Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 786/2014, de 30 de Dezembro

Partilhar:

Sumário

Julga inconstitucionais as normas constantes das alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, na redação dada pela Lei n.º 108/97, de 16 de setembro, na medida em que aí se estabelece um regime de constituição de enfiteuse por usucapião, o qual, conjugado com o regime de consolidação dos domínios útil e direto decorrente da abolição da figura, opera a translação da propriedade plena, sem atribuição, em termos gerais, de indemnização

Texto do documento

Acórdão 786/2014

Processo 412/13

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1 - Maria Teresa Mendes e António Francisco intentaram ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra Maria Perpétua Correia de Matos, pedindo que fosse declarada constituída, por usucapião, a enfiteuse de duas parcelas de terreno de cultura arvense, sendo uma a favor do A. e outra a favor, em comum, dos AA., e reconhecido que os AA são proprietários das referidas parcelas por força da entrada em vigor do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, condenando-se a Ré a reconhecer tal aquisição.

Por sentença do Tribunal Judicial de Odemira, foi julgada parcialmente procedente a ação e declarada constituída a favor dos AA, por usucapião, a enfiteuse de uma das parcelas e, bem assim, declarados os AA proprietários daquela parcela por força da entrada em vigor do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, e subsequentes alterações, condenando-se a Ré a reconhecer aquela aquisição.

Inconformados, recorreram para a relação de Évora os sucessores habilitados dos AA, entretanto falecidos, e a Ré, vindo a ser proferido acórdão que, inter alia, recusando aplicar, por violação dos artigos 62.º e 13.º da Constituição, o Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, "na parte em que determinou a [transferência do] domínio direto dos prédios rústicos para os titulares do domínio útil sem assegurar o pagamento de indemnização a todo e qualquer titular do domínio direto", julgou totalmente improcedente a ação e absolveu a Ré dos pedidos.

Os sucessores habilitados dos AA recorreram desse acórdão, vindo o Supremo Tribunal de Justiça, através de aresto proferido em 9 de abril de 2013, a "desaplicar, por materialmente inconstitucional, o regime normativo constante do n.º 5, alíneas a) e b), do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação dada pela Lei 108/97, de 16 de setembro, por admitir a constituição da enfiteuse, por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim, retroativamente, um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização, no que resulta a violação do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição da República, e dos princípios da igualdade (artigo 13.º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança", negando provimento à revista.

2 - Deste aresto interpôs o Ministério Público o presente recurso, nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição, 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, da lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro), peticionando a apreciação da constitucionalidade "da norma do n.º 5 alíneas a) e b), do n.º 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16.03, na redação dada pela Lei 108/97, de 16/09, por admitir a constituição da enfiteuse, por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo, assim, retroativamente, um meio aquisição de direito, sem atribuição de qualquer indemnização, violando assim, o artigo 62.º, n.º 2 da CRP".

3 - O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.

4 - Neste Tribunal, determinado o prosseguimento do processo, veio o Ministério Público apresentar alegações, nas quais, em síntese, considera de acolher, quanto à questão de constitucionalidade, a posição adotada pelo acórdão recorrido, que reputa em linha com a jurisprudência do Tribunal sobre a tutela do direito de propriedade.

Conclui pela improcedência do recurso e pela formulação de juízo de inconstitucionalidade do "regime normativo constante do n.º 5, alíneas a) e b) do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação dada pela Lei 108/97, de 16 de setembro, por admitir a constituição da enfiteuse, por usucapião, quanto o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim, retroativamente, um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização, por violação do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição da República, e dos princípios da igualdade (artigo 13.º da CR) da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança".

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

5 - O presente recurso visa decisão do Supremo Tribunal de Justiça que recusou a aplicação de uma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade. Importa, pois, e antes de mais, delimitar o sentido normativo enunciado no requerimento de interposição de recurso e correlacioná-lo com a norma ou normas que o Tribunal a quo considerou terem efetiva aplicação no caso concreto e que desaplicou por razões de desconformidade constitucional, pois apenas esse pode constituir objeto de controlo da constitucionalidade por parte deste Tribunal.

5.1 - Denota-se do requerimento de interposição de recurso um esforço de adequação por parte do recorrente relativamente à formulação exarada pelo Supremo Tribunal de Justiça no dispositivo do acórdão recorrido, onde condensou a dimensão desaplicada e as normas e princípios constitucionais que considerava violados. Não obstante, verifica-se que, em lugar da referência ao "regime normativo constante do n.º 5, alíneas a) e b) do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, na redação dada pela Lei 108/97, de 26 de setembro", o que sugere a unificação de uma disciplina normativa composta por uma pluralidade de normas, o recorrente aponta como objeto de controlo uma "norma", que reporta aos mesmos preceitos, na redação conferida pela Lei 108/97. Paralelamente, enquanto o juízo de desaplicação formulado pelo Tribunal a quo faz apelo, para além da garantia do direito de propriedade constante do artigo 62.º, n.º 2 da Constituição, a um conjunto de princípios constitucionais - princípios da igualdade, proporcionalidade e proteção da confiança legítima - que considera igualmente infringidos, o recorrente não inscreve no requerimento de interposição de recurso a violação de tais princípios.

5.2 - Porém, qualquer dúvida sobre eventual restrição da pretensão de controlo dirigida a este Tribunal pelo Ministério Público relativamente à formulação constante do dispositivo do acórdão recorrido, radicada em tais discrepâncias, é afastada pelas alegações apresentadas neste Tribunal, que acompanha inteiramente o enunciado da decisão recorrida, seja na formulação do sentido normativo recusado, seja nos parâmetros constitucionais violados.

Nessa peça, o recorrente apresenta a evolução por que passaram os autos, culminando no recurso de revista dos AA decidido pelo acórdão recorrido, que versou essencialmente a questão da aplicação ao caso do Decreto-Lei 195-A/76, cuja aplicação fora recusada pelo Tribunal da Relação de Évora, por inconstitucionalidade material do n.º 1 do artigo 2.º do mesmo diploma. E, a partir da fundamentação exarada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nela identifica a resposta à questão de constitucionalidade apreciada pelo Tribunal da Relação, fundamentalmente concordante, e também uma outra, referida à norma do artigo 1.º da Lei 108/97, de 16 de setembro, que alterou a redação do n.º 5 do Decreto-Lei 195-A/96, de 16 de março, e à admissão, nela comportada, da constituição de enfiteuse por usucapião.

5.3 - Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça apreciou recurso de revista, interposto pelos AA, de acórdão do Tribunal da Relação de Évora que recusou, por inconstitucionalidade material, a aplicação do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, "na parte em que determinou [a transferência] do domínio direto dos prédios rústicos para os titulares do domínio útil sem assegurar o pagamento de indemnizações a todo e qualquer titular de domínio direto" (cf. fls. 363) e revogou a sentença que havia declarado a constituição a favor dos AA, por usucapião do seu domínio útil, da enfiteuse sobre uma das duas parcelas de terreno rústico indicadas no pedido, julgando totalmente improcedente a ação.

A fundamentação exarada pelo Tribunal a quo passou inicialmente pela abordagem da questão de saber se a normação do Decreto-Lei 195-A/96, de 16 de março, na versão original, que aboliu a enfiteuse, deveria ser considerada materialmente inconstitucional em função da não concessão de justa indemnização a todos os titulares do domínio direto. Esse fora, note-se, o cerne da posição dos recorrentes, que cingiram as suas alegações à defesa da constitucionalidade da normação constante do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, em virtude da consagração no texto constitucional da extinção da enfiteuse, sem aludir a qualquer das alterações introduzidas posteriormente (cf. fls. 395 a 406).

A esse propósito, afirma-se na decisão recorrida que:

«[...] [P]arece assim que a proibição da figura no texto constitucional valida a "duvidosa constitucionalidade" da extinção (feita em tempo pré-constitucional) sendo que nada se diz sobre a indemnização que o diploma abolidor previa apenas para pessoas singulares que não tivessem salário superior ao mínimo nacional, sendo certo que, não obstante as ulteriores alterações, a indemnização se manteve standard, mesmo quando, quase dez anos volvidos uma nova lei veio admitir a aquisição do domínio útil pela invocação da usucapião - artigo 2.º, da Lei 108/97, de 16.9, que aditou ao artigo 1.º do DL. 195-A/76, de 16.3 um novo número (o sexto)».

A partir desse trecho, o Tribunal recorrido centrou a sua análise no significado jurídico-constitucional das alterações introduzidas pela Lei 108/97, de 16 de setembro, no regime do Decreto-Lei 195-A/76, acolhendo expressamente o entendimento de J. J. Gomes Canotilho e Abílio Vassalo de Abreu (inEnfiteuse sem extinção. A propósito da dilatação legal do âmbito normativo do instituto enfitêutico, RLJ, n.os 3967, 3968 e 3969, pp. 206-239, 266-300 e 326-345) e Bacelar Gouveia (in Abolição da Enfiteuse relativa a prédios rústicos à luz da Constituição da República Portuguesa de 1976, acessível no endereço www.jorgebacelargouveia.com/images/site/consultoria/enfiteuse.pdf).

E, em jeito de conclusão, exarou-se o seguinte:

«Pelo quanto dissemos, o DL. 195-A/76, de 16 de março, ao abolir a enfiteuse a que estavam sujeitos os prédios rústicos, e ao conferir ao titular do domínio direto o domínio útil, atribuindo ao titular deste uma indemnização desrazoável e discriminatória, uma vez que apenas foi legalmente prevista para os casos em que o titular do domínio direto fosse pessoa singular com rendimento inferior ao salário mínimo nacional - artigo 2.º, n.º 1 - e estabelecendo que essa indemnização consistiria no pagamento anual enquanto fossem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia, violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade, do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança, e violou, ainda, o direito de propriedade privada já que o ato ablativo do direito de propriedade não foi acompanhado de indemnização que possa ser considerada justa, mesmo em função do tempo histórico em que ocorreu.

