuação do crédito; mas é evidente que a utilização da letra ou da livrança exclui ou substitui a efectivação do crédito resultante do contrato: é que a garantia pessoal oferecida pelo creditado resulta precisamente das responsabilidades cambiárias que terceiros assumiram ao aporem nas letras as suas assinaturas (v., por todos, Pinto Coelho, ob. cit., pp. 243 e seguintes).

Tudo isto para significar que a segunda modalidade, que se diz ser a mais recente introduzida e a mais evoluída, da operação bancária indicada no aresto não é, pese embora a actual gíria usada na prática bancária, técnico-juridicamente um contrato de docente, mas antes um contrato de abertura de crédito caucionado por um título de crédito.

Aliás, nem no contrato de desconto existe qualquer relação subjacente nem ele se reconduz ao instituto do endosso cambiário.

Tem-se, no entanto, por líquido que é um contrato de natureza formal, para cuja validade é necessário um escrito, ainda que de natureza particular, que contenha a assinatura do descontário.

João José Sequeira de Faria de Sousa.

1 - Declaração de voto no processo 79219
O desconto bancário é uma operação complexa que se traduz em contrato de mútuo, acompanhado da entrega ao banco de títulos de crédito, como dação pro solvendo, sendo-lhe aplicáveis as disposições especiais do mútuo, designadamente as respeitantes à forma e prova deste contrato, nos termos do artigo 363.º do Código Comercial (cf. Fernando Olavo, Desconto Bancário, pp. 181 e 256).

No artigo único do Decreto 32765, de 29 de Abril de 1943, determina-se que «os contratos de mútuo [...], seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda que a outra parte não seja comerciante». O seu objectivo foi «restabelecer a suficiência de documento particular como meio de prova [...]» (relatório do citado decreto), como se dispunha no artigo 150.º, § 5.º, do Código de Processo Comercial, entretanto revogado, de modo a afastar-se a exigência de escritura pública para o mútuo superior a determinado montante, prevista então no artigo 1534.º do Código Civil de 1867 e agora no artigo 1143.º do Código Civil, facilitando-se assim a prática do mútuo bancário.

Aquela expressão «podem provar-se [...]» não significa, pois, a concessão de uma mera faculdade no sentido de poder ser também utilizado qualquer outro meio de prova menos solene, mas antes a exigência, pelo menos, de «escrito particular», até porque, de outro modo, o legislador não teria feito uso dessa expressão mas de uma outra, como «qualquer meio».

Poderia defender-se a dispensa do «escrito particular» apenas para o caso de ela ocorrer também no direito civil, ou seja, actualmente, para o mútuo de valor não superior a 50000$00, nos termos do citado artigo 1143.º (neste sentido, Vaz Serra, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 112.º, p. 155), mas afigura-se mais rigorosa a aplicação, sem qualquer restrição, do citado artigo único do Decreto-Lei 32765, por ele se reportar ao mútuo, «seja qual for o seu valor».

Não é também de ter aqui como aplicável o disposto no artigo 396.º do Código Comercial, que admite «todo o género de prova» para o «empréstimo mercantil entre comerciantes», por ser o citado artigo único uma norma especial relativa ao mútuo bancário e independentemente do facto de o mutuário ser ou não comerciante.

Por outro lado, do citado artigo único do Decreto-Lei 32765 (os contratos «podem provar-se por escrito particular [...]») resulta de modo claro e expresso que «o documento é exigido apenas para prova da declaração», e não como requisito ou elemento da existência válida do negócio, o que está ainda de harmonia com a característica própria do direito comercial como «um direito não formalista ou em todo o caso menos formalista do que o civil» (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, I, p. 22).

Aquele «escrito particular» não deve, pois, ser tido como formalidade substancial, mas como simples formalidade probatória, sujeita ao regime previsto no artigo 364.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que o documento pode ser substituído por confissão e a sua falta não implica a nulidade do negócio.

Salvo o devido respeito, não poderá argumentar-se em sentido contrário, como no presente acórdão, com o facto de serem «os próprios organismos bancários que exigem a redução a escrito da proposta de desconto [...]», deduzindo-se daí «a essencialidade do documento para a validade do contrato», por não serem os simples usos bancários suficientes para a definição ou substituição do regime legal, nem com o disposto no § 1.º do artigo 102.º do Código Comercial, em relação à estipulação de juros, dado que, na sua falta, se aplicam as regras supletivas (§ 2.º do mesmo artigo).

