Acordam no Tribunal Constitucional:
I Introdução
1 - Ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Constituição da República Portuguesa (CRP), veio o Procurador-Geral da República requerer que o Tribunal Constitucional declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade e a ilegalidade das normas constantes das Resoluções n.os 42/87, de 15 de Janeiro, e 5/88, de 28 de Janeiro, do Governo Regional dos Açores.Para tanto alegou:
O Decreto-Lei 69-A/87, de 9 de Fevereiro, procedeu à revisão integral do regime jurídico do salário mínimo nacional e actualizou para 1987, e nos seguintes termos, os seus valores:
25200$00 para a generalidade dos trabalhadores por conta de outrem (artigo 1.º, n.º 1);
22400$00 para os trabalhadores dos sectores da agricultura, silvicultura e pecuária (artigo 3.º, n.º 1);
17500$00 para os trabalhadores dos serviços domésticos não fornecidos por empresas que desse fornecimento façam actividade social (artigo 3.º, n.º 2).
Por outro lado, fixou em 18 anos a idade a partir da qual era devido o salário mínimo nacional [cf. n.º 4-a) do relatório e artigo 4.º] e estabeleceu que o valor efectivo da remuneração mínima mensal garantida era sempre arredondado, quando houvesse lugar a deduções, para a centena de escudos mais próxima (n.º 7 do artigo 1.º).
O artigo 1.º do Decreto-Lei 411/87, de 31 de Dezembro, por sua vez, determinou que, a partir de 1 de Janeiro de 1988, os valores da remuneração mínima mensal consagrados nos artigos 1.º, n.º 1, e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 69-A/87, passavam a ser de 27200$00, 24800$00 e 19500$00.
A Resolução 42/87 do Governo Regional dos Açores, cuja existência (artigo 1.º, n.º 1, do Decreto Regional 1/77/A, de 10 de Fevereiro) ou eficácia jurídica (artigo 122.º, n.º 2, da CRP) só se verificou com a publicação no Jornal Oficial da Região, em 24 de Fevereiro de 1987, ou seja, em plena vigência do Decreto-Lei 69-A/87, veio estabelecer os valores do salário mínimo mensal a observar, a partir de 1 de Janeiro de 1987, na Região Autónoma dos Açores, nos seguintes quantitativos:
26650$00 para os trabalhadores do comércio, indústria e serviços;
22850$00 para os trabalhadores da agricultura, silvicultura e pecuária; e 17500$00 para os trabalhadores do serviço doméstico não fornecido por empresas.
Também fixou em 18 anos a idade a partir da qual era devido o salário mínimo nacional por inteiro e dispôs ainda que o valor efectivo do salário a pagar ao trabalhador, nos casos em que fossem permitidas deduções ou reduções aos montantes referidos no período anterior, era sempre arredondado para a centena ou meia centena de escudos mais próxima.
Por seu turno, a Resolução 5/88 do Governo Regional dos Açores, aprovada e publicada em plena vigência do Decreto-Lei 411/87, veio estabelecer do seguinte modo os valores da remuneração mínima mensal a observar na Região Autónoma dos Açores, a partir de 1 de Janeiro de 1988:
27800$00 para os trabalhadores do comércio, indústria e serviços;
26000$00 para os trabalhadores da agricultura, silvicultura e pecuária; e 19900$00 para os trabalhadores do serviço doméstico não fornecido por empresas.
Os Decretos-Leis n.os 69-A/87 e 411/87 devem considerar-se leis gerais da República, pois - como se evidencia no parecer 68/87 da Procuradoria-Geral da República - apresentam-se com vocação de aplicação a todo o território nacional.
Basta atentar que a única norma que especificamente rege para as regiões autónomas é o artigo 8.º do Decreto-Lei 69-A/87, que dispõe que os requerimentos patronais solicitando isenções de cumprimento de salários mínimos são decididos pelos órgãos de governo próprios das regiões autónomas, que comunicarão as isenções concedidas à Direcção-Geral do Trabalho, o que bem evidencia que todo o diploma, com os valores salariais nele fixados, se destina também a ser aplicado nas regiões autónomas.
Sendo inquestionável o carácter normativo das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 ora impugnadas, as mesmas assumem, do ponto de vista material, natureza legislativa, pois afigura-se difícil atribuir-se-lhes a qualificação material de regulamentos.
Por fim, não se revela, na matéria das resoluções, um possível interesse específico da Região Autónoma dos Açores, pois a matéria da garantia de uma remuneração mínima mensal aos trabalhadores não respeita exclusivamente a tal Região, nem nela exige um especial tratamento pela particular configuração que aí assume.
Das considerações precedentes resulta que as normas que integram as resoluções em causa, da autoria do Governo Regional dos Açores, dispondo legislativamente sobre a actualização do salário mínimo, com alteração e desrespeito de leis gerais da República (Decretos-Leis n.os 69-A/87 e 411/87), são:
Inconstitucionais, por violação dos artigos 229.º, alínea a), e 234.º da CRP, já que o exercício da função legislativa em cada uma das regiões compete exclusivamente à assembleia regional, e nunca ao governo regional;
Inconstitucionais, por violação dos artigos 115.º, n.º 3, e 229.º, alínea a), da CRP, pois que versam sobre matérias que não são de interesse específico regional;
E ilegais, por violação dos artigos 115.º, n.º 3, e 229.º, alínea a), da CRP, na medida em que estatuem contra leis gerais da República.
Mesmo que se atribuísse às resoluções em causa natureza regulamentar, verificar-se-iam idênticos vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade, pois que os limites ao poder legislativo regional estabelecidos na alínea a) do artigo 229.º da CRP valem também para o poder regulamentar previsto na subsequente alínea b), sendo ainda da exclusiva competência da assembleia regional, e de modo nenhum da competência do governo regional, regulamentar as leis gerais emanadas de órgãos de soberania [artigo 234.º, referido à segunda parte da alínea b) do artigo 229.º da CRP].
Acresceria, aliás, nesta perspectiva, novo vício de inconstitucionalidade, por violação do artigo 115.º, n.º 7, da CRP, por falta de invocação de lei habilitante, como já foi decidido no Acórdão 63/88, do Tribunal Constitucional.
2 - Notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio o Presidente do Governo Regional dos Açores pronunciar-se sobre o pedido nos seguintes termos:
Antes de mais, cabe referir que uma das referidas medidas do poder autonómico, na Região Autónoma dos Açores, foi a fixação de uma remuneração mínima mensal de 4000$00 para os trabalhadores rurais (Decreto Regional 3/77/A, de 11 de Abril), e isto numa altura em que tal remuneração havia sido fixada em 3500$00 pelo Decreto-Lei 49-B/77, de 12 de Fevereiro.
Tal prática foi, de resto, continuada pelos Decretos Regionais n.os 8/79/A e 5/80/A, respectivamente, de 24 de Abril e 26 de Março.
Não deixa de ser preocupante que venha agora pôr-se em dúvida a legitimidade da Região Autónoma dos Açores para intervir em tal domínio, legitimidade essa que se tem por indiscutível.
Ao salário mínimo se refere directamente o artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da CRP e indirectamente o artigo 9.º, alínea d), da CRP. Também a ele aludem os artigos 3.º da Convenção n.º 131 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Decreto 77/81, de 19 de Junho, e 23.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Neste quadro, forçoso é concluir, com Gomes Canotilho e Vital Moreira, que o salário mínimo não tem de ser fixado num montante uniforme, «podendo haver quantitativos diversos para diferentes situações, desde que as diferenças sejam adequadamente baseadas em razões económicas e sociais relevantes» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. I, p.