Por outro lado, e por ter atinência com a decisão, uma vez que a pretensão dos AA. assentou, também, na usucapião como modo de aquisição do domínio útil que se arrogaram, para depois, por via dele, se tornaram titulares do domínio útil, mesmo que não fosse de considerar a inconstitucionalidade material do diploma abolitivo da enfiteuse, este Tribunal ao abrigo do artigo 204.º da Constituição da República, por considerar materialmente inconstitucional a norma do artigo 1.º da Lei 108/97, de 1[6].9. que alterou a redação do n.º 5 do DL. 175-A/96, de 16 de março, ao admitir a constituição da enfiteuse por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim retroativamente um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização - artigo 62.º, n.º 2, da Constituição da República - violou os princípios da igualdade (art.13.º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança.»

5.4 - Uma leitura isolada desse segmento, com o qual se finaliza a fundamentação do acórdão recorrido, poderia conduzir à identificação de duas questões de constitucionalidade autónomas: uma primeira, reportada ao disposto no artigo 2.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, incidente sobre a norma que confere indemnização titular do domínio direto tão somente quanto este for uma pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional e o estipula o seu montante; e uma segunda, referida ao artigo 1.º da Lei 108/97, de 16 de setembro, na medida em que acolhe e rege a constituição de enfiteuse por usucapião.

Todavia, a formulação do dispositivo constante do acórdão recorrido - refletida, como se disse, no requerimento de interposição do recurso e na posição do recorrente em alegações - vem abarcar esses dois planos de apreciação num único, centrado na ausência de atribuição de qualquer indemnização, à luz da nova regulação da constituição da enfiteuse por usucapião decorrente das duas alíneas do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, introduzida em 1997. Dessa forma, acentua-se o questionamento do efeito aquisitivo do direito de propriedade articulado em dois passos comportado nessa normação - primeiro da titularidade do direito enfitêutico e depois, ope legis e automaticamente, por via do regime abolição desta figura, do direito de propriedade plena sobre o prédio rústico - que se considera operar uma ablação do direito de propriedade sem atribuição de indemnização.

Verifica-se, então, que, pese embora o sentido normativo recusado por inconstitucional seja referido unicamente ao disposto nas alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, esse juízo convoca implicitamente a apreciação de outras vertentes normativas, mormente quanto à dimensão indemnizatória do "regime normativo" - rectius, a sua ausência - cuja aplicação se considerou estar em equação no caso vertente.

Ora, nesse plano, o único elemento que a formulação escolhida pelo Tribunal recorrido e, depois, pelo recorrente, nos oferece, decorre da indicação de que a normação desaplicada implica que não possa ser aqui atribuída "qualquer indemnização" pela ablação do direito de propriedade, avaliação que cabe a este Tribunal aceitar como um dado. Aliás, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, confirmado pela decisão recorrida, refere expressamente que "nada foi alegado de onde se possa concluir no sentido de a ré ter direito a qualquer indemnização".

Encontra-se, então, afastado do objeto do recurso a discussão, incidentalmente abordada pelo Tribunal a quo, sobre a desrazoabilidade dos montantes compensatórios prescritos no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março.

5.5 - Perante o exposto, o problema a apreciar reside na conformidade constitucional do sentido normativo, alojado nas alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação dada pela Lei 108/97, de 16 de setembro, na medida em que aí se estabelece um regime de constituição de enfiteuse por usucapião, o qual, conjugado com o regime de consolidação dos domínios útil e direto decorrente da abolição da figura, opera a translação da propriedade plena, sem atribuição, em termos gerais, de indemnização, no confronto, em primeira linha, com a garantia constitucional do direito de propriedade decorrente do disposto no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição.

6 - Para responder à questão de constitucionalidade colocada, mostra-se indispensável ter em atenção os marcos que traçaram a evolução legislativa recente do milenar instituto da enfiteuse.

6.1 - O Código Civil de Seabra, regulando o instituto da enfiteuse no título dos contratos em particular, definiu-o através da sua fonte mais vulgar: "Dá-se o contrato de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, quando o proprietário de qualquer prédio transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente certa pensão determinada, a que se chama foro ou cânon" (artigo 1653.º).

Após ampla discussão, foi decidido manter o instituto no Código Civil de 1966, que ficou regulado no Título IV do Livro III sobre o Direito das Coisas, nos artigos 1491.º a 1525.º

O artigo 1491.º, n.º 1, definia a enfiteuse do seguinte modo: "Tem o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados direto e útil".

A enfiteuse era, assim, conformada como o fracionamento do direito de propriedade em dois tipos de domínio sobre o mesmo bem - o "domínio direto" e o "domínio útil"-, autónomos e dotados de conteúdo próprio. O prédio sujeito a enfiteuse dizia-se prazo e podia ser rústico ou urbano (n.º 2 do artigo 1491.º). O titular do domínio direto era o senhorio; o do domínio útil o foreiro ou enfiteuta (n.º 3 do mesmo artigo).

Através da localização do instituto e, o que é mais significativo, da sua definição, o Código Civil de 1966 tornou explícita a natureza real do direito enfitêutico.

A enfiteuse era um direito perpétuo (não vitalício ou temporário), sem prejuízo da faculdade de remição (artigo 1492.º, n.º 1). Os contratos que fossem celebrados por tempo limitado seriam tidos como de arrendamento (n.º 2 do referido artigo).

O prédio era indivisível, salvo consentimento do senhorio (artigos 1493.º e 1494.º); outro tanto sucedendo com o domínio direto (artigo 1495.º).

A enfiteuse podia constituir-se por contrato, testamento ou usucapião (artigo 1497.º). A constituição da enfiteuse por usucapião podia ter lugar pela aquisição do domínio direto, pela aquisição do domínio útil ou pela aquisição simultânea de ambos por pessoas diferentes (artigo 1498.º).

Ao titular do domínio direto cabia o seguinte conjunto de direitos sobre o bem (artigo 1499.º): receber anualmente o foro; alienar ou onerar o seu domínio, por ato inter vivos ou mortis causa; preferir na venda ou dação em cumprimento do domínio útil; suceder no domínio útil, na falta de herdeiro testamentário ou legítimo do enfiteuta, com exclusão do Estado; receber o prédio por devolução, no caso de deterioração.

Por sua vez, da parte do titular do domínio útil, estabeleciam-se os seguintes direitos a seu favor (artigo 1501.º): usar e fruir o prédio como coisa sua; constituir ou extinguir servidões ou o direito de superfície; alienar ou onerar o seu domínio, por atos inter vivos ou mortis causa; preferir na venda ou dação em cumprimento do domínio direto, ficando graduado em último lugar entre os preferentes legais; obter a redução do foro ou a encampar o prazo; remir o foro.

Em especial, a remição do foro traduzia-se na faculdade conferida ao enfiteuta de adquirir o domínio direto, quando o emprazamento tivesse mais de quarenta anos de duração, pondo, assim, termo ao desmembramento da propriedade a que a enfiteuse dera lugar, mediante o pagamento de um preço (artigos 1511.º e 1512.º).

6.2 - Após a Revolução de 25 de Abril de 1974, o legislador nacional entendeu pôr termo à relação jurídica da enfiteuse.

Surgiu então o Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, que operou a abolição da enfiteuse sobre prédios rústicos.

Decorre expressamente do preâmbulo deste diploma a ratio legis que lhe está subjacente:

«Através da forma jurídica da enfiteuse têm continuado a impender sobre muitas dezenas de milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal.

Com efeito, encontram-se ainda hoje extremamente generalizados os foros, podendo referir-se que só o Estado, segundo estimativas feitas pela Direção-Geral da Fazenda Pública, é titular de domínios diretos que atingem cerca de 400 000, ultrapassando o seu valor 1 milhão de contos.

Uma política agrária orientada para o apoio e a libertação dos pequenos agricultores não pode deixar de integrar a liquidação radical de tais relações subsistentes no campo.

Previu-se, no entanto, a particularidade de situação dos pequenos senhorios, tendo-se adotado uma solução que permitirá ao Estado identificar rapidamente tais situações.»

Com este objetivo, o artigo 1.º do referido Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, determinou o seguinte:

«1 - É abolida a enfiteuse a que se acham sujeitos os prédios rústicos, transferindo-se o domínio direto deles para o titular do domínio útil.

2 - Nos contratos de subenfiteuse de pretérito a propriedade plena radica-se no subenfiteuta.

3 - Serão oficiosamente efetuadas as correspondentes operações de registo.»

Deste modo, aí se estabeleceu o princípio da concentração da propriedade plena na titularidade única do foreiro ou enfiteuta, pondo-se termo ao desmembramento do domínio de determinado prédio rústico entre dois titulares: o titular do domínio direto (senhorio) e o titular do domínio útil (foreiro ou enfiteuta). Extinta a posicional dominial, o foreiro ou enfiteuta ficou investido ope legis, de forma automática, na titularidade do direito de propriedade plena sobre o prédio rústico, a partir da data de entrada em vigor do diploma.

Em contrapartida, e por força de tal esquema aquisitivo, passou a incindir sobre o Estado a obrigação de indemnizar o titular do domínio direto, mas apenas quanto a um universo subjetivo restrito: quem, sendo pessoa singular, dispusesse de baixos rendimentos.

Tal matéria foi regulada pelo artigo 2.º do diploma:

«1 - O Estado, através do Ministério da Agricultura, indemnizará o titular do domínio direto quando este for uma pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional.

2 - A indemnização consistirá no pagamento anual, enquanto forem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior a esta quantia.»

O Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, foi alterado pelo Decreto-Lei 546/76, de 10 de julho, que, dando uma nova redação ao n.º 3 do artigo 1.º daquele decreto-lei, veio estabelecer a gratuitidade das operações de registo a que, oficiosamente, a extinção da enfiteuse dava lugar.

Mais significativas foram as alterações introduzidas no diploma pelas Leis 22/87, de 24 de junho e 108/97, de 16 de setembro, ambas subordinadas à epígrafe "[s]obre extinção de enfiteuse ou aforamento".