O exigido «escrito particular» não está sujeito a fórmulas rigorosas ou sacramentais e, embora o meio normal e directo de prova do desconto bancário seja a proposta de desconto, assinada pelo descontário, com a consequente aceitação ou confirmação pelo banco, é de admitir também como meio suficiente de prova, dada a natureza especial deste contrato e os elementos em que se desdobra, o conjunto dos seguintes factores: a subscrição dos títulos de crédito pelo descontário; a sua entrega ao banco, em regra acompanhada do respectivo endosso; o desconto dos títulos, com o lançamento do seu produto na conta bancária daquele; e, também em regra, a remessa das respectivas notas de crédito.

Não deixa de haver então «escrito particular» (pelo menos os títulos de crédito), respeitante a um dos elementos essenciais do desconto bancário, e da conjugação dele com as operações contabilísticas inerentes a esse desconto resulta ficar satisfeita, como se decidiu no acórdão fundamento, a exigência do meio de prova previsto no citado artigo único do Decreto-Lei 32765.

Assim, entendo que seria de revogar o acórdão recorrido e de formular assento nos seguintes termos:

O escrito particular não é exigido para a validade mas apenas para a prova do desconto bancário, nos termos do artigo único do Decreto 32765, de 29 de Abril de 1943; são suficientes, para esse efeito, a assinatura dos títulos de crédito pelo descontário, a sua entrega ao banco e as operações contabilísticas inerentes à realização do desconto.

2 - Sobre a inconstitucionalidade dos assentos
Perante a lei formalmente ainda em vigor, há dois tipos de «assentos» deste Tribunal: em matéria não penal, com intervenção de todos os juízes, força obrigatória geral e inalterabilidade pelo próprio Supremo (artigos 763.º e seguintes do Código de Processo Civil e 2.º do Código Civil); em matéria penal, com intervenção apenas dos juízes das secções criminais, constituindo «jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais», e possibilidade de alteração, em certos termos (artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal).

Ambos visam a uniformazação ou fixação de jurisprudência, e, enquanto os primeiros são geralmente considerados como leis interpretativas, no aspecto material, só formalmente se reconduzindo a actos jurisdicionais, já os segundos podem ser tidos apenas como actos desta última natureza.

Desde logo, esta dualidade conflitua com o princípio da «unidade do sistema jurídico», não se mostrando de modo algum razoável que o Supremo tenha competência para proferir dois tipos diversos de «assentos» e que se podem qualificar uns de primeira e outros de segunda ordem.

Entretanto, decidiu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional de 7 de Dezembro de 1993 (sem carácter vinculativo mas com intervenção do plenário e apenas com um voto de vencido) que a norma do citado artigo 2.º, segundo a qual, «nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral», é inconstitucional «na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral».

Baseou-se esse acórdão, em resumo, nos seguintes fundamentos: quando dotados daquela força obrigatória, os assentos constituem «verdadeiras normas jurídicas» com o valor de quaisquer outras; nessa medida, é violado o artigo 115.º, n.º 5, da Constituição, que proíbe a interpretação ou integração autêntica da lei através de actos normativos não legislativos, como são as decisões de natureza jurisdicional; desprovidos daquela força obrigatória geral, obrigando apenas «os juízes e os tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados [...]», e sujeitos «à contradita das partes e à modificação pelo próprio tribunal [...]», já a doutrina dos assentos «perderá o carácter normativo para se situar na mera eficácia jurisdicional», pelo que deixa de conflituar com o citado artigo 115.º, n.º 5, e essa imposição aos tribunais dependentes não representa «violação da sua independência decisória», por não envolver «prejuízo da autonomia da interpretação do direito [...]» e ter «algo de comum com a generalidade das decisões proferidas em via de recurso».

Diz-se ainda no mesmo acórdão, quanto à «revisibilidade dos assentos», que não cabe a esse Tribunal «pronunciar-se sobre os pressupostos e a amplitude do esquema processual a seguir em ordem à concretização desse objectivo - a eficácia interna dos assentos [...]».

Em suma, o acórdão orienta-se em sentido que corresponde, no essencial, ao esquema dos actuais «assentos» em matéria penal, com ressalva dos limites respeitantes à revisibilidade destes.

