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Acórdão 421/2009, de 2 de Setembro

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Sumário

Decide não pronunciar-se pela inconstitucionalidade [fiscalização preventiva] das normas constantes do n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto n.º 343/X da Assembleia da República.

Texto do documento

Acórdão 421/2009

Processo 667/2009

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1. O Presidente da República requereu, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com a Constituição das normas constantes do n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea c) do n.º 2 do mesmo artigo 2.º do Decreto 343/X da Assembleia da República, recebido na Presidência da República no dia 28 de Julho de 2009 para ser promulgado como lei. O pedido de fiscalização de constitucionalidade apresenta, em síntese, a seguinte fundamentação:

A) Quanto à norma constante do n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º - Ao prever, como instrumento de política urbanística, um regime de venda forçada, a norma prevista no n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º cria uma nova forma de privação de propriedade privada, na medida em que afecta com efeitos ablativos a liberdade de gozo e de transmissão da mesma;

- Revestindo o direito de propriedade privada natureza análoga a direitos, liberdades e garantias, o mesmo só pode ser restringido nos casos expressamente previstos na Constituição, nos termos do n.º 2 do artigo 18.º da CRP [por lapso ter-se-á referido o

n.º 1 do artigo 18.º];

- Este último preceito é violado pela referida norma, na medida em que a Constituição não prevê que o direito de propriedade privada possa ser sujeito a essa forma de

restrição;

- Porquanto, ao dispor, no n.º 4 do artigo 65.º, sobre a política de ocupação, uso e transformação de solos urbanos, a Constituição prevê unicamente a figura da expropriação por utilidade pública como instrumento de privação da propriedade privada apto à satisfação de fins de utilidade pública urbanística;

- Ou seja, por se estar perante uma norma constitucional típica, que contém um numerus clausus, é vedado ao legislador vir restringir o direito de propriedade privada, com fundamento em utilidade pública urbanística, através de qualquer outro instrumento que não a expropriação por utilidade pública;

- Assim sendo, apenas se poderia sustentar a não inconstitucionalidade da norma sindicada, com fundamento em violação da norma do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, na hipótese de se considerar que, por possuir elementos de identidade com o instituto da expropriação, na qualidade de instrumento de política urbanística, o instituto da venda forçada cabe, por analogia, na previsão do n.º 4 do artigo 65.º da

CRP;

- Simplesmente, para tanto seria necessário verificar-se uma relação de homologia entre os dois instrumentos de política urbanística, nomeadamente quanto: a) à consecução do fim de utilidade pública que devem prosseguir; b) às garantias inerentes ao processo

indemnizatório que lhes subjaz;

- No que respeita ao primeiro requisito, seria necessário que, tal como sucede com a expropriação, i) a venda forçada implicasse uma prévia declaração de utilidade pública do bem sujeito a essa venda coactiva e ii) acautelasse, no respectivo procedimento, o preenchimento efectivo do fim de interesse público urbanístico que subjaz à reabilitação;

- Sucede, porém, que, em virtude de a norma habilitante ora sindicada omitir a exigência de prévia declaração de utilidade pública individualizada, não podendo a mesma retirar-se sequer implicitamente das duas remissões feitas para o Código das Expropriações, a mesma cria um meio de privação forçada da propriedade por razões urbanísticas sem garantir que a legislação delegada consagre tal regime;

- Porque tal omissão tem como efeito que o Governo possa optar por não exigir a prévia declaração de utilidade pública do bem sujeito a venda forçada, nos mesmos termos que regem o instituto das expropriações (artigos 1.º e 13.º do Código das Expropriações), deixa de poder sustentar-se a tese segundo a qual o instituto da venda forçada possuiria elementos de identidade com o instituto da expropriação, na qualidade de instrumento de política urbanística, cabendo, por analogia, na previsão do n.º 4 do

artigo 65.º da Constituição;

- Assim, a norma habilitante viola o disposto no n.º 4 do artigo 65.º conjugado com o artigo 13.º da Constituição ao mesmo tempo que viola o n.º 2 do artigo 165.º da Constituição conjugado com essas mesmas disposições;

- Além de que, ainda no que respeita ao primeiro requisito (utilidade pública), deve considerar-se duvidoso que o instituto da venda forçada garanta a prossecução dos fins de utilidade pública urbanística, num nível idêntico ao da expropriação, nos termos do

n.º 4 do artigo 65.º da CRP;

- A dúvida resulta, em primeiro lugar, da circunstância de, ao passo que, no processo de expropriação, o bem é afectado a fins de utilidade pública, sendo reconhecido o direito de reversão quando essa afectação não ocorra, já na venda forçada, o bem não deflui para o património público; com efeito, esta venda forçada processa-se entre entidades privadas, não se logrando assegurar a reversão da propriedade para o anterior titular se os novos adquirentes não cumprirem a obrigação de reabilitação, prevendo a lei, para tal caso, nova venda forçada, o que cria um quadro desigualitário e diverso em relação ao regime da expropriação, seja quanto à garantia do interesse público seja quanto à salvaguarda dos direitos dos proprietários;

- A desigualdade existente entre a expropriação e a venda forçada decorre, em segundo lugar, do facto de, ao passo que bens objecto de expropriação que sejam incluídos no domínio privado da Administração apenas podem ser cedidos em propriedade plena a privados, por força de acordo directo ou concurso, mediante um exigente procedimento de escolha do co-contratante que salvaguarde o interesse público, o mesmo não se verificar relativamente a bens objecto de venda forçada em hasta pública onde a garantia do interesse público se encontra, comparativamente, diminuída;

- No que respeita ao segundo requisito, de cuja verificação depende a sustentabilidade da tese segundo a qual o instituto da venda forçada possuiria elementos de identidade com o instituto da expropriação, na qualidade de instrumento de política urbanística, cabendo, por analogia, na previsão do n.º 4 do artigo 65.º da Constituição, requisito esse relacionado com as garantias inerentes ao processo indemnizatório, argumenta-se que a norma impugnada não logra garantir, na definição do sentido da autorização legislativa, o imperativo da plenitude e da contemporaneidade da indemnização ou compensação do proprietário, por identidade de razão com o critério de justiça material que, de acordo com o Tribunal Constitucional (Ac. do TC n.º 174/95), deve pautar a indemnização atribuída em sede de expropriação por utilidade pública;

- Assim, a norma habilitante viola o disposto no n.º 2 do artigo 62.º conjugado com o artigo 13.º da Constituição ao mesmo tempo que viola o n.º 2 do artigo 165.º da Constituição conjugado com essas mesmas disposições.

B) Quanto à norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º - A norma sindicada intenta definir o sentido e a extensão da autorização legislativa concedida ao Governo no que respeita ao regime jurídico aplicável à denúncia ou suspensão do arrendamento para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos e, ainda, à actualização das rendas na sequência de obras com vista

à reabilitação.

- Ao determinar o sentido e extensão da autorização legislativa em termos tais que nela se prevê a possibilidade de exclusão do dever de o senhorio indemnizar ou realojar o arrendatário sempre que a demolição for necessária por força da degradação do prédio, incompatível com a sua reabilitação e geradora de risco para os respectivos ocupantes ou decorra de plano municipal do ordenamento do território, a norma sindicada exibe uma elevada densidade paramétrica, na medida em que condiciona significativamente a

discricionariedade do diploma autorizado;

- Com efeito, é a própria norma delegante a determinar: a) que os seus destinatários serão os arrendatários, não só porque se reporta ao efeito indemnizatório gerado por efeito da denúncia do contrato de arrendamento, mas também pelo facto de a expressão "indemnização ou realojamento" ser formulada em alternativa quanto à configuração das formas de compensação que pretende excluir, só podendo as mesmas respeitar a arrendatários; b) que a exclusão peremptória da indemnização assume carácter excepcional em relação à regra geral da compensação do arrendatário cujo contrato seja denunciado, radicando essa excepção em quatro pressupostos bem precisos:

degradação da mesma fracção ou edifício, incompatibilidade com a sua reabilitação, risco para os ocupantes e plano municipal de ordenamento do território que imponha a demolição; c) que no sentido e âmbito da autorização se encontram ausentes cláusulas relativas ao âmbito temporal de eficácia do diploma autorizado;

- São, ao todo, quatro os fundamentos de inconstitucionalidade invocados, a saber: a) violação do n.º 3 do artigo 18.º por a norma suprimir, sem justificação material plausível e sempre que se verifiquem os pressupostos nela previstos, o núcleo ou conteúdo essencial do próprio direito à indemnização, alargado aos arrendatários expropriados por força da conjugação do n.º 2 do artigo 62.º com o artigo 13.º da CRP, na medida em que esse direito indemnizatório consiste num direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias; b) violação de uma dimensão autónoma do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) ao discriminar negativamente os arrendatários em relação aos proprietários, no que respeita ao direito de ambos serem indemnizados nos termos do n.º 2 do artigo 62.º da CRP; c) violação do n.º 2 do artigo 18.º da CRP na parte em que impõe como requisito de uma lei restritiva a observância do princípio da proporcionalidade tanto na sua dimensão de necessidade quanto na de proporcionalidade em sentido estrito; d) violação do princípio da protecção da confiança, enunciado no artigo 2.º da CRP, ao permitir que as situações e posições jurídicas dos actuais arrendamentos possam ser afectadas por uma medida imprevisível com efeitos retrospectivos de conteúdo altamente desfavorável, frustrando as legítimas expectativas desses titulares em serem compensados pelos efeitos da expropriação;

- No que respeita ao primeiro fundamento invocado, começa por afirmar-se que o direito à indemnização do arrendatário em caso de expropriação do bem arrendado por utilidade pública está previsto em lei ordinária, nomeadamente nas normas dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º e do artigo 30.º do Código das Expropriações (as quais dão continuidade a regimes legais análogos sobre esta matéria);