A Lei 22/87, de 24 de junho, entre outras alterações, aditou dois novos números ao artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, destinados a facilitar a prova da constituição da enfiteuse no caso de não haver título nem registo, com a seguinte redação:

«4 - No caso de não haver registo anterior nem contrato escrito, o registo de enfiteuse poderá fazer-se com base em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial"

5 - Considera-se que a enfiteuse se constitui por usucapião se quem alegar a titularidade do domínio útil provar por qualquer modo:

a) Que em 16 de março de 1976 tinham decorrido os prazos de usucapião previstos na lei civil;

b) Que pagava uma prestação anual ao senhorio;

c) Que as benfeitorias realizadas pelo interessado, contitular ou seus antecessores na posse do prédio ou parcela foram feitas na convicção de exercer um direito próprio como enfiteuta;

d) Que as benfeitorias, à data da interposição da ação, têm um valor de, pelo menos, metade do valor da terra no estado de inculta, sem atender à sua virtual aptidão para a urbanização ou outros fins não agrícolas».

Dez anos mais tarde, foi editada a Lei 108/97, de 16 de setembro, a qual alterou, inter alia, o n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76 - onde se aloja a normação questionada - dando-lhe a seguinte redação:

«5 - Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:

a) Desde, pelo menos, 15 de março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;

b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de março de 1976, de valor igual ou superior a, pelo menos, metade do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas»

Além disso, a referida Lei 108/97 aditou ao artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, um n.º 6, assim concebido:

«6 - Pode pedir o reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião quem tenha sucedido ao cultivador inicial por morte ou por negócio entre vivos, mesmo que sem título, desde que as sucessões hajam sido acompanhadas das correspondentes transmissões da posse.»

O significado e alcance desta medida legislativa suscitou por parte da doutrina entendimentos divergentes, como dá notícia a decisão recorrida.

Com efeito, face às alterações resultantes das Leis 22/87, de 24 de junho e 108/97, de 16 de setembro, António Menezes Cordeiro sustentou que fora introduzida uma "modalidade específica de usucapião" ("Da enfiteuse: extinção e sobrevivência", in Revista "O Direito", Ano 140.º, 2008, II, pp. 313 a 315). Segundo o referido Autor, atendendo às alterações ao Decreto-Lei 195-A/76 introduzidas pela Lei 108/97, o "interessado em afirmar-se enfiteuta" podia em alternativa: (i) "invocar a usucapião nos termos normais" ou (ii) provar os "indícios" da "modalidade específica de usucapião", correspondente aos factos previstos nas duas alíneas do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, na redação que lhe foi dada pela Lei 108/97, os quais, uma vez reunidos, dispensavam os requisitos normais da usucapião, constituindo, de facto, "uma concretização, ex lege, dessa figura" (ob. cit, p. 313). Aponta-se às intervenções legislativas de 1987 e 1997 o propósito sucessivamente acentuado de facilitar da aquisição do direito enfitêutico, fazendo funcionar a usucapião "para além do que resultaria do seu regime normal", porque sem qualquer inversão do título de posse e de animus emphytheutae (ob. cit., p. 314).

Por seu turno, J.J. Gomes Canotilho e Abílio Vassalo Abreu reputam tal interpretação de "incontornavelmente desconforme com a Constituição" e "uma distorção dogmaticamente inaceitável na noção de usucapião há muito arreigada na nossa tradição jurídica e consagrada no atual Código Civil" ("Enfiteuse sem extinção. A propósito da dilatação legal do âmbito normativo do instituto enfitêutico", in RLJ, Ano 140.º, n.os 3967, 3968 e 3969, pp. 206-239, 266-300 e 326-344). Na sua ótica, "[d]o que se trata é, sim e apenas, de um conjunto de requisitos que configuram uma situação específica de que depende a constituição da enfiteuse por usucapião - para lá dos pressupostos a que normalmente a lei condiciona a verificação desta última -, nos termos especiais previstos no n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação dada pela Lei 108/97, de 16 de setembro" (ob. cit., p. 327).

Refira-se que a abolição da enfiteuse não se circunscreveu aos prédios rústicos. Após a abolição da enfiteuse relativa a estes, chegaria a vez da extinção da enfiteuse relativa a prédios urbanos através do Decreto-Lei 233/76, de 2 de abril, em cujo preâmbulo se afirmou o seguinte:

«A enfiteuse relativa a prédios urbanos é um instituto jurídico que não desempenha, nos tempos atuais, qualquer função social útil.

Impõe-se, por isso, a sua extinção, não obstante, em grande número de casos, ser titular do domínio direto o próprio Estado, que, assim verá extinta uma sua fonte de rendimento.»

Contudo, nesses casos, o legislador optou desde logo pela consagração de uma indemnização a favor do titular do domínio direto, mas aí não condicionada ao (baixo) nível de rendimentos. Prosseguia, com efeito, o preâmbulo:

«Ao decretar-se essa medida, não pode, todavia, deixar de assegurar-se o justo equilíbrio dos direitos e dos interesses de senhorios e enfiteutas, não privando aqueles da indemnização a que a extinção coerciva de seu direito lhes dá jus e não sujeitando estes, forçada e inopinadamente, a encargos maiores que os que vinham suportando como foreiros.

Por isso se toma como base da indemnização devida ao titular do domínio direto o que seria o preço da remição do foro e se proporcionam ao enfiteuta formas suaves de pagamento dessa indemnização [...].»

O artigo 1.º, n.º 1, deste diploma aboliu a enfiteuse nesse domínio material, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo preceito que "[o] enfiteuta fica investido, a partir da data da entrada em vigor deste diploma, na titularidade do direito de propriedade plena do prédio".

O artigo 2.º consagrou a favor do senhorio o direito a uma indemnização "equivalente ao que seria o preço da remição do foro". (n.º 1). Tal indemnização poderia ser fracionada (n.º 2 do mesmo artigo) e o direito correspondente deveria ser exercido no prazo de dois anos, a contar da data da entrada em vigor do diploma (n.º 3 do referido artigo).

O Decreto-Lei 233/76, de 2 de abril, viria a ser objeto de alterações pelos Decretos-Leis 82/78, de 2 de maio, 73-A/79, de 3 de abril e 226/80, de 15 de julho, todas tendentes a prorrogar o prazo para o exercício do direito de indemnização pelo titular do domínio direto.

Por último, o Decreto-Lei 335/84, de 18 de outubro, deu nova redação ao artigo 5.º do Decreto-Lei 233/76, de 2 de abril, estabelecendo a oficiosidade da atualização gratuita do registo predial em consequência da aplicação do diploma.

6.3 - A opção levada a cabo pelo legislador ordinário iria ser acolhida pelo legislador constituinte, impondo, até aos nossos dias, a abolição da enfiteuse.

A Constituição da República Portuguesa, no seu texto original, estabeleceu no seu artigo 101.º, n.º 2, que: "Serão extintos os regimes de aforamento e colonia e criadas condições aos cultivadores para a efetiva abolição do regime de parceria agrícola". A atual redação da referida norma, hoje artigo 96.º, n.º 2, decorre da Revisão Constitucional de 1982, sendo a seguinte: "São proibidos os regimes de aforamento e colonia e serão criadas condições aos cultivadores para a efetiva abolição do regime de parceria agrícola".

A extinção da enfiteuse foi assim constitucionalmente sancionada.

Sobre as razões que a tal conduziram, esclarecem Gomes Canotilho e Abílio Vassalo Abreu (ob. cit., n.º 3967, pp. 208 e 209):

«A ratio legis do preceito constitucional tinha clara inspiração "emancipatória": eliminar uma das mais características formas dominiais precapitalistas, que o Código Civil de 1966 ainda manteve (arts. 1491.º a 1523.º), embora já não fosse permitida a constituição de novos aforamentos, por força dos diplomas legislativos a que se acaba de fazer referência [Decreto-Lei 195-A/76 e Decreto-Lei 233/76].

[...]

Parece claro, pois, que a Constituição prosseguiu teleologicamente dois objetivos: (i) eliminar definitivamente as situações de enfiteuse existentes com a consolidação do direito de propriedade plena dos prédios enfitêuticos nas mãos do titular do domínio útil (enfiteuta); (ii) impedir, no futuro, a reconstituição de novos esquemas enfitêuticos.»

7 - Expostas as linhas essenciais do regime jurídico em que se insere da normação que constitui objeto do pedido, vejamos se procede a imputação de infração da tutela constitucional da propriedade, consagrada no artigo 62.º da Constituição.

Recorde-se que o acórdão recorrido funda tal violação na ablação do direito do titular do domínio direto (senhorio), correlativa da aquisição do direito de propriedade por parte do titular do domínio útil enfitêutico, sendo este constituído por via do regime de usucapião instituído pela Lei 108/97, de 16 de setembro, sem que lhe seja concedida uma indemnização.

8 - O n.º 1 do artigo 62.º da Constituição dispõe que "a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição", acrescentando o n.º 2 que "a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização".

Como apontam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. revista, nota VI ao artigo 62.º, p. 802): "o âmbito do direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: (a) a liberdade de adquirir bens; b) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) a liberdade de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles."

O Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o conteúdo da garantia constitucional da propriedade privada.

Nos termos do Acórdão 421/2009 (acessível, como os demais referidos, em www.tribunalconstitucional.pt):

«[O Tribunal] tem dito, em jurisprudência constante (e vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.os 44/99; 329/99; 205/2000; 263/2000; 425/2000; 187/2001; 57/2001; 391/2002; 139/2004; 159/2007 [...]), que sendo afinal a "propriedade" um pressuposto da autonomia das pessoas, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos "Direitos e deveres económicos, sociais e culturais", alguma dimensão terá ele que permita a sua inclusão, pelo menos parcial, nos clássicos direitos de defesa, ou, para usar a terminologia da CRP, em alguma da sua dimensão será ele análogo aos chamados direitos, liberdades e garantias.