Em declarações de voto formuladas em anteriores assentos (como os n.os 9/93 e 4/94, antes de proferido e conhecido, respectivamente, aquele acórdão do Tribunal Constitucional), tive oportunidade de me pronunciar sobre a inconstitucionalidade do disposto no citado artigo 2.º do Código Civil, porque os assentos, «apesar de, formalmente, serem actos jurisdicionais, [...] reconduzem-se, no aspecto material, a leis de natureza interpretativa», e «nessa medida deve ter-se como inconstitucional o citado artigo 2.º, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição».

Agora, perante o acórdão do Tribunal Constitucional, o voto de vencido aí formulado e o comentário crítico de Castanheira Neves (na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127.º, pp. 35 e seguintes), a minha posição é mais ampla do que a tomada anteriormente e vai no sentido da inconstitucionalidade dos «assentos», mesmo com as restrições declaradas pelo Tribunal Constitucional.

As razões desta posição poderiam limitar-se à simples adesão aos argumentos doutamente desenvolvidos naquele voto de vencido e comentário crítico, mas, com base nos elementos por eles fornecidos, ficam aqui sumariamente apontadas.

Ainda que revestidos da possibilidade de impugnação pelas partes e de alteração pelo Supremo, os assentos, com força obrigatória apenas para «os juízes e os tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados [...]», continuam a violar o disposto no citado artigo 115.º, n.º 5, da Constituição: eles não deixam de ser actos de interpretação da lei «com eficácia externa», na medida em que essa interpretação não se aplica apenas ao caso concreto e tem antes carácter geral e abstracto, sendo imposta, com «força obrigatória», pelo menos por um certo período de tempo e para todos e quaisquer casos que venham a ser objecto de apreciação por aqueles tribunais, enquanto a doutrina fixada não vier a ser alterada; e a permitida «contradita das partes» será limitada, por só poder naturalmente ter lugar quando for admissível recurso para o próprio Supremo.

Violam também o disposto no artigo 206.º da Constituição, segundo o qual «os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei»: isso significa que os juízes não estão sujeitos «a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores» (artigos 4.º da Lei 21/85, de 30 de Julho, e 3.º da Lei 38/87, de 23-12), e esse «dever de acatamento», por sua vez, respeita apenas às decisões proferidas em determinado processo, para efeito da sua execução, não se repercutindo em outros processos; com essa ressalva, todos os tribunais, e não apenas o Supremo, são independentes e só estão sujeitos à lei; não há que falar, pois, em tribunais «dependentes» ou «subordinados», mas em tribunais colocados em certo grau da hierarquia judicial; com os assentos, mesmo atribuindo-se-lhes força obrigatória para «os juízes e os tribunais dependentes [...]», estes deixariam de ser independentes, por terem de passar a obedecer a directivas ou ordens superiores, e de ficar «apenas [...] sujeitos à lei», por não revestirem aqueles essa natureza; e não pode estabelecer-se paralelismo com o regime dos recursos, dada aquela limitação do «dever de acatamento [...]».

Por outro lado, declarada inconstitucional a norma do artigo 2.º do Código Civil, na medida em que atribui aos assentos a fixação de «doutrina com força obrigatória geral», nada mais resta dessa norma, que só tinha esse conteúdo ou alcance.

Daqui resulta que, na tese do acórdão em causa, os assentos anteriores (com força obrigatória geral e inalterabilidade pelo próprio Supremo) deixam de ter existência jurídica e passa a haver outro tipo de assentos (com força obrigatória apenas para os tribunais «dependentes» ou «subordinados», e não para o Supremo, alteráveis por este e impugnáveis pelas partes em futuros processos).

Porém, estes novos «assentos» não têm existência no ordenamento jurídico, não podem ser recuperados por repristinação da lei anterior, que os não previa (artigo 282.º, n.º 1, da Constituição), nem este Tribunal tem competência para «pronunciar-se sobre os pressupostos e a amplitude do esquema processual a seguir [...]», como a não teve, reconhecidamente, o Tribunal Constitucional, o que conduziria, aliás, a nova inconstitucionalidade, por invasão do poder legislativo, além de esses «assentos» serem também, como se notou, inconstitucionais.

E não se trataria sequer de lacuna da lei, por não haver um «caso de justiça» a solucionar e o sistema jurisdicional poder funcionar, como já tem funcionado, sem «assentos», os quais foram concebidos para «uniformização da jurisprudência», mas podem contribuir também para a sua estagnação, podendo mesmo esse objectivo ser prosseguido por outros meios compatíveis com a Constituição, como o previsto no artigo 728.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Em conclusão, entendo que os assentos, mesmo na versão dada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional de 7 de Dezembro de 1993, são inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 115.º, n.º 5, e 206.º da Constituição.