325).
Ora, os factores a que a CRP manda atender para a fixação e actualização do salário mínimo podem diferir de região para região do País, donde resulta não só a possibilidade, mas, mais do que isso, a obrigatoriedade de se estabelecerem salários ajustados às circunstâncias específicas de cada região.
Por outro lado, e por natureza, se o salário mínimo não pode ser diminuído, nada obsta ao seu aumento, quer por via convencional ou arbitral, quer ainda por via administrativa, através de portarias de regulamentação de trabalho.
Dito isto, importa agora esclarecer é se o diploma que fixa os montantes do salário mínimo nacional deve ser considerado lei geral da República. São leis gerais da República as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional [artigos 115.º, n.º 4, da CRP e 26.º, n.º 2, alínea a), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores].
A CRP e o Estatuto dos Açores adoptam, pois, um critério material, que não meramente formal, de lei geral da República, pelo que não é lícito indagar apenas se, na sua estrutura interna, as normas da lei considerada excepcionam da sua aplicação as regiões autónomas, ou mesmo se admitem que, a nível regional, lhes sejam introduzidas alterações.
A não se entender assim, cair-se-ia numa situação de total absurdo, que se traduziria em deixar «na mão da Assembleia da República e do Governo a possibilidade de encurtar sucessivamente o campo de manobra do poder legislativo regional» (Barbosa de Melo e outros, Estatuto e Projecto de Revisão da Constituição, p. 265).
É que, sendo a generalidade e a abstracção características essenciais das normas jurídicas, e sendo o Estado Português unitário, teria de entender-se que os órgãos de soberania, ao legislar, o fazem, à partida, para todo o território nacional, pelo que todas as leis e decretos-leis que não restringissem o respectivo âmbito seriam leis gerais, e o poder legislativo e regulamentar das regiões autónomas apenas poderia intervir nos «espaços não invadidos pela legislação da República».
Leis gerais da República, num critério material, serão tão-somente aquelas «que fluem da própria ideia da unidade do Estado» e terão de ser encontradas caso a caso, através da «procura nas leis da República daqueles princípios e normas fundamentais cuja observância é sinal e garantia do carácter unitário do Estado» (Barbosa de Melo e outros, Estatuto e Projecto de Revisão da Constituição).
Conjugando o que acaba de dizer-se com o que anteriormente se disse acerca da natureza e características dos salários mínimos, é inevitável concluir que um montante igual de salário mínimo não tem necessariamente o mesmo significado ou o mesmo valor para a generalidade dos cidadãos, quer para os que residem no continente, quer para os que residem nos Açores.
Em situação diferente encontram-se as normas que consagram e regulam, por exemplo, o direito à vida, à integridade física e moral das pessoas, a capacidade civil ou os direitos políticos.
Pelo que fica dito, deve entender-se que o diploma que fixa o salário mínimo não pode ser considerado lei geral da República.
«O que seja o interesse específico de cada região há-de resultar [...], antes de mais, da conjugação dos condicionalismos insulares e do direito de Açorianos e Madeirenses de, em face deles, promoverem o seu próprio desenvolvimento, por um lado, com as estruturas essenciais de um Estado unitário como é o Estado Português, por outro lado» (Jorge Miranda, in Estudos sobre a Constituição, 1.º vol., p. 308).
Assim sendo, o interesse específico da Região residirá não apenas nas matérias exemplificativamente enumeradas no artigo 27.º do primitivo Estatuto dos Açores (correspondente ao artigo 33.º do Estatuto revisto em 1987), mas também em todas aquelas que tenham a ver com os fundamentos e com os fins de autonomia, enfim, com a sua própria razão de ser.
Ora, o regime autónomo dos Açores fundamenta-se, para além do mais, nas características económicas e sociais do arquipélago e tem como fim principal o seu desenvolvimento económico e social integrado e a promoção e defesa dos valores e interesses do seu povo (artigos 227.º, n.º 1, da CRP e 2.º, n.º 2, do Estatuto dos Açores).
É do conhecimento geral que o aumento do custo de vida na Região tem sido superior ao do continente, sendo as taxas de inflação aqui registadas, nos últimos anos, superiores em média às do continente em dois pontos percentuais.
Por outro lado, são estes mesmos condicionalismos derivados da insularidade que vêm motivando que o próprio Governo da República atribua acréscimos de remuneração, vulgarmente denominados «subsídios de insularidade», a muitos dos servidores do Estado que prestam serviços nos Açores e na Madeira.
E foram também idênticos condicionalismos que estiveram na origem das Resoluções n.os 42/87 e 5/88, as quais decidiram salários mínimos superiores aos do continente em dois pontos percentuais, em média.
Se ainda subsistissem dúvidas acerca de a fixação e actualização do salário mínimo configurarem matérias do interesse específico da Região Autónoma dos Açores, haveria que considerar-se «a prática legislativa dos órgãos de soberania e dos órgãos regionais» (Jorge Miranda, ob. cit.).
Com efeito, a prática dos órgãos regionais é a que resulta dos já citados Decretos Regionais n.os 3/77/A, 8/79/A e 5/80/A.
E no que respeita à prática dos órgãos de soberania, observa-se que o Decreto-Lei 39/81, de 7 de Março, do Governo da República, expressamente reconhece e admite a possibilidade de existirem salários mínimos nas regiões autónomas.
Nestas circunstâncias, as regiões autónomas têm efectivamente competência constitucional para intervir no domínio dos salários mínimos, fixando e actualizando os respectivos montantes.
Em apoio desta tese, importa ainda acrescentar a ilação que se retira do artigo 230.º da CRP. É que, por esta disposição, apenas «é vedado às regiões autónomas restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores», o que não impede - antes pelo contrário - que elas possam ampliar ou desenvolver tais direitos quando fixados em leis emanadas dos órgãos de soberania.
Por outro lado, no actual quadro constitucional, as regiões autónomas inserem-se dentro da organização política do Estado e, como tal, contribuem para a realização das funções e fins do próprio Estado e, pelo que a Região Autónoma dos Açores, ao decidir salários mínimos ajustados aos condicionalismos económicos e sociais da Região, não só actua de acordo com os fundamentos e fins da autonomia, mas contribui para a realização, no seu âmbito espacial, das funções do próprio Estado [cf. artigos 9.º, alínea d), e 60.º, n.º 2, alínea a), da CRP].
Neste contexto, é manifestamente deslocado dizer-se que as Resoluções n.os 42/87 e 5/88 alteraram e desrespeitaram os Decretos-Leis n.os 69-A/87 e 411/87, padecendo as mesmas de ilegalidade, por disporem contra leis gerais da República.
Na verdade, ainda que aqueles decretos-leis pudessem ser considerados leis gerais da República - o que só para efeitos de contra-argumentação se admite -, não se vê em que medida teriam sido desrespeitados ou contrariados, já que inexiste contradição entre os regimes dos salários mínimos em vigor nos Açores e no resto do País, apenas sendo diferentes os respectivos valores salariais.
E se é certo que as regiões não podem contrariar as leis gerais da República, «esta regra não significa mais do que a necessidade de as leis regionais se moverem nos parâmetros dos princípios fundamentais das leis gerais da República, não significa impossibilidade de disciplinas diferenciadas» [Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado (apontamentos policopiados), 1984, p. 95].
