Acórdão 457/94
Processo 110/94
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício no Tribunal Constitucional, na qualidade de representante do Ministério Público, requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição da República (CR) e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de norma constante do § único do artigo 11.º da Postura Municipal de Bragança sobre Apascentação e Divagação de Animais, aprovada em 2 de Novembro de 1989 pela respectiva Assembleia Municipal e publicitada por edital de 17 de Janeiro de 1990, na parte em que proíbe a pernoita de gado lanígero dentro das povoações.
A norma indicada foi julgada inconstitucional, no segmento em referência, por violação do artigo 115.º, n.º 7, da CR, pelos Acórdãos da 2.ª Secção deste Tribunal n.os 196/94, 197/94 e 198/94, ainda inéditos.
O requerente juntou cópia dos citados arestos e do texto da postura em causa.
2 - Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, o presidente da Assembleia Municipal de Bragança pronunciou-se atempadamente, informando que, verificada a falta de citação da lei habilitante no texto da postura, agendara para a sessão ordinária do mês de Abril último «a alteração desta postura no sentido de a tornar constitucional».
Juntou certidão do ponto 5.º da acta da reunião da assembleia ocorrida em 29 de Abril, onde se deliberou, por unanimidade, autorizar a Câmara Municipal a iniciar o texto da postura com a seguinte referência à lei habilitante:
No uso da competência que lhe conferem o artigo 242.º da Constituição da República Portuguesa e as alíneas h) do n.º 1 e a) do n.º 2, ambas do artigo 39.º do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 18/91, de 12 de Junho, a Câmara Municipal de Bragança delibera aprovar a seguinte postura municipal sobre apascentação e divagação de animais.
II
1.1 - De acordo com o disposto no artigo 281.º, n.º 3, da CR, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de norma que, em três casos concretos, tenha sido julgada inconstitucional.
E, em conformidade com o artigo 82.º da Lei 28/82, sempre que a mesma norma tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos pode o Tribunal, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com cópia das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os demais termos da fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade.
Não se oferecem dúvidas quanto à legitimidade da entidade requerente como também quanto à existência de três casos concretos objecto de outros tantos acórdãos - já citados - que julgaram inconstitucional, por violação do artigo 115.º, n.º 7, da CR, a norma do § único do artigo 11.º da postura em questão, no segmento relativo à proibição de pernoita de gado lanígero dentro das povoações.
De resto, outros acórdãos deste Tribunal foram, entretanto, lavrados com a consequente emissão de juízos de inconstitucionalidade, por idênticos vício e fundamentação, versando aquela norma, mas na sua globalidade: cf. Acórdãos n.os 243/94, 244/94, 245/94, 246/94 e 247/94, todos de 22 de Março de 1994, tirados por unanimidade dos juízes da 1.ª Secção, ainda inéditos.
1.2 - O facto de determinada norma ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos não conduz, por sua vez, e como pondera o Acórdão 347/92, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 3 de Dezembro de 1992, na esteira de outros, a uma declaração automática da sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas implica reapreciar a questão pelo Tribunal Constitucional: como então se observou, «é um novo processo de fiscalização que se abre e uma nova decisão que se tem de tomar».
2.1 - A Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais, destinada a vigorar na área do município de Bragança foi aprovada em reunião camarária de 11 de Abril de 1989 e na sessão da respectiva Assembleia Municipal de 2 de Novembro seguinte e publicada por edital de 17 de Janeiro de 1990.
No seu artigo 1.º, a postura estabeleceu a proibição de apascentação e divagação de animais de qualquer espécie, incluindo aves de capoeira, em terrenos municipais e paroquiais, ruas, lugares e logradouros públicos ou comuns e, bem assim, em propriedades particulares, sem licença por escrito, «das respectivas entidades administrativas ou dos respectivos proprietários, devendo estas ser visadas pela Junta de Freguesia».
Regulamenta-se, seguidamente, a apascentação de animais, fixando-se limitações e prescrevendo sanções para o seu desrespeito (cf. os §§ 1.º e seguintes do artigo 1.º e os artigos 2.º a 8.º), cuidando os artigos 9.º a 11.º da divagação, proibida nos locais públicos a qualquer espécie de animais, abrangendo as aves de capoeira, quando não atrelados ou conduzidos por pessoas.
Precisa-se no artigo 11.º:
Na cidade de Bragança, é proibido o estacionamento de gado ovino, caprino, bovino, cavalar, muar, asinino e suíno, fora do lugar destinado ao campo da feira ou dos locais ou parques de estacionamento a eles destinados, salvo para carga e descarga, sob pena de coima de 500$00 a 2500$00.
E no § único, ora em causa:
É expressamente proibida a estabulação e pernoita de gado lanígero ou caprino dentro das povoações, sob pena de ser aplicada ao transgressor a coima de 5000$00 a 25000$00.
Ainda de acordo com o artigo 12.º, as coimas previstas na postura serão elevadas de um terço por cada reincidência verificada e responderão pelo seu total pagamento os pastores e os donos dos animais, solidariamente.
Como observam os acórdãos que fundamentam o pedido, razões ambientais relacionadas com a higiene e a salubridade públicas - para além da consideração do bem-estar e comodidade dos respectivos habitantes - justificam a regulamentação da deambulação de animais no interior dos povoados, tratando-se, para mais, de uma zona do País onde a pastorícia tem expressão relevante e tradicional.