Que assim é demonstra-o, afinal, a própria História do constitucionalismo, em que a defesa da propriedade ocupou sempre um lugar central: no plano individual, contra as investidas arbitrárias dos poderes públicos no património de cada um; no plano coletivo, quanto à própria possibilidade da existência de uma sociedade civil diferenciada do Estado, e assente autonomamente na apropriação privada de uma ampla gama de bens que permita o estabelecimento de relações económicas à margem do poder político.

Resta saber qual a dimensão da garantia constitucional da propriedade que acolherá assim um radical subjetivo, que, pela sua estrutura, será análogo a um direito, liberdade e garantia. Ora, e quanto a esta matéria, decorrem da jurisprudência do Tribunal alguns pontos firmes, que poderão ser sintetizados como seguem. O primeiro ponto firme é o da não identificação entre o conceito civilístico de propriedade e o correspondente conceito constitucional: a garantia constitucional da propriedade protege - no sentido que a seguir se identificará - os direitos patrimoniais privados e não apenas os direitos reais tutelados pela lei civil, ou o direito real máximo. O segundo ponto firme é o da dupla natureza da garantia reconhecida no artigo 62.º, que contém na sua estrutura tanto uma dimensão institucional-objetiva quanto uma dimensão de direito subjetivo. O terceiro ponto firme dirá respeito ao âmbito desta última dimensão, de radical subjetivo, que irá incluída na estrutura da norma jusfundamental. A esta dimensão pertence, precisamente como direito "clássico" de defesa, o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação, procedimento esse especialmente assegurado no n.º 2 do artigo 62.º Para além disso - e como se disse no Acórdão 187/2001, § 14 - "a outras dimensões do direito de propriedade, essenciais à realização do Homem como pessoa [...], poderá também, eventualmente, ser reconhecida natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias".

Análise mais demorada exigirá agora a natureza, atrás referida, da garantia constitucional da propriedade enquanto garantia de instituto, objetivamente considerada.

Na verdade, a "garantia" que vai reconhecida no n.º 1 do artigo 62.º tem uma importante dimensão institucional e objetiva, que se traduz, antes do mais, em injunções dirigidas ao legislador ordinário. Por um lado, e negativamente, estará este proibido de aniquilar ou afetar o núcleo essencial do instituto infraconstitucional da "propriedade" (nos termos amplos atrás definidos). Por outro lado, e positivamente, estará o mesmo legislador obrigado a conformar o instituto, não de um modo qualquer, mas tendo em conta a necessidade de o harmonizar com os princípios decorrentes do sistema constitucional no seu conjunto. É justamente isso que decorre da parte final do n.º 1 do artigo 62.º, em que se diz que "a todos é garantido o direito à propriedade privada [...] nos termos da Constituição."

Assim, e apesar de a redação literal do preceito constitucional não conter, como é frequente em direito comparado, uma referência expressa às funções que a lei ordinária desempenha enquanto instrumento de modelação do conteúdo e limites da "propriedade", em ordem a assegurar a conformação do seu exercício com outros bens e valores constitucionalmente protegidos, a verdade é que essa remissão para a lei se deve considerar implícita na "ordem de regulação" que é endereçada ao legislador na parte final do n.º 1 do artigo 62.º, e que o vincula a definir a ordem da propriedade nos termos da Constituição. Tal vinculação não será, portanto, substancialmente diversa da contida, por exemplo, no artigo 33.º da Constituição espanhola ("É reconhecido o direito à propriedade privada [...]. A função social desse direito limita o seu conteúdo, em conformidade com as leis."); no artigo 42.º da Constituição italiana ("A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina o seu modo de aquisição, gozo e limites com o fim de assegurar a [sua] função social [...]"; no artigo 14.º da Lei Fundamental de Bona ("A propriedade e o direito à herança são garantidos. O seu conteúdo e limites são estabelecidos pela lei [...]. O seu uso deve servir ao mesmo tempo os bens coletivos".

Embora a Constituição lhe não faça uma referência textual, existirá portanto, e também entre nós, uma cláusula legal da conformação social da propriedade, a que aliás terá aludido desde sempre a jurisprudência constitucional, ao dizer que "[e]stá tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da conceção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi - ou na formulação impressiva do Código Civil francês [...] enquanto direito de usar e dispor das coisas de la manière la plus absolue [...]. Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais" (referido Ac. n.º 187/2001, § 14, citando anterior jurisprudência)».

No caso em apreço, dos componentes que se identificaram supra como integrando o âmbito constitucional do direito de propriedade, está em causa o direito de não ser privado de bens próprios, que reveste natureza análoga ao regime dos direitos, liberdades e garantias e, nessa medida, beneficia, nos termos do artigo 17.º, da força jurídica conferida pelo artigo 18.º, ambos da Constituição.

De facto, a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, operou-se automaticamente a consolidação da propriedade plena no titular do domínio útil, com a consequente perda da titularidade do direito do senhorio, sendo este esquema jurídico aquisitivo do direito de propriedade o vetor nuclear do programa normativo nele precipitado e em que necessariamente se inscrevem, já na vigência de norma constitucional que proibia o regime de enfiteuse, as modificações aqui em questão, operadas em 1997. O regime constitutivo trazido pelas normas das alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, introduzidas pela Lei 108/97, de 16 de setembro, carece, assim, de ser compreendido como meio de atuação do efeito aquisitivo estipulado no n.º 1 do mesmo preceito - com o correlativo sacrifício do anterior titular do direito de propriedade - tomando o esquema enfitêutico unicamente como ponto de passagem para a propriedade plena.

Ora, conforme referido, o direito de propriedade é garantido "nos termos da Constituição", o que significa que, neste domínio, na formulação do Acórdão 496/2008, "a liberdade de conformação legislativa se encontra particularmente vinculada ao cumprimento de certos limites constitucionais: o poder legislativo está obrigado pela CRP a «conformar» a «propriedade», mas só o pode fazer nos «termos» por ela mesma definidos, ou seja, tendo em linha de conta o sistema constitucional no seu conjunto". E, como se salientou: "[s]ervindo a fórmula ("nos termos da Constituição") de invólucro de todos os parâmetros constitucionais integrativamente convocáveis na modelação do conteúdo e na definição dos limites, por lei, do direito de propriedade objeto da tutela constitucional, é manifesto que nela estão contidos, de forma saliente, os princípios e as opções de valor "cunhados" finalisticamente pela consecução do projeto económico, social e político da Constituição" (cf. Joaquim Sousa Ribeiro, "O direito de propriedade na jurisprudência do Tribunal Constitucional", Relatório apresentado à Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, em outubro de 2009, p. 26, disponível no mesmo sítio da internet).

Assim, o Tribunal tem entendido que a Lei Fundamental consente, para além da privação por expropriação ou requisição, expressamente previstas no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, ou outras impostas por razões de interesse público, limitações ou restrições mais ou menos profundas ao direito de propriedade, incluindo restrições resultantes de soluções dadas a conflitos de direitos, no domínio de relações jurídico privadas, com sacrifício total de uma das posições em confronto; decisivo é que tais restrições encontrem cobertura ou justificação constitucional (cf. Acórdão 491/2002).

Na dimensão em análise, o titular do direito de propriedade apenas goza de forma absoluta da garantia constitucional de não ser arbitrariamente privado dela e de ser indemnizado no caso de desapropriação (assim, J. J. Gomes Canotilho e Vital moreira, ob. cit., nota X ao artigo 62.º, p. 805; Acórdão 215/2000).

9 - A admissibilidade de limitações à garantia do direito de propriedade foi versada em abundante jurisprudência deste Tribunal, da qual se destaca, pela proximidade com a questão em apreço, a proferida sobre a extinção da colonia e o direito de remição coativa do colono-rendeiro.

Com uma primeira expressão ainda na Comissão Constitucional (Parecer 32/92, em Pareceres da Comissão Constitucional, 21.º vol., pp. 62 e seguintes) e, posteriormente, com o Acórdão 1/84, seguido pelos Acórdãos n.os 14/84, 404/87, 161/90 e 204/90, foi julgada constitucionalmente admissível a privação da propriedade a favor de outro particular, por estar coberta por uma disposição expressa da lei fundamental.

Pode ler-se no Acórdão 14/84:

«Toda a argumentação tendente a fundamentar a inconstitucionalidade das normas que estabeleceram a extinção da colonia, mediante a remição de um dos dois direitos de propriedade em que ela consiste, arranca da exclusiva e isolada consideração do artigo 62.º da Constituição, sobre a garantia do direito de propriedade privada, e do entendimento de que ele só admite a perda forçada da propriedade em caso de expropriação por utilidade pública, com o sentido restrito que este conceito assume no direito infraconstitucional.

Trata-se porém de uma leitura insustentável do texto constitucional. Esse mesmo preceito constitucional afirma que o direito de propriedade é garantido «nos termos da Constituição. Esta cláusula remete, diretamente, entre outras coisas, para as normas do capítulo constitucional sobre a organização económica. E é nessa sede precisamente que se encontra o artigo 101.º, que na sua primitiva redação impunha a extinção da colonia e que na redação atual proíbe pura e simplesmente a sua existência.

Qualquer que seja a leitura que haja de fazer-se do artigo 62.º da Constituição, quando se trate da propriedade em geral, a verdade é que, quando se trate de propriedade de meios de produção considerados nessa qualidade, o artigo 62.º abre-se às normas pertinentes da «constituição económica», entre as quais cumpre salientar, em geral, a do artigo 82.º (segundo o qual «A lei determinará os meios e formas de intervenção e de nacionalização e socialização de meios de produção, bem como os critérios de fixação de indemnizações») e, em particular, os artigos 101.º e 96.º do capítulo respeitante à reforma agrária.

Quando se trate de matérias especificamente sediadas no âmbito da constituição económica, o artigo 62.º não é obstáculo a restrições do direito de propriedade, se nessa sede existir norma constitucional que dê cobertura suficiente a tais limitações.

