Acórdão 347/92
Processo 187/92
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício no Tribunal Constitucional, como representante do Ministério Público, requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição da República (CR) e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 204.º do Decreto-Lei 376/87, de 11 de Dezembro - diploma que aprovou a Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e o Estatuto dos Funcionários de Justiça -, na parte em que altera o disposto no artigo 49.º, alínea b), do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho (Estatuto dos Solicitadores).
Invocou aquele magistrado, como fundamento do pedido, o facto de tal norma ter sido julgada inconstitucional por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea t), em conjungação com a alínea b) - esta com referência ao artigo 47.º, n.º 1 -, todos da CR, mediante os Acórdãos n.os 283/91, de 19 de Junho de 1991, 464/91, de 4 de Dezembro de 1991, e 175/92, de 7 de Maio de 1992, todos da 2.ª Secção, o primeiro já publicado - Diário da República, 2.ª série, n.º 245, de 24 de Outubro de 1991 - e os demais mantidos ainda inéditos.
Juntou cópia dos arestos citados.
2 - Admitido o pedido, respondeu oportunamente o Primeiro-Ministro, notificado que foi nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82.
Concluiu do seguinte modo:
a) Os acórdãos do Tribunal Constitucional que servem de fundamento ao pedido de declaração de inconstitucionalidade não incidiram sobre a mesma norma, visto que um deles - o n.º 283/91 - julgou inconstitucional a norma do artigo 204.º, enquanto os dois restantes julgaram inconstitucional apenas uma parte dessa norma;
b) Assim, não estão reunidas as condições necessárias para que o Tribunal Constitucional possa exercer a competência que lhe é atribuída pelo n.º 3 do artigo 281.º da CR e pelo artigo 82.º da Lei 28/82;
c) Se outro for o entendimento do Tribunal, de modo a pronunciar-se, nos termos do pedido, sobre a inconstitucionalidade, deverá, por razões de equidade e segurança jurídica, restringir-se os efeitos da declaração, de modo que deles fiquem excluídos os actos que no passado admitiram inscrições na Câmara dos Solicitadores ao abrigo da norma em causa.
II
1 - De acordo com o disposto no artigo 281.º, n.º 3, da CR, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que em três casos concretos tenha sido julgada por ele inconstitucional.
E, em conformidade com o artigo 82.º da Lei 28/82, sempre que a mesma norma tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos pode o Tribunal, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade.
No concreto caso não se oferecem dúvidas seja quanto à legitimidade da entidade requerente seja quanto à correcta organização do processado.
Quastiona-se, no entanto, se se congregam todos os requisitos de que depende a apreciação de constitucionalidade da norma em questão, dado o Primeiro-Ministro considerar que os três casos concretos não julgaram inconstitucional a mesma norma, requisito de indispensável ocorrência para se conhecer de meritis.
Assim sendo, importa desde já abordar o problema.
2 - Na verdade, o primeiro dos citados acórdãos, o n.º 283/91, pronunciou-se no sentido do julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 204.º, ao passo que os demais circunscreveram o respectivo julgamento de inconstitucionalidade da norma à «parte em que altera o disposto no artigo 49.º, alínea b), do Estatuto dos Solicitadores», termos retomados pela entidade requerente, que assim modelou o pedido.
Em consonância, enquanto o primeiro desses arestos considerou que o artigo 204.º veio «disciplinar inovatoriamente» a inscrição na Câmara dos Solicitadores de uma dada categoria de pessoas, os restantes, partindo de permissas similares - a mera constatação fáctica, a mesma fundamentação de direito -, tomaram a norma como «parcialmente inovatória», tendo-a como inconstitucional na parte em que dispensa os candidatos do requisito de 10 anos de serviço como escrivão de direito, exigido pela alínea b) do artigo 49.º do Estatuto dos Solicitadores.
De resto, a fundamentação utilizada é comum aos três acórdãos - todos tirados pela mesma secção, como já se consignou, e por unanimidade -, podendo assim esquematizar-se:
a) A norma do artigo 204.º é inovatória quando se pronuncia sobre a inscrição na Câmara dos Solicitadores de uma determinada categoria de pessoas, a dos oficiais de justiça;
b) O direito de escolher livremente a profissão, consagrado no artigo 47.º, n.º 1, da CR, não impede a regulamentação do exercício de certas profissões;
c) A Câmara dos Solicitadores configura-se como uma organização profissional de direito público, sendo qualificada de associação pública;
d) A definição de quem reúne as condições legais de inscrição nessa Câmara inclui-se na reserva parlamentar - CR, artigo 168.º, n.º 1, alínea t), na redacção da 1.ª revisão constitucional, a que hoje corresponde a alínea u);
e) O Governo, ao editar o Decreto-Lei 376/87 e, particularmente, o artigo 204.º deste diploma, não possuía credencial parlamentar que a tal o habilitasse.
3 - É certo que o Acórdão 283/91 julgou a norma inconstitucional em toda a sua plenitude, limitando-se os outros a emitir idêntico juízo, mas limitadamente a uma sua específica projecção normativa.
Torna-se, no entanto, evidente que a decisão inicial englobou, naturalmente, essa projecção; se algo a diferenciou das outras duas é o facto de se assumir dogmaticamente, representando uma solução extensível para além do problema concreto que estava na sua origem, enquanto, pragmaticamente, os acórdãos mais recentes neste praticamente se esgotaram.
Por outras palavras, basta que as três decisões tenham julgado inconstitucional, senão a norma na sua globalidade, pelo menos um seu dado segmento normativo para que, nessa exacta medida, o requisito se dê por verificação (cf., a propósito, os Acórdãos deste Tribunal n.os 37/87, 38/87, 64/88 e 306/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Março de 1987, os dois primeiros, e de 18 de Abril de 1988 e de 20 de Janeiro de 1989, os dois últimos, respectivamente).
Assim sendo e considerando que o pedido não respeita à norma na sua globalidade, mas exactamente àquela específica projecção normativa, entende-se verificar-se o mecanismo procedimental previsto no artigo 281.º, n.º 2, da CR para a declaração de inconstitucionalidade.
III
1 - O facto de determinada norma ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos não conduz a uma automática declaração da sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas implica reapreciar a questão pelo Tribunal Constitucional.
É um novo processo de fiscalização que se abre e uma nova decisão que se tem de tomar.
A jurisprudência constitucional sustenta essa tese - cf., por todos, os Acórdãos n.os 93/84 e 204/86, no Diário da República, 1.ª série, de 16 de Novembro de 1984 e de 27 de Junho de 1986, respectivamente. E a doutrina dela não diverge: cf., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., Coimbra, 1985, p. 539; Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 1991, p. 1092; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, 3.ª ed., Coimbra, 1991, p. 481.
Por sua vez, pode o Tribunal, considerando o disposto no artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, declarar a inconstitucionalidade por fundamentos distintos dos utilizados pelos acórdãos anteriores, os quais, aliás, podem recorrer a diferenciados elencos argumentativos.
2 - À data da publicação do Decreto-Lei 376/87 o texto em vigor da CR era o resultante da 1.ª revisão constitucional.
Dispunha então, na parte que interessa, o artigo 168.º da lei fundamental, ao cuidar da competência legislativa da Assembleia da República - reserva relativa:
1 - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
...
t) Associações públicas.
...
Após a 2.ª revisão constitucional mantém-se a norma, só que agora correspondendo à alínea u) do mesmo artigo.
Deste modo, ao legislar em semelhante matéria sem credencial parlamentar - no exercício da sua própria competência legislativa -, o Governo está, nessa medida, a editar normação eivada do vício de inconstitucionalidade orgânica.
Ora, nos três acórdãos que o Ministério Público invocou para fundamentar o seu pedido, o Tribunal Constitucional entendeu ser a Câmara dos Solicitadores uma organização profissional de direito público, tendo presente o disposto no Estatuto dos Solicitadores.
Com efeito, resulta da leitura dos artigos 1.º, n.º 1, 2.º e 8.º deste diploma representar aquela Câmara todos aqueles que no País exercem a profissão de solicitador, ter por objectivo o estudo e a defesa dos interesses dos solicitadores nos aspectos profissional, moral e económico-social e sobre eles exercer jurisdição disciplinar.
A Câmara é, por conseguinte, uma organização profissional de direito público na qual, por força do artigo 63.º, n.º 1 do Estatuto, têm de se inscrever todos os que pretendam exercer essa profissão.
Não só assim a qualificaram os citados acórdãos - e, anteriormente, se pronunciou semelhantemente a Comissão Constitucional no seu parecer 1/78, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 4.º vol., pp. 139 e segs. - como também desse modo a qualificam Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1987, p. 373, e Jorge Miranda, As Associações Públicas no Direito Português, ed. Cognitio, 1985, p. 20.
Na verdade, e independentemente das dúvidas que a conceituação de associação pública encerra, não está apenas em causa uma base pessoal, caracterizante do associativismo privado, mas ainda a prossecução de interesses radicados a nível de comunidade, cabendo-lhes o desempenho de tarefas que, por natureza, lhe confere um status político que, em primeira mão, competiria ao poder organizatório do Estado.
Com o reconhecimento constitucional que às associações públicas foi dado a partir da 1.ª revisão constitucional (n.º 3 do artigo 267.º), o Estado confere aos interessados certos poderes públicos, do que resulta a sua sujeição a um regime de direito público, com manifestações evidentes no acto de criação, na conformação organizatória e no controlo da legalidade dos actos. Quando, como é o caso, o mecanismo de administração mediata visa interesses onde predomina o substracto associativo, a associação assim criada reveste-se de estrutura corporativa [cf. Rogério Ehrardt Soares, «A Ordem dos Advogados. Uma corporação pública», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124.º, pp. 161 e segs., e as intervenções do deputado Vital Moreira na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional constantes do Diário da Assembleia da República, II Legislatura, 2.ª sessão legislativa, n.os 44, suplemento, de 27 de Janeiro de 1982, p. 904-(5), e 64, suplemento, de 10 de Março de 1982, p. 1232-(20)].
3 - O Estatuto dos Solicitadores dispunha, no artigo 49.º, sobre as condições indispensáveis para inscrição na respectiva Câmara, o seguinte:
Além de ser cidadão português, maior de 21 anos, são condições para inscrição na Câmara dos Solicitadores qualquer das seguintes:
a) Ser licenciado ou bacharel em Direito, com diploma válido em Portugal;
b) Ser escrivão de direito com, pelo menos, 10 anos de serviço dessas funções e a classificação mínima de Bom;
c) Ter sido julgado apto pelo grupo orientador de estágio, nos termos do artigo 48.º.
Ora, o falado Decreto-Lei 376/77 veio, no seu artigo 204.º, sob a epígrafe «Inscrição na Câmara dos Solicitadores», preceituar diferentemente ao estabelecer:
Os secretários judiciais, os secretários técnicos, os escrivães de direito e os técnicos de justiça principais têm direito à inscrição na Câmara dos Solicitadores, independentemente de quaisquer requisitos, desde que possuam classificação não inferior a Bom.
Ou seja, os oficiais de justiça indicados no transcrito normativo - secretários judiciais e escrivães de direito, na carreira judicial; secretários técnicos e técnicos de justiça principais, na do Ministério Público -, desde que dotados de uma certa classificação mínima, a de Bom, passaram a poder inscrever-se na Câmara dos Solicitadores sem necessidade de licenciatura ou bacharelato em Direito ou de terem frequentado com aproveitamento o estágio organizado nos termos do artigo 38.º do Estatuto de 1976, como então exigiam as alíneas a) e c) do artigo 49.º desse texto.
E, simultaneamente, alterou-se o regime estabelecido pela alínea b) do mesmo normativo, o que provocou a dispensa da exigência nele contida - desempenho das funções de escrivão de direito durante, pelo menos, 10 anos.
Considerando que a norma do artigo 204.º foi editada ao abrigo da competência legislativa do Governo, em âmbito material não reservado à Assembleia da República [CR, artigo 201.º, n.º 1, alínea a), redacção comum à 1.ª e à 2.ª revisões constitucionais], o Tribunal, nos três acórdãos citados, interrogou-se sobre a conformidade constitucional (orgânica) da iniciativa, no domínio da fiscalização concreta, tendo concluído desfavoravelmente mediante a utilização de um elenco argumentativo comum, assim sintetizável (para além da natureza da Câmara como associação pública, já assinalada):
a) A norma do artigo 204.º veio dispor inovatoriamente sobre a inscrição de uma dada categoria de pessoas naquela Câmara;
b) Não obstante todos terem o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho - CR, artigo 47.º, n.º 1 -, tal não impede que o exercício de determinadas profissões possa ser regulamentado e, designadamente, sujeito a inscrição nas organizações associativas dos respectivos profissionais, de natureza pública, a quem o Estado atribui os poderes de controlar o acesso à profissão, de fixar o seu código deontológico e de exercer competências disciplinares.
A esta luz, a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever na Câmara dos Solicitadores inclui-se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto-lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito, o que, no caso, não se verificou.
Nada se tem a objectar à orientação assumida pelas decisões em análise.
A inovação afigura-se indesmentível, ao menos na parte em que afecta a alínea b) do artigo 49.º do Estatuto, dispensando o requisito de tempo aí exigido para o exercício de funções como escrivão de direito.
Por sua vez, a norma do artigo 47.º, n.º 1, da CR, não obsta à regulamentação do exercício da profissão de solicitador e, nomeadamente, à obrigatoriedade de inscrição dos interessados na Câmara, tida esta como associação profissional de natureza pública a que o Estado atribui poderes de controlar o acesso à profissão, de fixar o respectivo código deontológico e de exercer competências disciplinares, como, de resto, constitui jurisprudência deste Tribunal (Acórdãos n.os 46/84 e 497/89, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Julho de 1984 e de 1 de Fevereiro de 1990, respectivamente) e os autores admitem (Rogério E. Soares, estudo cit., pp. 227 e segs.; Jorge Miranda, ob. cit., pp. 32 e segs.).
4 - Pretende o Primeiro-Ministro, a não proceder a questão por si previamente equacionada, que se utilize a faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da CR, restringindo-se os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de modo a excluírem-se os actos de inscrição na Câmara dos Solicitadores ao abrigo da norma do artigo 204.º, uma vez que, suprimido o requisito constante da primitiva alínea b) do artigo 49.º do Estatuto, «é de toda a probabilidade que tenha, de então para cá, sido admitida a inscrição na Câmara dos Solicitadores de escrivães de direito sem os 10 anos de serviço anteriormente exigidos», o que, na sua óptica, produziria efeitos, directos e indirectos, traduzíveis «num grave prejuízo para a estabilidade das situações jurídicas por eles [actos de inscrição] constituídas e para os direitos adquiridos por terceiros de boa-fé».
Justifica-se a preocupação exposta na medida em que a declaração de inconstitucionalidade do segmento da norma em causa determina a repristinação da norma anterior, com os inerentes reflexos sobre as situações entretanto criadas à sombra da alteração legal ocorrida (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição..., cit., 2.º vol., p. 541).
E, de igual modo, tem-se por fundamentada a invocada justificação: razões evidentes de segurança jurídica e de equidade aconselham a que não seja tocada a situação daqueles que, entretanto, obtiveram a sua inscrição na Câmara dos Solicitadores ao abrigo do conteúdo normativo agora declarado nulo.
Ressalvam-se, por consequência, os efeitos entretanto produzidos.
IV
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional:
a) Declarar a inconstitucional, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 204.º do Decreto-Lei 376/87, de 11 de Dezembro, na parte em que altera o disposto no artigo 49.º, alínea b), do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea t), em conjugação com a alínea b) - esta com referência ao artigo 47.º, n.º 1 -, todos da Constituição da República, na redacção de 1982;
b) Limitar os efeitos da inconstitucionalidade, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição da República, por forma a ressalvar as situações ocorridas de inscrição na Câmara dos Solicitadores ao abrigo da norma agora declarada inconstitucional.
Lisboa, 4 de Novembro de 1992. - Alberto Tavares da Costa - Maria da Assunção Esteves - Armindo Ribeiro Nunes - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - Fernando Alves Correia - Vítor Nunes de Almeida - António Vitorino - Bravo Serra - Luís Nunes de Almeida - José de Sousa e Brito - José Manuel Cardoso da Costa.