2.2 - A Assembleia Municipal tem competência para aprovar posturas e regulamentos, como nos diz o artigo 39.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março - conhecido por Lei das Autarquias Locais -, na redacção da Lei 75/91, de 27 de Julho. Compete-lhe ainda, de acordo com o n.º 1, alínea h), do mesmo artigo 39.º, «pronunciar-se e deliberar sobre assuntos que visem a prossecução de interesses próprios da autarquia».
Simplesmente, não consta do texto do regulamento em causa, ou de preâmbulo, menção da lei habilitante do exercício do poder regulamentar autárquico próprio - constitucionalmente perfilado nos termos do artigo 242.º da CR -, ou seja, indicação da norma ou normas que definam a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Ora, a este respeito diz-nos o artigo 115.º da CR, no seu n.º 7:
Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Impõe-se, deste modo, que os regulamentos contendo normas regulamentares externas contenham essa indicação expressa, com o que se pretende garantir que a subordinação do regulamento à lei - e, consequentemente, a precedência da lei relativamente a toda a actividade administrativa - seja explícita (ostensiva), como se pondera e no citado Acórdão 196/94.
A função da exigência de identificação expressa, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 516 -, consiste «não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento) mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevante à luz da principiologia do Estado de direito democrático».
Há-de valer o exposto, observa-se no Acórdão 196/94, para todos os regulamentos contendo normas regulamentares externas, como, de resto, aqueles autores reconhecem ao acentuarem que o dever de citação deve observar-se em «todos os regulamentos», não bastando que «seja possível identificar a lei habilitante» (cf. ob. cit. e loc. cit.).
A esta luz, os regulamentos que não respeitem a imposição feita pelo artigo 115.º, n.º 7, da CR, independentemente da maior ou menor facilidade de identificação das normas habilitantes - e do reparo de, assim, se prestar uma «homenagem excessiva ao formalismo» -, são constitucionalmente ilegítimos. Assim o entenderam, com fundamentação comum, os três acórdãos convocados pelo magistrado requerente, de harmonia, aliás, com a jurisprudência deste Tribunal, atestada, inter alia, pelos Acórdãos n.os 63/88, 76/88, 268/88 e 307/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Maio de 1988, 1.ª série, de 21 de Abril de 1988, 2.ª série, de 21 de Dezembro do mesmo ano, e 1.ª série, de 21 de Janeiro de 1989, respectivamente.
Transcreve-se, a propósito, elucidativa passagem do Acórdão 268/88:
[...] impõe-se recordar, [...] que o n.º 7 do artigo 115.º dispõe que «os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão». Para perfeita compreensão do sentido e alcance do preceito, indispensável é, no entanto, estabelecer o confronto do n.º 7 com o n.º 6 do artigo 115.º
E desse cotejo verifica-se que, enquanto o n.º 6 do artigo 115.º da Constituição estipula que «os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes», limitando, por conseguinte, e de modo expresso, a determinação dele constante aos regulamentos do Executivo, já o n.º 7 do mesmo artigo se refere a regulamentos tout court, sujeitando, assim, todo e qualquer regulamento, independentemente da consideração do órgão ou da autoridade donde tiver emanado, à imposição de tipo alternativo nele prevista.
É, pois, claro, face a esta simples análise normativa, de ordem comparativa, que abrangidos pela regra bidireccional estão todos os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo.
Todos esses regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede um deles e que, por força do n.º 7 do artigo 115.º da Constituição, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento.
Aliás, não é sempre a mesma a função da lei precedente.
Umas vezes, a lei a referir é aquela que o regulamento visa regulamentar - caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos complementares.
Outras vezes, no entanto, nomeadamente no caso dos regulamentos autónomos, a lei a indicar é a que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão: no exercício do poder regulamentar há parâmetros a observar, uma vez que «cada autoridade ou órgão só pode elaborar os regulamentos para cuja feitura a lei lhe confira competência, não podendo invadir a de outras autoridades ou órgãos (competência subjectiva)», sendo certo que «nessa feitura deverá visar-se o fim determinante da atribuição do poder regulamentar (competência objectiva)» (cf. Afonso Rodrigues Queiró, «Teoria dos regulamentos» in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVIII, p. 19).
Em conclusão, a norma objecto do pedido - na sua precisa configuração - é formalmente inconstitucional, na medida em que se não observou o disposto no artigo 115.º, n.º 7, da CR.
III
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional declarar inconstitucional, por violação do artigo 115.º, n.º 7, da Constituição da República, a norma constante do § único do artigo 11.º da Postura Municipal de Bragança sobre Apascentação e Divagação de Animais - aprovada pela respectiva Assembleia Municipal em 2 de Novembro de 1989 e publicitada por edital de 17 de Janeiro de 1990 - na parte em que proíbe a pernoita de gado lanígero dentro das povoações.
Lisboa, 22 de Junho de 1994. - Alberto Tavares da Costa - Guilherme da Fonseca - Vítor Nunes de Almeida - Messias Bento - Armindo Ribeiro Mendes - Bravo Serra - Antero Alves Monteiro Dinis - Fernando Alves Correia - Maria Fernanda Palma - Maria da Assunção Esteves - José Manuel Cardoso da Costa.