Ora é precisamente o que sucede no caso que nos ocupa. A necessidade - que não apenas a legitimidade! - de sacrificar a propriedade de uma das partes na colonia decorre direta e imediatamente das normas da constituição económica.

Se o que caracteriza a colonia é a existência de dois direitos de propriedade (um, do senhorio, sobre o chão por desbravar; outro, do colono, sobre as benfeitorias, incluindo a obra de arroteamento), então a extinção da colonia só podia ser obtida pela unificação das duas propriedades nas mãos de um só titular (uma das partes ou, eventualmente, um terceiro), com a necessidade de sacrificar a propriedade da outra das partes (ou de ambas no caso de a unificação se operar nas mãos de terceiro).

Não existe terceira via. Foi o artigo 101.º da Constituição, ao obrigar à extinção da colonia, que exigiu, com isso, o sacrifício do direito de propriedade de uma das partes na colonia.

[...]

Ao afirmar-se, como acima se sustenta, que a extinção da colonia exige a unificação das duas propriedades nela envolvidas, sacrificando uma delas, está a partir-se do pressuposto de que é esse o único modo de dar cumprimento à obrigação constitucional, não havendo outra alternativa.

Trata-se de um pressuposto legítimo. Com efeito, a única alternativa que poderia apresentar-se seria a conversão da colonia em outra figura de exploração de terra alheia, designadamente o arrendamento rural. Só que tal solução não daria realização à obrigação constitucional. Por três razões fundamentais:

a) Porque desse modo a colonia não seria extinta, seria apenas convertida;

b) Porque com essa conversão ir-se-ia claramente ao arrepio dos princípios constitucionais que regem a reforma agrária e que privilegiam os cultivadores (como se mostrará adiante com algum desenvolvimento);

c) Porque essa solução afinal implicaria a degradação da posição jurídica do colono, o qual seria expropriado da sua posição jurídica de titular de um direito real idêntico ao do senhorio, para passar a deter um simples direito de exploração de propriedade alheia.

[...]

Mas da Constituição não decorre, diretamente, apenas a necessidade, para extinguir a colonia, de sacrificar um dos direitos de propriedade nela envolvidos; decorre também a solução para o problema de saber qual deles é que o deve ser. Vejamos: o artigo 101.º da Constituição na sua versão originária tinha a seguinte redação:

1 - Os regimes de arrendamento e outras formas de exploração da terra alheia serão regulados por lei de modo a garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador.

2 - Serão extintos os regimes de aforamento e colonia e criadas condições aos cultivadores para a efetiva abolição do regime da parceria agrícola.

O texto atual não diverge significativamente do primitivo, desde logo no que respeita aos elementos sublinhados no texto, dos quais resulta que a Constituição, nesta área, curou sobretudo dos interesses do cultivador, fazendo prevalecer os interesses do titular do direito de exploração sobre o titular do mero direito de propriedade fundiária.

Da simples consideração deste preceito constitucional decorreria desde logo o entendimento de que na extinção da colonia (tal como na extinção da enfiteuse) a parte privilegiada seria o cultivador, ou seja o colono. Esse entendimento não é mais do que confirmado e acentuado quando se traga à colação os princípios gerais da constituição económica, em geral, e os da reforma agrária, em particular. Com efeito, o artigo 101.º insere-se no título dedicado à «política agrícola e à reforma agrária» (no texto atual da Constituição), e um dos seus objetivos (o primeiro!) consta da alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º, que se lê assim:

A política agrícola tem por objetivos:

a) Promover a melhoria da situação económica, social e cultural dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios agricultores pela transformação das estruturas fundiárias e pela transferência progressiva da posse útil da terra e dos meios de produção diretamente utilizados na sua exploração para aqueles que a trabalham.

«Cultivadores», «agricultores», «aqueles que trabalham a terra»: eis os verdadeiros sujeitos constitucionais da reforma agrária configurada na Constituição. Pode pois decididamente afirmar-se que ao determinar a extinção da colonia, a Constituição dispôs implicitamente no sentido da investidura do colono-agricultor na propriedade plena da exploração agrícola, incluindo a do chão.

Por conseguinte, ao atribuir em primeira linha ao colono o direito potestativo de remir a propriedade em que detém as suas benfeitorias, a legislação que extinguiu a colonia não infringiu as pertinentes normas constitucionais, antes lhe deu correto cumprimento. Tendo de sacrificar um dos direitos de propriedade envolvidos na colonia, a lei não podia deixar de seguir o critério constitucional de preferir a propriedade do agricultor, resultante do trabalho, em prejuízo da mera propriedade fundiária, simplesmente baseada na ocupação primitiva do solo do arquipélago. Se houvesse lugar a questionar algum aspeto desse regime, não seria a consagração desse direito dos colonos, mas sim aqueles casos em que ele é preterido...»

Por sua vez, no Acórdão 404/87 escreveu-se o seguinte:

«Relembrar-se-á, em todo o caso, no tocante à pretensa violação da garantia do direito de propriedade, que a mesma é afastada quando se considere tal garantia, consignada no artigo 62.º da Constituição, não isoladamente, mas no contexto global da lei fundamental. Na verdade, se essa garantia exclui em princípio, atenta a sua mesma natureza e o seu núcleo essencial (cf, de resto, artigo 62.º, n.º 2), a possibilidade de um particular obter coativamente de outro a alienação em seu favor de coisa pertencente ao primeiro (e a uma hipótese deste tipo, há de reconhecer-se, se reconduz o direito de remição em causa), ela não pode, todavia, deixar de compaginar-se com os princípios constitucionais dos quais decorrem mais ou menos extensos limites, ou a possibilidade de mais ou menos extensas restrições, ao seu conteúdo e alcance - e tais princípios dão suficiente cobertura à restrição ou limite em que se traduz o direito de remição da terra concedida ao colono-rendeiro. Por outras palavras: o direito de propriedade só se acha garantido, como se diz no próprio artigo 62.º, n.º 1, «nos termos da Constituição», mas estes «termos» autorizam aquela restrição ou limite a esse direito.

Que é assim resulta logo do sentido geral das normas e princípios constitucionais relativos à reforma agrária, apontando eles, como apontam, para uma profunda «transformação das estruturas fundiárias» e para a transferência progressiva da posse útil da terra para aqueles que a trabalham [alínea a) do artigo 96.º, agora do artigo 96.º, n.º 1], e resulta depois, especificamente, do artigo 101.º, n.º 2, que na sua redação primitiva determinou a extinção do regime de colonia e na atual redação o proíbe. Nesta disposição, atenta aquela ideia genérica inspiradora da reforma agrária e a natureza das situações constituídas através do contrato de colonia, não pode, com efeito, deixar de ver-se, no mínimo, uma base constitucional bastante para o legislador conceder aos colonos-rendeiros o direito de porem termo ao contrato de colonia através da remição da propriedade da terra onde implantaram benfeitorias, o que vale dizer, a «expropriarem» a terra em seu proveito. Que aí se verifica uma excecional restrição do direito de propriedade do senhorio é inquestionável; só que se trata, atento o que fica dito, de uma restrição que, porque «prevista na Constituição», cabe no elenco daquelas que a mesma consente, nos termos do seu artigo 18.º, n.º 2.»

Igual doutrina foi seguida no Acórdão 159/2007, que apreciou a norma contida no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, de 22 de outubro, que permitia ao rendeiro remir o contrato, tornando-se dono da terra pelo pagamento do preço que fosse fixado pela comissão arbitral, em casos de arrendamento rural, tendo concluído pela sua conformidade com a Lei Fundamental.

10 - Ora, também perante a extinção da enfiteuse, a privação do direito de propriedade do titular do domínio direto pela consolidação da propriedade plena no titular do domínio útil apresenta credencial constitucional, decorrendo da ponderação do comando constitucional relativo à política agrícola constante do artigo 93.º, n.º 1, alínea b), e, especificadamente, do disposto no artigo 96.º, n.º 2, ambos da Constituição.

Dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 96.º (ob. cit., p. 1062):

«O objeto desta norma consiste em reduzir e racionalizar as formas de exploração de terra alheia. Trata-se, por um lado, de suprimir várias formas tradicionais, designadamente as que implicavam a coexistência de diferentes direitos de caráter real sobre a terra (como era o caso do aforamento e da colonia) [...], formas essas que [...] não passavam de sobrevivências de relações pré-liberais de domínio e de produção agrícola (n.º 2); trata-se, por outro lado, de reclamar uma disciplina legislativa do arrendamento - o qual passa a ser verdadeiramente o único título de utilização de terra pertencente a outrem (ressalvadas as formas de utilização da terra expropriada no âmbito da reforma agrária: artigo 94.º-2)-, de harmonia com os objetivos e a perspetiva constitucional que preside à política agrícola [...]».

E, em comentário ao artigo 93.º da Constituição (ob. cit, p. 1049):

«Entre os vários intervenientes nas relações de produção agrícolas, a Constituição só cuida dos trabalhadores rurais e dos agricultores (n.º 1/b). Essa preferência traduz a prevalência dos interesses dos que «trabalham a terra» (mesmo preceito) e dos «cultivadores» (artigo 96.º-2) sobre os interesses dos proprietários fundiários, os quais cedem perante aqueles (artigos 94.º e 96.º).

[...]

Esta preferência pelo direito do trabalho e da exploração agrícola direta sobre o direito de propriedade fundiária bem como a proteção especial devida aos pequenos e médios agricultores (que são coerentes com os valores gerais da Constituição) não podem deixar de ser valorizadas no plano da interpretação das normas da «constituição agrícola» e do seu desenvolvimento legislativo.»

Contudo, ao contrário do regime previsto para a remição da colonia (artigo 7.º do Decreto Regional 13/77/M, de 18 de outubro), para a remição do arrendamento rural (artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, de 22 de outubro) e para a abolição da enfiteuse relativa a prédios urbanos (artigo 2.º do Decreto-Lei 233/76, de 2 de abril), no Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, determina-se a transferência ope legis do domínio direto dos prédios para o titular do domínio útil (artigo 1.º, n.º 1), sem que se conceda, em termos gerais, ao titular do domínio direto qualquer indemnização - esta só está prevista nos casos em que o titular do domínio direto seja pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo mensal nacional (artigo 2.º, n.º 1) e, neste caso, a indemnização consistirá no pagamento anual, enquanto a pessoa for viva, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia (n.º 2 do mesmo artigo).