Na hipótese de adesão à doutrina daquele acórdão (ainda não vinculativa), uma questão se coloca desde já: os juízes do Supremo não estão obrigados pelos assentos, podendo proferir decisões em sentido contrário, tanto por iniciativa própria como por impugnação deduzida pelos recorrentes; a formar-se maioria nesse sentido, deveria intervir o pleno (constituído apenas pelos juízes das respectivas secções) para possível revisão do assento anterior; e poderá haver lugar a sucessivos recursos para o pleno sobre a mesma questão, o que justificará uma tramitação especial para os novos recursos; tudo isto, porém, carece de regulamentação, a qual não cabe a este Tribunal, sob pena de inconstitucionalidade; sendo assim, e pelo menos enquanto não for operada tal regulamentação por via legislativa, a única solução lógica seria a de se não atribuir aos «assentos» qualquer força obrigatória.

José Martins da Costa.

Declaração de voto
O cerne da questão em apreço agora consubstancia-se no seguinte:
Enquanto o acórdão fundamento se determinou pelo entendimento de que a admissibilidade do contrato de desconto bancário não depende de especial e qualquer formalismo, podendo validamente realizar-se em forma meramente verbal, cuja prova se faculta através de qualquer meio, já o acórdão recorrido enveredou opinando no sentido de que tal contrato terá de constar de documento escrito, ao menos particular, assinado pelo descontário, sem o que ficará inquinado na sua subsistência e validade.

É a apontada antinomia que agora cumpre solucionar, com fixação final da solução mais conveniente e legalmente conforme.

Ambas as decisões expressadas nos acórdãos recorrido e fundamento derivam de um contrato de desconto bancário, com base no qual, e a latere de qualquer relação cambiária, foram introduzidas em juízo as respectivas acções.

O contrato de desconto bancário, como operação essencialmente complexa e através da qual o correspectivo banco financia, em determinado valor, o beneficiário, que lhe entrega entretanto certos títulos cambiários de igual montante, a cobrar mais tarde, reconduz-se fundamentalmente a um contrato misto de mútuo com dação pro solvendo, tudo como o entendem os Profs. Antunes Varela e Vaz Serra (cf. citações no acórdão publicado na Colectânea, ano 6, t. 2.º, pp. 212 e seguintes, e anotações no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 277, p. 293), constituindo assim um contrato a se, autónomo, a fugir à regra do artigo 1143.º do Código Civil, e assumindo a natureza de operação comercial subsumível aos ditames e comandos da legislação comercial (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 278, p. 239).

É, portanto, uma operação de crédito pela qual o banco, adquirindo a propriedade plena de um título de crédito, coloca imediatamente à disposição do seu portador, antes do vencimento do título, o respectivo valor nominal (J. A. Gaspar e M. M. Adegas, Operações Bancárias, p. 150).

Operação essa que (citando novamente o Prof. Varela) «não se deixa reconduzir nem ao simples endosso (do título descontado) nem ao esquema civilístico de compra e venda (do título), da cessão de crédito incorporada no título ou do contrato de mútuo».

Em suma, é contrato de características próprias, que na sua causa ou fundamento assenta na convenção de financiamento, ao que se segue a colocação efectiva do numerário convencionado na disponibilidade do descontário contra a entrega do título cambiário permissivo de mais facilmente o descontante realizar o seu crédito sobre aquele descontário (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 346, p. 217).

Avançando agora para o solucionamento do problema de saber da forma a que deve obedecer o contrato (questão essa que constitui o cerne do recurso em apreço), encontramos no Código Comercial - artigo 396.º - o dispositivo seguinte:

O empréstimo mercantil entre comerciantes admite, seja qual for o valor, todo o género de prova.

Estatuindo ainda o artigo único do Decreto-Lei 32765, de 29 de Abril de 1943:

Os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda que a outra parte não seja comerciante.

[Estes citados dispositivos, dado o seu especial carácter, não se encontram revogados pelo Código Civil (nomeadamente pelo artigo 1143.º) e também pelo Código do Notariado (artigo 89.º) - neste sentido se pronunciaram os Profs. Pires de Lima e A. Varela in Código Civil Anotado, vol. II, p. 447.]

Com efeito, o artigo 3.º do Decreto 47344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o Código Civil, apenas revogou a legislação civil, assim ficando ressalvada a respeitante ao direito mercantil, como seja aquela acima referenciada, que portanto vigora.