Finalmente, dir-se-á ainda que «compete ao Governo Regional adoptar as medidas necessárias à promoção e desenvolvimento económico e social e à satisfação das necessidades colectivas e regionais» [artigo 56.º, alínea o), do Estatuto dos Açores revisto, que corresponde ao artigo 44.º, alínea n), do primitivo Estatuto dos Açores].
Ora, as resoluções questionadas traduzem medidas do Governo Regional dos Açores, tomadas ao abrigo dessas competências, e relativamente às quais não é exigida uma forma especial, mormente a de decreto regulamentar regional (v. artigos 57.º, n.º 1, do Estatuto dos Açores revisto e 45.º, n.º 1, do Estatuto dos Açores, texto de 1980).
E não sendo exigida pelo Estatuto dos Açores a forma de decreto regulamentar regional, nada obstava a que o salário mínimo na região açoriana fosse fixado pelo Governo Regional através de simples resolução, como, na verdade, aconteceu.
Por outro lado, a Assembleia Regional dos Açores, à qual incumbe fiscalizar o Governo Regional, nunca levantou problemas a este propósito.
Por todo o exposto, não existem razões sérias, de ordem jurídico-constitucional, que possam levar à satisfação do pedido apresentado pelo Procurador-Geral da República, razão por que deverá o mesmo ser julgado improcedente.
II - Breves considerações sobre o pedido
3 - Como vem de ver-se, o Procurador-Geral da República requereu ao Tribunal Constitucional que declarasse, com força obrigatória geral, não só a inconstitucionalidade, mas também a ilegalidade das normas constantes das Resoluções n.os 42/87 e 5/88.
Pediu, pois, e em simultâneo, que se apreciasse e decidisse se, em relação a tais normas, concorreria ou não tal díade de vícios.
Terá, no entanto, o Tribunal Constitucional, e em qualquer caso, de se pronunciar sobre o pedido nesta sua dupla dimensão? 4 - A inconstitucionalidade consiste na infracção, por parte de normas jurídicas, do disposto na Constituição ou dos princípios nela consignados (artigo 277.º, n.º 1, da CRP), e a ilegalidade - no sentido estrito que, para efeitos de definição da competência do Tribunal Constitucional, lhe é constitucionalmente atribuída - consiste ou na violação, por banda de quaisquer normas constantes de diploma regional, do estatuto da região ou de lei geral da República, ou na violação, por banda de qualquer norma constante de diploma emanado dos órgãos de soberania, dos direitos de uma região consagrados no seu estatuto [artigo 281.º, n.º 1, alíneas b) e c), da CRP].
A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral tem, num e noutro caso, os mesmos efeitos (cf. artigo 282.º da CRP). No entanto, enquanto no primeiro caso o parâmetro de referência foi a Constituição, no segundo caso já o parâmetro de referência foi um simples acto legislativo. A esta luz se compreenderá, pois, que, concorrendo os dois vícios, a inconstitucionalidade, como vício mais grave (vício que põe afinal em xeque a própria Constituição, cuja superioridade hierárquica - Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., p. 601 - «relativamente às outras normas implica uma relação axiológica entre a constituição e essas normas, precisamente porque a sua primariedade postula uma maior força normativa»), por via de regra prejudicará o conhecimento da ilegalidade, vício menos grave.
Assim não terá de ser, no entanto, se os vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade tiverem diversa dimensão temporal (por exemplo, se a ilegalidade for originária e a inconstitucionalidade superveniente), situação que, porventura, configurará a única excepção àquela regra.
Na presente hipótese, tanto a inconstitucionalidade como a ilegalidade são referidas como originárias, e assim, dada a prevalência, sobre o segundo, do primeiro vício, o Tribunal Constitucional só haverá de ir averiguar se as normas das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 padecem ou não de ilegalidade se antes, e em relação a essas mesmas normas, não tiver expressado preferentemente um juízo de inconstitucionalidade.
Esclarecido este ponto, cumprirá, pois, ao Tribunal Constitucional conhecer, em primeira linha, da (in)constitucionalidade das normas das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 e, em segunda linha, e se for o caso, da (i)legalidade das mesmas normas.
Na análise daquela primeira questão (questão prevalecente), começar-se-á por averiguar se ocorre ou não violação do preceituado no artigo 115.º, n.º 7, da CRP, para depois se passar, se necessário, à investigação da existência ou inexistência dos outros motivos de inconstitucionalidade invocados no requerimento do Procurador-Geral da República.
III - As normas das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 face ao artigo 115.º, n.º 7,
da CRP
5 - É o seguinte o teor das resoluções em questão:Considerando que a política regional de rendimentos e preços deve assegurar o equilíbrio entre a viabilidade económica das empresas e a criação de condições favoráveis ao investimento e, por outro lado, a defesa do rendimento das famílias na perspectiva do crescimento dos salários reais;
Considerando os condicionalismos especiais da economia açoriana e a particular relevância dos salários mínimos nos rendimentos das classes mais desfavorecidas;
Considerando que é socialmente justa e economicamente comportável uma progressiva aproximação entre os valores do salário mínimo dos trabalhadores rurais e os do comércio e indústria;
Considerando que a política de juventude defendida pelo Governo visa, entre outros objectivos, reforçar a integração sócio-económica dos jovens:
O Governo resolve:
1 - Os valores do salário mínimo mensal a observar, a partir de 1 de Janeiro de 1987, na Região Autónoma dos Açores são os seguintes:
a) 25650$00 para os trabalhadores do comércio, indústria e serviços;
b) 22850$00 para os trabalhadores da agricultura, silvicultura e pecuária;
c) 17500$00 para os trabalhadores do serviço doméstico não fornecido por empresas.
2 - A idade a partir da qual é devido o salário mínimo por inteiro é fixada em 18 anos.
O valor efectivo do salário a pagar ao trabalhador, nos casos em que forem permitidas deduções ou reduções aos montantes referidos no número anterior, será sempre arredondado para a centena ou meia centena de escudos mais próxima.
4 - Em todos os aspectos não contemplados por esta resolução observar-se-á o disposto na legislação aplicável.
Considerando que se mantêm parcialmente os condicionalismos que justificaram que, em 1987, fosse estabelecido um salário mínimo regional;
Considerando a necessidade de defender o rendimento das famílias de menores recursos, para as quais o salário mínimo assume maior importância;
Considerando a política de aproximação progressiva dos diferentes valores do salário mínimo, e, em particular, entre os salários dos trabalhadores rurais e do comércio, indústria e serviços;
Considerando o nível de desenvolvimento das forças produtivas na Região e as exigências de estabilidade económica e financeira das empresas;
Considerando as posições assumidas neste âmbito pelos parceiros sociais:
O Governo resolve:
1 - Os valores da remuneração mínima mensal a observar na Região Autónoma dos Açores, a partir de 1 de Janeiro de 1988, passam a ser os seguintes:
a) 27800$00 para os trabalhadores do comércio, indústria e serviços;
b) 26000$00 para os trabalhadores da agricultura, silvicultura e pecuária;
c) 19900$00 para os trabalhadores do serviço doméstico não fornecido por empresas.
2 - Em todos os aspectos não contemplados nesta resolução observar-se-á o disposto na legislação aplicável.