Ora, sendo desígnio constitucional a consolidação da propriedade plena no titular do domínio útil, com o consequente retirar do correlativo direito do titular do domínio direto, esta privação teria, necessariamente, de ser acompanhada da atribuição, a este, da devida e adequada prestação compensatória. Nos termos do Acórdão 444/2008, "[...] [D]o princípio estruturante do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º, da C.R.P., colhe-se um direito geral à reparação dos danos, de que são expressão particular os direitos de indemnização previstos nos artigos 22.º, 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da C.R.P.»

11 - Quanto à existência e âmbito de restrições carecidas de indemnização, importa referir o Acórdão 331/99, que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de novembro, na medida em que não permitia que a indemnização pelas servidões fixadas diretamente pela lei que incidissem sobre parte sobrante do prédio expropriado, no âmbito de expropriação parcial, desde que a mesma parcela já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, capacidade edificativa.

Diz-se no mencionado Acórdão:

«[...] [A]pesar de, em si mesma, uma servidão non aedificandi não se confundir com a expropriação, ela suscita pela afetação de uma faculdade essencial do direito de propriedade, um prejuízo do titular do direito de propriedade, que é, pelo menos em princípio, suscetível de indemnização, por força de um princípio geral de indemnização de danos que, no que se refere à afetação do direito de propriedade, radica no artigo 62.º da Constituição (como resultante da proteção constitucional de tal direito).»

Na mesma linha, perspetivando a vertente do direito de construir, destacam-se os Acórdãos n.os 329/99 e 517/99, que julgaram constitucional a perda de eficácia de licenças de loteamento, urbanização e construção validamente emitidas, por incompatibilidade com planos regionais de ordenamento do território posteriores, no pressuposto de que, por força de outro diploma legal, recaia sobre o Estado o dever de indemnizar. Esta orientação foi reiterada no Acórdão 360/2004, respeitante a construção em zona classificada como Parque Natural.

Nos termos do primeiro daqueles arestos:

«[A] proibição de construir decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização. Mas já assim não será - sublinha Fernando Alves Correia, Estudos de Direito do Urbanismo citado, págs. 47 e notas 10 e 11, 68, 112 e 120 - quando essa proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.

Pois bem: uma das situações que, por via da gravidade e da intensidade dos danos que produz na esfera jurídica dos particulares, impõe o pagamento de uma indemnização é, justamente, aquela em que as licenças ou autorizações de loteamento, urbanização ou construção já concedidas são postas em causa por um plano urbanístico posterior [...]. Esta perda de eficácia, importando a ablação de faculdades ou direitos antes reconhecidos aos particulares, não pode ter lugar senão mediante o pagamento de uma indemnização".»

E, assim, conforme refere Joaquim Sousa Ribeiro (ob. cit., p. 44): «Por maioria de razão (por confronto com a ablação do direito a construir), tratando-se de uma transmissão forçada do direito de propriedade distinta da expropriação, o mesmo fundamento substancial que, no caso desta, impõe a garantia do valor do direito, quando não puder ser assegurada a tutela primária da sua permanência na esfera do titular, leva a considerar que o direito a "justa indemnização" deve ser reconhecido, sob pena de inconstitucionalidade.»

12 - A ponderação da apontada exigência constitucional de justa indemnização conduziu a doutrina a por em crise a conformidade constitucional do regime decorrente do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na sua versão original. Com efeito, dela não decorre a consagração de indemnização que, quanto a todos os senhorios, titulares do domínio direto enfitêutico sobre prédios rústicos, os compense da privação forçada desse direito.

Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, qualificam a solução legislativa introduzida em 1976 como sendo um verdadeiro confisco: "[o] Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, sem a realização prévia de nenhum estudo económico-social sobre a relação de aforamento [...], aboliu a enfiteuse sobre prédios rústicos, impondo um verdadeiro confisco a muitos dos titulares do domínio direto" (Código Civil anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, p. 580).

No mesmo sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmaram: "Note-se que, no caso da extinção dos aforamentos de prédios rústicos, não se previu qualquer tipo de indemnização do foreiro ao senhorio, tendo havido portanto um verdadeiro confisco do direito deste" (ob. cit., nota III ao artigo 96.º, p. 1063).

A mesma opinião é perfilhada por Rui Medeiros:

«Em contrapartida, em face do atual estatuto do direito de propriedade no texto constitucional em vigor, o sacrifício lícito do direito do proprietário em favor daqueles que exploram diretamente a terra dificilmente pode ser feito sem o pagamento de justa indemnização. Com efeito, sem entrar agora no problema da aplicação da lei constitucional no tempo [...], o artigo 62.º, n.º 1, da Constituição está consagrado com alcance geral, abrangendo, igualmente, os próprios meios de produção e a propriedade fundiária.

[...] Numa palavra, independentemente do modo como se apresenta o sacrifício do direito de propriedade, a garantia constitucional da propriedade postula, em caso de expropriação, ainda que por utilidade particular, o pagamento de uma justa indemnização [...]» (Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo II, 2006, nota IV ao artigo 96.º, p. 179).

Na mesma linha, J. J. Gomes Canotilho e Abílio Vassalo Abreu afirmam: "(d)epois da Revisão Constitucional de 1989, que procedeu a uma reconstrução profunda da Constituição económica, qualquer interpretação das normas constitucionais deverá ter em conta que a "dimensão emancipatória inicial" se confronta hoje com os novos parâmetros de jurisdicidade constitucional. Qualquer interpretação legitimadora da transferência de propriedade ou, se se preferir, de medidas ingerentes no direito de propriedade com efeitos translativos de domínio, sem previsão das regras indemnizatórias, será, a nosso ver, uma interpretação em desconformidade com a Constituição" (ob. cit., p. 213).

Também Bacelar Gouveia toma posição no mesmo sentido:

«[...] [N]ão se pode questionar a eliminação de um tipo de direito real, como foi a enfiteuse. Mas já é inadmissível que essa eliminação tivesse sido operada à custa do direito de propriedade do titular do domínio direto.

II. Isso fica por demais evidente, no caso da enfiteuse rural, pelo facto de a abolição da enfiteuse fazer do enfiteuta o novo proprietário pleno sem que ao antigo titular do domínio direto seja atribuída qualquer significativa compensação pecuniária pelo efeito de extinção do seu limitado direito de propriedade.

Tal apenas sucede marginalmente quando o titular do domínio direto é uma pessoa singular e apenas tem um rendimento equivalente ao salário mínimo...

Ora, estão aqui reunidos os pressupostos de uma violação de um direito real de propriedade, onerado pelo direito de enfiteuse, constitucionalmente intolerável à luz da garantia do direito de propriedade:

- por um lado, o efeito ablativo do direito, ou seja, a extinção do direito de propriedade, que consistia na titularidade do domínio direto;

- por outro lado, a ausência de qualquer contrapartida por parte de quem ficou avantajado com esse desaparecimento, o antigo enfiteuta e novo proprietário pleno, nem sequer se descortinando um interesse público relevante.

III. Uma vez que o efeito da violação do direito de propriedade privada deriva do próprio ato legislativo, promanado pelo Estado Português, é-lhe diretamente assacável a inconstitucionalidade material, na medida em que a desapropriação do direito de propriedade não vem acompanhada de qualquer indemnização e essa consequência é perpetrada pelo ato legislativo em causa.

Trata-se de uma exigência da defesa constitucional da propriedade privada, pois que todo e qualquer ato ablativo da propriedade - seja pública, seja privada - tem de ser acompanhado não apenas pelos fundamentos justificativos como por uma contemporânea e justa indemnização» (ob. cit., pp. 35-37).

Ora, presente tal vício no regime do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, a modificação legislativa operada em 1997, na medida em que veio permitir a constituição de relação de enfiteuse de acordo com regras inovadoras, dando assim novo campo subjetivo de atuação à consolidação ope legis da propriedade no titular do domínio útil, mas manteve inalterado o regime compensatório, não pode deixar de ser objeto de idêntico juízo de censura jurídico-constitucional. Seguramente, a dimensão normativa em análise comporta a consolidação da propriedade plena no titular do domínio útil sem que se conceda, em termos gerais, ao titular do domínio direto uma "justa indemnização": usando a expressão de J. J. Gomes Canotilho e Abílio Vassalo Abreu, a normação questionada "transporta no seu bojo um 'confisco' ou, se se preferir, uma 'expropriação sem indemnização" para fins particulares, infringindo o âmbito de proteção do n.º 2 do artigo 62.º da Constituição da República.

13 - Concluindo-se pela prolação de julgamento de inconstitucionalidade por infração da garantia constitucional específica do direito de propriedade constante do n.º 2 do artigo 62.º da Constitucional, não se justifica prosseguir com a apreciação das normação desaplicada face aos princípios estruturantes também considerados infringidos na decisão recorrida.

III. Decisão

14 - Pelo exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional as normas constantes das alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação dada pela Lei 108/97, de 16 de setembro, na medida em que aí se estabelece um regime de constituição de enfiteuse por usucapião, o qual, conjugado com o regime de consolidação dos domínios útil e direto decorrente da abolição da figura, opera a translação da propriedade plena, sem atribuição, em termos gerais, de indemnização;

b) Negar provimento ao recurso, confirmando o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 12 de novembro de 2014. - Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Ana Guerra Martins - João Cura Mariano (vencido pelas razões constantes da declaração que junto).

Declaração de voto

1 - Na presente ação foi pedido, em primeiro lugar, que fosse reconhecida a constituição a favor dos Autores do domínio útil da enfiteuse sobre determinadas parcelas de terreno e, em segundo lugar, que fosse reconhecido que os Autores são proprietários daquelas parcelas, por força do disposto no Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de março.