Só que, como deixamos dito, a especial característica do desconto bancário, como contrato misto de mútuo (comercial) e de dação pro solvendo, constituindo um tipo de características próprias, não será subsumível às regras dos dispositivos acabados de enunciar, que respeitam estritamente ao mútuo ou empréstimo.

Por isso, não havendo na lei preceito quanto à forma que especialmente ela preveja, há que, por decorrência do dispositivo do artigo 219.º do Código Civil e na esteira do expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 1978, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 277, p. 292, considerá-lo como não formal.

Nem pode impressionar o dispositivo do artigo 363.º do Código Comercial quando diz que as operações de banco (artigo 362.º do diploma) se regularão pelas disposições especiais respectivas aos contratos que representam ou em que afinal se resolverem, pois que, e seguindo e reafirmando a lição do Prof. A. Varela, o contrato de desconto (como acima se disse) não se deixa reconduzir «ao contrato de mútuo».

A convenção ou ajuste a que acima fizemos referência é que constituirá a essência ou o cerne do contrato de desconto.

O título cambiário dado a desconto é mera componente do contrato, embora imprescindível, pois se título pro solvendo não existir, nem se poderá falar em perfeito contrato de desconto (salvo confissão, em caso de extravio - artigo 364.º, n.º 2, do Código Civil), no que respeita à sua total perfeição.

O título dito não consubstancia nem demonstra, só por si, o contrato de desconto, pois tal título tanto pode significar um mútuo puro e simples como um endosso, um favor, etc.

Em reforço se dirá que o direito comercial é de tendência marcadamente antiformalista, como o refere o Prof. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, 1959, p. 271, e tudo concerteza pela circunstância de no campo mercantil estar ou dever estar presente o princípio, mais de confiança que não de vinculação a fórmulas estritamente legais, como factor de melhor desenvolvimento e dinamismo das correspectivas operações.

Por isso, propuz se formulasse assento no sentido de que o convénio ou ajuste do contrato de desconto bancário se pode fazer por forma verbal e provar-se por qualquer meio.

Miguel Montenegro.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/63291.dre.pdf .

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Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1932-10-14 - Decreto 21730 - Ministério da Justiça e dos Cultos

    Fixa as taxas de juro dos empréstimos feitos por particulares.

  • Tem documento Em vigor 1943-02-20 - Decreto-Lei 32675 - Ministério da Justiça

    Regula as condições do recrutamento dos copistas do quadro das secretarias judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1943-04-29 - Decreto-Lei 32765 - Ministério da Justiça - Direcção Geral da Justiça

    Determina que os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante.

  • Tem documento Em vigor 1966-11-25 - Decreto-Lei 47344 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Aprova o Código Civil e regula a sua aplicação.

  • Tem documento Em vigor 1978-11-17 - Decreto-Lei 344/78 - Ministério das Finanças e do Plano

    Estabelece os critérios de classificação de prazos de vencimento de créditos bancários.

  • Tem documento Em vigor 1985-07-30 - Lei 21/85 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1986-03-18 - Decreto-Lei 56/86 - Ministério das Finanças - Secretaria de Estado do Tesouro

    Sistematiza as bases económico-jurídicas da actividade de factoring no País.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-23 - Lei 38/87 - Assembleia da República

    Lei orgânica dos tribunais judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1989-02-22 - Decreto-Lei 49/89 - Ministério das Finanças

    Regulamenta o financiamento da aquisição de bens e serviços a crédito e a disciplina jurídica das empresas que se dediquem a esta actividade.

  • Tem documento Em vigor 1992-08-22 - Decreto-Lei 181/92 - Ministério das Finanças

    Regula a emissão e oferta de títulos de dívida de curto prazo.

  • Tem documento Em vigor 1992-12-31 - Decreto-Lei 298/92 - Ministério das Finanças

    Aprova o regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1997-05-14 - Acórdão 9/97 - Supremo Tribunal de Justiça

    Tendo a secção julgado findo o recurso para o tribunal pleno, por não haver oposição entre os acórdãos, nos termos do nº 1 do artigo 767º (Alegações e vista pena a solução do conflito de Jurisprudência) do Código de Processo Civil - aprovado pelo Decreto Lei 44129, de 28 de Dezembro de 1961-, não há nono recursos para o mesmo tribunal pleno com fundamento de haver oposição entre o acórdão da secção e um outro acórdão anterior. (Proc. nº 85321 - 1ªSecção)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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