Acórdão 410/97
Processo 153/97
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
O procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição da República (CR) e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 278/93, de 10 de Agosto, na parte em que elimina o n.º 3 do artigo 89.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro.
Alegou, como fundamento do pedido, o julgamento de inconstitucionalidade do referido segmento de norma, pelos Acórdãos deste Tribunal n.os 1019/96, de 9 de Outubro, da 2.ª Secção, 1080/96, de 22 de Outubro, e 11/97, de 14 de Janeiro, estes da 1.ª Secção (de que juntou cópias, encontrando-se o primeiro e o segundo publicados no Diário da República, 2.ª série, de 14 e 26 de Dezembro de 1996, respectivamente), por violação do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da CR.
Notificado, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.
Cumpre apreciar e decidir.
II
1.1 - De acordo com o disposto no artigo 281.º, n.º 3, da CR, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que, em três casos concretos, tenha sido julgada inconstitucional.
E, em conformidade com o artigo 82.º da Lei 28/82, sempre que a mesma norma tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos, pode o Tribunal, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com cópia das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os demais termos da fiscalização abstracta sucessiva de inconstitucionalidade.
Ora, não só não se oferecem dúvidas quanto à legitimidade da entidade requerente como também é certo que, nos três arestos citados, foi julgada inconstitucional a mesma norma, em idêntica conformação normativa.
1.2 - O facto de determinada norma ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos não conduz, no entanto, à declaração automática da sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, implicando a reapreciação da questão pelo Tribunal Constitucional, constituído em plenário. Como se ponderou no Acórdão 347/92 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 3 de Dezembro de 1992), «é um novo processo de fiscalização que se abre e uma nova decisão que se tem de tomar».
2.1 - No regime do Código Civil imediatamente anterior ao início da vigência do Regime do Arrendamento Urbano - RAU -, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, dispunha o artigo 1111.º (na redacção da Lei 46/85, de 20 de Setembro) não caducar o arrendamento habitacional por facto da morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tivesse cedido a sua posição contratual, desde que lhe sobreviva «cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto», constando do seu n.º 5 que «a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo deve ser comunicada ao senhorio no prazo de 180 dias, por meio de carta registada, com aviso de recepção, pela pessoa ou pessoas a quem o arrendamento se transmitir, acompanhada dos documentos autênticos que comprovem os seus direitos».
Contrariamente ao que sucedia na versão anterior do preceito, resultante do Decreto-Lei 328/81, de 4 de Dezembro, passou, assim, a estabelecer-se a obrigatoriedade da comunicação da morte do arrendatário ao senhorio dentro de determinado prazo, se bem que o entendimento dominante da doutrina fosse no sentido da inexistência de sanção para o inquilino, no caso de incumprimento dessa obrigação, não ocorrendo, nomeadamente, caducidade de contrato (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, vol. II, 3.ª ed., 1986, p. 631).
2.2 - Através da Lei 42/90, de 10 de Agosto, a Assembleia da República concedeu ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano e, nomeadamente, nos termos da alínea n) do seu artigo 2.º, permitiu-se a modificação do regime de transmissão por morte da posição do arrendatário habitacional, «sem prejuízo da salvaguarda dos interesses considerados legítimos».
O Governo, no uso dessa autorização, editou o RAU, que, entre outras disposições, revogou os artigos 1083.º a 1120.º do Código Civil, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do decreto-lei que aprovou o novo regime.
Deste modo, para as situações anteriormente abrangidas pelo citado artigo 1111.º passou o RAU a prescrever a transmissão por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual no seu artigo 85.º, encarando o artigo 89.º, sob a epígrafe «Comunicação ao senhorio», a situação anteriormente contemplada no n.º 5 daquele artigo 1111.º, estatuindo:
«1 - O transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por escrito, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, a enviar nos 180 dias posteriores à ocorrência.
2 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem os direitos do transmissário.
3 - A inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão.»
Consagrou-se, assim, como se observa no citado Acórdão 1019/96, um regime que apresentava como particularidade distintiva do anterior a expressa afirmação do que jurisprudencialmente se vinha afirmando-a não caducidade do arrendamento perante anão comunicação ao senhorio, como exemplificam os Acórdãos da Relação de Coimbra de 10 de Maio de 1988 e da Relação do Porto de 29 de Março de 1990, ambos publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano XII, t. III, pp. 69 e segs., e ano XV, t. I, pp. 217 e segs., respectivamente - sendo fonte, para o faltoso, de uma obrigação de indemnizar pelos danos resultantes da omissão, sem prejuízo dos efeitos da transmissão quanto ao regime de renda, previstos no artigo 87.º do diploma.
No ano de 1993, a Assembleia da República, através da Lei 14/93, de 14 de Maio, concedeu nova autorização ao Governo para legislar no domínio do regime jurídico do arrendamento para fins habitacionais, com o sentido e a extensão constantes do seu artigo 2.º, interessando reter e transcrever o conteúdo deste preceito:
«Artigo 2.º
A presente autorização legislativa tem os seguintes sentido e extensão:
a) Permitir a actualização das rendas dos contratos de arrendamento para habitação até ao seu valor em regime de renda condicionada, sempre que o arrendatário, quando residente na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, tiver outra residência ou for proprietário de imóvel nas respectivas áreas metropolitanas ou, se residir no resto do País, na respectiva comarca, que possa satisfazer as suas necessidades habitacionais imediatas;
b) Possibilitar a denúncia dos contratos de arrendamento para habitação a cuja transmissão seja aplicável a alteração do regime de renda previsto no artigo 87.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, mediante o pagamento de uma indemnização igual a 10 anos de renda, praticada à data da transmissão, sem prejuízo de o arrendatário poder propor um novo valor de renda que, caso não seja aceite para efeitos de continuação do contrato, relevará para cálculo da indemnização referida;
c) Permitir a estipulação de cláusulas de actualização anual de renda nos contratos de arrendamento para habitação que não fiquem sujeitos a um prazo de duração efectiva ou que estejam sujeitos a uma duração efectiva superior a oito anos;
d) Proceder às adaptações técnico-legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática da legislação do arrendamento em vigor.»
Ao abrigo desta autorização editou o Governo o Decreto-Lei 278/93, de 10 de Agosto, introduzindo alterações ao RAU, nelas merecendo destaque a que redigiu o n.º 1 do artigo 89.º de modo a exigir que a comunicação ao senhorio do decesso do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo seja efectuada por carta registada, com aviso de recepção, a que suprimiu o n.º 3 do artigo 89.º e a que incluiu no texto do diploma um novo artigo 89.º-D, estabelecendo que o não cumprimento dos prazos fixados na secção em que o artigo 89.º se integra - «Da transmissão do direito do arrendatário» - importa a caducidade do direito. Concretizando, por força do artigo 1.º do novo diploma, o artigo 89.º passou a ser composto apenas pelos seus n.os 1 e 2, eliminado que foi o n.º 3, que previa a falta de comunicação mas a limitava a constituir o transmissário no dever de indemnizar por todos os danos derivados da omissão, e, por sua vez, o artigo 2.º do mesmo texto passou a inserir, entre outros, o novo artigo 89.º-D, que dispõe:
«O não cumprimento dos prazos fixados nesta secção importa a caducidade do direito.»
Ora, está em causa saber se a eliminação do n.º 3 do artigo 89.º do RAU, feita pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 278/93,éorganicamente inconstitucional, por violar o disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da CR.
3 - ACR dispõe, no n.º 1 do seu artigo 168.º, ser da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre as matérias que elenca, constando nestas a da alínea h):
«Regime geral do arrendamento rural e urbano.»
Vem-se entendendo que, em matéria de arrendamento urbano, o sentido da reserva é reportado ao regime «comum ou normal» da matéria, sem prejuízo, todavia, de regiões especiais, que podem ser definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas assembleias regionais), desde que respeitados os princípios fundamentais do regime geral, entre os quais se conta «seguramente», segundo observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, «o regime da celebração do contrato e da sua cessação, bem como os direitos e deveres das partes» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 673 e 674).
O Tribunal Constitucional, a este propósito, ponderou já, no Acórdão 77/88 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Abril de 1988):
«[...] a reserva em causa não se limita à definição dos 'princípios', 'directivas' ou 'standards' fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das 'bases' respectivas), mas desce ao nível das próprias 'normas' integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de 'arrendamento rural e urbano', nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contratos durante a sua vigência e definidores, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é 'regime jurídico' dessa figura negocial. Por outras palavras, em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites de autonomia privada no âmbito contratual em causa.» [Cf. ainda, inter alia, o Acórdão 311/93, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1993, que incidiu sobre grande parte das alíneas do artigo 2.º da citada Lei 42/90.] Ora, tendo em consideração o sentido da reserva, não oferecerá dúvida que a supressão do n.º 3 do artigo 89.º, conjugadamente com os efeitos decorrentes da introdução do regime previsto no artigo 89.º-D, fulminando de caducidade o arrendamento perante um determinado comportamento omissivo, traduziu-se numa modificação de fundo, acarretando uma inovação substancial no modo de transmissão mortis causa da posição do arrendatário, no dizer do Acórdão 1080/96 (introduziu-se um regime neste particular novo relativamente ao regime anterior, observa-se, por sua vez, no Acórdão 1019/96).
O legislador do Decreto-Lei 278/93, na respectiva nota preambular, procura justificar uma medida como a da supressão do n.º 3 do artigo 89.º (e aditamento do artigo 89.º-D), quando, a certo passo, afirma:
«Em contratos tão sensíveis como o do arrendamento, o exercício dos direitos de cada parte importa muitas vezes um sacrifício para os interesses da outra. Nestes termos, é razoável que as situações não permaneçam indefinidas, estabelecendo-se prazos não muito largos para o exercício desses direitos e prevendo-se a caducidade dos que neles não sejam exercidos naturalmente sem prejuízo da sua renovação, quando for ocaso.»
Ponto é saber se esta retórica argumentativa tem suporte bastante em qualquer das alíneas do artigo 2.º da Lei 14/93, ao abrigo da qual foi o diploma editado. Sobre este específico - e crucial - ponto escreveu-se no Acórdão 1080/96, apoiado, por sua vez, no Acórdão 1019/96:
«[...] as alíneas a), b) e c) [do artigo 2.º] dispõem para situações específicas que nada têm que ver com a matéria aqui em causa; a alínea d) - 'Proceder às adaptações técnico-legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática da legislação do arrendamento em vigor' - não pode assim ser entendida, sob pena de o 'objecto' e o 'sentido' referidos no n.º 2 do artigo 168.º da Constituição perderem qualquer significado e a lei de autorização se assumir como um verdadeiro 'cheque em branco' a preencher pelo legislador autorizado.»
E acrescenta-se nesse a resto:
«As normas das leis delegantes, incidindo sobre matéria inscrita no âmbito da competência reservada da Assembleia da República, condicionam duplamente, a acção legislativa do Governo, dependente não só da autorização enquanto tal mas também das directivas e critérios que estas hão-de conter. decreto-lei autorizado representará assim, obrigatoriamente, uma tradução material daquelas directivas, em termos de se poder afirmar que os seus enunciados essenciais (os que respeitem à competência reservada do Parlamento) se acham pré-definidos no texto autorizador.»
E, a concluir:
«Ora, a eliminação do n.º 3 do artigo 89.º do RAU e as consequências dela derivadas sobre o modo de transmissão mortis causa da posição de arrendatário não dispõe de qualquer suporte material em termos de 'sentido e extensão' na Lei 14/93, e daí a sua inarredável inconstitucionalidade orgânica.» Não se vislumbra motivo válido para, agora, não aceitar o juízo de inconstitucionalidade que os acórdãos citados pelo magistrado requerente formularam.
O que, de resto, se harmoniza com o entendimento significativo da doutrina. Assim é que para Januário Gomes trata-se de uma alteração de fundo que o legislador do Decreto-Lei 278/93 não tinha legitimidade para fazer, não parecendo que possa ser «encaixada» e memorizada nas adaptações técnico-legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática de legislação do arrendamento em vigor: a inovação traduz-se no facto de, substancialmente, passar a haver uma alteração do modo de transmissão mortis causa da posição do arrendatário. Se até aqui esta transmissão se operava ipso jure, agora, diz este autor, «essa consideração deve ser revista pela exigência de uma 'aceitação' ou 'confirmação' (em sentido não técnico) por parte do beneficiário - aceitação que deve ocorrer em determinado prazo e com sujeição a determinadas formalidades - tendo efeitos retroactivos à data da morte do arrendatário». (Cf. Arrendamentos para Habitação, 2.ª ed., Coimbra, 1996, p. 187.) Citando-o e, segundo parece, aceitando idêntico juízo, ou não o enjeitando, António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), 4.ª ed., Lisboa (1996), p. 248, e Jorge Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 2.ª ed., Coimbra, 1996, p. 398.
III
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da CR, a norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 278/93, de 10 de Agosto, na parte em que elimina o n.º 3 do artigo 89.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro.
Lisboa, 23 de Maio de 1997. - Alberto Tavares da Costa (relator) - Armindo Ribeiro Mendes - Messias Bento - Guilherme da Fonseca - Maria da Assunção Esteves - Vítor Nunes de Almeida - Maria Fernanda Palma - Bravo Serra - Antero Alves Monteiro Dinis - Luís Nunes de Almeida.