Após o Tribunal da Relação ter revogado a sentença que na 1.ª instância havia julgado procedente estes pedidos, julgando improcedente a ação, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu Acórdão confirmando a orientação do Tribunal da Relação.

Nesse aresto que é a decisão aqui recorrida entendeu-se o seguinte

«Pelo quanto dissemos, o DL. 195-A/76, de 16 de março, ao abolir a enfiteuse a que estavam sujeitos os prédios rústicos, e ao conferir ao titular do domínio direto o domínio útil, atribuindo ao titular deste uma indemnização desrazoável e discriminatória, uma vez que apenas foi legalmente prevista para os casos em que o titular do domínio direto fosse pessoa singular com rendimento inferior ao salário mínimo nacional - artigo 2.º, n.º 1 - e estabelecendo que essa indemnização consistiria no pagamento anual enquanto fossem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia, violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade, do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança, e violou, ainda, o direito de propriedade privada já que o ato ablativo do direito de propriedade não foi acompanhado de indemnização que possa ser considerada justa, mesmo em função do tempo histórico em que ocorreu.

Por outro lado, e por ter atinência com a decisão, uma vez que a pretensão dos AA. assentou, também, na usucapião como modo de aquisição do domínio útil que se arrogaram, para depois, por via dele, se tornaram titulares do domínio útil, mesmo que não fosse de considerar a inconstitucionalidade material do diploma abolitivo da enfiteuse, este Tribunal ao abrigo do artigo 204.º da Constituição da República, por considerar materialmente inconstitucional a norma do artigo 1.º da Lei 108/97, de 1[6].9. que alterou a redação do n.º 5 do DL. 175-A/96, de 16 de março, ao admitir a constituição da enfiteuse por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim retroativamente um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização - artigo 62.º, n.º 2, da Constituição da República - violou os princípios da igualdade (art.13.º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança.»

Estes dois juízos de inconstitucionalidade não se reduzem a dois argumentos diferentes para a inconstitucionalidade da mesma norma, como faz crer a fórmula enunciada na parte decisória do Acórdão recorrido e que o Tribunal Constitucional indevidamente aceitou.

Estamos perante dois juízos de inconstitucionalidade que incidem sobre normas distintas, dotadas de autonomia e com alcance diferente, apesar do nexo de instrumentalidade que as une.

Na verdade, a decisão recorrida enquanto, por um lado, considera inconstitucional que a abolição da enfiteuse sobre os prédios rústicos se faça através da transferência do domínio direto para o titular do domínio útil, sem que se atribua, em termos gerais, ao titular do domínio direto, um direito de indemnização por essa transmissão forçada, resultando essa solução da conjugação do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, e 2.º, do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, por outro lado, também censura que o direito de enfiteuse possa ser constituído retroativamente por usucapião, conforme admitem os n.º 4 e 5, do mesmo artigo 1.º, do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação das Leis n.º 22/87, de 24 de junho (o n.º 4), e 108/97, de 16 de setembro (o n.º 5).

É certo que o reconhecimento da aquisição do direito ao domínio útil por usucapião, determina o acesso automático ao direito de propriedade sobre todo o prédio, pela transmissão do domínio direto para o titular do domínio útil, mas não deixam de se tratar de duas operações jurídicas autónomas, apesar da segunda ter como pressuposto a verificação da primeira, sendo cada uma delas permitida por normas distintas.

Por isso, a improcedência dos dois pedidos formulados na ação (o do reconhecimento da aquisição por usucapião do domínio útil e o da aquisição do direito de propriedade), com fundamento em inconstitucionalidade normativa, exigia a adoção de dois juízos distintos que aliás constam da fundamentação do Acórdão recorrido, mas que não foram autonomizados na fórmula utilizada na parte decisória.

Daí que tenha discordado que o presente Acórdão tenha aceite a formulação unificada como objeto de fiscalização, tendo-a julgado inconstitucional, com fundamento apenas na falta de atribuição, em termos gerais, ao titular do domínio direto, de um direito de indemnização pela transmissão forçada.

Da opção por esta abordagem unitária resultou que a constituição do direito de enfiteuse por usucapião ficou também indevidamente abrangida pela decisão de inconstitucionalidade, uma vez que o fundamento desta - a falta de atribuição do direito de indemnização - não lhe é imputável, dizendo apenas respeito à norma que procede à transferência ope legis do domínio direto para o titular do domínio útil.

Por esta razão, se concordei que a norma extraída do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, e 2.º, do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, segundo a qual a abolição da enfiteuse sobre os prédios rústicos se faz através da transferência do domínio direto para o titular do domínio útil, sem que se atribua, em termos gerais, ao titular do domínio direto, um direito de indemnização por essa transmissão forçada, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, entendi que é necessário efetuar uma fiscalização autónoma da norma extraída dos n.º 4 e 5, do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação das Leis n.º 22/87, de 24 de junho (o n.º 4), e 108/97, de 16 de setembro (o n.º 5), segundo a qual é possível reconhecer neste momento a constituição de um direito de enfiteuse por usucapião, o que o presente Acórdão não faz.

2 - A decisão recorrida defendeu que admitir-se a constituição da enfiteuse, por usucapião, estabelecendo assim, retroativamente, um meio de aquisição de um direito constitucionalmente proibido, violava essa proibição.

Saliente-se que a inconstitucionalidade apontada não incide sobre uma leitura do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação da Lei 108/97, de 16 de setembro, segundo a qual os pressupostos da aquisição por usucapião do direito do enfiteuta seriam menos exigentes que os pressupostos gerais desse modo de aquisição de direitos, cobrindo situações em que o corpus e o animus da posse não respeitavam necessariamente ao exercício do domínio útil do enfiteuta, mas sim ao gozo próprio de uma relação arrendatícia (vide, sobre esta questão, Gomes Canotilho e Vassalo de Abreu, em "Enfiteuse sem extinção. A propósito da dilatação legal do âmbito do instituto enfitêutico", na R.L.J. Ano 140.º, pág. 206 e seg., e o Acórdão do S.T.J. de 30-10.2014, proferido no processo 5658/07.7TBALM.L2.S1, acessível em www.dgsi.pt), a qual não estava em causa na situação sub iudice; a questão de constitucionalidade que aqui se coloca é tão só a de saber se a possibilidade de alguém, atualmente, ainda poder adquirir um direito desse tipo, por usucapião, viola qualquer parâmetro constitucional, designadamente a proibição constante do n.º 2, do artigo 96.º, da Constituição.

A enfiteuse, com origem no direito romano e com prevalência na Idade Média, perdurou no nosso ordenamento jurídico, através da sua consagração, primeiro no Código de Seabra e depois, após acesa discussão sobre a sua utilidade durante os trabalhos preparatórios, no Código Civil de 1966, com algumas alterações de regime.

Após a Revolução de abril de 1974, o Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de março, diploma pré-constitucional, viria a abolir a enfiteuse, com a seguinte fundamentação:

"Através da forma jurídica da enfiteuse têm continuado a impender sobre muitas dezenas de milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal. Com efeito, encontram-se ainda hoje extremamente generalizados os foros, podendo referir-se que só o Estado, segundo estimativas feitas pela Direção-Geral da Fazenda Pública, é titula rde domínios diretos que atingem cerca de 400000, ultrapassando o seu valor 1 milhão de contos.

Uma política agrária orientada para o apoio e a libertação dos pequenos agricultores não pode deixar de integrar a liquidação radical de tais relações subsistentes no campo."

O legislador ordinário antecipou-se à aprovação do texto constitucional e, tendo por objetivo a emancipação dos enfiteutas, procedeu à transferência ope legis do domínio direto para o titular do domínio útil, concentrando na esfera jurídica deste a propriedade plena sobre os prédios sujeitos àquele regime, através da "expropriação" do domínio direto que cabia ao senhorio, em favor do enfiteuta.

Deste modo pretendeu-se banir uma "forma jurídica que fizera impender sobre milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que não correspondiam senão a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal"(Rui Marcos, em "O regresso da enfiteuse", em "O sistema contratual romano. De Roma ao direito atual", ed. especial do B.F:D.U.C., de 2010).

Foi nessa linha que a Constituição de 1976 (artigo 101.º, n.º 2, da versão original que corresponde ao atual artigo 96.º, n.º 2), ao dispor sobre as formas de exploração de terra alheia, determinou a proibição dos regimes de aforamento, assim designando a enfiteuse (artigo 101.º, n.º 2, da versão original). Considerou-se que a enfiteuse era um instituto que mantinha vínculos feudais e que permitia, a título tendencialmente perpétuo, que os proprietários absentistas beneficiassem, através do pagamento do foro, da exploração da terra pelo enfiteuta, o que resultava numa relação de exploração do homem pelo homem, a que se opõe a ideia da dignidade da pessoa humana vertida no artigo 1.º da Constituição.

A proibição constitucional da recuperação da figura da enfiteuse que já tinha sido abolida pelo Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de março, visou, pois, impedir não só que se constituíssem novas relações enfitêuticas, mas também que se mantivessem as existentes.

O Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de março, que antecipadamente executou esta diretriz constitucional, na sua redação, teve apenas em consideração aqueles que à época eram titulares registados de um direito ao domínio útil, em razão de relações de enfiteuse já constituídas, limitando-se a determinar que as correspondentes operações de registo, com a alteração da propriedade, seriam efetuadas oficiosamente (artigo 1.º, n.º 3), não contemplando uma realidade em que avultava a existência de inúmeros direitos enfitêuticos não registados, com origem em contratos verbais.

Esta realidade veio mais tarde a ser posta a nu pelas reivindicações dos foreiros de Salvaterra de Magos, tendo a Lei 22/87 de 24 junho visado dar uma resposta a esse movimento, admitindo o registo da enfiteuse com fundamento em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial (artigo 1.º, n.º 4), desde que o prazo necessário para essa aquisição tivesse já decorrido em 16 de março de 1976 (artigo 1.º, n.º 5, a), data em que foi abolida a enfiteuse.