- Decisivo é, contudo, saber se esse direito do arrendatário consagrado em lei ordinária tem, igualmente, arrimo constitucional como direito fundamental, pois só nesse caso faria sentido impugnar a constitucionalidade da norma que autoriza o Governo a derrogar o disposto no Código das Expropriações, tendo em vista a exclusão do direito do arrendatário expropriado a justa indemnização;

- Sobre essa matéria importa assinalar que o Tribunal Constitucional reconheceu, inequivocamente, a dimensão constitucional do direito do arrendatário a justa indemnização, considerando que o n.º 2 do artigo 62.º da CRP, conjugado com o princípio da igualdade enunciado no artigo 13.º da CRP, atribuiria a titularidade desse direito, não apenas aos proprietários expropriados, mas também a outros titulares de ónus ou direitos reais que recaiam sobre o bem expropriado, como será o caso a) dos titulares do direito ao arrendamento não habitacional, considerando o Tribunal Constitucional que o princípio da justa indemnização "sendo aplicável, desde logo, à expropriação do direito de propriedade, vale, também, seguramente, para a expropriação do direito ao arrendamento comercial e industrial ou destinado ao exercício de profissões liberais", tendo fundamentado esta extensão numa "igualdade"

entre os diversos titulares de posições jurídicas activas sobre o bem expropriado em face dos danos e perdas resultantes da ablação expropriativa (Ac. TC n.º 37/91); b) dos titulares do direito ao arrendamento rural (Ac. TC n.º 306/94); c) dos titulares do direito ao arrendamento urbano, tendo o Tribunal Constitucional julgado, com fundamento numa argumentação homóloga, a inconstitucionalidade de norma que configurara um limite indemnizatório inadequado e não conferira ao arrendatário do bem expropriado a faculdade de optar entre a percepção de indemnização e o direito a ser

realojado (Ac. TC n.º 381/99);

- Torna-se, assim, possível configurar o direito fundamental dos arrendatários de prédios ou fracções a uma justa indemnização sempre que o respectivo contrato de arrendamento seja denunciado em consequência de um acto de expropriação por

utilidade pública;

- A configuração desse direito faz-se com base na conjugação do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP) com a regra construída a partir do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) que alarga, aos arrendatários, o âmbito subjectivo de previsão do direito previsto no n.º 2 do artigo 62.º da CRP;

- Ora, o direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62.º da CRP reveste uma natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, devendo aplicar-se às restrições que lhe sejam determinadas os limites previstos no artigo 18.º da Constituição para as

leis restritivas desses mesmos direitos;

- Um elemento do direito de propriedade consagrado no n.º 2 do artigo 62.º é a garantia de o seu titular não ser dela arbitrariamente privado e de ser indemnizado em caso de desapropriação, pelo que, tendo o Tribunal Constitucional alargado a aplicação desse princípio da justa indemnização à expropriação do direito ao arrendamento (Ac.

TC n.º 37/91), este último direito tem também, por identidade de razão, natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo

18.º da CRP;

- Além de que, nos acórdãos referidos, o Tribunal Constitucional julgou a desconformidade de disposições legislativas que antecederam o Código das Expropriações em vigor, com o n.º 2 do artigo 62.º da Constituição, não pelo facto de essas disposições excluírem o direito à indemnização dos arrendatários, mas pela circunstância de o quantum indemnizatório ou o quid compensatório que as mesmas normas previam ser insuficiente ou fixado arbitrariamente;

- Por ser ainda mais restritiva na afectação negativa do direito à indemnização do que as disposições que foram julgadas inconstitucionais nos referidos acórdãos, na medida em que fere, em termos ablativos, o próprio núcleo ou conteúdo essencial desse direito, ao excluir a atribuição de qualquer tipo de indemnização ou compensação, sempre que se verifiquem, em abstracto, os quatro pressupostos específicos nela previstos, sem que seja possível descortinar, relativamente a cada um dos quatro pressupostos, um fundamento material razoável que justifique o critério de não indemnizar ou compensar, a norma sindicada viola o n.º 3 do artigo 18.º por força da conjugação do n.º 2 do

artigo 62.º com o artigo 13.º da CRP;

- Não são razoáveis os pressupostos, porquanto a demolição fundada em degradação da fracção ou edifício, incompatibilidade com a sua reabilitação, risco para os ocupantes e plano municipal de ordenamento do território, decorre de factores que, por regra, não são imputáveis à conduta do arrendatário;

- Mesmo admitindo que em situações de degradação e de risco do imóvel poderia ser justificável a exclusão do direito a indemnização, no caso de esses factores serem imputáveis ao arrendatário, verifica-se que a norma sindicada, por a estes se não cingir como único fundamento de expropriação não compensada, é sobreinclusiva, não deixando margem de discricionariedade ao diploma autorizado para proceder a distinções e, assim, acautelar situações atendíveis;

- O requerente entende que a norma viola ainda uma dimensão autónoma do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) ao discriminar negativamente os arrendatários em relação aos proprietários, no que respeita ao direito de ambos serem indemnizados nos

termos do n.º 2 do artigo 62.º da CRP;

- O requerente entende ainda que, por se estar perante um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhe, portanto, aplicável o artigo 18.º da CRP, ainda que o Tribunal não acolha o entendimento segundo o qual a norma sindicada viola o n.º 3 do artigo 18.º na parte em que proíbe que o legislador fira o conteúdo ou núcleo essencial de direitos, liberdades e garantias, a mesma, atentos os efeitos compressivos que decorreriam da sua natureza de lei-pressuposto de outras leis, viola o n.º 2 do artigo 18.º na parte em que impõe ao legislador o dever de limitar qualquer restrição ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses

constitucionalmente protegidos;

- A exclusão do direito à indemnização não assegura, de forma equilibrada, a concordância prática entre o direito a uma compensação devida em razão do expressivo sacrifício imposto ao arrendatário cujo arrendamento é denunciado e a salvaguarda de um interesse constitucionalmente protegido, qual seja o interesse público em expropriar, o qual é feito prevalecer em termos desnecessários e desmesurados sobre o primeiro;

- Tanto assim é que nenhum dos fundamentos constantes da norma sindicada e que parametrizam o interesse público em ditar a expropriação justifica materialmente a ablação da mesma indemnização ou do realojamento compensatório;

- O princípio da proporcionalidade enunciado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP é igualmente violado na dimensão de "justa medida" ou de proporcionalidade em sentido estrito, porquanto a exclusão do direito à indemnização se afigura excessiva, arbitrária e desmesurada para alcançar o interesse público pretendido, na medida em que deixa os arrendatários expropriados sem habitação e sem compensação financeira pelo despejo, não logrando, quer o fim da expropriação, quer os seus pressupostos, justificar

semelhante efeito;

- O requerente entende, por último, que, por não consagrar uma disposição transitória que salvaguarde os antigos arrendamentos e que restrinja a aplicação do diploma autorizado apenas aos arrendamentos celebrados depois da sua entrada em vigor ou aos edifícios e fracções que apenas após a sua entrada em vigor sejam qualificados como degradados, incompatíveis com a sua reabilitação, em risco para os ocupantes e desconformes com plano municipal de ordenamento de território, e, portanto, permitir que as situações e posições jurídicas dos actuais arrendamentos possam ser afectadas por uma medida imprevisível com efeitos retrospectivos de conteúdo desfavorável que retire aos seus titulares o direito a indemnização ou a realojamento em caso de expropriação fundada nos quatro pressupostos examinados, a norma sindicada ofende o princípio da protecção da confiança, subsumível ao princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP), pois frustra inadmissível e exorbitantemente as legítimas expectativas desses titulares em perceberem uma indemnização ou compensação que lhes é garantida pela legislação em vigor;

- Reúnem-se, assim, os pressupostos necessários à invocação da ofensa ao princípio da protecção da confiança (artigo 2.º da CRP), à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos TC n.os 287/90, 307/90 e 24/98), dado que a) os arrendatários são frustrados nas suas expectativas legítimas em serem indemnizados por força de denúncia do seu contrato de arrendamento decorrente de expropriação, já que esse direito resulta não apenas do Código das Expropriações em vigor, mas também de anterior legislação em matéria de expropriações, havendo fundadas expectativas na sua continuidade, na medida em que a protecção constitucional ao referido direito foi reconhecida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (Ac. TC n.º 381/99); b) a norma sindicada implica uma alteração inesperada e súbita do ordenamento, já que em termos razoáveis a mesma não poderia ser antecipada, tendo abalado o investimento de confiança dos arrendatários dos imóveis degradados, em risco, desconformes com imperativos de reabilitação ou com planos municipais de ordenamento do território, em serem ressarcidos em caso de expropriação; c) a eliminação pura e simples do direito indemnizatório ou de realojamento nas quatro situações constitui um sacrifício que, pelo seu carácter desrazoável, excessivo e desnecessário à luz do interesse público que preside à decisão expropriativa, revela ser "intolerável, arbitrário e demasiado opressivo" (Ac. do TC n.º 303/90) na derrogação das expectativas legítimas do titular do arrendamento quanto à percepção de uma justa compensação. O Presidente da República requer o pedido de fiscalização de constitucionalidade nos seguintes termos:

35.º

Atenta a fundamentação das dúvidas de constitucionalidade expostas no presente pedido, venho requerer ao Tribunal Constitucional que aprecie a constitucionalidade da norma constante do n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto 343/X, da

Assembleia da República:

a) Com fundamento na criação de uma nova forma de privação de propriedade privada fundada em utilidade pública urbanística que não é autorizada pela Constituição e que restringe um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias fora dos casos expressamente previstos na lei Fundamental, violando a norma constante do n.º 4 do artigo 65.º conjugada com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição;

b) Em alternativa ao pedido anterior, com fundamento em eventual violação da norma constante do n.º 2 do artigo 165.º da Constituição e, ainda, da norma do n.º 4 do artigo 65.º conjugada com o artigo 13.º da CRP na medida em que a norma sindicada definiu, de forma insuficiente, o sentido e extensão da autorização legislativa, pois não acautelou que o novo instituto de venda forçada por razões urbanísticas garantisse a prossecução do fim de utilidade pública e do carácter justo do processo indemnizatório em termos idênticos à expropriação por utilidade pública. 36.º Também por força da ordem de razões oportunamente exposta, venho, ainda, requerer a fiscalização da constitucionalidade da norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto, com fundamento em violação:

a) Da norma do n.º 3 do artigo 18.º da CRP, dado que suprime, sem justificação material plausível, o núcleo ou conteúdo essencial do próprio direito à indemnização alargado aos arrendatários expropriados por força da conjugação do n.º 2 do artigo 62.º com o artigo 13.º da CRP e com o artigo 2.º da CRP;

b) Em alternativa ao pedido formulado na alínea precedente, da norma constante do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, por ofensa ao princípio da proporcionalidade que deve vincular o conteúdo das leis restritivas de direitos análogos a direitos, liberdades e

garantias;

c) Do disposto no artigo 13.º da CRP (princípio da igualdade) ao discriminar negativamente os arrendatários em relação aos proprietários, no que respeita ao direito de ambos serem indemnizados nos termos do n.º 2 do artigo 62.º da CRP;

d) Do princípio da protecção da confiança, enunciado no artigo 2.º da CRP ao permitir que as situações e posições jurídicas dos actuais arrendatários possam ser afectadas por uma medida imprevisível com efeitos retrospectivos de conteúdo altamente desfavorável, frustrando as legítimas expectativas desses titulares em serem compensados pelos efeitos da expropriação. 2. O requerimento deu entrada neste Tribunal no dia 29 de Julho de 2009 e o pedido foi admitido na mesma data. 3.

Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República veio apresentar resposta na qual oferece o merecimento dos autos. 4. Apresentado e discutido o memorando a que se refere o n.º 2 do artigo 58.º da lei do Tribunal Constitucional, cumpre decidir de acordo com a

orientação que então se fixou.

II - Fundamentos

A) O contexto das questões 5. As questões de constitucionalidade que, por este meio, são colocadas ao Tribunal reportam-se, como decorre do relato que acabou de fazer-se, ao Decreto 343/X da Assembleia da República, enviado ao Presidente da

República para ser promulgado como lei.

O Decreto da Assembleia contém duas distintas autorizações legislativas endereçadas ao Governo, a serem cumpridas através da emissão de decretos-lei autorizados nos termos conjugados dos artigos 165.º (n.os 2 a 4) e 198.º, n.º 1, alínea b) da

Constituição.

Destina-se a primeira a autorizar a aprovação, pelo Governo, do "regime jurídico da reabilitação urbana em áreas de reabilitação urbana e dos edifícios nestas situados"

(artigo 1.º, alínea a) do Decreto); destina-se a segunda a autorizar que o Governo aprove "o regime de denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos e da actualização de rendas na sequência de obras com vista à reabilitação" (artigo 1.º, alínea b) do Decreto). Como o regime identificado nesta segunda autorização legislativa já foi objecto de regulação por parte do Decreto-Lei 157/2006, de 8 de Agosto, do seu cumprimento decorrerá - como aliás se explicita no proémio do Decreto - a alteração

do referido diploma governamental.

Sustenta o requerente que são inconstitucionais duas "normas" constantes do artigo 2.º do Decreto: a ínsita no seu n.º 1, alínea j), n.º i) - que é relativa à primeira autorização concedida, tendente à aprovação do "regime jurídico da reabilitação urbana" - e a ínsita no seu n.º 2, alínea c), relativa à autorização para aprovação do "regime de denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento". Tanto uma como outra integram a definição, levada a cabo pelo Decreto, do sentido e extensão das autorizações concedidas. Por outro lado, tanto em relação a uma como a outra invoca o requerente a existência de vícios de inconstitucionalidade substancial ou material.

Assim sendo, importa antes do mais saber se e em que medida poderá o Tribunal pronunciar-se, em sede de controlo preventivo de constitucionalidade, sobre "normas"

constantes de um decreto da Assembleia que pretende ser habilitante de futura actuação

legislativa do Governo.

A questão merece ser colocada, a título de questão prévia, se se tiver especialmente em conta a incidência do pedido e a natureza dos seus fundamentos: podem as "normas"

que definem o sentido de uma autorização legislativa (ainda não promulgada) ser tidas, por razões materiais ou substanciais, como contrárias à Constituição? B) Problema prévio 6. As autorizações legislativas - e, desde logo, as concedidas pela Assembleia ao Governo, nos termos dos artigos 165.º e 198.º da Constituição - não contêm em princípio disciplina que possa incidir directa e imediatamente na vida das pessoas. Como habilitam o legislador governamental a emitir normas em matérias que, não fora a habilitação, permaneceriam na reserva de competência do Parlamento, fica o cumprimento da disciplina que nelas se contém - e, logo, a sua plena eficácia externa, ou a sua capacidade para conformar definitivamente domínios materiais de regulação - dependente da emissão de decreto-lei autorizado, emissão essa que pode não ocorrer.

Da habilitação parlamentar decorre, para o executivo, um poder (mas não um dever) de regulação quanto aos domínios para que foi habilitado, poder esse que, por definição, não é de exercício necessário. Assim é que a autorização caduca, caso o órgão habilitado se mantenha inerte durante o período da sua vigência (artigo 165.º, n.º 2), ou caso, entretanto, desapareçam habilitante e habilitado (idem, n.º 4).

Tal não impede, porém, que se considere que as autorizações legislativas contêm normas, cognoscíveis pelo Tribunal nos termos do artigo 278.º da Constituição. A doutrina, já suficientemente justificada nos Acórdãos n.os 107/88 (Diário da República, 1.ª série, n.º 141, pp. 2516) e 64/91 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), compreende-se antes do mais pela obsolescência da teoria dualista do conceito de "norma", que pretenderia que não teriam efeitos normativos os chamados actos internos do Estado, nos quais se incluiriam aqueles que se "limitassem" a alterar as posições relativas dos órgãos estaduais, operando sobre a ordenação das suas competências.

Uma tal concepção, que confinava o reconhecimento da força normativa de um acto estadual à sua - assim entendida - "eficácia externa", tinha como pressuposto uma representação do Estado categorialmente oposta à da sociedade, segundo a qual seria naturalmente indiferente a esta última tudo o que se passasse, "apenas", no interior da organização estadual. Como não é seguramente essa a representação que a CRP acolhe, nada impede que se reconheça que as normas sobre a produção de normas, ainda no sentido estrito de normas de competência (como são desde logo aquelas que, emanadas pelo Parlamento, autorizam o Governo a legislar sobre as matérias enunciadas no artigo 165.º), se incluem sem dificuldade no conceito de "norma" que, nos termos da Constituição, é objecto do controlo de constitucionalidade, seja ele preventivo ou

sucessivo.

As normas contidas nas autorizações legislativas não são, no entanto, apenas normas de competência. Não se limitam a habilitar o Governo a legislar sobre domínios da vida social que, sem a autorização, permaneceriam na esfera reservada à normação parlamentar. Se o fossem, naturalmente que o controlo da sua constitucionalidade, a efectuar pelo Tribunal, se teria que confinar a razões de índole formal-competencial, visto que os únicos parâmetros constitucionais aplicáveis (porque os únicos existentes) seriam tão-somente os respeitantes ao recorte do âmbito externo da habilitação concedida. Não é todavia assim que as coisas se passam face ao disposto no n.º 2 do artigo 165.º da Constituição. Decorre com efeito do preceito constitucional que, para além do recorte externo do âmbito da competência concedida pela autorização ao Governo - ou seja, para além da definição do seu objecto, extensão e duração -, a norma habilitante deve ainda fixar o sentido a seguir pela legislação eventualmente subsequente do Governo. Fixar o sentido do futuro decreto-lei autorizado significa pré-determinar ou condicionar, através da identificação de princípios, orientações ou directivas que não poderão deixar de ser cumpridos, o conteúdo essencial das posteriores escolhas legislativas governamentais. Assim, as autorizações não contêm só normas de competência. Contêm ainda normas materiais regulativas ou orientadoras da futura acção governativa, normas materiais essas que poderão, desde logo e pelo seu teor, "infringir o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados" (artigo 277.º, n.º 1 da CRP). Ao Tribunal Constitucional cabe, por isso, e naturalmente, sindicar os eventuais vícios de inconstitucionalidade que, por razões de índole substancial ou material, possam vir a afectar estas normas orientadoras da futura actuação governativa, tudo justificando - como se deixou claro no Acórdão 107/88 - que o controlo da constitucionalidade se faça antes da promulgação do decreto da

Assembleia como lei de autorização.

7 - Resta saber se este juízo - feito pelo Tribunal quanto às normas autorizadoras que fixam o sentido da posterior, e eventual, legislação governamental - não terá ele próprio limites, atentas as circunstâncias em que se desenvolve e que condicionam a sua possibilidade. Em que casos poderá vir a concluir-se, sem margem para dúvida, que serão desde logo inconstitucionais as normas contidas em autorizações legislativas que pré-condicionam as futuras escolhas legislativas governamentais, de tal modo que se considere que o vício de inconstitucionalidade radica na própria autorização, não podendo deixar de transmitir-se, consequencialmente, ao decreto-lei autorizado? Tendo em conta que este último ainda não existe, pois que a autorização ainda não foi cumprida -, não podendo por isso o Tribunal formular um juízo em que se confrontem, tanto as orientações materiais que foram fixadas pelo habilitante parlamentar à actuação do Governo, quanto o modo do seu desenvolvimento ou concretização por parte do decreto-lei autorizado -, terá que concluir-se que só será possível a obtenção de um juízo de inconstitucionalidade, autónoma e exclusivamente reportado às normas materiais de indirizzo contidas na autorização, em qualquer uma das seguintes situações.

Primeira, em caso de insuficiência ou deficit do sentido autorizativo que foi, ou não, fixado. Pode, com efeito, suceder que a autorização não cumpra, nesta parte, a imposição decorrente do n.º 2 do artigo 165.º da CRP, por não conter ela própria, ou com o grau de densidade que é exigível, as normas materiais regulativas da futura

actuação governativa.

Segunda, em caso de determinação indevida do sentido autorizativo que foi fixado.

Pode também acontecer que as normas materiais reguladoras da futura acção do Governo tenham uma densidade tal que se torne evidente, antes mesmo ainda da sua futura concretização em decreto autorizado, que elas pré-determinam a actuação governamental de um modo necessariamente inconstitucional. Neste caso, note-se, lesada será, directa e imediatamente, a norma constitucional pertinente ratione materiae, e não a norma, contida no n.º 2 do artigo 165.º, que modela as condições de concessão

de uma válida habilitação legislativa.

8 - O Tribunal já disse (nomeadamente no Acórdão 358/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) em que é que consiste a primeira das situações enunciadas, ou em que condições poderá concluir-se que são inconstitucionais as normas contidas em autorizações legislativas por, em contradição com o disposto no n.º 2 do artigo 165.º da CRP, serem elas deficitárias ou insuficientes quanto à fixação do sentido a seguir pelo eventual, e futuro, decreto-lei autorizado.

Para além da possibilidade, radical, de ausência absoluta, na norma habilitante, de qualquer indirizzo material que oriente a actuação governamental, o sentido de uma autorização legislativa será insuficiente sempre que as orientações ou directivas endereçadas ao Governo não atingirem, pelo seu conteúdo, um grau exigível de densidade ou determinação. Para estes efeitos, considerou o Tribunal que a questão de saber quando - ou a partir de que "momento" - teria uma autorização legislativa atingido o grau exigível de determinabilidade de sentido se deveria resolver tendo em conta três critérios ou três perspectivas cumulativas. Em primeiro lugar, e da perspectiva do habilitante, deveria a autorização ser suficientemente clara de modo a que dela se depreendesse quais teriam sido as decisões básicas, tomadas pelo Parlamento, quanto à estruturação essencial da disciplina jurídica que viria a ser, definitivamente, conformada pelo Governo. Em segundo lugar, e da perspectiva do habilitado, deveria a autorização ser suficientemente clara de modo a que através dela se pudesse vir a distinguir entre as matérias sobre as quais impenderia, quanto ao Governo, uma vinculação (não lhe sendo deixado em relação a elas qualquer espaço de liberdade de conformação legislativa), e as matérias em que o legislador governamental deteria, ainda, alguma margem de discricionariedade conformadora. Em terceiro lugar, e na perspectiva do cidadão, deveria a autorização legislativa ser suficientemente clara de modo a que a partir dela se pudesse vir a prever, mediante o programa normativo a preencher pelo decreto-lei autorizado, qual o sistema básico de direitos e obrigações que decorreria da nova disciplina jurídica, finalizada por acção governamental.

Todos estes critérios - disse-se ainda no referido Acórdão - foram inspirados pela jurisprudência constitucional alemã quanto à interpretação do artigo 80.º da lei Fundamental de Bona, cujo teor, influenciando a primeira revisão da CRP, terá estado na origem da actual redacção do n.º 2 do artigo 165.º Com efeito, na sua primeira versão, a Constituição portuguesa não continha (ao contrário de outras, como a Constituição espanhola ou italiana) qualquer menção à necessidade de as delegações legislativas parlamentares fixarem, antecipadamente, o sentido a seguir pelo órgão delegado quanto à disciplina jurídica das matérias objecto da delegação. Posto que a menção foi introduzida pela primeira revisão constitucional tendo em conta, especialmente, o regime previsto no artigo 80.º da Constituição alemã, foi naturalmente que o Tribunal se inspirou na jurisprudência que, interpretando este último artigo, acabou por concluir quando - ou com o auxílio de que critérios - se poderia entender que uma autorização legislativa teria atingido o grau de determinabilidade, ou de suficiência, constitucionalmente exigível. (veja-se, quanto a este ponto, acórdão citado,

§ 7).

Não se contesta agora a bondade desta inspiração. No entanto, deve dizer-se que, sendo diferentes os regimes constitucionais alemão e português quanto à distribuição de competências legislativas entre Parlamento e Governo, o modo de aplicação, a casos concretos, dos critérios atrás definidos não poderá deixar de ter em conta as especialidades da ordem constitucional portuguesa. Entre nós, o regime das autorizações legislativas deve ser lido no contexto de uma ordem constitucional que, atribuindo ao Governo, diferentemente do que sucede na Alemanha, poder legislativo próprio (artigo 198.º, n.º 1, alínea a), concebe as "delegações" de competências parlamentares que são endereçadas a este último também como partilhas de responsabilidades, justificadas em função da especificidade de matérias a regular e fundadas numa especial relação de confiança entre habilitante e habilitado. Que essa "relação de confiança" marca, entre nós, o regime das autorizações legislativas prova-o o facto, já atrás referido, de as mesmas caducarem com a dissolução do Parlamento, com o termo da legislatura ou com a demissão do Governo - ou seja, com o desaparecimento de um certo e concreto habilitante e com o desaparecimento de um certo e concreto habilitado. Assim sendo, os critérios atrás definidos, e pensados para uma ordem constitucional diversa, nestes termos, da nossa, terão que ser utilizados tendo em conta a especial configuração que assume, face à CRP, a ordem geral de distribuição de competências entre legislador parlamentar e legislador governamental. 9. Resta determinar em que condições poderá concluir-se que é inconstitucional uma norma contida em autorização legislativa por conter ela, não um deficit, mas uma determinação indevida do sentido da delegação. Tal ocorrerá sempre que se puder demonstrar que a disciplina jurídica básica a seguir pelo futuro decreto-lei autorizado, e fixada pelo acto de autorização, contém princípios, directivas ou orientações materiais que se mostram já, e por si mesmos - ou seja, independentemente da concretização futura e eventual que deles se vier a fazer -, directamente lesivos de regras ou princípios constitucionais autónomos, e autónomos face às condições procedimentais que determinam a validade do acto de habilitação.

A demonstração requer vários testes, todos eles interligados. Como a autorização não detém, por si só, uma eficácia normativa plena - estando tal eficácia dependente de emissão, incerta, do decreto-lei autorizado -, é necessário que se prove que, não obstante tal facto, a inconstitucionalidade radica logo na própria norma autorizativa, comunicando-se consequencialmente às normas que vierem a constar do decreto-lei autorizado. Tal só sucederá nos casos em que o sentido da autorização detiver, pelo seu conteúdo, um tal grau de densidade regulativa que dele se exclua a possibilidade de uma eventual normação governamental que seja conforme à Constituição. Por outras palavras, tal ocorrerá nos casos em que os princípios, directivas ou orientações endereçadas ao Governo pelas normas da autorização ostentarem uma eficácia normativa plena quanto à produção da própria inconstitucionalidade, por não poderem deixar de implicar normação ulterior que, a existir, será necessariamente - e por causa desses princípios - ela também inconstitucional.

E não se diga que sempre a apreciação da inconstitucionalidade do decreto-autorizado poderia não apenas incidir sobre vícios próprios mas também ter por objecto vícios que radicassem, desde logo, na norma habilitante. Sendo certo que tal possibilidade existe - visto que não estaria vedado ao Tribunal, ao apreciar a norma autorizada, conhecer de todos os vícios de que esta padecesse, incluindo aqueles radicados na própria norma habilitante -, seria, em todo o caso, um non sequitur daí extrair a impossibilidade de apreciação autónoma da inconstitucionalidade desta última. A análise que se segue terá em conta estes critérios, ou testes, relativos à possibilidade de um juízo de inconstitucionalidade que incida sobre as normas constantes de autorizações legislativas que fixem o sentido a seguir pela legislação governamental autorizada.

C) Da norma constante do n.º i), alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto da Assembleia 10. Sustenta antes do mais o requerente que é inconstitucional a norma constante do n.º i), alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto da Assembleia.

Sob a epígrafe sentido e extensão, dispõe do seguinte modo o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto: 1. A autorização legislativa referida na alínea a) do artigo anterior quanto ao regime jurídico da reabilitação urbana e dos edifícios nestas situados, tem o seguinte

sentido e extensão:

[...]

j) Estatuir instrumentos específicos de política urbanística, designadamente, expropriação, venda ou arrendamento forçado, e constituição de servidões, nos casos em que os proprietários não cumpram o dever de reabilitação dos seus edifícios ou

fracções e, em concreto:

i) Estabelecer um regime de venda forçada ou de expropriação de edifício ou fracção, se o proprietário violar a obrigação de reabilitar ou alegar que não pode ou não quer realizar as obras e trabalhos necessários, devendo o edifício ou fracção ser avaliado nos termos previstos no Código das Expropriações e, tratando-se de venda forçada, vendido em hasta pública a quem oferecer melhor preço, garantindo-se, no mínimo, o valor de uma justa indemnização, e se dispuser a cumprir a obrigação de reabilitação no prazo inicialmente estabelecido para o efeito, contado da data da arrematação, beneficiando o proprietário de todas as garantias previstas no Código das Expropriações, com as devidas adaptações. Decorre deste texto o seguinte. A primeira autorização legislativa contida no Decreto da Assembleia, e relativa à aprovação governamental do regime jurídico da reabilitação urbana (proémio do n.º 1), dispõe, quanto ao seu sentido, ou seja, quanto às regras básicas a seguir, futuramente, pelo

legislador governamental, que:

(I) Haverá instrumentos específicos de política urbanística;

(II) Entre eles contar-se-ão, designadamente, a expropriação, a constituição de servidões e a venda ou arrendamento forçados;

(III) Tais instrumentos serão aplicáveis caso os proprietários não cumpram o dever de reabilitação dos seus edifícios ou fracções;

(IV) Mais especificamente, caso os proprietários violem a obrigação de reabilitar ou aleguem que não podem ou querem realizar as obras ou trabalhos necessários, estará o legislador governamental habilitado a estabelecer um regime de venda forçada ou de

expropriação do edifício ou fracção;

(V) Caso em que o referido edifício ou fracção será avaliado nos termos previstos no

Código das Expropriações e,

(VI) Tratando-se de venda forçada, vendido em hasta pública a quem oferecer melhor preço e se dispuser a cumprir a obrigação de reabilitação no prazo inicialmente estabelecido para o efeito, contado da data da arrematação;

(VII) Beneficiando o proprietário de todas as garantias previstas no Código das Expropriações, com as devidas adaptações, garantindo-se, no mínimo, o valor de uma justa indemnização. Face a este regime, assim enunciado, é desde já possível caracterizar os traços essenciais do instituto da venda forçada que, a par do instituto da expropriação, é aqui desenhado como instrumento possível de política urbanística.

Tanto a expropriação quanto a venda forçada são agora previstas como meios de reacção do ordenamento jurídico ao incumprimento, por parte dos proprietários, dos deveres urbanísticos que sobre eles impendem. Na verdade, o legislador governamental está habilitado a estabelecer um regime de venda forçada ou de expropriação de edifício ou fracção caso o seu proprietário incumpra as obrigações de realização de obras ou de reabilitação. É de assinalar que, sendo este o pressuposto do recurso, pelo Estado, a um ou a outro meio, o particular que se veja nestes casos sujeito a expropriação, ou compelido a venda forçada, tem, antes da imposição da medida coactiva referente ao bem de que é titular, a seguinte opção: ou suportar o sacrifício de realizar as obras necessárias para efeitos de reabilitação urbanística, com o investimento que tal implica, ou suportar o sacrifício de perda da titularidade do bem, com a correspondente compensação. De todo o modo, caso o proprietário escolha a primeira opção, o "sacrifício" de realização de obras não será, prima facie, contrário ao seu próprio interesse, dado que redundará em valorização do bem de que é titular.

Todos estes traços serão, face ao modelo atrás desenhado, comuns tanto à venda forçada quanto à expropriação, enquanto instrumentos de política urbanística. Contudo - e é este o ponto que interessa salientar -, diferentemente do que sucede com a expropriação, o bem objecto de venda forçada permanecerá disponível no comércio jurídico, a ele podendo aceder todo e qualquer particular que se disponha a cumprir os deveres pertinentes, não sendo, portanto, a sua titularidade transferida para o domínio do Estado. Daqui decorre que, na venda forçada, a "compensação" do sacrifício do proprietário advirá desde logo do preço obtido na venda em hasta pública, a que acrescerá, sendo caso disso - ou seja, caso o preço não corresponda ao valor do bem, avaliado nos termos do Código das Expropriações -, indemnização. 11. Alega o requerente que será inconstitucional este regime, na parte em que prevê a possibilidade de adopção, por parte do legislador governamental, do instituto da venda forçada enquanto instrumento de política urbanística.

A alegação sustenta-se num argumento essencial. O argumento é o que segue:

A Constituição não se refere, expressamente, à hipótese da existência, no ordenamento infraconstitucional, do instituto da venda forçada. No entanto, ele só poderia vir a ser adoptado pelo legislador ordinário (como instrumento de política urbanística) caso houvesse expressa autorização constitucional, e isto por duas razões fundamentais.

Primeira, porque o n.º 4 do artigo 65.º da Constituição só prevê, enquanto "instrumento de privação da propriedade apto à satisfação de fins de utilidade pública urbanística", o instituto da expropriação. A previsão é exauriente porque fixa, a propósito desta matéria e nesta sede, um numerus clausus ou um princípio de tipicidade. Na previsão esgotante da norma constitucional não está expressamente contemplado o instituto da venda forçada: a previsão resume-se ao, e esgota-se no, instituto da expropriação. Segunda, porque o instituto da venda forçada é uma restrição ao direito de propriedade (artigo 62.º da Constituição), na sua dimensão de direito análogo aos direitos, liberdades e garantias. Assim, a admissibilidade da restrição dependeria sempre de expressa menção constitucional, nos termos conjuntos do n.º 2 do artigo 18.º e do artigo 17.º da CRP.

Como essa expressa menção - à venda forçada - não consta do texto constitucional, a restrição será, face a ele, inadmissível.

Analisemos, então, estes argumentos. Antes do mais, deve dizer-se que, de acordo com o entendimento perfilhado pelo requerente, ocorrerá aqui - e para usar terminologia adoptada antes, nos pontos 7 e 9 da fundamentação - inconstitucionalidade pelo "excesso", ou pela determinação indevida, do sentido da autorização legislativa. Como se sustenta que a norma em causa, constante do decreto habilitante, ao prever a possibilidade de adopção do instituto da venda forçada como instrumento de política urbanística, é inconstitucional por violação directa dos preceitos fundamentais atrás referidos - e é-o desde logo, ou seja, independentemente do modo como o decreto-lei autorizado vier (se vier) a concretizar o sentido da habilitação que lhe foi concedida -, subjacente à argumentação apresentada está a afirmação segundo a qual o regime constante do artigo 2.º do Decreto detém uma densidade de regulação tal que lhe deve ser associada a capacidade para produzir, directa e imediatamente, efeitos normativos

inconstitucionais.

No entanto, certo é que o mesmo regime, com os traços essenciais que atrás lhe assinalámos, deixa ao legislador governamental espaços livres de conformação futura.

Não se sabe, por exemplo, em que tipos ou categorias de intervenção urbanística poderá vir a ser adoptado o instituto da venda forçada; se a sua previsão terá ou não natureza subsidiária; se o processo de venda em hasta pública será, ou não, objecto de regulação especial; quais os incentivos e apoios financeiros que serão, concretamente, postos à disposição dos proprietários que devam proceder a obras de reabilitação.

É, pois, no contexto de um regime não fechado de previsão do recurso ao instituto da venda forçada como instrumento de política urbanística que se convoca a pronúncia do Tribunal. E a convocação é feita nos seguintes termos. Diz-se que tal previsão pré-condiciona, de modo inconstitucional, todas as escolhas futuras do legislador governamental porque ela será só por si, e "em abstracto" - isto é, sem qualquer confronto com o regime jurídico final que resultará do cumprimento da autorização legislativa - lesiva do disposto, quer no n.º 4 do artigo 65.º da CRP, quer no n.º 1 do seu artigo 62.º, este último lido em conjugação com os artigos 18.º, n.º 2, primeira frase,

e 17.º

Não parece, porém, que assim seja. 12. Desde logo, não parece que a disposição contida no n.º 4 do artigo 65.º da Constituição vise instituir um numerus clausus, ou um princípio de tipicidade, quanto à adopção das medidas necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística, só admitindo por isso, e quanto a essas medidas, o recurso pelo legislador ordinário ao instituto da expropriação.

O preceito constitucional não pode ser lido fora do contexto em que se insere. E próprio desse contexto é todo o domínio relativo à habitação e urbanismo, domínio esse onde se articulam, enquanto expressão do cumprimento de tarefas fundamentais do Estado (artigo 9.º), políticas públicas tendentes a assegurar o planeamento e a ordenação do território; a defesa do ambiente e da qualidade de vida; a preservação do património urbano, enquanto parte do património cultural português. Sobretudo, ao associar a política da habitação às políticas públicas de governo do território, o artigo 65.º deixa bem claro que estas últimas fazem parte das prestações comunitárias que são devidas para que se possa garantir, a cada um, o "direito a uma habitação adequada".

Intenção inicial do seu n.º 4 é chamar às responsabilidades deste governo tanto o Estado, quanto as regiões autónomas, quanto as autarquias locais: todos estes entes agirão, designadamente, através dos meios aí previstos. Longe, portanto, de um qualquer princípio de tipicidade ou de numerus clausus estará assim a estrutura de uma norma constitucional como esta, que, ao invés de "fechar", ou de prever de forma exauriente e esgotante meios de actuação dos poderes públicos, visa pelo contrário enquadrar políticas prestativas complexas, e, por definição, abertas. Não decorre assim do texto do n.º 4 do artigo 65.º que o instituto da expropriação seja o único instrumento que, para fins de satisfação de utilidade pública urbanística, a Constituição autorize.

Tal como não decorre do seu artigo 62.º, e do direito nele "garantido", que a venda forçada, por não estar expressamente prevista na Constituição, seja, só por isso, um meio de política urbanística que o legislador ordinário estará, em todo o caso, proibido

de utilizar.

É certo que o Tribunal tem dito, em jurisprudência constante (e vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.os 44/99; 329/99; 205/2000; 263/2000; 425/2000; 187/2001;

57/2001; 391/2002; 139/2004; 159/2007, todos eles disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), que sendo afinal a "propriedade" um pressuposto da autonomia das pessoas, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos "Direitos e deveres económicos, sociais e culturais", alguma dimensão terá ele que permita a sua inclusão, pelo menos parcial, nos clássicos direitos de defesa, ou, para usar a terminologia da CRP, em alguma da sua dimensão será ele análogo aos

chamados direitos, liberdades e garantias.

Que assim é demonstra-o, afinal, a própria História do constitucionalismo, em que a defesa da propriedade ocupou sempre um lugar central: no plano individual, contra as investidas arbitrárias dos poderes públicos no património de cada um; no plano colectivo, quanto à própria possibilidade da existência de uma sociedade civil diferenciada do Estado, e assente autonomamente na apropriação privada de uma ampla gama de bens que permita o estabelecimento de relações económicas à margem

do poder político.

Resta saber qual a dimensão da garantia constitucional da propriedade que acolherá assim um radical subjectivo, que, pela sua estrutura, será análogo a um direito, liberdade e garantia. Ora, e quanto a esta matéria, decorrem da jurisprudência do Tribunal alguns pontos firmes, que poderão ser sintetizados como seguem. O primeiro ponto firme é o da não identificação entre o conceito civilístico de propriedade e o correspondente conceito constitucional: a garantia constitucional da propriedade protege - no sentido que a seguir se identificará - os direitos patrimoniais privados e não apenas os direitos reais tutelados pela lei civil, ou o direito real máximo. O segundo ponto firme é o da dupla natureza da garantia reconhecida no artigo 62.º, que contém na sua estrutura tanto uma dimensão institucional-objectiva quanto uma dimensão de direito subjectivo. O terceiro ponto firme dirá respeito ao âmbito desta última dimensão, de radical subjectivo, que irá incluída na estrutura da norma jusfundamental. A esta dimensão pertence, precisamente como direito "clássico" de defesa, o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação, procedimento esse especialmente assegurado no n.º 2 do artigo 62.º Para além disso - e como se disse no Acórdão 187/2001, § 14 - "a outras dimensões do direito de propriedade, essenciais à realização do Homem como pessoa [...], poderá também, eventualmente, ser reconhecida natureza análoga à dos

direitos, liberdades e garantias".

Análise mais demorada exigirá agora a natureza, atrás referida, da garantia constitucional da propriedade enquanto garantia de instituto, objectivamente considerada.

Na verdade, a "garantia" que vai reconhecida no n.º 1 do artigo 62.º tem uma importante dimensão institucional e objectiva, que se traduz, antes do mais, em injunções dirigidas ao legislador ordinário. Por um lado, e negativamente, estará este proibido de aniquilar ou afectar o núcleo essencial do instituto infraconstitucional da "propriedade"

(nos termos amplos atrás definidos). Por outro lado, e positivamente, estará o mesmo legislador obrigado a conformar o instituto, não de um modo qualquer, mas tendo em conta a necessidade de o harmonizar com os princípios decorrentes do sistema constitucional no seu conjunto. É justamente isso que decorre da parte final do n.º 1 do artigo 62.º, em que se diz que "a todos é garantido o direito à propriedade privada [...]

nos termos da Constituição."

Assim, e apesar de a redacção literal do preceito constitucional não conter, como é frequente em direito comparado, uma referência expressa às funções que a lei ordinária desempenha enquanto instrumento de modelação do conteúdo e limites da "propriedade", em ordem a assegurar a conformação do seu exercício com outros bens e valores constitucionalmente protegidos, a verdade é que essa remissão para a lei se deve considerar implícita na "ordem de regulação" que é endereçada ao legislador na parte final do n.º 1 do artigo 62.º, e que o vincula a definir a ordem da propriedade nos termos da Constituição. Tal vinculação não será, portanto, substancialmente diversa da contida, por exemplo, no artigo 33.º da Constituição espanhola ("É reconhecido o direito à propriedade privada [...]. A função social desse direito limita o seu conteúdo, em conformidade com as leis."); no artigo 42.º da Constituição italiana ("A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina o seu modo de aquisição, gozo e limites com o fim de assegurar a [sua] função social [...]"; no artigo 14.º da lei Fundamental de Bona ("A propriedade e o direito à herança são garantidos. O seu conteúdo e limites são estabelecidos pela lei [...]. O seu uso deve servir ao mesmo

tempo os bens colectivos".

Embora a Constituição lhe não faça uma referência textual, existirá portanto, e também entre nós, uma cláusula legal da conformação social da propriedade, a que aliás terá aludido desde sempre a jurisprudência constitucional, ao dizer que "[e]stá tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi - ou na fomulação impressiva do Código Civil francês [...] enquanto direito de usar e dispor das coisas de la manière la plus absolue [...]. Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais" (referido Ac. n.º 187/2001, § 14, citando anterior jurisprudência).

As obrigações, legalmente impostas aos proprietários de edifícios ou fracções, de realização de obras de reabilitação urbanística não são mais do que o resultado da necessária compatibilização - a efectuar pelo legislador ordinário - entre o direito de propriedade e outras exigências ou valores constitucionais. Já atrás identificámos alguns desses valores, decorrentes aliás das tarefas fundamentais do Estado definidas no artigo 9.º da CRP: a protecção e valorização do património urbano, enquanto parte do património cultural português; a promoção da qualidade de vida, através da efectivação dos direitos ambientais e da modernização das estruturas sociais; a promoção e desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional. Assim sendo, e ao conceder ao Governo a habilitação necessária para que sejam determinados "os direitos e obrigações de proprietário e de titulares de outros direitos, ónus ou encargos relativamente aos edifícios a reabilitar, consagrando o dever de reabilitação como um dever de todos os proprietários de edifícios ou fracções", o artigo 2.º, n.º 1 do Decreto da Assembleia está ainda a cumprir as funções próprias da conformação social da propriedade, que cabem, especialmente, ao legislador.

Questão diversa é no entanto a de saber se o instituto da venda forçada - previsto, como atrás se salientou, como consequência do incumprimento dos deveres de reabilitação urbanística - compartilha ainda desta natureza meramente conformadora do conteúdo da propriedade, ou se será, em relação a ela, algo de diferente, operando (mais do que uma conformação), uma verdadeira restrição de posições jusfundamentais dos proprietários. Ora, quanto a este ponto, será difícil sustentar-se não estarmos aqui

perante verdadeiras restrições.

Na verdade, ao prever a possibilidade de se vir a impor, aos proprietários inadimplentes, a venda em hasta pública de edifício ou fracção, o n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto da Assembleia está também a autorizar que o direito fundamental que aqueles proprietários detêm - o direito à não privação da propriedade, assegurado pelo artigo 62.º da CRP - venha a ser restringido. Para todos os efeitos, o instituto da venda forçada implica a imposição de transmissão a outrem do bem de que se é titular, e, por isso mesmo, naturalmente, a sua perda.

Nessa medida, e porque a posição jusfundamental que assim é afectada detém estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias, será indiscutivelmente aplicável a qualquer acto legislativo que a restrinja o regime próprio dos limites das restrições, definido no

artigo 18.º da Constituição.

Relevaria no entanto de uma concepção excessivamente estreita entender que, por a Constituição se não referir, textualmente, ao instituto da venda forçada, o limite enunciado em primeiro lugar no n.º 2 do artigo 18.º - a necessidade de autorização constitucional expressa para restringir - teria sido, no caso, e desde logo, incumprido, assim se condenando, e sem ulterior indagação, a escolha do legislador ordinário. Para além da questão de saber qual o sentido que, em geral, deva hoje ser conferido à primeira frase do n.º 2 do artigo 18.º - e, quanto a este ponto, veja-se Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003 - parece certo, antes do mais, que autorização constitucional para restringir se não identifica com necessidade de referência textual explícita a um certo e determinado instituto a adoptar pelo legislador ordinário, referência essa que teria que constar do articulado da CRP. Como nenhuma constituição é apenas um texto, a autorização que a Constituição portuguesa confere para que um certo e determinado direito venha a ser, por lei, restringido, não pode ser entendida assim, nesses apertados termos, como uma estrita exigência de textualidade.

Ora, no caso, o que é verdade é que a Constituição autoriza que o direito de cada um à não privação da propriedade seja restringido, desde que a restrição se justifique por razões de interesse público, se efectue por intermédio do procedimento devido em Direito e inclua, para o afectado, a devida compensação. O que confere inteligibilidade e sentido a esta autorização, assim recortada, não é apenas o facto de a ela se referir textualmente a Constituição, no n.º 2 do artigo 62.º Conferem-lhe também inteligibilidade e sentido as próprias razões materiais que, na ordem constitucional, sustentam a sua existência. E essas razões, já o vimos, são sobretudo aquelas que se prendem com a necessária harmonia e equilíbrio, a estabelecer por lei, entre os interesses dos proprietários e outros valores e interesses constitucionalmente protegidos.

Sendo precisamente essas as razões substanciais que justificam ainda a restrição prevista no n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto 343/X - e não decorrendo do regime nela contido que se habilite o Governo a instituir um "meio"

ablatório da propriedade que não prossiga o interesse público; que se não realize no quadro de um procedimento devido em Direito; que não seja acompanhada da devida compensação -, nenhumas razões há para que se entenda que a escolha do legislador ordinário merece censura constitucional, apenas pelo facto de a menção à venda forçada não constar, textualmente, do articulado da CRP.

A tudo isto acresce o que já se disse no Acórdão 491/2002 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) "[o] Tribunal Constitucional tem [...] afastado a ideia de que os únicos actos «ablativos» do direito de propriedade (os quais configuram a restrição máxima que esse direito pode sofrer) consentidos pela Constituição sejam os previstos no artigo 62.º, n.º 2, desta última. Pode haver outros, inclusive no interesse de privados: ponto é que encontrem cobertura ou justificação constitucional." 13. Quanto a esta norma, contida no n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto, apresenta ainda o requerente um argumento "alternativo" a sustentar a tese da inconstitucionalidade. Assenta basicamente tal argumento no seguinte raciocínio.

A admitir que o instituto da venda forçada pudesse apresentar traços de identidade com o instituto da expropriação, tais traços de identidade não são de todo o modo garantidos pelo sentido da autorização legislativa. Com efeito, a autorização não assegura, nem que os fins de utilidade pública urbanística sejam prosseguidos pelo instituto de venda forçada do mesmo modo por que são prosseguidos pelo instituto da expropriação, nem que as garantias indemnizatórias dos particulares sejam cumpridas, através da venda forçada, do mesmo modo por que são cumpridas através do instituto

da expropriação.

No primeiro grupo de insuficiências, que são imputadas ao sentido da autorização legislativa - essas mesmas que não asseguram que os fins de utilidade pública sejam assegurados do mesmo modo tanto na venda forçada quanto na expropriação - contam-se, no essencial e segundo o requerente: (i) a ausência de previsão, a propósito do procedimento da venda forçada, de uma prévia declaração de utilidade pública do bem sujeito à venda coactiva; (ii) a natural ausência, no instituto da venda forçada, do direito de reversão (que garantiria, que, caso o fim público de reabilitação dos imóveis não viesse a ser cumprido pelo adquirente em hasta pública, o bem objecto de transmissão coactiva defluiria para o património público); (iii) a diferença de regimes entre a expropriação e a venda forçada quanto à cedência de bens (objecto das "afectações coactivas") a privados. É que no instituto expropriatório tal cedência só se verificaria em situações tais que salvaguardariam o interesse público, o mesmo não

acontecendo com a venda forçada.

Por seu turno, e no segundo grupo de insuficiências que são imputadas ao sentido da autorização legislativa - essas outras que não assegurariam que a venda e a expropriação fossem idênticas quanto às garantias indemnizatórias dos particulares afectados - contam-se, no essencial, segundo o requerente, quer o "facto" de a autorização legislativa não assegurar que a indemnização a conferir ao proprietário em caso de venda forçada venha a ser, tal como o é a concedida em processo expropriatório, uma indemnização plena; quer o "facto" de a mesma autorização não assegurar que tal indemnização venha a ser, tanto na venda quanto na expropriação, contemporânea do "acto ablativo" da propriedade.

Face a estes argumentos - que se resumiram ao que parece, na óptica do requerente, ser essencial - conclui o pedido que, no âmbito desta sua formulação alternativa, se considere que é inconstitucional a norma da autorização, que prevê a existência de venda forçada como instrumento possível de política urbanística, por violação dos artigos 13.º, 62.º, n.º 2, 65.º n.º 4 e 165.º, n.º 2, da Constituição. 14. Perpassam em todo este discurso razões de índole muito diferente, que não podem deixar de ser

distinguidas.

Antes do mais, as razões que justificam que se convoque, a propósito da norma sob juízo, a violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP). É evidente que são desiguais entre si o instituto da expropriação e o instituto da venda forçada. No entanto, tal desigualdade só se tornará em algo constitucionalmente censurável se se provar que os proprietários sujeitos a venda forçada virão a ser - seguramente apenas quando for, e se for, aprovado o decreto-lei autorizado - destinatários de um regime jurídico injustificadamente diverso daquele que é aplicável aos expropriados.

Para o requerente, a prova de que assim é já está feita. Mas já está feita por duas razões que não devem ser entre si confundidas. Uma, é a razão que se prende com a tese da "tipicidade" ou do numerus clausus que, relativamente aos instrumentos de política urbanística, estaria inserta no n.º 4 do artigo 65.º da CRP. O requerente volta agora a sustentar esta tese, para a aplicar ao argumento segundo o qual, sendo o instituto da venda forçada inevitavelmente diverso do instituto da expropriação (nomeadamente por não poder naturalmente integrar a reversão, ou por implicar, ao contrário da expropriação, relações entre privados), tal diversidade seria desde logo, constitucionalmente censurável. A bem dizer, este argumento não é novo face ao que já se analisou antes. Mais do que fundado numa autónoma violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), é-lhe subjacente a ideia de que a norma da autorização legislativa será inconstitucional por "excesso" ou determinação indevida de sentido, por prever, como instrumento de política urbanística, um meio que a Constituição exclui.

Como a exclusão estaria fundamentada, ainda, nessa leitura do n.º 4 do artigo 65.º que já atrás se refutou - e que pretenderia que no preceito constitucional estaria consagrado, enquanto instrumento "típico" de política urbanística, apenas e tão somente a expropriação por utilidade pública - ao problema se não regressará. Outra, é a razão que se prende com a tese da insuficiência de sentido da autorização legislativa. É esta tese que o requerente apresenta, de forma nova, neste seu pedido subsidiário, quer quando invoca a violação do artigo 165.º, n.º 2 da CRP, quer quando sustenta (frequentemente de modo cumulativo) a não previsão, no decreto de autorização, de garantias ou de procedimentos que nele deveriam ter sido necessariamente incluídos - nomeadamente, quanto à "contemporaneidade" ou "plenitude" da indemnização, que a autorização legislativa não lograria assegurar, ou quanto à declaração prévia de utilidade pública do bem objecto de venda forçada, que a norma sob juízo também não chegaria

a prever.

No entanto, e como se deixou claro no ponto 8, não é nesta acepção que deve ser compreendida a deficiência, constitucionalmente censurável, do sentido de uma autorização legislativa. Já se demonstrou por que razão não pode dizer-se que a Constituição excluiu a venda forçada como instrumento possível da política de urbanismo. Uma vez demonstrada a possibilidade constitucional da previsão, no contexto da norma sob juízo, do instituto, nada, de acordo com os critérios atrás expostos, permite concluir que se esteja, in casu, perante uma autorização deficitária quanto à determinabilidade do seu sentido. São suficientemente claras as decisões básicas que o habilitante tomou, quanto à definição do conteúdo essencial a seguir pela futura, e eventual, legislação governamental. Fica também claro, face ao regime agora impugnado, qual o espaço de liberdade de conformação que deterá o legislador autorizado. Finalmente, e na perspectiva dos particulares, é suficientemente claro o programa normativo, contido na autorização legislativa, que, a ser cumprido pelo decreto-autorizado, produzirá consequências directas e imediatas na modelação dos direitos e deveres das pessoas. Sobretudo numa ordem constitucional como a nossa, que pressupõe um certo modelo de partilha de responsabilidades legislativas entre Parlamento e Governo, nada permite concluir que a norma autorizativa não tenha atingido o grau exigível de determinação de sentido.

Questão diferente é a de saber se, como afinal, sustenta, no essencial, o requerente, o instituto da venda forçada - tal como vem delineado na autorização legislativa - é inconstitucional por, quanto ao interesse público, não garantir que sejam satisfeitos os fins próprios das políticas urbanísticas; e, quanto aos interesses privados, não garantir que à afectação dos bens corresponda uma justa indemnização, conforme impõe o

disposto no artigo 62.º, n.º 2 da CRP.

Nem um nem outro argumento colhem, todavia, perante o modelo de regime que vem

consagrado no artigo 2.º do Decreto.

Dele se não pode depreender que, em abstracto, a venda forçada seja um quid inadequado à prossecução dos valores próprios das políticas urbanísticas. Ao Tribunal não cabe apreciar a "adequação" ou o mérito das políticas públicas adoptadas pelo legislador: cabe-lhe apenas emitir juízos sobre aquelas que, nos termos da Constituição, sejam censuráveis. E nada, quanto a este ponto, permite que se estabeleça um juízo de censura constitucional, pois que nada prova que a "venda forçada" seja inepta, ou inadequada, à realização dos fins especiais da reabilitação urbana.

Do mesmo modo, do regime contido no artigo 2.º do Decreto se não pode depreender que, nos casos em que o preço do imóvel obtido através da venda em hasta pública se revele inferior ao montante em que o mesmo foi avaliado, nos termos do Código das Expropriações, não venha a ser conferida ao particular, através de indemnização, a compensação devida quanto à parte restante. Sustenta o requerente, quanto a este ponto, que "a norma sindicada não logra garantir na definição do sentido da autorização legislativa o imperativo da plenitude e da contemporaneidade da indemnização ou compensação do proprietário". Longe de se estar aqui perante uma injunção ao legislador autorizado, nada impede que este último venha a salvaguardar, em conformidade com a Constituição, as garantias jurídicas dos particulares. Tanto basta para que o Tribunal se não pronuncie pela inconstitucionalidade da norma contida no n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto 343/X da Assembleia.

D) Da norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto da Assembleia 15. Alega por fim o requerente que é ainda inconstitucional a norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto 343/X da Assembleia, que dispõe como segue: 2.

A autorização legislativa referida na alínea b) do número anterior quanto ao regime jurídico aplicável à denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos, nos termos do n.º 8 do artigo 1103.º do Código Civil, e à actualização de renda na sequência de obras com vista à reabilitação tem o seguinte sentido e extensão:

[...]

c) Definir que não há lugar a indemnização ou realojamento pela denúncia do contrato de arrendamento quando a demolição seja necessária por força da degradação do prédio, incompatível tecnicamente com a sua reabilitação e geradora de risco para os respectivos ocupantes ou decorra de plano municipal de ordenamento do território.

Como decorre do texto - e como já se tinha assinalado antes, no § 4 - a norma agora impugnada insere-se na segunda autorização legislativa contida no Decreto 343/X, destinada a conceder ao Governo a habilitação necessária para a definição do regime jurídico aplicável à denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos (e, sendo caso disso, à

consequente actualização da renda).

A autorização, assim definida quanto ao seu objecto, é parte de um sistema de regulação que inclui desde logo o disposto, hoje, na alínea b) do artigo 1101.º do Código Civil. Com efeito, e de acordo com a actual redacção deste último preceito, o senhorio pode, nos contratos de duração indeterminada, denunciar o arrendamento "para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos". O Código não definiu, contudo, e para estes casos, o regime da denúncia, optando por remeter a sua regulação para "legislação especial" (artigo 1103.º, n.º 8). Visto que tal "legislação" consta já do Decreto-Lei 157/2006, de 8 de Agosto, a autorização que, nesta matéria, a Assembleia concede ao Governo tem ainda como finalidade tornar possível a primeira alteração ao regime fixado pelo referido decreto-lei. Isto mesmo se depreende, aliás, da alínea b) do artigo 1.º do Decreto 343/X.

É, pois, neste contexto, que o artigo 2.º do Decreto fixa o sentido que deverá ser seguido pelo legislador habilitado, quando este vier a definir o regime aplicável, nas situações atrás identificadas, à "denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento".

Releva, para o que agora importa, sobretudo o disposto nas alíneas a) a c) do referido artigo 2.º Diz-se aí, basicamente, o seguinte.

Em primeiro lugar, que fica o Governo habilitado a prever que o senhorio possa denunciar o contrato de arrendamento ou suspender a sua execução, caso pretenda demolir o edifício ou realizar nele obras de remodelação ou restauro profundos (alínea

a);

Em segundo lugar, que fica o Governo habilitado a prever que, em caso de denúncia do contrato (para remodelação, restauro, ou demolição) seja o senhorio obrigado, mediante acordo com o arrendatário, ou a indemnizar este último ou a garantir o seu

realojamento (alínea b);

Em terceiro lugar, que fica o Governo habilitado a prever que não haja lugar a indemnização ou realojamento, caso: (i) a denúncia do contrato pressuponha a demolição do prédio e (ii) seja necessária essa mesma demolição, [por força do estado de degradação última do prédio, ou por decorrência de plano municipal de ordenamento

do território] (alínea c).

Entende o requerente que é inconstitucional este último sentido da habilitação legislativa, na medida em que, nele, se autoriza que o Governo venha a excluir - nas situações atrás identificadas - o dever do senhorio de indemnizar ou realojar o arrendatário. São quatro os fundamentos de inconstitucionalidade invocados.

Antes do mais, diz-se que a norma contida na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto viola o conteúdo essencial do direito fundamental à indemnização que é consagrado no n.º 2 do artigo 62.º da CRP. Do mesmo passo - e porque este direito fundamental detém natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias - sustenta-se que a afectação do seu conteúdo essencial contraria o disposto no n.º 3 do artigo 18.º da Constituição. Depois, alega-se que, se assim se não entender - isto é, se se não entender que a norma do Decreto lesa o conteúdo essencial do direito à indemnização - de todo o modo não poderá deixar de concluir-se que ela contém uma restrição desproporcionada desse mesmo direito, contrariando por isso (por inadequação do meio restritivo ao fim por ele prosseguido, e por lesão do teste da proporcionalidade em sentido estrito) o disposto na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. A seguir, invoca-se ainda a lesão autónoma do princípio da igualdade (artigo 13.º), por sempre implicar a norma um tratamento discriminatório dos inquilinos face aos senhorios "no que respeita ao direito de ambos serem indemnizados nos termos do n.º 2 do artigo 62.º da CRP". Finalmente, convoca-se para o caso a violação do princípio da protecção da confiança, decorrente da ideia de Estado de direito consagrada no artigo 2.º da Constituição, por permitir a norma sob juízo que as situações e posições jurídicas dos actuais arrendatários possam vir a ser afectadas por uma medida imprevisível, que, produzindo, in pejus, efeitos retrospectivos, frustrará as legítimas expectativas dos mesmos em serem compensados por cessação do contrato de arrendamento. 16. Toda esta fundamentação parte de uma premissa inicial que contém duas asserções básicas estreitamente interligadas: o regime (primeira asserção) previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto comporta uma excepção não justificada face ao regime geral, que prevê, como regra, o dever que impende sobre o senhorio de compensar ou indemnizar o arrendatário em casos de denúncia do contrato de arrendamento para demolição.

Assim (segunda asserção), deve esta excepção ser entendida como uma "expropriação

do direito ao arrendamento".

É por partir desta premissa inicial, deste modo articulada, que o requerente invoca para o caso, e desde logo, a violação conjunta do disposto no n.º 2 do artigo 62.º e do n.º 3

do artigo 18.º da CRP.

Sucede, porém, que são contadas as circunstâncias em que o artigo 2.º do Decreto prevê que o senhorio possa não vir a ser obrigado a indemnizar ou realojar o inquilino.

Na verdade, tal ocorrerá só quando o mesmo senhorio denunciar o contrato de arrendamento por necessidade e urgência de demolição do prédio. Parece ser, de facto, de necessidade e de urgência [de demolição] que se trata, quando se identifica o grau de deterioração do edifício que reentra na fattispecie da norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º: grau tal que torna impossível a reabilitação do prédio e que torna arriscada, para as pessoas, a sua ocupação. Para além destas situações, o senhorio denuncia o contrato de arrendamento - sem assegurar, ele próprio, a indemnização ou realojamento do inquilino - quando a necessidade da demolição decorra de plano municipal de ordenamento do território. Todas estas circunstâncias, contadas, têm a uni-las uma característica comum. Em todas elas ocorre a necessidade de destruição do prédio, necessidade essa que, pela própria natureza das coisas e em virtude do desaparecimento do local arrendado, não permite que se continue a assegurar ao arrendatário o gozo deste último, de acordo com o fim que havia sido convencionado.

Esta situação específica, tornando inelutável a cessação do contrato de arrendamento por força de circunstâncias objectivas, justifica que se não imponha aqui ao senhorio um dever de indemnização do inquilino: para todos os efeitos, a acção de denúncia do contrato, a interpor pelo primeiro, radica em fundamentos outros que não a sua livre vontade de pôr termo à relação arrendatícia. Cai assim pela base a premissa inicial que sustentou toda a argumentação do recorrente. Sendo certo que não ocorre, no caso, nenhuma "expropriação do direito ao arrendamento" em que seja indevidamente excepcionada a compensação devida pelo senhorio, não se vê por que razão violaria a norma sob juízo "o núcleo essencial" do direito consagrado no n.º 2 do artigo 62.º da CRP, lesando-se, por isso, e do mesmo passo, o limite às restrições dos direitos, liberdades e garantias inscrito na parte final do n.º 3 do artigo 18.º Improcedendo este fundamento de inconstitucionalidade, improcede também a invocação da violação do princípio da igualdade, com ele estreitamente interligado.

Quanto à lesão dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança, também alegada pelo requerente, não se vê como conferir-lhe razão. Da própria justificação, já atrás encontrada, para a não previsão do direito do inquilino a ser indemnizado ou realojado decorre que tal medida se não mostra inadequada, desnecessária ou "excessiva", em sentido estrito. Por outro lado, e atendendo à natureza da norma sob juízo, nada impedirá que o legislador habilitado venha a cumprir, através da introdução de regimes transitórios que eventualmente se venham a mostrar necessários, as exigências próprias do princípio da protecção da confiança, decorrente

do artigo 2.º da Constituição.

A tudo isto acresce que, independentemente das compensações que, eventualmente previstas noutros locais da ordem jurídica, possa vir a ter, nestas circunstâncias extremas, o inquilino - e que decorrerão de um direito geral à reparação de danos inserto no artigo 2.º da CRP - uma coisa parece certa: enquanto norma habilitante de autorização legislativa, que fixa o sentido a seguir no futuro pelo legislador habilitado, a norma contida na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto não lesa por si só - e ao prever a inexistência de indemnização ou realojamento do inquilino nas circunstâncias nela identificadas - quaisquer normas ou princípios constitucionais. Atenta a razão de ser que justifica tal inexistência, nenhum parâmetro constitucional a pode, desde já,

condenar.

III - Decisão

Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal:

a) Não se pronuncia pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º i) da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto 343/X da Assembleia da República b) Não se pronuncia pela inconstitucionalidade da norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto 343/X da Assembleia da República.

Lisboa, 13 de Agosto de 2009. - Maria Lúcia Amaral - José Borges Soeiro - João Cura Mariano - Vítor Gomes - Maria João Antunes - Benjamim Rodrigues - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Pamplona de Oliveira - Mário José de Araújo Torres - Gil Galvão -Joaquim de Sousa Ribeiro -

Rui Manuel Moura Ramos.

202239904

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/09/02/plain-259912.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/259912.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1988-06-21 - Acórdão 107/88 - Tribunal Constitucional

    DECIDE PRONUNCIAR-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DE ALGUMAS NORMAS DO DECRETO NUMERO 81/V, DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, DE 880430, QUE HAVIA SIDO REMETIDO PARA PROMULGAÇÃO COMO LEI, E REPORTADO 'A AUTORIZAÇÃO AO GOVERNO PARA REVER O REGIME JURÍDICO DA CESSACAO DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO, DO CONTRATO DE TRABALHO A TERMO E O REGIME PROCESSUAL DA SUSPENSÃO E REDUÇÃO DA PRESTAÇÃO DO TRABALHO'.

  • Tem documento Em vigor 1993-01-26 - Acórdão 358/92 - Tribunal Constitucional

    Decide não declara a inconstitucionalidade nem a ilegalidade dos artigos 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, e 14.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, não declara a inconstitucionalidade do artigo 38.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, e declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do artigo 50.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, por violação do artigo 168.º, n.º 2, da Constituição (Processo n.º 120/92).

  • Tem documento Em vigor 2006-08-08 - Decreto-Lei 157/2006 - Presidência do Conselho de Ministros

    Aprova o regime jurídico das obras em prédios arrendados.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2020-09-18 - Acórdão do Tribunal Constitucional 299/2020 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro

  • Tem documento Em vigor 2022-07-22 - Acórdão do Tribunal Constitucional 468/2022 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que aprovou o Orçamento do Estado Suplementar, na medida em que determina, a respeito das formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, a isenção de pagamento da remuneração mensal fixa ou mínima dev (...)

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