Transcritas as Resoluções n.os 42/87 e 5/88, importa assinalar que, pela sua origem, tais diplomas só podem ser havidos como regulamentares. De facto, e no plano da produção normativa regional, o artigo 234.º da CRP, lido em articulação com o artigo 229.º, apenas deixa para os governos regionais o poder de regulamentar a legislação regional, competência esta, aliás, especificamente afirmada para o Governo Regional dos Açores no artigo 56.º, alínea c), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei 39/80, de 5 de Agosto, e revisto pela Lei 9/87, de 26 de Março [note-se, aliás, que as normas do n.º 1, alínea b), da Resolução n.º 42/87 e do n.º 1, alínea b), da Resolução 5/88 até poderão estar, de algum modo, a dar execução ao Decreto Regional 5/80/A, de 26 de Março, que, depois de fixar nos artigos 1.º e 2.º a remuneração mínima garantida aos trabalhadores dos sectores da agricultura, pecuária e silvicultura, respectivamente, com idade igual ou superior a 18 anos e com idade inferior a 18 anos, determina no artigo 6.º que «os montantes das remunerações mínimas fixadas no presente diploma deverão ser revistos anualmente por decreto regulamentar regional»].
Por outro lado, se é exacto que o texto constitucional, ao referir-se a determinações resoluções, «se limita a seguir a prática constitucional que considera as resoluções como uma forma de as assembleias e, eventualmente, outros órgãos de soberania manifestarem as suas intenções e tomarem decisões, sem que seja necessário adoptar um acto normativo (lei, decreto-lei, decreto regulamentar)», não menos exacto é que, muitas outras vezes, as resoluções correspondem afinal a «actos normativos editados pela Administração no exercício de funções administrativas» (Gomes Canotilho, ob.
cit., pp. 681 e 721).
Ora, na hipótese sub judice, por não estarem em causa resoluções de órgãos de soberania - às quais a CRP associa, ao menos predominantemente, uma clara dimensão não normativa -, sempre será de considerar, numa óptica meramente formal, que nas Resoluções n.os 42/87 e 5/88 se encerram, ao cabo e ao resto, típicos actos regulamentares (a propósito, note-se, no entanto, que, se o artigo 57.º, n.º 1, do Estatuto dos Açores, considerado isoladamente, parece não impor a forma de decreto regulamentar regional para todos e quaisquer actos de normação secundária do Governo da Região, já se poderá discutir, e colocada a questão noutro plano - cf. em particular o artigo 235.º, n.º 4, da CRP -, se não existirão parâmetros constitucionais imperativos, delimitadores da forma dos regulamentos dos governos regionais).
Mas, se é assim, se as Resoluções n.os 42/87 e 5/88, pela sua origem, e mesmo pela sua forma, só poderão ser havidas como diplomas regulamentares regionais, então justificar-se-á que a questão de inconstitucionalidade das normas daquelas resoluções seja decididamente analisada, e antes de mais, em função do estatuído no n.º 7 do artigo 115.º da CRP.
De facto, este preceito constitucional há-de ser chamado à colação sempre que certo diploma normativo se configure externamente como regulamentar. É esse o sentido da previsão do n.º 7 do artigo 115.º da CRP, que se esgota nessa única condição.
Consequentemente, a operatividade desta norma constitucional não dependerá nunca do conteúdo normativo do regulamento em consideração. Essa será uma falsa condição, condição que, ao cabo e ao resto, não se insere no esquema previsto do n.º 7 do artigo 115.º da CRP.
Por tais motivos, logo se entendeu - e isto independentemente da questão de saber se a matéria nelas abordada deveria ou não ter sido objecto de intervenção legislativa - que as Resoluções n.os 42/87 e 5/88 sempre haveriam de cumprir o preceituado no artigo 115.º, n.º 7, da CRP.
6 - Dito isto, e prosseguindo a análise, impõe-se recordar, antes de mais, que o n.º 7 do artigo 115.º dispõe que «os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão». Para perfeita compreensão do sentido e alcance do preceito, indispensável é, no entanto, estabelecer-se o confronto do n.º 7 com o n.º 6 do artigo 115.º E desse cotejo verifica-se que, enquanto o n.º 6 do artigo 115.º da CRP estipula que «os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes», limitando, por conseguinte, e de modo expresso, a determinação dele constante aos regulamentos do Executivo, já o n.º 7 do mesmo artigo se refere a regulamentos tout court, sujeitando, assim, todo e qualquer regulamento, independentemente da consideração do órgão ou da autoridade donde tiver emanado, à imposição de tipo alternativo nele prevista.
É, pois, claro, face a esta simples análise normativa, de ordem comparativa, que abrangidos pela regra bidireccional do n.º 7 do artigo 115.º da CRP estão todos os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo [artigo 201.º, alínea c)], dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas [artigo 229.º, alínea b)] e dos órgãos próprios das autarquias locais (artigo 242.º da CRP). Todos esses regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede cada um deles, e que, por força do disposto do n.º 7 do artigo 115.º da CRP, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento.
O papel dessa lei precedente - di-lo o n.º 7 do artigo 115.º - não é sempre o mesmo.
Umas vezes, a lei a referir é aquela que o regulamento visa regulamentar. Será esse o caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos complementares.
Outras vezes, a lei a indicar é a que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. De facto, no exercício do poder regulamentar têm de ser respeitados diversos parâmetros, e assim é que «cada autoridade ou órgão só pode elaborar os regulamentos para cuja feitura a lei lhe confira competência, não podendo invadir a de outras autoridades ou órgãos (competência subjectiva)» e nessa «feitura deverá visar-se o fim determinante da atribuição do poder regulamentar (competência objectiva)» - Afonso Rodrigues Queiró, «Teoria dos regulamentos», Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, n.os 1-2-3-4, p. 19. A necessidade de citação dessa lei definidora da competência, subjectiva e objectiva, da autoridade ou órgão que emite o regulamento verificar-se-á, designadamente, no caso dos regulamentos autónomos.
7 - Ora, as Resoluções n.os 42/87 e 5/88, que, a título de regulamentos regionais, foram emitidas pelo Governo da Região, não se referem, nem directa, nem indirectamente, à lei que as suporta e que, no esquema do artigo 115.º, n.º 7, da CRP, teria de ser obrigatoriamente citada.
Deste modo, nem interessa averiguar se tais resoluções poderiam ou não ser legalmente justificadas. Na verdade, e em correcta análise do texto constitucional, escrevem, a este propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., vol. II, p. 66:
O princípio da primariedade ou precedência da lei é claramente afirmado no n.º 7 [do artigo 115.º], onde se estabelece: a) a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar; b) o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta dupla exigência torna ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal, mas também os regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizam expressamente este fundamento.
Assim, é patente a inconstitucionalidade formal das normas das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 7, da CRP (neste sentido, v. os Acórdãos n.os 92/85, 63/88 e 76/88 do Tribunal Constitucional, publicados, respectivamente, no Diário da República, 1.ª série, n.º 168, de 24 de Julho de 1985, 2.ª série, n.º 108, de 10 de Maio de 1988, e 1.ª série, n.º 93, de 21 de Abril de 1988).
Alcançada esta conclusão no sentido da inconstitucionalidade formal das normas em causa, poder-se-ia ser tentado, por razões de economia processual, a parar aqui a investigação. No entanto, tratando-se de processo de fiscalização abstracta de constitucionalidade, entende-se ser de toda a conveniência que o Tribunal Constitucional esclareça desde já a sua posição quanto à questão de saber se tais normas são ou não organicamente inconstitucionais.
Assim, e em direcção a este novo campo, prosseguirá a subsequente análise averiguativa.
IV - As normas das Resoluções n.os 2/87 a 5/88 face aos artigos 229.º,
alíneas a) a b), e 234.º da CRP
8 - Segundo os artigos 229.º, alínea a), e 234.º da CRP, compete às assembleias regionais «legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania».A competência legislativa de cada assembleia regional depende, pois, da concorrência de dois parâmetros: Que a matéria sobre que se pretende legislar seja de interesse específico para a região (parâmetro positivo).
E que tal matéria não esteja reservada à competência própria dos órgãos de soberania (parâmetro negativo).
Relativamente ao primeiro parâmetro (parâmetro positivo), observa-se que, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, é matéria de interesse específico regional a que respeite exclusivamente a essa região ou que nela exija um tratamento especial, por aí assumir peculiar configuração (cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.os 91/84, 42/85, 57/85, 164/86 e 154/88, publicados, respectivamente, in Diário da República, 1.ª série, n.os 232, de 6 de Outubro de 1984, 80, de 6 de Abril de 1985, 84, de 11 de Abril de 1985, e 130, de 7 de Junho de 1986, e Diário da República, 2.ª série, n.º 216, de 27 de Setembro de 1988).
Relativamente ao segundo parâmetro (parâmetro negativo), nota-se que, de acordo com a práxis decisória do Tribunal Constitucional, as matérias reservadas à competência legislativa própria dos órgãos de soberania não se circunscrevem às que a CRP expressamente reserva à Assembleia da República (cf. em especial os artigos 164.º, 167.º e 168.º da CRP) e ao Governo (cf. em particular o artigo 201.º da CRP), abrangendo ainda as matérias em relação às quais a CRP, implicitamente embora, exige a intervenção do legislador nacional (Acórdãos n.os 82/86, 164/86 e 326/86, in Diário da República, 1.ª série, n.os 176, de 2 de Abril de 1986, 130, de 7 de Junho de 1986, e 290, de 18 de Dezembro de 1986).
9 - No que respeita à definição legislativa do salário mínimo nacional (matéria que, por ora, e a título de mera hipótese, se admite ter sido efectivamente tratada nas Resoluções n.os 42/87 e 5/88), é de sublinhar de imediato que, in casu, é claro que não se verifica o segundo dos parâmetros que, nos termos da exposição antecedente, justificariam o accionamento, por parte da Assembleia Regional dos Açores, da competência que os artigos 229.º, alínea a), e 234.º da CRP lhe reconhecem (a ocorrência ou não do primeiro parâmetro, note-se, é questão que aqui se deixará em aberto).
De facto, o artigo 60, n.º 2, alínea a), da CRP estipula que incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento; e esta tarefa, que a lei fundamental expressamente atribui ao Estado, pela sua magnitude, pela sua referência a todo o corpo social, só pode ser exercida, nos quadros constitucionais, pelos órgãos de soberania detentores do poder legislativo:
Assembleia da República ou Governo.
Deste modo, a Assembleia Regional dos Açores, desde logo por ausência deste parâmetro definidor do seu poder legislativo regional (parâmetro negativo), seria constitucionalmente incompetente para, ao abrigo do disposto nos artigos 229.º, alínea a), e 234.º da CRP, legislar sobre a matéria de que tratam as Resoluções n.os 42/87 e 5/88 (admitindo-se, sempre por hipótese, que elas verdadeiramente regulam a questão dos salários mínimos regionais).
Verifica-se assim que aos órgãos de soberania é que cabe a definição legislativa do salário mínimo nacional e que, valendo a definição por elas feita para todo o território nacional, não poderão nunca as assembleias regionais afastar ou derrogar o salário mínimo nacionalmente fixado.
10 - O que se disse, em exposição de princípios, acerca da competência legislativa das assembleias regionais vale, mutatis mutandis, para o poder regulamentar desses parlamentos regionais (poder de regulamentar leis gerais emanadas dos órgãos de soberania) e, bem assim, para o poder regulamentar dos governos regionais (poder de regulamentar a legislação regional) - cf.
artigos 229.º, alínea b), e 234.º da CRP. É que o poder regulamentar regional, previsto no artigo 229.º, alínea b), da CRP não pode logicamente, isto é, numa interpretação enraizada em visão sistemática desse mesmo artigo 229.º, deixar de estar sujeito às mesmas limitações que o poder legislativo regional, ou seja, também ele só poderá operar normativamente em relação a matérias de interesse específico regional que não estejam reservadas à acção legislativa dos órgãos de soberania [observe-se, a propósito, que, por força do disposto na alínea b) do artigo 229.º da CRP, as assembleias regionais não poderão também regulamentar as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que houverem reservado para si tal tarefa].
E, assim sendo, o que se disse, já em análise directa do caso sub judice, acerca da incompetência legislativa da Assembleia Regional dos Açores, há-de valer igualmente ao nível do poder regulamentar regional açoriano. Na verdade, por similar inverificação, e neste ponto, do parâmetro negativo em causa (ausência de reserva legislativa em favor dos órgãos de soberania), tanto a Assembleia Regional dos Açores como o Governo Regional dos Açores estariam impedidos de intervir normativamente, e no plano regulamentar, no campo em que intervieram as Resoluções n.os 42/87 e 5/88, isto, enfatize-se, continuando a admitir, e sempre em quadro hipotético, que com tais resoluções pretenderam efectivamente substituir-se aos órgãos de soberania na fixação do salário mínimo para a Região.
Nesta perspectiva, numa perspectiva em que se admitiu, hipoteticamente embora, que esse seria o real sentido e alcance das Resoluções n.os 42/87 e 5/88, então seria legítimo concluir, ao menos em princípio, pela inconstitucionalidade orgânica das diversas normas daquelas resoluções, emanadas precisamente do Governo Regional dos Açores: este, por direitas contas, teria intervindo regulamentativamente numa área constitucionalmente reservada à competência legislativa dos órgãos de soberania, teria, em suma, ultrapassado os quadros da sua competência regulamentar, prefixada nos artigos 229.º, alínea b), e 234.º da CRP.
11 - No entanto, tais resoluções são susceptíveis de outra interpretação, interpretação essa que se tem como a mais correcta e ajustada. Quando não, vejamos.
Ao tempo em que foi publicada a Resolução 42/87, que para a Região Autónoma dos Açores fixou os salários mínimos dos trabalhadores do comércio, indústria e serviços em 25650$00, dos trabalhadores da agricultura, silvicultura e pecuária em 22850$00 e dos trabalhadores do serviço doméstico não fornecido por empresas em 17500$00, vigorava em todo o território nacional o Decreto-Lei 69-A/87, que, para as mesmas categorias de trabalhadores, havia fixado, e respectivamente, os salários mínimos de 25200$00, 22400$00 e 17500$00. E ao tempo em que foi publicada a Resolução 5/88, que, para a mesma região autónoma, fixou os salários mínimos daquelas classes de trabalhadores em 27800$00, 26000$00 e 19900$00, vigorava em todo o espaço português o Decreto-Lei 411/87, que, correspondentemente para essas classes de trabalhadores, tinha estabelecido os salários mínimos de 27200$00, 24800$00 e 19500$00.
Fazendo o cotejo do regime nacional dos salários mínimos expresso nos Decretos-Leis n.os 69-A/87 e 411/87 com o regime regional de tais salários constante das Resoluções n.os 42/87 e 5/88, observa-se que, salvo num caso [o da alínea c) do n.º 1 da Resolução 42/87], em que foi mantida a paridade, sempre na Região Autónoma dos Açores, e com referência ao último biénio, se «definiram» salários mínimos mais elevados que os paralelamente vigentes ao nível nacional. Nestas circunstâncias - e malgrado a redacção daquelas resoluções, que, numa leitura de superfície, sugeririam ser seu objectivo a fixação dos salários mínimos regionais - entende-se, todas as contas feitas, que nelas o que se pretendeu foi criar apenas, e para o arquipélago açoriano, complementos regionais aos salários mínimos nacionais. Ou, por outras palavras, com tais resoluções não se pretenderam afastar os salários mínimos nacionais, mas antes, tendo-os por referência ineliminável, como que se quis instituir apenas salários mínimos regionais acrescidos.
Face a esta outra hermenêutica das Resoluções n.os 42/87 e 5/88, face a uma hermenêutica que as lê como dispondo fundamentalmente sobre a implementação, ao nível regional, de complementos aos salários mínimos nacionais, tem-se por pertinente propor agora as seguintes interrogações:
haverá que alterar de algum modo juízo de inconstitucionalidade orgânica que, anteriormente, e num quadro interpretativo conjuntural, se formulou? Ou, mais concretamente, e considerada a dimensão significativa que se acabou por atribuir às normas das Resoluções n.os 42/87 e 5/88, não será de admitir agora o concurso pleno dos parâmetros definidores da competência normativa regional? 12 - Tendo assim por pano de fundo as Resoluções n.os 42/87 e 5/88, tidas, uma e outra, como regulamentos regionais que se limitaram a tratar da complementação para os Açores dos salários mínimos nacionais, de imediato se sublinha que, agora, efectivamente concorrem os parâmetros delimitadores da competência legislativa regional e que, em conjunto com outros, delimitam igualmente a competência regulamentar regional.
Relativamente ao parâmetro positivo ou do interesse específico, observa-se que tal questão, a da institucionalização de suplementos regionais aos salários mínimos nacionais, é questão que, ao menos em princípio, diz respeito exclusivamente aos Açores.
A propósito, recorda-se que, com a fixação do salário mínimo nacional - o que aconteceu pela primeira vez, na ordem jurídica portuguesa, com o Decreto-Lei 217/74, de 27 de Maio -, pretendeu-se assegurar aos trabalhadores das categorias inferiores dos diversos sectores da economia uma remuneração laboral que lhes consentisse, ao cabo e ao resto, um nível de vida acima do nível de sobrevivência. Vê-se assim que existe uma íntima conexão entre o montante do salário mínimo e o custo de vida, pois que quanto maiores forem os preços das mercadorias e dos serviços necessários à existência maior haverá de ser o salário mínimo.
Mais tarde, ao constitucionalizar-se tal instituto, determinou-se no artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da CRP que os órgãos legislativos da República, ao fixarem o salário mínimo nacional, haveriam fatalmente de ter em conta os seguintes factores: 1) necessidades dos trabalhadores; 2) aumento do custo de vida; 3) nível de desenvolvimento das forças produtivas; 4) exigências da estabilidade económica e financeira; 5) acumulação para o desenvolvimento.
Entre esses factores não será de somenos importância o que tem a ver com o custo dos produtos e serviços indispensáveis à vida, factor este que logo de início se destacou.
Ora, esse factor, agora especificamente assinalado, difere claramente do continente para os Açores.
De facto, o trabalhador continental, porque os preços dos bens e serviços essenciais, no seu conjunto, são, no continente, inferiores aos dos Açores, tem de despender com eles menos dinheiro que o trabalhador açoriano.
E é precisamente a premência deste factor, factor da maior importância na delineação do salário mínimo, que paralelamente veio criar uma nova questão no espaço insular açoriano: a da complementação do salário mínimo nacional para que ao trabalhador ilhéu das categorias mais baixas dos sectores primário, secundário e terciário da economia seja garantido um nível de vida um patamar acima do nível de sobrevivência, ou seja, ao nível do seu homólogo do continente, esse recebedor apenas do salário mínimo nacional.
Numa situação em que a diferença dos índices do custo de vida, entre diversos espaços da geografia portuguesa, contribuiu para o surgimento de uma questão nova na Região Autónoma dos Açores, merecedora, pelo seu carácter único e exclusivo, de um tratamento próprio, necessariamente se tem de concluir, dentro da linha jurisprudencial há muito definida pelo Tribunal Constitucional, que ela é, ao cabo e ao resto, do interesse específico da Região.
Relativamente ao parâmetro negativo ou de ausência de reserva legislativa em favor dos órgãos de soberania - e sempre dentro do modo interpretativo, tido por prevalecente, das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 -, também será de o dar por verificado, como, aliás, logo se anunciou.
É certo que o artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da CRP, como já se viu, guarda para a competência legislativa dos órgãos de soberania a matéria dos salários mínimos nacionais. E certo é ainda que o artigo 230.º, alínea a), da CRP proíbe as regiões autónomas de restringirem os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores, pelo que tais regiões - e ainda que não ocorresse a reserva derivável do preceituado no artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da CRP - sempre estariam impedidas de prescrever para os respectivos espaços insulares salários mínimos inferiores aos salários mínimos nacionais.
No entanto, outra coisa também é certa: a de que a CRP já não impede que, a nível regional, se prevejam remunerações mínimas acima dos salários mínimos nacionais. É um espaço livre, deixado em aberto, situado para lá do campo de aplicação do artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da CRP, e que as regiões autónomas bem poderão ocupar normativamente. Assim, e nesta perspectiva, tem-se por certo que os órgãos regionais, ao intervirem nessa área, não irão avocar o exercício de um poder próprio dos órgãos de soberania, mas exercitarão, sim, um poder diverso.
Isto significa pois, e em última análise, que aqui também concorre o referido parâmetro negativo.
13 - Abandonada pois, e em definitivo, a interpretação (hipotética) inicialmente dada às Resoluções n.os 42/87 e 5/88, alterado, no plano hermenêutico, o referencial normativo e apurado que, no caso, se acumulam os parâmetros, positivo e negativo, definidores da competência normativa regional, impõe-se proceder, e em termos finais, à reavaliação da situação.
Desta sorte, de entrada, e tendo presente o sistema constitucional de repartição de competências normativas ao nível regional, sistema a que já noutro lugar se fez alusão, cabe notar, antes de mais, que a via normativa de ocupação do espaço em branco, localizada para lá do campo de aplicação do artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da CRP, há-de ser a via legislativa, e assim inevitavelmente há-de ser por se tratar, a todas as luzes, de normação primária. Por isso mesmo, se as Resoluções n.os 42/87 e 5/88 fossem diplomas legislativos provenientes da Assembleia Regional dos Açores, isto é, se tivessem sido emitidos por este parlamento regional como decretos legislativos regionais, de modo algum se registaria então, e quanto às suas normas, o vício da inconstitucionalidade orgânica.
Provindo, porém, tais resoluções do Governo Regional dos Açores, já outra conclusão se terá de extrair, a de que as normas das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 [com excepção, porém, da norma da alínea b) do n.º 1 de cada uma das resoluções] são organicamente inconstitucionais, e isto por intromissão ilegítima do Governo Regional na área da competência legislativa da Assembleia Regional dos Açores: os governos regionais, por força do disposto nos artigos 229.º, alínea b), e 234.º da CRP, dispõem apenas de competência normativa para regulamentar a legislação regional. Esta inconstitucionalidade orgânica, que arrancou de uma correcta interpretação das Resoluções n.os 42/87 e 5/88, de uma interpretação que as leu como visando fundamentalmente a implementação de complementos regionais aos salários mínimos nacionais (mesmo as normas do n.º 2 da Resolução 42/87, precise-se o ponto, devem ser lidas como atendo-se apenas a tais complementos), é como que uma inconstitucionalidade meramente tangencial, e, por isso mesmo, susceptível de remédio dentro do quadro autonómico regional.
14 - Neste juízo de inconstitucionalidade orgânica, e como se vem de ver, fez-se uma ressalva em relação à norma da alínea b) do n.º 1 de cada uma das Resoluções n.os 42/87 e 5/88. De facto, e quanto a tais normas, não é claro e evidente que elas enfermem de tal tipo de inconstitucionalidade, desde logo por as mesmas, e como já noutro lugar deste acórdão se assinalou (cf.
capítulo III), poderem, eventualmente, ser havidas como simples normas regulamentares do artigo 6.º do Decreto Regional 5/80/A.
Neste diploma legislativo regional - relembre-se de novo o seu conteúdo - havia a Assembleia Regional dos Açores (artigo 1.º, n.º 1) «fixado» salários mínimos regionais para os trabalhadores dos sectores de agricultura, pecuária e silvicultura, ou melhor - e tomando por padrão interpretativo o já adoptado na leitura das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 -, havia afinal tal parlamento regional implementado simplesmente um complemento regional ao salário mínimo nacional, que então, e para aquela categoria de trabalhadores, era de 6100$00 [cf. artigo 1.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 440/79, de 6 de Novembro]; e, no seu artigo 6.º, havia determinado ainda que os montantes das remunerações mínimas ali fixadas haveriam de ser revistos anualmente por decreto regulamentar regional.
O facto de o Governo Regional dos Açores, em contravenção ao preceituado no artigo 6.º do Decreto Regional 5/80/A, não haver adoptado o decreto regulamentar regional como forma dos regulamentos que posteriormente emitiu como Resoluções n.os 42/87 e 5/88 - resoluções das quais, aliás, apenas a norma da alínea b) do n.º 1 de cada uma delas poderá ser tida como de execução do preceituado naquele artigo 6.º - pode não ser constitucionalmente indiferente. É que a CRP, designadamente no seu artigo 235.º, n.º 4, e como já noutro trecho deste acórdão se pôs em relevo (cf.
capítulo III), porventura estabelecerá parâmetros imperativos, delimitadores da forma dos regulamentos dos governos regionais.
Deixando, no entanto, de lado esta questão - a análise desenvolvida ao longo do presente capítulo tem sido, toda ela, dedicada a questões de inconstitucionalidade orgânica -, haveria agora que ver se a norma da alínea b) do n.º 1 de cada uma das resoluções em foco seria ainda organicamente inconstitucional, tal como sucede, aliás, com as demais normas desses diplomas regulamentares. A resposta, avance-se já, será deixada em aberto.
Já atrás se disse que a questão da institucionalização de complementos regionais aos salários mínimos nacionais deverá ser tratada legislativamente pela Assembleia Regional dos Açores. Nada impõe, no entanto, que este parlamento regional a haja de tratar até à exaustão. Bem poderá limitar-se a exprimir legislativamente os princípios gerais, as regras ou critérios a que a fixação de tais complementos ficará sujeita, deixando para o poder regulamentar dos governos regionais a determinação periódica dos seus quantitativos anuais.
Duvidoso será, todavia, que lhe seja constitucionalmente lícito proceder neste ponto a uma deslegalização do tipo da verificada no artigo 6.º do Decreto Regional 5/80/A, sabido como é que, havendo reserva constitucional de lei (cf. artigo 115.º, n.º 5, da CRP), ela, a lei, não poderá limitar-se nunca a entregar a regulamentos a disciplina jurídica da matéria reservada.
Por isso, e na dúvida sobre a conformidade constitucional da norma do artigo 6.º do Decreto Regional 5/80/A e, bem assim, sobre a conformidade constitucional - e isto sempre numa perspectiva orgânica - das normas regulamentares dela derivadas, deixa-se aqui a questão em suspenso.
15 - Sem embargo de não se haver achado, e em definitivo, uma solução para tal questão, não se deixa de notar que a norma da alínea b) do n.º 1 de cada uma das Resoluções n.os 42/87 e 5/88 sempre haverá de ser julgada inconstitucional, aliás, como as demais normas de tais resoluções, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 7, da CRP.
V - Limitação de efeitos 16 - No que toca aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, determina o artigo 282.º da CRP o seguinte:
A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (n.º 1);
Todavia, se se tratar de inconstitucionalidade por infracção de norma constitucional posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última (n.º 2);
Ficam em regra ressalvados os casos julgados (n.º 3);
Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos n.os 1 e 2 (n.º 4).
Com a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de certa norma jurídica contrária à lei fundamental, pretende-se realizar, no concreto, uma certa ideia de justiça. Todavia, é bom não esquecer que «se se prosseguir cegamente a justiça, sem atender à segurança, a instabilidade da vida social anulará as vantagens teoricamente obtidas» (Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, p. 166).
E buscando uma solução em que esses dois valores, o da justiça e o da segurança, se compensassem - e embora não só por esse motivo -, implementou o n.º 4 do artigo 282.º da CRP o instituto da limitação de efeitos.
Tal instituto, na particular perspectiva em que ora é encarado, surge assim como um meio de atenuar os riscos de incerteza e insegurança, consequentes em regra a uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas jurídicas (outros motivos da limitação de efeitos, que ora não importa considerar, são, como se viu, a equidade e o interesse público de excepcional relevo).
Pretende-se, em suma, e por esta via, salvar em certos casos um valor, o da segurança jurídica, que, tal como o da justiça, não é alheio à própria ideia de direito (cf. Guilherme Moreira, Instituições de Direito Civil, vol. I, p. 70, que à segurança jurídica se refere nestes precisos termos:
A confiança nas leis existentes, a certeza de que produzirão os devidos efeitos os factos realizados em harmonia com as suas prescrições, o respeito pelos interesses criados sob a garantia da lei, constituem a verdadeira base da autoridade e da força obrigatória das leis e, por meio delas, da ordem social.) As normas das Resoluções n.os 42/87 e 5/88, cuja inconstitucionalidade vai ser declarada, com força obrigatória geral, podem ter servido de base ao recebimento de salários, de pensões infortunísticas ou de indemnizações, pelo que, por razões de segurança jurídica, e sempre com ressalva das situações litigiosas pendentes, se torna aconselhável que o Tribunal Constitucional, ao abrigo do preceituado no artigo 282.º, n.º 4, da CRP, proceda a uma limitação de efeitos de modo a proteger e salvar, até à data da publicação do acórdão, aquelas mesmas situações.
VI Decisão
17 - Pelos motivos expostos, decide-se:A) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas das Resoluções n.os 42/87, de 15 de Janeiro, e 5/88, de 28 de Janeiro, do Governo Regional dos Açores;
B) E limitar os efeitos da inconstitucionalidade - com ressalva, porém, das situações litigiosas -, por forma que não seja posto em causa o direito a salários, pensões infortunísticas e demais indemnizações que, na base daquelas resoluções, se tenha constituído até à data da publicação deste acórdão.
Lisboa, 29 de Novembro de 1988. - Raul Mateus - Vital Moreira - Antero Alves Monteiro Dinis - Martins da Fonseca - Messias Bento (vencido quanto à fundamentação, nos termos da declaração de voto que junto) - José Magalhães Godinho (vencido quanto à fundamentação, nos termos da declaração de voto que junto) - Mário de Brito (vencido quanto à fundamentação, nos termos da declaração de voto que junto) - Luís Nunes de Almeida (vencido quanto à fundamentação, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Mário de Brito) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido quanto à fundamentação, em termos semelhantes aos que constam das declarações de voto dos Exmos. Juízes que me antecedem) - Armando M. Marques Guedes.
Declaração de voto
Votei vencido quanto à fundamentação pelas razões que seguem:1 - «O poder legislativo regional é um poder condicionado, sujeito a limites vários: só pode versar sobre matérias de interesse específico para a respectiva região e que se não achem reservadas à competência própria dos órgãos de soberania; para além de dever obediência à Constituição, não pode editar normas que contrariem leis gerais da República; não pode restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores; não pode estabelecer restrições ao trânsito de pessoas e bens entre as regiões e o restante território nacional, salvo, quanto aos bens, as editadas por exigências sanitárias; e, por último, não pode reservar o exercício de qualquer profissão ou acesso a qualquer cargo público aos naturais ou residentes na região [cf. artigos 115.º, n.º 3, 229.º, alínea a), e 230.º da Constituição]» - escreveu-se no Acórdão 326/86 deste Tribunal, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 290, de 18 de Dezembro de 1986.
As «matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania» não se circunscrevem às que constituem a reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigos 167.º e 168.º da Constituição) e do Governo, constante do n.º 1 do artigo 201.º «À competência própria dos órgãos de soberania acham-se reservadas todas as matérias que reclamem a intervenção do legislador nacional.» (Cf. citado Acórdão 326/86 e bem assim o Acórdão 164/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Junho de 1986.) Pois bem: reclamam a intervenção do legislador nacional as matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos. Exigem-no o princípio da unidade do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses (cf. Acórdãos deste Tribunal n.os 91/84 e 82/86, publicados no Diário da República, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1984 e 2 de Abril de 1986, respectivamente).
A legislação sobre essas matérias deve, por isso, ser produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo). Devem ser a Assembleia ou o Governo «a introduzir as especialidades [...] que se mostrem necessárias, designadamente por, no caso, concorrerem interesses insularmente localizados» (cf. citado Acórdão 91/84).
É que, ali «onde esteja uma matéria reservada à 'competência própria dos órgãos de soberania' [...], não há 'interesse específico' que legitime o poder legislativo das regiões autónomas» (cf. Acórdãos deste Tribunal n.os 160/86, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Agosto de 1986, e 37/87 e 91/88, estes publicados no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Março de 1987 e 12 de Maio de 1988, respectivamente).
2 - Ora, aplicando esta doutrina ao caso do salário mínimo nacional, de que fala a alínea a) do n.º 2 do artigo 60.º da Constituição, a conclusão a extrair é a de que - sem prejuízo de ele poder ser de quantitativos diferentes no continente e nos Açores - deve, no entanto, ser fixado pelo legislador nacional.
Trata-se, na verdade, de uma matéria «com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos», pois - vistas as coisas sob o prisma da unidade do Estado e dos laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses - não é, naturalmente, indiferente que, nos Açores, o salário mínimo seja, por exemplo, mais elevado dois pontos percentuais que no restante território nacional.
Não é indiferente, porque importa evitar desigualdades de tratamento nesta matéria.
Ora, o único modo seguro de o conseguir é reservar essa competência para o legislador nacional, que, atento às especificidades locais e sectoriais, fixará o salário mínimo em quantitativos ajustados.
3 - Pelas razões expostas, em meu entender, as normas das Resoluções n.os 42/87, de 15 de Janeiro, e 5/88, de 28 de Janeiro, violam o artigo 229.º, alínea a), da Constituição.
Messias Bento.
Declaração de voto
Votei o acórdão, mas discordando em parte da sua fundamentação; pois também votaria a inconstitucionalidade por violação da alínea a) do artigo 229.º, visto não se poder, no meu entendimento, descortinar um interesse específico das regiões na fixação e actualização do salário mínimo nacional. Basta atentar em que a Constituição da República muito claramente dispõe no n.º 2, alínea a), do seu artigo 60.º, vincando assim de forma inequívoca o interesse nacional que revestem, que incumbe ao Estado o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento, para ter de concluir-se que só os órgãos de soberania podem fixar e actualizar o salário mínimo e tendo em atenção os diferentes factores existentes, estabelecer salários diferentes, quer quanto às regiões em que se aplicarão, quer quanto aos sectores do trabalho a que se destinam. E é óbvio que nem os governos regionais nem as assembleias regionais são órgãos de soberania, não são o Estado Português, e este reservou para si a competência para a fixação e actualização dos salários mínimos nacionais.José Magalhães Godinho.
Declaração de voto
A Resolução 42/87 da Presidência do Governo da Região Autónoma dos Açores, aprovada em Conselho de 15 de Janeiro e publicada no Jornal Oficial de 24 de Fevereiro de 1987, fixa os valores do «salário mínimo mensal», a partir de 1 de Janeiro de 1987, nessa Região. Por sua vez, a Resolução 5/88 da mesma Presidência, aprovada em Conselho em 28 de Janeiro e publicada no Jornal Oficial da mesma data, estabelece os valores da «remuneração mínima mensal» a observar na mesma Região a partir de 1 de Janeiro de 1988.Tratando-se de valores que substituíram para a referida Região a «remuneração mínima mensal» fixada, respectivamente, pelo Decreto-Lei 69-A/87, de 9 de Fevereiro (artigos 1.º, n.º 1, e 3.º, n.os 1 e 2), e pelo Decreto-Lei 411/87, de 31 de Dezembro (artigo 1.º), e sabido que é ao Estado que incumbe o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional [artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa], tenho como certo que aquelas resoluções são inconstitucionais, por violação do artigo 229.º, alínea a), da lei fundamental.
Na verdade, as regiões autónomas só podem «legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania», e a matéria em causa - «o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional» - está reservada à «competência própria dos órgãos de soberania». Como se disse no Acórdão deste Tribunal n.º 91/84, de 29 de Agosto (Diário da República, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1984), e se repetiu nos Acórdãos n.os 82/86, de 18 de Março, e 326/86, de 25 de Novembro (Diário da República, 1.ª série, de 2 de Abril e 18 de Dezembro de 1986, respectivamente), «o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a legislação sobre matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), devendo ser estes a introduzir as especialidades ou derrogações que se mostrem necessárias, designadamente por, no caso, concorrerem interesses insularmente localizados». Ou, por outras palavras, que foram as usadas no Acórdão 164/86, de 15 de Maio (Diário da República, 1.ª série, de 7 de Junho de 1986):
Tratando-se de adoptar medidas legislativas, que respeitam ou se repercutem nas várias parcelas do território nacional [...], para a sua edição, haverão de intervir os órgãos legislativos nacionais, como órgãos representativos que são dos cidadãos de todas essas partes.
É claro que, se se admitisse que cabia nos poderes das regiões autónomas - no caso a Região Autónoma dos Açores - fixar salários mínimos regionais, então a competência para tal pertenceria à assembleia regional, e não ao governo regional, como se decidiu no Acórdão deste Tribunal n.º 95/88, de 27 de Abril (Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988).
Mário de Brito.