Apesar desta solução já poder resultar da aplicação das regras gerais da posse, reconheceu-se especificamente que era necessário dar também cobertura às relações possessórias enfitêuticas, permitindo-se que quem tivesse uma posse correspondente ao exercício do direito do enfiteuta, apesar dessa posse não se encontrar titulada por um contrato escrito registado, pudesse, através da invocação do instituto da usucapião, ver reconhecida a sua qualidade de enfiteuta com a subsequente transmissão do domínio direto do prédio para a sua esfera patrimonial, passando aquele a ser o titular da propriedade plena.

Como se disse na altura da discussão deste diploma na Assembleia da República:

"Esta iniciativa legislativa visa viabilizar o processo de extinção dos aforamentos nos casos em que não existe contrato escrito, mas em que o direito do foreiro, não obstante não resultar de contrato sob forma escrita, foi adquirido por usucapião. Procura-se com ela permitir que os foreiros nesta situação não fiquem impedidos de beneficiar da legislação de 1976, que extinguiu os foros" (Álvaro Brasileiro do PCP);

"Pese embora a sua boa intenção de acabar de vez com o aforamento, escaparam à alçada deste diploma (o Decreto-Lei 195-A/76) aquelas situações em que os foreiros, na ausência de contrato escrito, não puderam perante as conservatórias de registo predial, exibir título de enfiteuse. Assim não obstante o inequívoco substrato de relação contratual, perduraram alguns casos que são o objeto do presente diploma" (José Frazão do PS);

"A concretização das medidas previstas no Decreto-Lei 195-A/76 veio a ter na prática, por vezes, grandes dificuldades quando a enfiteuse não foi constituída por contrato mas sim por prescrição aquisitiva/usucapião.

Foreiros vieram a encontrar, neste caso, dificuldades inultrapassáveis para procederem às operações de registo atrás referidas, mantendo-se, transcorridos que foram mais de dez anos, numa situação estranha.

Sendo de facto possuidores da terra, tendo a seu lado o direito substantivo, não conseguem ver reconhecidos os seus direitos, com todos os inconvenientes daí resultantes, como sejam a impossibilidade de acesso ao serviço de eletricidade e ligações à rede pública de água, situação que acarreta graves prejuízos." (Carlos Matias do PRD).

Com as alterações introduzidas no Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de março pela Lei 22/87 de 24 junho o legislador esclareceu que, mesmo após ter sido abolida e constitucionalmente proibida a enfiteuse, o direito do enfiteuta podia ser adquirido por usucapião, desde que se reunissem as condições aí exigidas, designadamente que em 16 de março de 1976 já tivessem decorrido os prazos necessários para a aquisição daquele direito por usucapião, donde sequencialmente resultava, nos termos do artigo 1.º daquele diploma, a consolidação da propriedade plena na esfera jurídica do enfiteuta.

Esta opção traduz um reconhecimento da importância da figura da posse na ordenação do domínio sobre os bens, como peça fulcral duma ordenação dominial provisória que supre as lacunas inevitáveis da ordenação definitiva e que mais não é do que "uma via de recurso para impedir de momento as soluções de continuidade no funcionamento dos direitos que constituem os mecanismos de tutela jurídica que o Direito seleciona para o domínio sobre os bens - até se restabelecer, por conseguinte, esse funcionamento completo e em ordem, além disso, a esse funcionamento completo."(Orlando de Carvalho, em "Direito das coisas", pág. 233-234, da ob. coordenada por Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha, ed. de 2012, Coimbra Editora).

As pessoas que se encontravam nas condições exigidas na data em que foi abolida a enfiteuse também elas devem ser reconhecidas como verdadeiros enfiteutas, para que lhes seja transmitido o domínio direto sobre as parcelas de terreno em causa, consolidando-se na sua esfera patrimonial a propriedade plena sobre essas parcelas.

Mais tarde, o legislador viria a introduzir alterações aos pressupostos estabelecidos para a aquisição por usucapião do direito do enfiteuta, através da Lei 108/97, de 16 de setembro, perante algum inêxito na regularização das situações de enfiteuse não tituladas, procurando facilitar ainda mais essa aquisição.

Faz-se notar, mais uma vez, que a questão de constitucionalidade que aqui importava discutir era apenas a que recaía sobre a possibilidade de alguém poder vir a adquirir, por usucapião, um direito que, entretanto, havia sido abolido e constitucionalmente proibido, e não a da descaracterização do modo de aquisição de um direito real por usucapião que poderia ter resultado do estabelecimento de pressupostos específicos para a aquisição do direito do enfiteuta.

Ora, se é verdade que a proibição constitucional da recuperação da figura da enfiteuse, que já tinha sido abolida pelo Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de março, visou impedir não só que se constituíssem novas relações enfitêuticas, mas também que se mantivessem as existentes, o facto de se permitir a aquisição por usucapião do direito de enfiteuse a quem, à data da abolição (16 de março de 1976), tivesse uma posse correspondente ao exercício desse direito com uma duração suficiente para essa aquisição (desde pelo menos 15 de março de 1946, como esclareceu a Lei 108/97 de 16 de setembro), não só não contraria tal proibição, como visa dar-lhe cumprimento.

Na verdade, do mesmo modo que para impedir a subsistência das relações de enfiteuse existentes no ordenamento dominial definitivo registral se determinou a transferência automática do domínio direto para o titular do domínio útil, consolidando, assim, a propriedade plena na esfera jurídica deste, justifica-se que tenham igual tratamento aquelas situações possessórias, inseridas no ordenamento dominial provisório, correspondentes ao exercício do direito do enfiteuta que, à data da abolição desta figura, já tinham uma duração que permitia a este a aquisição desse direito por usucapião, mediante simples declaração de vontade nesse sentido, isto é que se encontravam aptas a ingressar no ordenamento definitivo.

Na verdade, essa solução não só se justifica, por identidade de razões, como é a adequada à promoção da extinção das relações enfitêuticas de facto, através do acesso dos enfiteutas à propriedade plena, dando, assim, cumprimento à proibição contida no artigo 96.º, n.º 2, da Constituição.

E não se diga que ela põe em causa o princípio da confiança, na vertente da proibição da retroatividade, inerente ao modelo do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, quando permite a aquisição de uma forma dominial que já não é reconhecida pelo ordenamento jurídico, sendo até proibida, porque a norma em análise apenas permite o reconhecimento dessa aquisição nos casos em que, no momento em que se procedeu à abolição da enfiteuse, estavam já reunidas todas as condições para que essa aquisição ocorresse, efetuando-se esse reconhecimento, não para dar origem a novas relações enfitêuticas, mas sim para lhes pôr termo, com a consolidação da propriedade plena na esfera jurídica do titular do domínio útil, tal como sucedeu com as relações de enfiteuse tituladas e registadas.

Por estas razões teria julgado não inconstitucional a norma extraída dos n.º 4 e 5, do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março, na redação das Leis n.º 22/87, de 24 de junho (o n.º 4), e 108/97, de 16 de setembro (o n.º 5), segundo a qual é possível reconhecer neste momento a constituição de um direito de enfiteuse por usucapião, o que determinaria a reforma da decisão recorrida na parte em que absolveu a Ré do pedido de reconhecimento da constituição a favor dos Autores do domínio útil da enfiteuse sobre determinadas parcelas de terreno.

João Cura Mariano

208307217

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/367225.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1974-10-22 - Decreto-Lei 547/74 - Ministérios da Justiça e da Economia

    Estabelece a disciplina jurídica dos casos de arrendamento rural, em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro.

  • Tem documento Em vigor 1976-03-16 - Decreto-Lei 195-A/76 - Ministério da Agricultura e Pescas - Gabinete do Ministro

    Determina a abolição da enfiteuse respeitante a prédios rústicos.

  • Tem documento Em vigor 1976-04-02 - Decreto-Lei 233/76 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Extingue a enfiteuse relativa a prédios urbanos.

  • Tem documento Em vigor 1976-07-10 - Decreto-Lei 546/76 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Altera o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, que determina a abolição da enfiteuse respeitante a prédios rústicos.

  • Tem documento Em vigor 1977-10-18 - Decreto Regional 13/77/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Regional

    Extingue o regime de colónia na Região Autónoma da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 1978-05-02 - Decreto-Lei 82/78 - Ministério da Justiça

    Dá nova redacção ao artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 233/76, de 2 de Abril (extingue a enfiteuse relativa a prédios urbanos).

  • Tem documento Em vigor 1979-04-03 - Decreto-Lei 73-A/79 - Ministério da Justiça

    Prorroga por mais um ano o prazo para o exercício do direito à indemnização concedida aos senhorios directos por virtude da extinção da enfiteuse relativa a prédios urbanos.

  • Tem documento Em vigor 1980-07-15 - Decreto-Lei 226/80 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Justiça

    Dá nova redacção ao artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 233/76, de 2 de Abril (extinção da enfiteuse relativa a prédios urbanos).

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-10-18 - Decreto-Lei 335/84 - Ministério da Justiça

    Altera a redacção do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 233/76, de 2 de Abril (actualização do registo predial).

  • Tem documento Em vigor 1987-06-24 - Lei 22/87 - Assembleia da República

    Altera o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, que determina a abolição da enfiteuse respeitante a prédios rústicos.

  • Tem documento Em vigor 1991-11-09 - Decreto-Lei 438/91 - Ministério do Planeamento e da Administração do Território

    Aprova o Código das Expropriações.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-16 - Lei 108/97 - Assembleia da República

    Altera o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, que extinguiu a enfiteuse relativa a prédios rústicos.

  • Tem documento Em vigor 1999-07-14 - Acórdão 331/99 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto Lei 438/91, de 9 de Novembro, na medida em que não permite que haja indemnização pelas servidões fixadas directamente pela lei que incidam sobre parte sobrante do prédio expropriado, no âmbito de expropriação parcial, desde que a mesma parcela já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, capacidade edificativa, por violação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, (...)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda