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Acórdão do Tribunal Constitucional 468/2022, de 22 de Julho

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Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que aprovou o Orçamento do Estado Suplementar, na medida em que determina, a respeito das formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, a isenção de pagamento da remuneração mensal fixa ou mínima devida pelos lojistas além de uma redução proporcional à redução da faturação mensal, até ao limite de 50/prct. do valor daquela, quando os estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019 ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, ou de período inferior, se aplicável

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 468/2022

Sumário: Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 2/2020, de 31 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redação que lhe foi dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de julho, que aprovou o Orçamento do Estado Suplementar, na medida em que determina, a respeito das formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, a isenção de pagamento da remuneração mensal fixa ou mínima devida pelos lojistas além de uma redução proporcional à redução da faturação mensal, até ao limite de 50/prct. do valor daquela, quando os estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019 ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, ou de período inferior, se aplicável.

Processo 1004/20

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - A Provedora de Justiça veio, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República e do n.º 3 do artigo 20.º do seu Estatuto, aprovado pela Lei 9/91, de 9 de abril, requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 2/2020, de 31 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redação que lhe foi dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de julho, que aprovou o Orçamento do Estado Suplementar.

A requerente entende que essa norma contém restrições inconstitucionais do direito à propriedade privada e da liberdade de iniciativa económica privada, consagrados, respetivamente, nos artigos 62.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, da Constituição, ao não cumprir as exigências decorrentes dos princípios da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2) e da igualdade (artigo 13.º, n.º 1).

2 - Para sustentar o pedido, a requerente apresenta a argumentação que se passa a resumir:

a) Dispõe a Lei 2/2020, de 31 março (Lei do Orçamento do Estado), na redação que lhe foi dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de julho (Lei do Orçamento de Estado Suplementar):

«Artigo 168.º-A

Apoio ao pagamento das rendas habitacionais e não habitacionais

5 - Nos casos em que sejam aplicáveis formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, não são devidos quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de dezembro de 2020, sendo apenas devido aos proprietários dos centros comerciais o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, mantendo-se ainda a responsabilidade, da parte dos lojistas, pelo pagamento de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns».

a) Ao circunscrever o seu âmbito de aplicação a «formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais», o disposto no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei do Orçamento de Estado estabelece um regime especial que se destina a valer, apenas, para um tipo bem identificado de contrato, comummente designado como contrato de utilização de loja em centro comercial ou como contrato de instalação de lojista em centro comercial.

b) Um dos elementos essenciais desta fisionomia, que é própria do tipo social de contrato de utilização de loja em centro comercial, reside na estrutura dual da remuneração que, por força da vontade negocial das partes, é devida pelo «lojista-inquilino» ao «senhorio» (proprietário ou gestor) do centro comercial. Na verdade, e neste tipo de contratos, a renda devida é aquela que resulta da soma de duas parcelas ou dimensões: por um lado, de uma remuneração fixa, denominada mínima, e que surge como contrapartida da cedência do espaço e dos serviços inerentes a inserção do lojista em centro comercial; por outro, de uma remuneração variável, calculada em função da faturação bruta mensal de cada loja, que será devida, em percentagens também variáveis, na medida em que exceda o valor da parcela fixa, e que surge como pagamento pelos serviços de gestão prestados pela entidade responsável pelo conjunto [...].

c) Ao isentar, até 31 de dezembro de 2020, do pagamento da remuneração fixa ou renda mínima todos os lojistas de centros comerciais que tenham celebrado com os respetivos proprietários e gestores este tipo social de contrato, o legislador impõe a um dos contraentes um encargo patrimonial assaz severo. Neste modelo negocial, a componente variável da remuneração acordada pelos «operadores» surge sempre como um plus em relação a componente fixa, a única que foi pensada para garantir a contrapartida devida pela cedência do espaço situado em centro. Além disso, a dita «renda variável» pode nem sequer existir; e, quando existe, pode ser calculada em função de taxas reduzidas, que estarão longe de corresponder aos valores correntes das cedências de espaço.

d) Por tudo isto, a parcela variável [da remuneração] não é sequer pensável ou concebível sem a parcela fixa, porque a pressupõe. Ao eliminar o pressuposto em que toda a renda assenta, a lei faz impender sobre o contraente-senhorio um sacrifício [patrimonial] grave e especial, que não pode deixar de ser avaliado a luz das garantias constitucionais que, neste domínio, a todos são conferidas.

e) Ao isentar os lojistas instalados em centros comerciais do pagamento da remuneração mínima que era devida aos proprietários ou gestores dos referidos centros nos termos de contratos celebrados e já em execução, o legislador restringiu os direitos fundamentais a propriedade privada e a livre iniciativa de que são titulares aqueles proprietários e gestores, de acordo com o que determinam os artigos 62.º e 61.º da Constituição.

f) É com efeito clara a finalidade que se pretendeu prosseguir com o regime especial fixado no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei do Orçamento do Estado, por alteração introduzida com a aprovação da Lei do Orçamento Suplementar. Tal finalidade não terá sido outra senão a de ajudar os lojistas instalados em centros comerciais, garantindo-lhes uma prestação de apoio que, por um lado, atenuasse os prejuízos sofridos pelas imposições legais e administrativas de encerramento ou diminuição de atividade a que haviam estado sujeitos; e que, por outro, ajudasse à sua recuperação, promovendo, nas dificílimas circunstâncias da pandemia, a chamada «retoma económica».

g) Que, ao pretender prosseguir uma tal finalidade, o legislador levou a cabo uma restrição de direitos que entendeu ser necessária à «[salvaguarda de] outros direitos e interesses constitucionalmente prosseguidos», como manda a parte final do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, é conclusão que só pode tomar-se como certa. O problema, porém, é que tal não basta para que se conclua, também, pela legitimidade constitucional do que foi feito, uma vez que se exige ainda que as restrições não excedam, na necessidade, a sua justa medida.

h) Tem sempre entendido o Tribunal que esta última exigência se identifica com o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, quando aplicado a leis restritivas de direitos fundamentais, obriga a comprovação de que as medidas contidas nessas leis se mostrem, não apenas idóneas (adequadas) e exigíveis (necessárias) face as finalidades que justificaram as restrições, como se revelem ainda estritamente proporcionais no equilíbrio a atingir entre os sacrifícios e os benefícios que, por seu intermédio, a uns são impostos e a outros concedidos. Seria ocioso invocar toda a jurisprudência que, ao longo da atividade do Tribunal, tem firmado semelhante entendimento. Útil parece ser, no entanto, recordar a síntese que, a este propósito, se fez no Acórdão 123 /2018. Aí se disse: «o princípio da proibição do excesso analisa-se em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade.

i) Ora parece claro que a medida restritiva contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei do Orçamento do Estado (LOE) não cumpre nenhum destes subprincípios, começando desde logo por não observar o subprincípio da idoneidade ou da adequação.

j) A medida não é idónea, ou adequada, a finalidade que visa prosseguir porque, pretendendo auxiliar os lojistas prejudicados com as imposições de proibição ou de diminuição de atividade, é afinal aplicável a todos os lojistas; independentemente das perdas que tenham sofrido, desde que os mesmos se encontrem instalados em centros comerciais e desde que tenham sido concelebrantes do tipo social de contrato que vimos analisando.

l) Em segundo lugar, a medida não se mostra necessária, não cumprindo por isso o subprincípio que a jurisprudência do Tribunal atrás citada identifica como sendo relativo a exigibilidade da restrição. Uma medida restritiva com o alcance e a amplitude desta que vimos analisando impõe sacrifícios patrimoniais severos a uma das partes dos contratos celebrados para instalação de lojistas em centros comerciais. Como já foi dito, tal decorre da decisão legislativa que consistiu em eliminar - ainda que por um certo período de tempo e em contexto extraordinário - a obrigação, constituída por contrato, de uma das partes entregar a outra o montante devido a título de renda ou remuneração mínima e fixa.

m) Assim sendo, a questão de saber se será exigível que a parte sacrificada com a imposição deste ónus se conforme com ele (por ser tal imposição, em si mesma, constitucionalmente justa), traduz-se na questão de saber se não teria o legislador a sua disposição um qualquer outro meio, que, sendo igualmente eficaz quanto a obtenção das finalidades prosseguidas pela restrição de direitos, importasse no entanto um ónus menos gravoso do que aquele que acabou por ser a alguns imposto em consequência da restrição. Ora, in casu, é o próprio legislador que nos revela, pelas decisões que contemporaneamente toma, que havia de facto outro meio, menos gravoso, de prosseguir com igual eficácia a final idade de interesse público que com o regime inscrito no n.º 5 do artigo 168.º-A se pretendeu prosseguir. Recorde-se que, até a entrada em vigor da Lei 27-A/2020, de 24 de julho - que alterou, como se sabe, a Lei do Orçamento do Estado, nela introduzindo a norma que agora impugnamos -, vigorava para os lojistas em centros comerciais o mesmo regime de proteção que valia para os demais lojistas, definido inicialmente pela Lei 4-C/2020, de 6 de abril, mantido e ampliado pela primeira vez com a Lei 17/2020, de 29 de maio, e, uma segunda vez, através da Lei 45/2020, de 20 de agosto.

n) No quadro exigente e dificílimo da crise vivida, imperioso seria que os poderes públicos se comprometessem com a prestação de auxílio aos lojistas, titulares de contratos de arrendamento não habitacional ou titulares de outros contratos. E inevitável seria também que, por força dessa ajuda, sacrifícios viessem a ser impostos a outros, mormente a outras partes em contratos. Todavia, nesta inevitável e devida distribuição de benefícios e sacrifícios haveria que evitar que todo o peso da ajuda concedida fosse suportado unilateralmente por apenas um dos «direitos e interesses» em ponderação. Mas é precisamente tal sacrifício unilateral que acaba por ocorrer, quando a lei determina a eliminação pura e simples da componente básica da renda devida nos termos dos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais: nestas circunstâncias, em que o apoio económico que é dado a uma das partes contratantes assenta integralmente no ónus que é imposto à outra parte, torna-se evidente que não observado é ainda o subprincípio da proporcionalidade [em sentido estrito]. Assim, também no que a este último subprincípio diz respeito não cumpre a medida restritiva em causa as exigências que lhe são impostas pelos limites constitucionais.

o) É sabido, porque também frequentemente dito pelo Tribunal, que o n.º 1 do artigo 13.º da Constituição não proíbe que o legislador estabeleça diferenças de tratamento entre pessoas e grupos de pessoas, de acordo com o que a cada um ou a cada grupo seja devido.

p) Não se contesta que a realidade dos centros comerciais, e a particular condição dos lojistas nele instalados, merecessem do legislador uma atenção e um cuidado especiais, no momento em que se decidisse sobre as ajudas, e os modos de ajuda, a conferir ao comércio e serviços naqueles lugares existentes. Afinal de contas, e por conhecidas razões de saúde pública, quem oferecia no mercado bens e serviços localizados nos centros acabou por ser mais sacrificado do que quem atuava por intermédio das chamadas lojas de rua.

q) No entanto, e por si só, esta razão não permite que se compreendam os motivos pelos quais o legislador decidiu tratar de um certo modo os lojistas de rua, e de outro, completamente diferente (e bem mais gravoso para um certo setor de atividade) os lojistas de centros comercias. Pode assentar-se no tratamento específico que estes últimos lojistas mereceriam ter; mas daí a justificar-se a medida da diferença de tratamento que é dado ao comércio comum e ao comércio em centro [comercial] vai um passo que, racionalmente, não pode ser dado.

r) Mas não é só a falta de fundamentação da diferença de tratamento dada a estas duas categorias que impressiona. E que fica igualmente por compreender a razão de ser das diferenças de tratamento que o sistema gizado gerou no seu próprio seio, internamente, ao ser pensado para valer, apenas, para os contratos de remuneração dual. O ónus decorrente da eliminação da componente fixa da remuneração acabou por pesar sobre todos os proprietários e gestores de centros comerciais, independentemente da concreta dimensão que esses centros tivessem. Inversamente, o auxílio dado a uma das partes nesses contratos de remuneração dual - e dado, como já vimos, à custa do ónus imposto a outra parte - acabou por beneficiar todos os lojistas, independentemente das perdas e ganhos que efetivamente tivessem tido. Finalmente, por compreender ficam as razões pelas quais desse auxílio vieram a ser excluídos aqueles [lojistas] que, embora igualmente instalados em centros, tivessem porventura celebrado com os respetivos proprietários ou gestores um outro contrato, diverso do socialmente dominante.

s) Todas estas razões parecem demonstrar à saciedade que, tendo originado a medida legislativa adotada uma verdadeira restrição de direitos fundamentais, no sentido que ao vocábulo deve ser dado nos termos do artigo 18.º da Constituição, a mesma restrição não observou os limites a que, nos termos da Lei Fundamental, estão sujeitas todas as leis restritivas.

3 - Ao abrigo do n.º 4 do artigo 65.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), a requerente solicitou ao Presidente do Tribunal Constitucional que atribuísse prioridade à apreciação e decisão do presente processo. Fundamentando o seu pedido, a requerente invoca a natureza da norma fiscalizada, inscrita na Lei do Orçamento do Estado para 2020. Nessa medida, parece estar subjacente a preocupação de a decisão do pedido de declaração de inconstitucionalidade ocorrer antes da cessação da respetiva vigência.

Nos termos do disposto na referida norma da LTC, o Presidente do Tribunal Constitucional solicitou ao autor da norma sindicada que desse o seu acordo à atribuição de prioridade na apreciação e decisão do presente processo. O autor da norma não deu o seu acordo quanto à atribuição de prioridade.

Ora, tendo em consideração que o autor da norma não manifestou o seu acordo à atribuição de prioridade e que o pedido de fiscalização dos presentes autos foi admitido no dia 24 de novembro, ainda que o Presidente do Tribunal tivesse utilizado a faculdade do n.º 3 do artigo 65.º da LTC - encurtando para metade os prazos do processo de fiscalização abstrata sucessiva -, nunca teria sido possível que o Acórdão fosse prolatado na vigência da norma.

Consequentemente, em caso algum se afiguraria pertinente a atribuição de prioridade a estes autos quanto à sua discussão e apreciação.

4 - Notificado, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos. Enviou ainda uma nota técnica, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Orçamento e Finanças, relativa aos trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei 27-A/2020, de 24 de julho.

Em 21.12.2020, a Associação Portuguesa de Centros Comerciais veio requerer a junção aos presentes autos de três pareceres jurídicos - da autoria de Jorge Miranda, Jorge Reis Novais e Rui Medeiros - que, segundo se refere nesse requerimento, haviam instruído a queixa apresentada junto da Provedoria de Justiça que motivou o pedido de declaração de inconstitucionalidade agora em apreço e que convergem no sentido dessa declaração.

Posteriormente, em 19.02.2021, a requerente remeteu ao Tribunal documentação apresentada pela Associação de Marcas de Retalho e de Restauração, que lhe fora entregue por esta última, na sequência de audiência ocorrida por meios telemáticos em 03.02.2021, incluindo estudos de natureza económica e financeira e dois pareceres jurídicos, um da autoria de António Menezes Cordeiro e outro da autoria de Vitalino Canas.

A junção aos autos pela requerente destes últimos elementos é feita expressamente sob a invocação de «boa-fé processual», sem «nada omitir ou acrescentar» e não envolvendo qualquer alteração ao pedido de declaração de inconstitucionalidade aqui em apreço.

5 - Discutida e fixada a orientação deste Tribunal com base em memorando elaborado pelo Presidente, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, cumpre elaborar o correspondente acórdão.

II - Fundamentação

6 - O pedido incide sobre a norma constante do n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei do Orçamento de Estado de 2020 (Lei 2/2020, de 31 de março), introduzida pela Lei 27-A/2020, de 24 de julho, cuja formulação é a seguinte:

«Artigo 168.º-A

Apoio ao pagamento das rendas habitacionais e não habitacionais

1 - [...]

2 - [...]

3 - [...]

4 - [...]

5 - Nos casos em que sejam aplicáveis formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, não são devidos quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de dezembro de 2020, sendo apenas devido aos proprietários dos centros comerciais o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, mantendo-se ainda a responsabilidade, da parte dos lojistas, pelo pagamento de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns.»

Esta norma foi objeto da Lei 4-A/2021, de 1 de fevereiro, que «clarifica o regime excecional aplicável aos contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, através de uma norma interpretativa da Lei 2/2020, de 31 de março». O artigo 2.º desta lei, sob a epígrafe «norma interpretativa», determinou que a norma fiscalizada é aplicável «ao período compreendido entre 13 de março e 31 de dezembro 2020» (n.º 1) e que a expressão «centros comerciais» deve ser interpretada «por forma a abranger todos os empreendimentos na aceção da definição prevista na alínea m) do artigo 2.º do regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração, aprovado em anexo ao Decreto-Lei 10/2015, de 16 de janeiro» (n.º 2). Deste modo, por «centro comercial» deve entender-se «o empreendimento planeado e integrado, composto por um ou mais edifícios nos quais se encontra instalado um conjunto diversificado de estabelecimentos de comércio a retalho e ou de prestação de serviços, sejam ou não propriedade ou explorados pela mesma entidade, que preencha cumulativamente os seguintes requisitos: i) disponha de um conjunto de instalações e serviços concebidos para permitir a uma mesma clientela o acesso aos diversos estabelecimentos; ii) Seja objeto de uma gestão comum, responsável, designadamente, pela disponibilização de serviços coletivos, pela instituição de práticas comuns e pela política de comunicação e animação do empreendimento».

Embora posterior ao pedido de declaração de inconstitucionalidade aqui em apreço, esta última norma legal em nada o afeta, limitando-se a afastar dúvidas ou a fixar o âmbito temporal de aplicação da norma sindicada e a definir os precisos contornos da respetiva hipótese legal.

Por outro lado, o facto da norma ter cessado a sua vigência no dia 31 de dezembro de 2020 - constava da Lei do Orçamento do Estado para 2020 -, não faz precludir nem prejudicar o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, uma vez que subsistem situações jurídicas por ela criadas, porventura em número significativo. Isto, porque, enquanto a caducidade tem uma eficácia prospetiva (ex nunc), a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tem, por via de regra, uma eficácia retroativa (ex tunc), o que acarreta a eliminação das situações criadas, no passado, em sua aplicação (n.º 1 do artigo 282.º da CRP). Daí que possa haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos medio tempore, isto é, no período da vigência da norma sindicada (Acórdão 31/2009). O interesse existe e é relevante, porque não se está perante uma situação em que é visível que o Tribunal Constitucional poderá, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que vier a proferir, através da limitação de efeitos dessa decisão.

Para compreender o sentido e alcance da norma questionada, importa começar por conhecer o contexto e quadro normativo em que a mesma se insere.

7 - A norma sindicada insere-se no conjunto de medidas legislativas adotadas com vista a amortecer os efeitos económicos e sociais inevitavelmente decorrentes da crise sanitária relacionada com o novo coronavírus, vulgarmente designado como Covid-19.

Como é conhecido, em execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março - renovada pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de abril -, foi determinado o encerramento de grande número de estabelecimentos de comércio de bens e serviços, incluindo aqueles integrados em centros comerciais, com exceção dos que comercializassem bens de primeira necessidade ou outros considerados essenciais (artigo 8.º, n.º 1, e n.os 1 e 35 do anexo II do Decreto 2-A/2020, de 20 de março, bem como disposições similares do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, e do Decreto 2-C/2020, de 17 de abril).

Após o termo do estado de emergência - que vigorou de 19 de março a 2 de maio de 2020 - os estabelecimentos comerciais puderam retomar a sua atividade de transação de bens e serviços, com exceção das lojas integradas em centros comerciais, cujo reinício de atividade apenas viria a ter lugar, na generalidade do país, em 1 de junho de 2020 e, na área metropolitana de Lisboa, no dia 15 desse mês.

Ora, perante a quebra de rendimentos dos arrendatários e senhorios resultantes da crise sanitária, a Lei 4-C/2020, de 6 de abril, instituiu durante o estado de emergência um regime excecional para as situações de mora no pagamento das rendas devidas por arrendatários habitacionais e não habitacionais, vulgarmente conhecido pela permissão de uma dilação («moratória») desse pagamento, sem as consequências legalmente associadas ao não cumprimento pelo arrendatário. No que especificamente concerne aos contratos de arrendamento urbano não habitacional e a demais formas contratuais de exploração de imóveis para fins comerciais, o artigo 8.º dessa lei estabeleceu que os arrendatários de estabelecimentos comerciais afetados ficavam habilitados a «diferir o pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, para os 12 meses posteriores ao término desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda do mês em causa».

Findo o estado de emergência, a Lei 17/2020, de 29 de maio - que deu nova redação àquele artigo 8.º - manteve as «moratórias» até 1 de setembro de 2020, passando ainda a abranger qualquer encerramento imposto por lei ou medida administrativa; e através da Lei 45/2020, de 20 de agosto, o mesmo regime foi prorrogado até 31 de dezembro de 2020, para a generalidade dos estabelecimentos comerciais. Portanto, até esta data, as «moratórias» constituíram o sistema de apoios económicos e sociais relacionados com os custos fixos - ou, pelo menos, uma parte substancial dos custos fixos - suportados pelos donos de estabelecimentos comerciais instalados em imóveis arrendados ou submetidos a outras formas contratuais de exploração para fins comerciais.

Do ponto de vista do apoio aos senhorios pela diminuição de rendimentos resultante da mora dos arrendatários, a Lei 4-C/2020, de 6 de abril, na sua versão originária, apenas os previu para os senhorios habitacionais, concedendo-lhes um «empréstimo sem juros» para compensar a quebra superior a 20 % dos rendimentos do agregado familiar face aos rendimentos do mês anterior provocada pelo não pagamento da renda mensal (alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 3.º e n.os 3 e 4 do artigo 5.º). Quanto aos senhorios não habitacionais, só com a Lei 45/2020 é que passaram a ter acesso a um mecanismo de compensação das «moratórias» por parte dos respetivos arrendatários: «os senhorios cujos arrendatários deixem de pagar as rendas nos termos dos n.os 1 a 3 podem solicitar a concessão de uma linha de crédito com custos reduzidos, a regulamentar, para suportar a diferença entre o valor da renda mensal devida e o valor resultante da aplicação ao rendimento mensal ou à faturação mensal do senhorio, de uma taxa de esforço máxima de 35 %, cuja demonstração é efetuada nos termos da portaria a aprovar pelo membro do governo responsável pela área da economia» (n.º 5 do artigo 8.º da Lei 4-C/2020, aditado pela Lei 45/2020). Como é evidente, pretendeu-se com esta medida, ditada também por razões sociais, uma atenuação do sacrifício - ainda que meramente transitório - imposto aos senhorios pelo recurso dos seus arrendatários às «moratórias».

No entanto, estas formas de ajuda económica não abrangeram os contratos de instalação de lojista em centro comercial, pois o n.º 2 do artigo 10.º da Lei 4-C/2020, aditado pela Lei 45/2020, prescreve que «sem prejuízo do disposto no n.º 1 anterior, o presente capítulo não se aplica aos estabelecimentos inseridos em conjuntos comerciais que beneficiem do regime previsto no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 2/2020, de 31 de março, na redação dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de julho». Para estes contratos, através da norma questionada, a opção do legislador foi substancialmente diferente: não uma dilação legalmente permitida para o cumprimento da contraprestação (pagamento da renda), mas uma verdadeira supressão dessa contraprestação ou, pelo menos, da componente (tipicamente) mais onerosa da contraprestação devida aos proprietários de centros comerciais pela cedência do espaço para instalação dos estabelecimentos que os integram.

Efetivamente, a norma ora sindicada estatui que nos casos em que sejam aplicáveis formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, não são devidos quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de dezembro de 2020, sendo apenas devido aos proprietários dos centros comerciais o pagamento da «componente variável da renda», calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, mantendo-se ainda a responsabilidade, da parte dos lojistas, pelo pagamento de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns.

Desta forma, é manifesto que o legislador pretendeu instituir um regime especial de apoio social e económico destinado aos donos de estabelecimentos comerciais instalados em centros comerciais, tendo como pressuposto «formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais». Estabeleceu, assim, uma diferenciação alicerçada, não em dados concretos relativos ao desempenho da atividade comercial dos lojistas dos centros comerciais, mas simplesmente em função do tipo contratual adotado no tráfego jurídico para instalação dessas lojas, sendo habitualmente designado como contrato de instalação de loja em centro comercial.

Esta solução normativa, alheia a qualquer critério ou pressuposto de facto concreto - nomeadamente, no que concerne à efetiva situação económica do lojista instalado em centro comercial - foi abandonada na Lei do Orçamento do Estado para 2021, que seguiu diferente orientação.

Na verdade, o artigo 439.º da Lei 75-B, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2021), aditou à Lei 4-C/2020, de 6 de abril, o respetivo artigo 8.º-D, com a seguinte redação:

«Artigo 8.º-D

Redução da remuneração fixa ou mínima

1 - A remuneração mensal fixa ou mínima devida pelos lojistas de estabelecimentos abertos ao público inseridos em centros comerciais é reduzida proporcionalmente à redução da faturação mensal, até ao limite de 50 /prct. do valor daquela, quando tais estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019 ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos últimos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, ou de período inferior, se aplicável.

2 - O disposto no presente artigo vigora no primeiro trimestre de 2021 e pode ser prorrogado por despacho do Governo, até 30 de junho de 2021, caso a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV2 e da doença COVID-19 se prolongue para além do primeiro trimestre de 2021.»

Não é, porém, esta a norma que constitui o objeto do pedido de declaração de inconstitucionalidade.

Quanto à norma sindicada há, sem dúvida, uma clara bipartição: quanto aos comuns contratos de arrendamento para fins não habitacionais, ficaram sujeitos ao regime geral consubstanciado no mecanismo das «moratórias», através das quais foi estabelecida uma dilação no pagamento das rendas (acompanhada, em determinados termos e até determinados limites, de uma linha de crédito para compensação dos senhorios, introduzida pela Lei 45/2020); já quanto aos contratos de instalação de lojista em centro comercial, passaram a beneficiar de um regime diferenciado, simultaneamente (i) mais favorável para os lojistas, porquanto a lei estabeleceu uma pura e simples supressão integral (embora temporária) de uma prestação pecuniária certa e de montante fixo (em vez de uma mera dilação no pagamento), e (ii) mais gravoso para os respetivos credores, que se viram privados, por efeito direto da norma sindicada, dos créditos correspondentes, sem que a lei contemplasse qualquer contrapartida ou mitigação para esse sacrifício patrimonial.

Para aquilatar da compatibilidade desta manifesta diferenciação de regimes com a Lei Fundamental, torna-se necessário, portanto, proceder a uma breve caracterização deste contrato de instalação de lojista em centro comercial e aludir às razões que têm fundado na doutrina e jurisprudência portuguesa a sua autonomização relativamente ao contrato de arrendamento para fins não habitacionais.

8 - A norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 2/2020, de 31 de março, na redação que lhe foi dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de julho - a norma questionada - reporta-se, na sua previsão, aos habitualmente denominados contratos de utilização de loja em centro comercial ou contratos de instalação de lojista em centro comercial. Não obstante o preceito ter por epígrafe «Apoio ao pagamento de rendas habitacionais e não habitacionais», a formulação do enunciado normativo do n.º 5 é bem explicita no sentido de que o pressuposto da previsão normativa é preenchido por este tipo de contratos: «formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais»; «valores a título de rendas mínimas»; «componente variável da renda». Estas expressões revelam que a realidade em que se pretende produzir efeitos jurídicos respeita a quem explora espaços em centros comerciais ao abrigo de contratos celebrados com os respetivos proprietários ou gestores. De facto, a referência à divisão da obrigação (ou contraprestação) a cargo do lojista em centros comerciais em duas componentes (uma fixa - a «renda mínima» - e outra variável) não deixa dúvidas quanto à figura contratual que o legislador pretendeu abranger, uma vez que a estruturação económica e jurídica da remuneração do proprietário (ou entidade gestora) do centro comercial, nesses precisos moldes, é uma das marcas identificadoras deste tipo de contratos.

O efeito jurídico contido naquela norma é isentar os lojistas, até 31 de dezembro de 2020, do pagamento da parcela fixa da retribuição pecuniária devida como contrapartida do direito de utilização de espaços nos centros comerciais, passando a retribuição devida a ser exclusivamente determinada por uma parcela variável em função do volume de vendas. A referência a duas parcelas da retribuição, tendo em vista a supressão da fixa, torna evidente que a norma se reporta a espécie contratual distinta dos esquemas contratuais previstos e regulados na lei, mas que a praxis negocial transformou em verdadeiro "tipo social". Como se verá, uma das características mais distintas desse modelo contratual é a natureza e a fixação da retribuição pecuniária (chamada «renda») devida pelo lojista. São qualificados pela doutrina como contratos legalmente atípicos, mas socialmente típicos, ou seja, aqueles que «independentemente de terem uma específica regulamentação legal, têm origem em práticas contratuais que, pela sua reiteração e relativa uniformidade de conteúdo, permitem uma individualização com base em características próprias» (Pedro Malta da Silveira, A Empresa nos Centros Comerciais e a Pluralidade de Estabelecimentos, Coimbra, 1999, p. 154; no mesmo sentido, Ana Isabel Afonso, Os Contratos de Instalação de Lojistas em Centros Comerciais - Qualificação e Regime Jurídico, Porto, 2003, p. 134).

Um dos principais problemas que se suscitou no âmbito do arrendamento urbano foi a qualificação e a determinação do regime jurídico aplicável aos contratos de instalação de lojista em centro comercial. Tais contratos foram objeto de grande controvérsia doutrinal e jurisprudencial sobre a sua autonomização ou recondução au modelo clássico do contrato de arrendamento urbano não habitacional. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 632/2005 (ponto 4) dá-se conta das principais teses que se geraram em torno da natureza jurídica do contrato de instalação do lojista no centro comercial: (i) uns, a defenderem que a relação contratual estabelecida entre a entidade gestora e o lojista enquadra-se no âmbito do tipo legal de arrendamento para o comércio; (ii) outros, a sustentar que configura um contrato legalmente atípico, não estando, por isso, sujeito ao regime vinculístico da relação arrendatícia; (iii) e outros ainda, numa linha matizante destas posições, a defender que se trata de um contrato "inominado impróprio" ou "atípico misto", uma vez que os contraentes partem de um contrato de cedência do gozo de um espaço para o exercício de uma atividade comercial, mas este é adaptado aos interesses e características específicas do centro comercial.

Seja como for, atualmente este problema já não é colocado, sendo pacífico o entendimento acerca da atipicidade do contrato, uma vez que a operação negocial que liga o lojista ao fundador ou organizador do centro comercial transcende em muitos aspetos, quer o tipo legal de arrendamento para comércio, quer o esquema de contrato misto de arrendamento e prestação de serviços. Tal como é socialmente configurado, os "elementos do contrato" não permitem a subsunção integral nos elementos essenciais predispostos pelo legislador para o tipo de arrendamento comercial ou para um contrato misto de arrendamento e de prestação de serviço. Com efeito, devido à presença do centro comercial, o contrato de instalação do lojista contém elementos novos que o afastam do modelo tipificado na lei para o arrendamento não habitacional, em especial, as relações horizontais entre lojistas, a participação do proprietário ou gestor do centro comercial na valorização do estabelecimento do lojista e a natureza parciária da retribuição devida pela cedência da loja. Como sustenta Antunes Varela, ao contrário do arrendamento comercial, em que a obrigação do locador esgota-se em proporcionar ao locatário o gozo do imóvel, no contrato de instalação de lojista «(o) elemento essencial da operação está antes na inserção do estabelecimento do lojista dentro de um conjunto criteriosamente selecionado de lojas, não apenas com o poder, mas também com o dever de exercer certo ramo de comércio em determinados termos». Por outro lado, as vantagens patrimoniais concedidas pelo gestor ao lojista não resultam de prestações de serviços propriamente ditos - assentes estruturalmente em atos individuais, reiterados e contínuos -, mas de outros fatores, «como a integração da loja num conjunto escolhido de outras lojas, a distribuição selecionada e criteriosa das lojas agrupadas (o tenant mix do centro), a vizinhança de locais de diversão (especialmente para crianças), a inserção de elementos decorativos do imóvel que tornam mais belos e atraentes os locais de venda, os parques de estacionamento de veículos automóveis privados, etc.». Daí a conclusão de que o contrato de instalação de lojista é «uma realidade mercadológica inteiramente nova, a que, no plano do direito, corresponde uma também nova figura contratual, com uma função económico-social própria, uma causa negotii específica, e que, perante as codificações anteriores, constitui um verdadeiro contrato atípico ou inominado» ("Anotação aos acórdãos S.T.J, 24-03-92, T.R.L, 22-10-92. T.R.L, 18-03-93, S.T.J, 26-04-94, S.T.J, 01-02-95", in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128, n.º 3858 e 3859, p. 320, e n.º 3861, p. 371).

Não obstante a jurisprudência ter começado por aceitar a natureza vinculística do contrato de utilização de loja em centro comercial, retratando o tipo legal de arrendamento, pode afirmar-se que a orientação jurisprudencial que, de forma uniforme ou praticamente uniforme, atualmente vigora é a tese da atipicidade. Na verdade, o que se constata é que a jurisprudência dos tribunais superiores há muito deixou de questionar a diferenciação do regime jurídico dos contratos de instalação de lojista relativamente ao regime do arrendamento, assumindo ou pressupondo essa diferenciação.

No recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2020 (proc. 3454/16.0t8LRA.C1. S1, disponível em www.dgsi.pt), pode ler-se o seguinte, em face da factualidade fixada pelas instâncias:

«Daqui decorre, com bastante clareza, ter sido vontade das partes contratantes celebrar um contrato com uma função económico-social diversa da dos típicos contratos de arrendamento para o exercício do comércio, de cessão de exploração de estabelecimento comercial e de prestação de serviços e com uma "causa negotii" muito específica, ou seja, a utilização e consequente exploração de um espaço destinado a cinema e integrado num "centro comercial", enquanto conjunto organizado de uma multiplicidade de espaços e estabelecimentos comerciais que, ainda que autonomamente explorados, estão subordinados a uma atuação integrada no todo organizado e à respetiva administração [...].

Há, assim, uma relação entre as várias lojas que integram o Centro não só entre si - e que funciona como condição ou fundamento dogmático da relevância dessa integração - , como verticalmente de cada uma delas com a entidade administradora do Centro, sendo que esta relação com o Centro, enquanto individualidade que se sobrepõe à individualidade das várias unidades que o integram, não pode deixar de influenciar e de modelar o regime de cada contrato celebrado entre o gestor/administrador do Centro e o lojista.

Estamos, pois, perante um contrato, que, quanto à sua natureza jurídica, não se reduz a um simples contrato de arrendamento, de caráter vinculístico e regulado por disposições imperativas, uma vez que o espaço cedido, embora explorado individualmente, integra-se num todo organizado.

[...]

Daí que, ante a realidade fáctica fixada pelas instâncias, seja de concluir que estamos, efetivamente, perante um contrato que tem por objeto a cedência de um espaço integrado num centro comercial e na prestação de um conjunto de serviços que possibilitam a utilização desse espaço com os benefícios próprios do centro comercial, mediante o pagamento de determinada contrapartida, pelo que, na linha do entendimento já consolidado da doutrina e da jurisprudência, não vemos razão para nos afastarmos da qualificação jurídica dada pelas partes e pelas instâncias ao contrato em causa como sendo um contrato atípico ou inominado de "Utilização de Espaço em Centro Comercial" [...]».

Justificado pela integração e pela necessidade de harmonização com uma estrutura comercial mais ampla e diversificada - o próprio centro comercial -, o contrato atípico de instalação de lojista em centro comercial impôs-se na prática contratual dominante com uma fisionomia própria. A relação contratual estabelecida entre o empreendedor ou gestor do centro comercial e cada um dos lojistas é composta por um complexo de poderes, deveres, atribuições patrimoniais, ónus e estados de sujeição que se traduzem fundamentalmente no seguinte: o proprietário ou gestor do centro comercial cede ao lojista a utilização de um espaço vazio para aí exercer uma atividade comercial nos termos previamente definido; e o lojista paga uma retribuição fixa mínima, como contrapartida da utilização do espaço, à qual acresce uma retribuição variável, calculada por referência a determinada percentagem do valor da faturação bruta mensal, que só é devida na parte em que exceda o valor da parcela fixa, como pagamento dos serviços de gestão prestados pela entidade responsável pelo centro comercial. Além disso, é frequente a estipulação de que o lojista contribui para as despesas de manutenção e funcionamento do centro comercial, bem como o pagamento de uma entrada inicial, designada "reserva do direito de ingresso", a título de remuneração pelos estudos de viabilidade económica e pesquisa de mercado destinados à conceção e desenvolvimento do centro comercial. Constata-se, assim, que a dupla estrutura da retribuição devida surge como elemento fundamental da fisionomia própria do contrato de utilização de loja em centro comercial, na exata medida em que é ela mesma expressão do equilíbrio de interesses alcançado pela prática disseminada deste tipo social.

9 - Ora, a norma questionada, ao suprimir, ainda que transitoriamente, uma das componentes em que assenta a contraprestação do lojista pela cedência do espaço e pelos benefícios inerentes ao gozo da estrutura organizada do centro comercial e serviços associados - a componente mais relevante para o proprietário ou promotor do centro comercial, que pelo caráter certo e valor fixo não pode deixar de constituir o elemento fundador do seu interesse em contratar -, acabou por quebrar o equilíbrio de interesses refletidos no contrato, introduzindo uma profunda disrupção no vínculo sinalagmático.

Não se desconhece que a prática contratual tem conduzido à adoção de cláusulas socialmente típicas que podem indiciar algum desequilíbrio contratual ou agravar a posição do lojista relativamente ao comerciante que tenha celebrado um vulgar contrato de arrendamento, abrangendo, nomeadamente, (i) um prazo contratual alargado, tendencialmente superior a cinco anos, (ii) o pagamento de chave (uma quantia paga à cabeça, para a celebração do contrato e a entrega do espaço), (iii) a obrigação de cumprimento dos horários estritos de funcionamento do centro comercial, (iv) disposições que, por via convencional, limitam a faculdade de resolução do contrato pelo lojista ou facilitam a resolução pela contraparte, (v) a exigência de acesso ou auditoria das contas do lojista pela contraparte e (vi) a prestação de garantia bancária autónoma para cobertura das obrigações pecuniárias emergentes para o lojista do contrato (Pinto Furtado, Os Centros Comerciais e o seu Regime Jurídico, Coimbra, 1998, pp. 40 e ss - identificando cláusulas com este pendor e suscitando dúvidas sobre a respetiva legalidade, embora predominantemente na ótica da aplicação do regime do arrendamento urbano).

Assim acontece porque o princípio da liberdade contratual (artigo 405.º do Código Civil) reclama a possibilidade de as partes estipularem livremente o conteúdo das obrigações, e por isso mesmo não existe proibição absoluta de assunção de obrigações contratuais desequilibradas. Isso não significa que a ordem jurídica tolere toda e qualquer iniquidade contratual e que não disponha de instrumentos normativos para corrigir o conteúdo do contrato. Perante um contrato desequilibrado ab initio, a garantia de um mínimo de justiça contratual pode implicar a ineficácia do vínculo contratual, como ocorre no regime dos negócios usurários ou nos casos de violação dos bons costumes (artigos 280.º e 282.º do CC), ou promover o equilíbrio contratual, sobretudo a propósito de interpretação de cláusulas duvidosas e de integração de lacunas negociais (artigos 237.º e 239.º do CC).

Mas não há dúvida que a norma sindicada, ao intervir no nexo funcional entre as prestações que advêm da celebração do contrato - o sinalagma genético -, fá-lo no pressuposto da ocorrência superveniente de perturbação disruptiva do equilíbrio contratual suscetível de colocar os lojistas numa situação de maior vulnerabilidade contratual perante os proprietários ou gestores dos centros comerciais. A perturbação negocial foi despoletada pelo aparecimento do novo Coronavírus, denominado SARS-COV-2, que levou o legislador a tomar medidas de resposta à situação pandémica que com ele se desencadeou, tais como o enceramento de estabelecimentos comerciais e a suspensão de atividades no âmbito do comércio e retalho (artigos 7.º e 8.º da Lei 2-A/2020, de 20 de março). De modo que a pandemia e as medidas que foram tomadas em resposta à mesma afetaram ou perturbaram de modo particularmente grave a execução dos contratos anteriormente celebrados, colocando em risco o cumprimento das respetivas obrigações.

Foi o caso da medida de encerramento compulsivo de estabelecimentos comerciais, que pode ter implicações diretas no cumprimento dos contratos de utilização de lojas em centros comerciais por ambas as partes: por um lado, os gestores ou proprietários não conseguem cumprir a obrigação de manter o centro comercial aberto ao público, ficando desse modo incapazes de gerar e atrair a clientela necessária a proporcionar aos lojistas as vantagens patrimoniais que integram o conteúdo do contrato; por outro, os lojistas ficam impedidos de exercer a sua atividade comercial, pondo em causa o cumprimento da retribuição devida pela utilização do espaço comercial.

Ora, por decorrência de princípios de direito constitucional, como o dever de solidariedade, ou de princípios de direito civil, como o dever de boa-fé, o desequilíbrio contratual eventualmente criado pode ser corrigido através do recurso a instrumentos normativos reguladores das situações de iniquidade contratual ou por intervenção legislativa específica tendente à correção do conteúdo assimétrico dos contratos.

10 - Não obstante a intervenção legislativa na regulação dos impactos da pandemia Covid-19 nos contratos em curso, os problemas relacionados com as perturbações prestacionais que ela gerou podem ser resolvidos através de institutos do direito civil potencialmente invocáveis no quadro da crise sanitária. Com efeito, a pandemia, bem como a crise económica dela decorrente, pelo caráter imprevisível, inevitável e inimputável, é um evento suscetível de tornar mais oneroso ou difícil o cumprimento da prestação, podendo mesmo ser categorizado como caso «força maior» que impossibilita o cumprimento das obrigações. Nessas situações, o desequilíbrio contratual pode mostrar-se de tal maneira grave e insuportável que não é exigível às partes prejudicadas, do ponto de vista da boa-fé, o cumprimento do contrato. A isso não se opõe o princípio da autonomia privada, consagrado nos artigos 26.º, n.º 1, e 61.º da CRP e 405.º do CC, a propósito da liberdade contratual, que admite a possibilidade da correção do conteúdo do contrato justificada no princípio de justiça contratual e em princípios constitucionais como a proporcionalidade e solidariedade.

Nesse sentido, o Direito Civil contém institutos que flexibilizam o princípio pacta sunt servanda e que podem ser convocados para a supressão do desequilíbrio contratual superveniente, como a impossibilidade da prestação (artigos 790.º a 795.º), a alteração das circunstâncias (artigo 437.º) e o dever de renegociação do contrato (artigo 762.º n.º 2).

Se o contrato não regular as situações de impossibilidade da prestação, prevendo cláusulas de caso fortuito ou de força maior que impliquem renegociação, modificação ou resolução do contrato, pode ser invocada a impossibilidade temporária de cumprimento, causada por evento de força maior. Não restam dúvidas que a pandemia, que se caracteriza por ser um fenómeno transitório, e as medidas que foram tomadas para a combater, como o confinamento das pessoas, o encerramento dos estabelecimentos comerciais e as limitações impostas a seu funcionamento, constituem factos inevitáveis, imprevisíveis e inimputáveis às partes contratuais, suscetíveis de implicarem em determinadas situações a impossibilidade temporária de cumprir a totalidade ou parte da prestação. Assim pode acontecer na sequência do encerramento dos centros comerciais: o proprietário ou gestor fica impedido de cumprir algumas das suas obrigações, designadamente a de garantir a atração de clientela; e o lojista, apesar de continuar a ocupar o espaço cedido pelo gestor, fica impossibilitado de se aproveitar desse espaço para o exercício da atividade a que o destinou. Nesta situação, ao abrigo dos artigos 792.º e 795.º do CC, poderá ser equacionada, conforme o caso concreto, a invocação da exclusão dos efeitos gravosos da mora do devedor, a suspensão das prestações e contraprestações pelo tempo que perdurar a impossibilidade ou a redução proporcional da contraprestação, no caso de impossibilidade parcial.

Se em virtude da pandemia Covid-19 e das medidas adotadas para conter o seu impacto, o devedor ficar com especial dificuldade em cumprir a obrigação a que está adstrito, também pode ser convocada a figura da alteração das circunstâncias, verificados que sejam os respetivos pressupostos legais. Há, sem dúvida, uma "grande alteração das circunstâncias" em que as partes assentaram a decisão de contratar, uma alteração anormal não coberta pelos riscos próprios do contrato, suscetível de provocar prejuízos não expectáveis para uma das partes, um desequilíbrio entre as prestações contratuais de tal ordem que a exigência do cumprimento das obrigações assumidas apresenta-se contrária à boa-fé. Conforme assinala Carneiro da Frada «as "grandes alterações das circunstâncias" representam o reduto mais firme e irredutível da aplicação do art. 437.º/1. O Covid-19 realiza uma alteração desse tipo, porque a emergência sanitária surgida representa a modificação (brusca) de uma condicionante geral da coexistência social, com impacto generalizado e, em muitos casos, brutal, na possibilidade e forma da interação e cooperação de um número indeterminado de sujeitos» ("A alteração das circunstâncias à luz do Covid-19", in Revista da Ordem dos Advogados, ano 80, vols. I/II, 2020, p. 154). Verificado o preenchimento daqueles pressupostos, tem a parte lesada direito à resolução ou modificação do contrato segundo juízos de equidade. Se o efeito adequado for a modificação do contrato, deverá chegar-se a um resultado que garanta a distribuição equitativa, por ambos contratantes, dos danos resultantes dos riscos não cobertos pelo contrato.

De igual modo, perante uma superveniência disruptiva do equilíbrio contratual, poderá resultar do n.º 2 do artigo 762.º do CC um ónus ou dever de renegociação do contrato cujo cumprimento ou execução foi afetado ou perturbado pela pandemia. Em determinadas situações pode-se defender que o princípio da boa-fé contratual obriga o credor a renegociar os termos do contrato com o devedor vulnerável, para que seja reposto o equilíbrio das prestações contratualmente assumidas. E não está excluída a possibilidade de se recorrer a outros regimes do Código Civil, como o do artigo 1040.º, relativo à redução proporcional da renda, ou às "válvulas de escape" do abuso de direito (artigo 334.º) e da colisão de direitos (artigo 335.º), para adaptar ou modificar o contrato perturbado pela alteração anormal das circunstâncias.

11 - Se olharmos a norma sindicada - isenção dos lojistas do pagamento da remuneração mínima fixa - pelo prisma dos institutos do Direto Civil, dando realce à pretensão dos lojistas, não parece que se encontre correspondência direta e linear em nenhuma solução normativa que pudesse aí ser colhida, muito menos sem o risco de flutuações normativas casuisticamente determinadas.

A norma legal com maior pertinência parece ser a que consta do artigo 1040.º do CC, precisamente em matéria de arrendamento e onde se determina, no n.º 1, que «se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta, sem prejuízo do disposto na secção anterior». Mas o n.º 2 do mesmo preceito legal logo acrescenta: «[...] se a privação ou diminuição não for imputável ao locador nem aos seus familiares, a redução só terá lugar no caso de uma ou outra exceder um sexto da duração do contrato».

Não obstante a pré-existência e potencial aplicação deste preceito aos arrendamentos afetados pela pandemia, o legislador não deixou, como acima referido, de adotar um regime especial ou excecional consubstanciado nas descritas «moratórias». Ao trilhar esse caminho, teve o propósito de afastar dúvidas sobre a determinação e os contornos do regime aplicável ou dispensar o pressuposto ou requisito a que alude o n.º 2 do artigo 1040.º do CC, do mesmo passo que evitou, para os senhorios, o risco da perda patrimonial consubstanciada numa definitiva redução da renda diretamente proporcional ao tempo de privação do gozo do locado, que, em tese, poderia decorrer da aplicação do artigo 1040.º do CC. Por isso, o fundamento das moratórias parece não residir na circunstância do arrendatário não poder afetar o locado ao fim que o destinou, pois, o gozo do imóvel continua a ser facultado ao arrendatário pelo senhorio, mas na presunção de que a quebra da atividade nele desenvolvida em virtude do encerramento do estabelecimento pode gerar especiais dificuldades de pagamento da renda. Daí que o legislador não tenha reconhecido ao arrendatário o direito à redução total ou parcial das rendas, mas tão-somente o de poder pagar, no futuro, rendas que, de outra forma, se considerariam vencidas, sem deixar de conceder ao senhorio a faculdade, em determinadas circunstâncias e até certos limites, recorrer a linhas de crédito para mitigação dos efeitos das moratórias.

O regime especial de redução de renda previsto no artigo 1040.º, mesmo que inaplicável aos contratos de instalação de lojista em centro comercial, por beneficiarem do regime das moratórias, não deixa de contribuir para aclarar a problemática contratual com que lida a norma sindicada: uma impossibilidade prática, não de execução de qualquer prestação contratual, mas de retirar o gozo ou a utilidade económica normal do contrato celebrado, por razões que não se relacionam com a aptidão do espaço cedido para os fins a que o contrato se destina. Ou seja, por circunstâncias extrínsecas ao contrato de instalação do lojista em centro comercial - suspensão ou redução do exercício da atividade comercial por medidas de poder público ditadas pela crise sanitária -, o lojista fica impedido de auferir as vantagens patrimoniais proporcionadas pelo proprietário ou gestor do centro comercial, sem, porém, deixar de ter interesse na cedência do gozo do espaço para nele manter instalada a empresa comercial de que é titular.

Confrontado com a frustração dos lojistas, suscetível de os privar de meios económicos para cumprimento das obrigações a que estão vinculados, o legislador pretendeu fornecer uma resposta imediata e temporária de recuperação da respetiva atividade económica, isentando-os da parte fixa da retribuição. Não obstante interferir no cumprimento da obrigação dos lojistas para com o proprietário ou gestor do centro comercial, libertando-os da onerosidade excessiva que a realização da obrigação significaria, parece não existir qualquer pretensão de efetuar uma verdadeira distribuição do risco prestacional. Para além de ter prescindido da demonstração da perda patrimonial sofrida pelo lojista, os efeitos da isenção da retribuição fixa desconsideram a partilha de risco efetuada pelas partes no contrato, bem como pelas disposições legais que visam repartir o risco de não realização da prestação entre credor e devedor por impossibilidade ou oneração excessiva da prestação.

Com efeito, o contrato de utilização de loja em centro comercial tem uma estrutura de riscos que é inerente à função económico-social típica que lhe é própria. Como referido, o conteúdo do negócio integra duas obrigações principais; (i) cedência do gozo de um espaço (loja) para instalação de estabelecimento no centro comercial, mediante a contrapartida de uma retribuição fixa mensal; (ii) prestação de serviços de valorização do estabelecimento comercial, mediante a contrapartida de uma retribuição variável, calculada por referência a uma percentagem do valor da faturação bruta mensal. A realização deste programa negocial implica interligação dos interesses das duas partes - entidade gestora e lojista - na prossecução do objetivo de atracação de clientela para o centro comercial, de modo a obter um elevado volume de negócios. De facto, para além da cedência do gozo de um espaço, onde o lojista atua por sua conta e risco, o elemento fundamental do contrato está na integração do lojista no conjunto selecionado de estabelecimentos do centro comercial organizado e gerido para o objetivo comum de incrementar do lucro através da atracação de clientela. Como refere Ana Afonso, «o lojista empenha-se em exercer uma atividade comercial lucrativa, ciente de que faz parte de um conjunto cujo sucesso global potencializa o seu próprio sucesso. A gestora participa nos lucros da atividade do lojista, cuidando de realizar determinados serviços de gestão que passam, entre outros, por definir rigorosamente as coordenadas da atuação do lojista. Os seus interesses permanecem, portanto, ligados durante a vida do contrato» ("Contrato de utilização de loja em centro comercial", in Direito e Justiça, Vol. XIX, Tomo II (2005), p. 53).

Assim, o gestor ou promotor não se limita a proporcionar ao lojista o gozo de um determinado espaço, define também o ramo de negócio que nele se pode instalar, os termos em que o estabelecimento pode operar e vincula-se a zelar pela manutenção e promoção do centro comercial. Por isso, as prestações do concedente são talhadas em função de um único escopo: incrementar o lucro das lojas instaladas no centro comercial.

De modo que a finalidade das prestações do concedente e a concertação das atividades dos lojistas e do gestor, materializada num regulamento interno, implica uma partilha de risco das respetivas prestações. A forma como são fixadas as prestações do concedente e a contrapartida a satisfazer pelo lojista reflete um determinado esquema de distribuição do risco contratual. Com efeito, a retribuição de montante parcialmente variável, calculada mensalmente pela aplicação de uma percentagem sobre o valor da faturação bruta da loja, expressa uma distribuição convencional de risco para o caso de se ver frustrado o fim a que se destinam as prestações. Dir-se-á que as partes compartilham entre si o risco de o plano negocial se frustrar por contingências que não sejam imputáveis a qualquer delas.

Todavia, apesar de existir uma partilha de risco entre gestor e lojista, existe sempre um limite mínimo de remuneração garantido ao gestor, ou seja, para além de beneficiar nos lucros, o gestor tem ainda uma «retribuição fixa» sempre garantida, independentemente do rendimento auferido pelo lojista. O que esta cláusula de retribuição fixa quer dizer é que o lojista assume o risco da não realização de um volume mínimo de negócios e, portanto, uma exclusão desse risco a cargo do gestor do centro comercial.

12 - Também as normas legais supletivas sobre a distribuição de risco afastam o risco exclusivo do gestor do centro comercial em situações de impossibilidade ou onerosidade das prestações.

Na hipótese de impossibilidade temporária e parcial da execução das prestações que integram a relação obrigacional complexa consubstanciada no contrato de utilização de loja em centro comercial, decorrente do encerramento dos estabelecimentos comerciais ou do seu funcionamento limitado na sequência da pandemia Covid-19, podem estar implicados, para ambas as partes, diferentes tipos de risco. Do lado do promotor ou gestor do centro comercial pode-se estar perante (i) um risco da privação ou diminuição do quantum da prestação de gozo da loja - uma prestação de natureza continuada -, que só recai sobre o gestor se a impossibilidade perdurar por período superior a um sexto do contrato (n.º 2 do artigo 1040.º do CC); (ii) um risco da redução proporcional da contraprestação, que onera o gestor quando a prestação a que está vinculado não puder ser integralmente prestada, sobretudo no período de restrições ao funcionamento das lojas (n.º 1 do artigo 793.º do CC); (iii) e um "risco da contraprestação" - a retribuição variável -, que é suportado pelo gestor quando, por causa não imputável, for impossível prestar os serviços de valorização dos estabelecimentos comerciais (n.º 1 do artigo 795.º do CC), embora tal risco já seja inerente ao contrato, dada a forma peculiar como se define a retribuição das prestações: se estabelecimento comercial estiver encerrado, não há qualquer retribuição acima da retribuição fixa; se estiver limitado no seu funcionamento (redução de horário de funcionamento, número de pessoas que têm acesso, etc.), menor será a retribuição variável. Já do lado do lojista, dada a natureza pecuniária da prestação, não é possível considerar que existe uma verdadeira situação de impossibilidade imputável, uma vez que a falta de liquidez, por si só, não torna a prestação impossível. Mas ainda que a contingência perturbadora da possibilidade de prestar do lojista estivesse coberta pela repartição de risco conexa com a situação de impossibilidade temporária, prevista no n.º 1 do artigo 792.º do CC, o risco da não realização da retribuição corre por conta do lojista, recaindo sobre o gestor apenas o risco da perda do direito à indemnização dos danos moratórios. É por isso que, como a jurisprudência e a doutrina têm defendido, nos casos em que a relação negocial é afetada por alterações supervenientes que perturbam o cumprimento pontual das obrigações de natureza pecuniária, a reposição do equilíbrio contratual deve ser efetuada por via do regime da "alteração superveniente das circunstâncias", previsto no artigo 437.º do CC.

Também por esta via se encontra fundamento para a partilha de riscos. Na hipótese de afetação da "grande base do negócio", como é o caso da situação pandémica, a inviabilidade ou frustração do programa obrigacional é um risco que deve correr por conta de todos os contraentes. Assim sendo, o risco comum deve ser repartido segundo um critério da «equidade» (n.º 1 do artigo 437.º), retornando, na medida do possível, ao equilíbrio contratual que as partes, por acordo, livremente alcançaram. Assim, a distribuição do risco contratual segundo o princípio da igualdade implica, como refere Carneiro da Frada, que «(N)os contratos com prestações recíprocas a cargo de ambas as partes, realizá-lo-á, no limite, a razão da metade aritmética no sacrifício (50 % para cada uma). Nos contratos de fim comum, a participação nas perdas implicará uma medida de proporcionalidade atendendo ao contributo de cada um». Todavia, refere ainda o mesmo autor «[...] a boa-fé impõe que a ocorrência não deva ser aproveitada unilateralmente por um dos sujeitos em detrimento do outro, nem penalize arbitrariamente um dos contraentes. Afinal, a perturbação ocorrida tem a sua origem, ou provém de uma esfera manifestamente "neutra" em relação a qualquer das partes (ou, se se preferir, "comum" a elas). Na medida em que provoca uma alteração global de parâmetros fundamentais da coexistência social, o Covid-19 deve ser encarado, do ponto de vista jurídico, como um risco a que todos os contraentes, membros de "uma mesma comunidade de risco", estão expostos. Nenhum sujeito, parte num contrato, pode pretender eximir-se aos seus efeitos à custa do outro, nem devem permitir-se benefícios fortuitos a uma das partes que impliquem o prejuízo da outra. Os contratos não podem converter-se em casos de windfall profit de uns à custa de outros, pois tal contraria os ditames da justiça» (ob. cit. pp. 156 e 157).

13 - Não obstante a norma do artigo 168-ºA, n.º 5, aqui questionada, não pretender obter um resultado a que se chegaria através da aplicação das regras de repartição do risco contratual, sejam elas de fonte contratual ou legal, a verdade é que subverteu o equilíbrio inicial da relação contratual: enquanto que na equação económica contratual originária o risco da retribuição fixa corre por conta do lojista, da norma sindicada resulta que o risco da perda da retribuição fixa recaia exclusivamente sobre o promotor ou gestor do centro comercial.

Porém, dada a ratio legis inerente àquela norma - apoio material à recuperação da atividade económica - não está em causa a lesão, pelo legislador, do equilíbrio contratual no que toca à distribuição do risco de uma alteração das circunstâncias como a pandemia, não se descobrindo sequer qualquer intenção de reformular, com caráter permanente, o modelo regulativo do contrato de utilização de lojas em centros comerciais, mas a legitimidade constitucional da imposição de sacrifícios especiais a posições jurídicas subjetivas de um determinado grupo social.

Não há dúvida que a isenção da retribuição fixa querida e aceite pela norma sindicada produz efeitos danosos na esfera jurídica dos promotores e gestores dos centros comerciais, sobretudo quando se tenha em conta que a retribuição variável é calculada por aplicação de uma percentagem muito reduzida (7 %) sobre o valor da faturação bruta da loja. O prejuízo ou sacrifício patrimonial é particularmente intenso no período de encerramento do estabelecimento comercial, caso em que não havendo factoração não há qualquer retribuição; mas também é expressivo no período de funcionamento limitado, em que a retribuição devida poderá não corresponder ao valor de mercado da loja instalada e utilizada no centro comercial, em virtude da taxa muito reduzida sobre o volume de negócios. Trata-se, pois, de um apoio económico dado aos lojistas dos centros comerciais, com sacrifício ou prejuízo de montante equivalente imposto aos proprietários ou gestores desses centros.

Com este alcance - afetação de posições jurídicas com valor patrimonial - impõe-se, desde logo, conhecer se a afetação patrimonial resultante da imposição da isenção de uma prestação pecuniária com as características daquela "retribuição fixa" releva no âmbito de proteção da garantia constitucional da propriedade, prevista no artigo 62.º da CRP.

Não quer isto dizer que não possam estar envolvidos outros parâmetros constitucionais, como a liberdade de iniciativa económica (artigo 61.º) ou o princípio da igualdade (artigo 13.º), na medida em que existe uma ingerência no conteúdo de um contrato livremente celebrado pelas partes, através da qual se diferencia diferentes categorias de lojistas e diferentes categorias de promotores ou gestores de centros comerciais.

Simplesmente, a norma, em si mesma, ao impossibilitar o proprietário ou gestor do centro comercial de satisfazer o seu crédito pela cedência do uso da loja, apresenta-se prima facie como norma limitativa do direito de propriedade constitucional do credor. Não obstante a norma sindicada poder afetar a atividade laboral e produtiva do centro comercial, caindo debaixo da esfera de proteção do artigo 61.º da CRP, os seus efeitos repercutem-se no aproveitamento de um elemento do património do respetivo promotor ou gestor: o crédito nascido do contrato de utilização de loja em centro comercial. Daí que a limitação estadual tenha que ser aferida sobretudo pelo parâmetro do preceito constitucional consagrador do direito de propriedade.

14 - É hoje consensual na doutrina e na jurisprudência que o conceito de «propriedade» diretamente resultante do artigo 62.º da CRP abrange todas as posições jurídicas sobre bens de valor patrimonial. Na verdade, se a garantia constitucional da propriedade, na dimensão subjetiva ou individual, «cumpre a função de assegurar ao respetivo titular um espaço de liberdade na esfera jurídica-patrimonial, através do reconhecimento de pretensões jurídico-individuais de uso, aproveitamento e fruição, numa base exclusiva, possibilitando assim, uma formação responsável pela vida» (Acórdão 299/2020), então, perante a transformação das relações económicas na sociedade contemporânea, dificilmente se poderia aceitar que os projetos de vida económica da maior parte das pessoas apenas fossem realizados com a tradicional propriedade imobiliária. Para cumprir aquela função, a garantia constitucional da propriedade deve abranger todos os direitos subjetivos com valor patrimonial que a ordem jurídica reconhece ao respetivo titular para sua utilização e disposição. Com efeito, os direitos privados de conteúdo patrimonial apresentam-se sempre como «manifestação de um certo espaço de autonomia e de liberdade da pessoa e constitu(em) meio indispensável para a prossecução de projetos de vida livremente traçados e responsavelmente realizados» (Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, p. 540).

No sentido de um amplo conceito constitucional de propriedade, que não se esgota na propriedade do direito civil, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 62.º da CRP, que «o objeto do direito de propriedade não se limita ao universo das coisas. Parece seguro que ele não coincide com o conceito civilístico tradicional, abrangendo, não apenas a propriedade das coisas (mobiliárias e imobiliárias), mas também, a propriedade científica, literária ou artística (art. 42.º, 2), e outros direitos de valor patrimonial (direitos de autor, direitos de crédito, partes sociais), etc.» (Constituição da República Anotada, Vol. I, 4.ª ed. p. 800). No mesmo sentido, refere Rui Medeiros que não sofre contestação séria, «(Q)ue o conceito constitucional de propriedade privada abrange, não apenas o direito real de propriedade, mas também outros direitos patrimoniais privados (designadamente todos os direitos reais menores, a posse, os direitos materiais de autor, os direitos industriais, os direitos de crédito, os direitos sociais, etc.)» (Ensaio sobre A Responsabilidade Civil do Estado por Atos Legislativos, Almedina, p. 250).

Posição esta que o Tribunal Constitucional vem também assumindo uniformemente, como se afirma no Acórdão 491/02: «o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de "propriedade", tais como, designadamente, os direitos de crédito e os "direitos sociais" - incluindo, portanto, partes sociais como as ações ou as quotas de sociedades».

15 - Neste sentido alargado, podemos sem dúvida afirmar que o credor de uma relação obrigacional, enquanto titular do interesse patrimonial que o dever de prestar visa satisfazer, é também, à luz da Constituição, um proprietário. Aliás, no plano dos interesses, a posição jurídica do credor não é muito distinta do proprietário real, pois o que realmente satisfaz o seu interesse não é o poder de exigir de uma outra pessoa um certo comportamento (a prestação), mas a coisa - o bem in patrimonio - que se dá, seja quem for que lha dê ou lha preste, de forma voluntária ou coerciva (827.º do CC). Daí que, nos direitos de crédito, a obrigação se inscreva no "património" do credor, mas como não se pode inscrever o próprio objeto da prestação, inscreve-se o seu valor representativo. Como refere Antunes Varela, «Antes que a prestação debitória possa ser exigida ou seja efetivamente realizada, já o poder ideal do credor, economicamente considerado, representa (sempre que a prestação seja suscetível de avaliação pecuniária) um elemento atual do seu património» (Direito das obrigações, vol. I, Almedina, 2.ª ed. p. 144)

De onde se segue que o direito de crédito, emergente de uma relação jurídica efetivamente constituída, redutível a um valor pecuniário, forma um património com características estruturais - aproveitamento privado e poder de disposição - que permitem qualificá-lo como objeto da garantia constitucional da propriedade. Com efeito, o credor não tem apenas o poder de exigir a prestação do devedor; ele pode utilizar o valor económico do direito à prestação, quer como objeto de alienação ou de oneração, quer como instrumento de crédito. Através deste poder de disposição, que, em princípio, integra todos os direitos patrimoniais, o credor pode dispor dos variados meios, incluindo coercitivos, que o direito privado (civil e comercial) predispõe para o governo da relação creditícia. Nas palavras de Antunes Varela, «o credor é amo e senhor da tutela do seu interesse. Esta tutela depende da sua vontade, o funcionamento dela está subordinado à vontade do titular ativo da relação» (Ob. cit. p. 61). Significa isto que a utilização do direito de crédito como um valor objetivado do património do credor coloca no âmbito de proteção da garantia constitucional da propriedade as múltiplas posições jurídicas em que se manifesta o poder de disposição do credor.

Através da proteção constitucional da propriedade, as posições jurídicas que estruturam as relações entre credor e devedor são feitas valer em relação ao Estado. O credor, na qualidade de sujeito das providências em que a proteção legal do seu interesse se exprime, dispõe de uma pretensão defesa perante os poderes públicos desse interesse. Pretensão que, note-se, não significa o poder de exigir do Estado o cumprimento da obrigação. Como salienta Miguel Nogueira de Brito «não é porque o titular de um direito de crédito é protegido, nos termos da garantia constitucional da propriedade, num plano vertical, em face dos poderes públicos, que estes se tornam devedores de um direito de crédito; poderes públicos estão apenas obrigados a respeitar o direito de crédito na sua configuração jurídica própria, oriunda do direito privado, e a não lesar. O direito de crédito, por exemplo, na sua configuração jurídico-privada é um pressuposto de facto na perspetiva dessa consequência jurídica» (A Justificação da Propriedade Privada Numa Democracia Constitucional, Almedina, p. 845 e 846).

As faculdades e direitos que integram a relação creditícia e que conformam o poder de utilização e disposição do direito à prestação são qualificadas como propriedade em sentido constitucional quando associados a um direito de defesa em face do Estado. Como refere aquele autor «a garantia constitucional da propriedade significa apenas que a uma posição jurídica de direito privado é associada um direito subjetivo público de defesa ou manutenção dessa posição»

(Ob. cit. p. 846). A proteção constitucional da propriedade, como expressão de liberdade individual (de natureza defensiva ou negativa), permite configurá-lo com um direto de defesa com uma estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias. Na verdade, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente dito que, sendo a propriedade um pressuposto da autonomia das pessoas, sempre haverá alguma dimensão que permita a sua inclusão nos clássicos direitos de defesa (Acórdãos n.os 329/99, 425/2000, 187/2001, 391/2002, 139/2004, 159/2007, 421/2009, 218/2020 e 299/2020).

16 - A dificuldade em determinar se uma determinada posição jurídica privada adquirida em conformidade com as normas vigentes está garantida como direito de defesa perante as agressões do Estado começa quando se verifica que o direito de propriedade está incluído no título respeitante aos "Direitos e deveres económicos, sociais e culturais" e que, para além da dimensão de direito subjetivo, também se pode encontrar uma dimensão institucional-objetiva. À luz da ideia de vinculação social da propriedade presente nesta última dimensão, e que decorre da parte final do n.º 1 do artigo 62.º da CRP, em que se diz que "a todos é garantido o direito de propriedade privada [...] nos termos da Constituição", pode defender-se que há determinações do conteúdo e limites da propriedade excluídas do âmbito de proteção da garantia constitucional da propriedade. Como se referiu no Acórdão 299/202 «A dependência do direito de propriedade de um enquadramento social vinculativo é constante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que admite restrições ao direito de propriedade baseadas na "cláusula legal de conformação social da propriedade", mas sem que tal dispense a invocação dos parâmetros constitucionais que acolhem os interesses que lhe subjazem (Acórdãos n.os 76/1985, 486/1997, 194/1999, 329/1999, 322/2000, 138/2003, 148/2005)». Por este ponto de vista, o legislador não está impedido de subtrair poderes e faculdades ao direito de propriedade, desde que para tal encontre cobertura e justificação constitucional.

No que concerne aos direitos de crédito, tem o Tribunal Constitucional afirmado, desde o Acórdão 494/94, que o direito do credor à satisfação do seu crédito está incluído no âmbito de proteção da garantia constitucional da propriedade: «Da garantia constitucional do direito de propriedade privada, há de, seguramente, extrair-se a garantia (constitucional também) o direito do credor à satisfação do seu crédito. E este direito há de, naturalmente, englobar a possibilidade da sua realização coativa, à custa do património do devedor». De igual modo se concluiu no Acórdão 218/2020: «da inclusão dos direitos patrimoniais privados, amplamente entendidos, no âmbito da garantia constitucional da propriedade, a consequência que este Tribunal vem extraindo é, pois, a garantia das posições jurídicas ativas de índole patrimonial, mormente do direito do credor à satisfação do seu crédito, nele incluindo a faculdade da sua realização coativa à custa do património do devedor (neste sentido, vide, ainda, Acórdãos n.os 349/91, 516/94, 374/03, 273/04, 620/04 e 178/07 e 235/2011)».

Todavia, não deixa de ser uma conceção restritiva do objeto de tutela constitucional, já que o Tribunal também tem salientado que apenas são abrangidas pelo artigo 62.º da CRP as intervenções normativas que impliquem que o credor corra o risco (desproporcionado) de ver totalmente frustrada a possibilidade de satisfação do seu crédito. Estando em causa uma garantia patrimonial, o legislador tem ampla liberdade para escolher os meios de tutela do direito de crédito, ponderando os diferentes interesses em causa, pelo que, para ser coberta pela proteção constitucional da propriedade, não basta a afetação substancial da garantia. Assim, o Tribunal já considerou que limitações à extinção das obrigações por compensação (Acórdão 535/2001), à admissão do registo da ação pauliana (Acórdão 273/2004), ao arresto de ações (Acórdão 620/2004) ou decorrentes do direito de retenção (acórdão 698/2005), porque não vão ao ponto de determinar a privação do direito de crédito, não são objeto da tutela constitucional da propriedade.

Se cabe à lei modelar o conteúdo do direito de crédito, facultando a sua constituição e conferindo ao credor os meios ou instrumentos essenciais à sua utilização, disposição e tutela, então o espaço de liberdade na esfera jurídico-patrimonial do credor que assim é criado deve ser assegurado pelo direito fundamental de propriedade. Ou seja, uma vez constituído o direito de crédito, uma vez tornado possível o seu gozo no espaço de liberdade jurídico-patrimonial, o direito fundamental passa a incidir sobre um bem que já se encontra no poder do titular, passando a desempenhar a título principal a função clássica de defesa. De modo que, as alterações ao regime, na medida em que afetem negativamente a posição do credor, são agressões do poder público e como tal devem ser enquadradas. Como assinala Miguel Nogueira de Brito: «Os direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei são protegidos contra posteriores lesões pelo poder público do Estado, efetuadas designadamente através da lei, sem que isso envolva qualquer resultado paradoxal. Enquanto direito fundamental, isto é, direito subjetivo dos indivíduos, o artigo 62.º, n.º 1, garante a estes a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante» (ob. cit. p. 852).

Afinal, o critério decisivo à luz do qual se possa determinar que dimensões do direito constitucional de propriedade privada devem beneficiar do regime específico dos direitos, liberdades e garantias, é um critério estrutural: deve tratar-se de um direito radicalmente subjetivo, ou seja, de «direitos clássicos de defesa» que podem ser «diretamente invocáveis» em juízo. Assim, naquilo que representam de espaço de autonomia perante os poderes públicos, podem integrar o conteúdo básico da garantia constitucional da propriedade: (i) o direito de aceder à propriedade; (ii) o direito a não dela ser arbitrariamente privado; (iii) o direito de a transmitir inter vivos ou mortis causa; (iv) e o direito de a usar e fruir. Quando qualquer destas faculdades se apresentam com estrutura de direito de defesa de um espaço de liberdade e autonomia, justifica-se a respetiva qualificação como direito, liberdade e garantia (Acórdão 374/2003).

17 - É o que acontece com o «direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indeminização», como reiteradamente tem afirmado o Tribunal Constitucional (Acórdãos n.os 329/1999, 377/1999, 517/1999, 187/2001, 159/2007 e 421/2009). E assim é, porque, como se refere no Acórdão 299/2020, «a dimensão de proteção contra a privação da propriedade - ínsita nos n.os 1 e 2 artigo 62.º da CRP, relativamente à requisição e à expropriação, mas que também pode abranger outros atos ablativos (Acórdãos n.os 391/2002, 491/2002 e 159/2007) - não pode deixar de integrar o conteúdo da propriedade que o legislador não pode desvirtuar, sob pena de não respeitar o mínimo da liberdade de apropriação que permita o desenvolvimento da personalidade individual».

Isso não significa que o único direito fundamental protegido no artigo 62.º seja o direito à justa indemnização pelos atos ablativos da propriedade. O que está em causa é, antes demais, assegurar a liberdade do proprietário no domínio jurídico-patrimonial, função defensiva que vai muito para além da mera exigência de justa indemnização. De modo que o proprietário tem o direito de assegurar a permanência da sua propriedade, independentemente do direito de ser compensado pela lesão da mesma, que não implica necessariamente aquela permanência. Como refere Miguel Nogueira de Brito, «enquanto do n.º 1 do artigo 62.º se pode extrair a ideia do direito fundamental de propriedade como direito de defesa, ou "direito de cada um a não ser privado da sua propriedade", do n.º 2 retira-se o direito à justa indemnização em caso de privação da propriedade por razões de interesse público» (ob. cit. pág. 856).

Assim, quando a norma viola um direito de crédito, exonerando o devedor ou extinguindo garantias patrimoniais, o interesse primário do credor que pretende recorrer à justiça é o de eliminar a violação do direito constitucional de propriedade e não o de obter compensação por tal violação.

Tanto basta para se concluir que o direito de crédito devido ao proprietário ou gestor de centro comercial com fonte nos contratos de instalação de lojistas está, indiscutivelmente, sob a tutela do disposto no artigo 62.º da Constituição, sendo garantido pela Lei Fundamental; e que a norma que isenta os lojistas do pagamento da "retribuição fixa" priva o credor de utilizar e dispor de um direito que faz parte integrante o seu património.

18 - A intervenção do legislador na componente remuneratória dos contratos de instalação em centros comerciais constitui uma verdadeira restrição, como tal sujeita ao regime dos "limites dos limites" previsto no artigo 18.º da CRP. Com efeito, estamos perante uma restrição legal nos casos em que "o âmbito de proteção de um direito fundado numa norma constitucional é direto ou indiretamente limitado através da lei. De um modo geral, as leis restritivas de direitos «diminuem» ou limitam as possibilidades de ação garantidas pelo âmbito de proteção da norma consagradora desses direitos e a eficácia de proteção de um bem jurídico inerente a um direito fundamental" (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª Ed., Almedina, p. 1276).

É o que se passa com a norma do n.º 5 do artigo n.º 168.º-A da LOE de 2020, introduzida pela Lei 27-A/2020 de 24 de julho: elimina da esfera jurídica do promotor ou gestor do centro comercial parte da retribuição - «a retribuição fixa» - devida pelos lojistas como contrapartida da cedência de um espaço (loja) no centro comercial. A norma daquele preceito, ao desonerar os lojistas de cumprir a parte mais substancial da retribuição, quebra a relação normal que existe entre o direito à prestação e o dever de prestar, sem que seja satisfeito o direito do credor à prestação. Em regra, é o cumprimento do dever de prestar que, satisfazendo o interesse do credor, extingue o direito à prestação, quer o mesmo seja efetuado pelo próprio devedor, quer pela autoridade, em execução específica. Porém, aquela norma não só priva o promotor ou gestor do centro comercial de exigir o cumprimento da retribuição fixa, de acordo com a sua vontade, como retira do seu património um elemento que é suscetível de comércio jurídico.

É certo que na determinação do conteúdo e limites da propriedade, «nos termos da Constituição», o legislador tem liberdade para atribuir nova conformação às situações jurídicas já adquiridas. Mas, a possibilidade que lhe assiste não pode deixar de considerar as particularidades e a função do objeto da propriedade. Pode mesmo afirmar-se que a liberdade de conformação legislativa cresce na medida em que aumenta a relação social do objeto de propriedade, a ser avaliada a partir da peculiaridade e função deste. Como se refere no Acórdão 299/2020, «a margem de liberdade do legislador para determinar o conteúdo e limites da propriedade é tanto mais alargada quanto mais o objeto da propriedade estiver ao serviço da satisfação de um conjunto diversificado de necessidades sociais e económicas, de acordo com o programa constitucional. Nesses casos, a prossecução dos interesses sociais só pode ser efetuada com diminuição do âmbito dos poderes e faculdades que formam o conteúdo subjetivo da propriedade privada. Por isso, quando a utilização e a decisão sobre um bem não se circunscrevem à esfera do proprietário, antes tocam interesses do todo social, a cláusula de conformação social da propriedade contida no artigo 62.º da CRP possibilita ao legislador ordinário tomar em consideração interesses dos não proprietários contrapostos aos interesses dos proprietários, modelando ou restringindo o direito de propriedade de acordo com parâmetros constitucionais pertinentes».

Assim, se a liberdade do legislador depende do grau de vinculação social do objeto da propriedade, há que reconhece que o direito de crédito, enquanto manifestação de propriedade, até pode gozar de uma garantia constitucional mais sólida que o direito de propriedade real. É que, apesar de se tratar em ambos os casos de direitos patrimoniais, não têm a mesma aptidão para a prossecução de interesses socioeconómicos. A diferença estrutural e a função exercida por cada um dos direitos dá para ver que a subordinação da propriedade real (ou outras categorias de propriedade) a uma "função social" tem uma dimensão e extensão que direito de crédito não pode atingir.

Na verdade, enquanto na relação de propriedade (como nos outros direitos reais) a utilização e disposição do bem não se circunscrevem à esfera do proprietário, antes tocam interesses de uma multidão de sujeitos passivos - os não proprietários -, que têm o dever geral de não ingerência ou de abstenção, na relação creditícia, o direito de crédito afirma-se em face de um sujeito particularmente individualizado - o devedor -, que tem o dever específico de satisfazer o interesse do credor.

Ora, esta diferença estrutural - num caso multilateral e noutro bilateral - naturalmente que não pode deixar de ter consequências no plano da configuração das posições jurídicas objeto da garantia constitucional da propriedade. O direito de propriedade real, pela especificidade do seu objeto (v.g. propriedade dos solos), desempenha uma função social suscetível de o sujeitar a uma disciplina de direito público, nomeadamente em matérias de urbanismo, ambiente ou património cultural, que restringe as faculdades de uso e disposição em nome do interesse geral; já o direito de crédito, que resulta de um contrato, não está ao serviço de um interesse social tão abrangente, na medida em que tem por objeto imediato uma prestação que é incindível da pessoa do devedor. Por isso, a função social do contrato, revelada através de normas imperativas que limitam a autonomia individual ou de normas supletivas destinadas a integrar o conteúdo do contrato ou disciplinar a sua execução, apelando a critérios de equidade (artigo 437.º do CC), tende sobretudo a proteger a parte considerada mais vulnerável. E se a intervenção da lei na relação contratual não procurar apenas a justiça contratual, mas também a proteção de relevantes interesses coletivos (v.g promoção e preservação emprego, desenvolvimento do mercado, etc.), então só através da mediação ou participação do devedor eles poderão ser conseguidos.

Daqui resulta uma significativa diferença na margem de liberdade que deve ser deixada ao legislador: enquanto a função social da propriedade real exprime maior amplitude e intensidade de restrições constitucionalmente admissíveis, no direito de crédito a margem de liberdade do legislador é muito limitada, uma vez que o crédito é produto de prestações próprias, investimentos e despesas que o credor realizou no exercício da liberdade de iniciativa económica privada. Esta categoria de propriedade, que não reclama obrigações para com a comunidade, justifica uma garantia constitucional mais forte, uma vez que é expressão particular da função de liberdade no domínio jurídico-patrimonial do credor.

Sobretudo quando a intervenção do legislador limita ou extingue o poder de disposição do crédito, bem como o poder de exigir a prestação do devedor. A privação do poder de disposição e do poder de exigir o cumprimento - poderes juridicamente tutelados - provoca limitações no âmbito da autonomia privada do credor. É nesta dimensão subjetiva patrimonial - direito a não ser privada da propriedade - que a jurisprudência constitucional considera o direito de propriedade como direito "de natureza análoga" aos direitos, liberdades e garantias, por essencial à realização da autonomia do homem como pessoa (Acórdãos n.os 329/99, 377/99, 159/2007, 299/2020). Como se refere neste último Acórdão, «as limitações e restrições à faculdade de disposição da propriedade, desde as que afetam a liberdade de contratar até às que respeitam à liberdade de estipulação do contrato, devem salvaguardar uma área de autodeterminação dos proprietários no trato privado. A autonomia - e o próprio negócio jurídico - cessarão se o peso imperativo das normas que determinam o conteúdo e limites da propriedade eliminar o espaço autónomo de liberdade que se reputa valor fundamental. Por isso, os limites postos aos movimentos que o titular faça para dispor da própria coisa entram no domínio da tutela da personalidade e liberdade do sujeito, e não do seu interesse em servir-se da coisa dentro de certos limites».

A atividade do legislador na determinação de limites ao direito patrimonial encontra-se assim submetida a limites explícitos noutros normativos constitucionais, mas também a limites não expressos, decorrentes de outras regras e princípios constitucionais. Da própria garantia constitucional da propriedade consagrada artigo 62.º da CRP, que garante a propriedade "nos termos da Constituição", decorre que o legislador, quando impõe limitações e restrições a posições jurídico-patrimoniais já adquiridas, está vinculado a colocar os interesses do proprietário e os aspetos do interesse geral (o bem comum) numa relação justa de equilíbrio e compensação, bem como a satisfazer as exigências jurídico-constitucionais estabelecidas no n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.

No caso dos autos, não estão em causa os limites formais das restrições, como o caráter geral da lei restritiva ou a obrigação de indicar o direito restringido, nem a atribuição de efeito retroativo à norma impugnada - que, a existir, não decorre diretamente dessa norma, mas de norma ulterior, aqui não apreciada e que sempre teria caráter residual relativamente à compatibilidade com a Constituição da própria materialidade da solução normativa em crise, pois, verificando-se a inconstitucionalidade em razão do conteúdo da norma, uma hipotética inconstitucionalidade em razão da aplicação no tempo sempre estaria logicamente prejudicada.

E o mesmo se diga da garantia do conteúdo essencial do direito constitucional de propriedade, que apenas não foi afetado pela norma sindicada porque permaneceu algum espaço de atividade do credor no âmbito da autodeterminação. Com efeito, apesar de não ter sido prevista qualquer compensação pela supressão do direito de crédito, o conteúdo essencial do direito fundamental não foi totalmente eliminado, na medida em que a restrição teve por alvo apenas a retribuição fixa, deixando ao credor um espaço de autodeterminação quanto à utilização e disposição da retribuição variável.

De modo que o controlo da atividade do legislador na restrição ao direito de crédito dos promotores e gestores dos centros comerciais, concretizada pelo n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 2/2020, reconduz-se ao princípio da proporcionalidade, que importa de modo especial analisar.

19 - Como é sabido, o princípio da proporcionalidade, como critério de apreciação de leis restritivas exige a averiguação dos seguintes requisitos: adequação ou idoneidade, exigibilidade ou necessidade e proporcionalidade em sentido restrito ou não desrazoabilidade.

Na síntese de Gomes Canotilho e Vital Moreira, «o princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos» - cf. Constituição..., cit., pp. 392-393.

A mesma orientação tem expressão na jurisprudência do Tribunal Constitucional: «o princípio da proibição do excesso analisa-se em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade. O subprincípio da idoneidade determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício frívolo de valor constitucional. O subprincípio da exigibilidade determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional» (Acórdão 123/2018).

O ponto de partida para saber se a norma questionada satisfaz as várias dimensões do princípio da proporcionalidade é determinar se ela tem em vista alcançar um fim legitimo à luz da Constituição. Com efeito, o objetivo prosseguido com a restrição de um direito fundamental tem de ser em si mesmo constitucionalmente legítimo e, como se prescreve no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, limitar-se «a salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». É o que diz o Tribunal Constitucional: «[A] aplicação do princípio da proibição do excesso, desdobrado nos seus três «testes» ou subprincípios», pressupõe dois passos omitidos na decisão recorrida. O primeiro passo é verificar da existência de uma restrição a um direito fundamental ou da afetação negativa de uma outra grandeza axiológica a cujo respeito e promoção a ordem constitucional vincula o legislador ordinário; a proibição do excesso que decorre do princípio do Estado de direito é a proibição do sacrifício desproporcionado do que seja valioso, pelo que é imprescindível determinar-se a natureza e o alcance do desvalor que atinge o comportamento estadual. O segundo passo é a identificação de um fim legítimo a cuja prossecução o comportamento estadual restritivo se encontra ordenado; se a finalidade de uma medida que sacrifica valores constitucionais for censurada ou proscrita pela ordem constitucional, não há nenhuma razão válida para ponderar a admissibilidade do sacrifício - nenhum bem cuja promoção possa justificar o emprego de um meio desvalioso» (Acórdão 349/2018).

Parece claro que o fim imediato da norma fiscalizada é apoiar os lojistas instalados em centros comerciais que foram vítimas dos efeitos económicos e sociais gerados pela pandemia da doença Covid-19. Aquilo que o n.º 5 do artigo 168.º-A faz é isentar os lojistas, até 31 de dezembro de 2020, do pagamento de parte da retribuição pecuniária - a fixa - devida como contrapartida do direito de utilização dos respetivos espaços nos centros comerciais, passando durante esse período a retribuição a ser exclusivamente determinada na sua totalidade pela remuneração percentual. O preceito surgiu no quadro geral de medidas tomadas para minimizar os efeitos gerados pela pandemia, especialmente o encerramento de estabelecimentos comerciais e de atividades económicas (Exposição de Motivos da Proposta de Lei 33/XVI, que esteve na génese da Lei 27-A/2020, de 24 de julho); na «Nota justificativa» da proposta de aditamento desse artigo (aprovada após discussão na especialidade) pode ler-se o seguinte: «[q]uanto às rendas, ao seu valor e ao seu pagamento, importa sublinhar que as situações de perda de rendimentos por parte do inquilino devem ser respondidas não com a acumulação de dívida para o inquilino pagar mais tarde, mas sim com a redução proporcional do valor da renda. Tal realidade deverá estar presente quer no arrendamento habitacional, quer no arrendamento não habitacional, quer ainda, em contratos atípicos como os que vigoram para os pequenos lojistas nos centros comerciais».

Note-se, no entanto, que a norma que consagra a isenção da retribuição fixa não tem uma função predominantemente corretiva, tendente a harmonizar interesses conflituantes dos contratantes e a garantir o equilíbrio prestacional. A limitação à liberdade de estipulação contratual que ela consubstancia não espelha, de modo significativo, um propósito legislativo de garantir a justiça contratual. O seu caráter conjuntural e transitório associa-lhe uma ideia de compensação solidária pelos prejuízos que os lojistas sofreram com a pandemia, sentido que traduz mais uma determinada conceção de justiça distributiva. Neste ideário, o n.º 5 do artigo 168.º-A destinou-se a apoiar os lojistas instalados em centros comerciais afetados pela crise sanitária (e não todos e quaisquer lojistas - note-se, até, que a "Nota justificativa», a dado passo, usa a expressão «pequenos lojistas»), isto é, compensá-los pelas perdas que sofreram em resultado da pandemia.

Portanto, numa perspetiva mais abrangente, pode afirmar-se que a norma fiscalizada teve em vista, por um lado, mitigar os prejuízos sofridos pelos titulares de estabelecimentos comerciais em virtude das medidas de encerramento ou restrição de horários de funcionamento dos centros comerciais e do abrandamento do comércio e, por outro, ajudar à sua recuperação, no âmbito de uma estratégia global destinada a evitar o colapso das empresas e a promover a retoma da economia.

É claro que tais desígnios estão cobertos por bens constitucionais suscetíveis de fundamentar a restrição a direitos fundamentais: por um lado, o princípio da solidariedade, específico do Estado Social (artigos 1,º e 9.º, alínea d), da CRP); por outro, o estímulo à atividade empresarial e, em termos mais amplos, a promoção do desenvolvimento económico, um dos fatores que contribuem para o aumento do bem-estar social e económico e, em última análise, para uma melhoria da qualidade de vida das pessoas (artigos 81.º, 86.º e 90.º).

Note-se, no entanto, que se tratam de objetivos constitucionais em que o legislador goza de grande discricionariedade, quer quanto às áreas de intervenção (investimento, inovação, etc.), quer quanto aos meios (subvenções, incentivos fiscais, ajudas materiais, etc.).

20 - Decerto, uma medida que consiste na eliminação da componente fixa da contraprestação pecuniária devida por lojistas instalados em centros comerciais, reduzindo os encargos contratualmente estipulados, é apta a alcançar tal objetivo. Na verdade, se a finalidade específica e imediata é apoiar os lojistas de centros comerciais afetados pela crise sanitária, ou seja, atenuar os prejuízos económicos que sofreram em resultado da pandemia, naturalmente que a isenção da retribuição fixa é uma medida idónea para se atingir tal objetivo.

Não se trata de formular qualquer juízo de mérito sobre a solução adotada pelo legislador, no sentido de saber se ela é a mais adequada ou a mais razoável; trata-se apenas de ajuizar em abstrato sobre se a isenção da retribuição fixa é de natureza a produzir aquele objetivo. Sendo assim, a norma inscreve-se objetivamente numa relação de causa-efeito com o fim pretendido pelo legislador.

A requerente entende que a norma sindicada não se revela adequada à finalidade de prestar apoio económico aos lojistas dele carecido, uma vez que se aplica a todos os lojistas, independentemente das perdas em que tenham, ou não, incorrido. Realmente, a medida, pretendendo auxiliar os lojistas de centros comerciais prejudicados pelas imposições de proibição ou diminuição de atividade, é afinal aplicável a todos eles, tendo, ou não, sofrido perdas.

Todavia, não só se considera suficiente uma aptidão parcial, como se entende que a eventualidade de não concretização, no caso individual, do fim pretendido não demonstra por si só a inaptidão da medida. No plano da adequação, basta que a medida, no seu núcleo e estrutura fundamentais, seja capaz de prosseguir a sua finalidade, o que no caso, repete-se, efetivamente acontece: é uma medida destinada a apoiar os lojistas instalados em centros comerciais no contexto da crise pandémica e que, para tanto, suprime a componente fixa da contrapartida a que estão contratualmente vinculados, existindo uma inegável "conexão racional" entre o conteúdo e o propósito da medida. Saber se esses dois vetores são inteiramente sobreponíveis, isto é, se a medida extravasa, ou não, no plano pessoal, o seu objetivo, abrangendo, também, titulares de estabelecimentos comerciais não carecidos de tutela, é questão que não interfere com o teste da sua aptidão. Nesta sede, não se exige uma correspondência total entre meio e fim: se uma execução parcial do objetivo satisfaz o requisito da adequação, por maioria de razão - numa perspetiva puramente de aptidão - uma sua concretização excessiva não comprometerá a superação desse teste. Neste sentido, refere Jorge Reis Novais que a aptidão deve ser aferida «não no sentido de uma exigência que só se considera cumprida quando ao meio realiza integral ou plenamente o fim visado, mas bastando-se, antes, como uma aproximação sensível, ainda que parcelar, do fim pretendido» (Os Princípios Constitucionais Estruturais, Coimbra Editora, 1.ª ed. Reimpressão, p. 168). Não há, assim, nenhuma exigência de que os meios escolhidos satisfaçam plenamente o propósito, sendo suficiente uma realização parcial do propósito - desde que esta realização não seja marginal ou desprezível.

O mesmo não se pode dizer, é claro, se a finalidade da norma fosse a supressão de um qualquer desequilíbrio contratual. De facto, a isenção do pagamento da parcela da renda fixa devida não seria um meio adequado a reestabelecer a equação económica do contrato, na medida que os lojistas não foram totalmente privados do gozo do espaço cedido no centro comercial, nem esse espaço deixou de ser destinado ao fim para qual o contrato foi constituído. De modo que, num juízo «ex ante», a supressão da parte da retribuição que corresponde à ocupação do espaço não seria uma solução objetiva que contribuísse para reposição do equilíbrio que as partes, por acordo, livremente alcançaram.

21 - O que já se pode questionar é se tal apoio, nos termos previstos na norma sindicada e à custa de outros direitos e interesses, é o meio que envolve menor lesão dos interesses dos promotores ou gestores dos centros comerciais. O princípio da necessidade, enquanto subprincípio do princípio do excesso, impõe que se recorra ao meio menos restritivo para atingir o fim em vista. De modo que a norma será excessiva se existir um meio alternativo menos oneroso que se mostre comprovada e igualmente eficaz na prossecução da mesma finalidade.

Para ajudar as empresas a ultrapassar as dificuldades provocadas pela pandemia, garantindo estabilidade e a recuperação económica, o legislador dispõe de diversos mecanismos de apoio, com maior ou menor eficácia na realização desse objetivo. No caso vertente, para alcançar esse fim, o legislador optou por isentar os lojistas do pagamento da retribuição fixa. Ora, o juízo de indispensabilidade implica a ponderação dessa medida com soluções alternativas, mas não impõe necessariamente uma delas. Pelo contrário, a única constatação de relevo a que se pode chegar é a de que a solução escolhida, pelo prejuízo provocado no património de outras empresas - os promotores e gestores dos centros comerciais - não é indispensável à proteção dos estabelecimentos instalados os centros comerciais.

As medidas de recuperação económica dos lojistas alternativas à isenção da retribuição fixa que no quadro da constituição económica (artigos 81.º, 86.º e 90.º) estão disponíveis podem ser muito variadas: linhas de crédito, seguros de crédito, financiamento no mercado de capitais, moratórias bancárias, moratórias de rendas, redução de rendas, medidas fiscais (pagamentos por conta, tributações autónomas, prazos de reporte de prejuízos, etc.), apoios financeiros diretos, etc. É evidente que isoladamente não têm igual aptidão e eficácia na proteção economia, a grande maioria reveste natureza prestacional, e só algumas provocam efeitos ablativos.

Ainda assim, em tese, podemos equacionar algumas medidas menos restritivas de apoio aos lojistas instalados em centros comerciais (sendo que a mesma medida pode comportar variações), tais como: (i) dilação («moratória») do pagamento das contraprestações devidas, sem as consequências legalmente associadas ao não cumprimento pelo arrendatário; (ii) supressão da componente fixa da contraprestação devida, mas apenas para os lojistas cujos estabelecimentos tenham sofrido uma quebra do volume de vendas mensal (ou uma quebra do volume de vendas mensal superior a x); (iii) redução da componente fixa da contrapartida devida proporcionalmente à redução da faturação mensal do estabelecimento titulado pelo lojista (pressupondo-se, assim, uma quebra no volume de vendas), estabelecendo-se, ou não, um limite máximo para essa redução; (iv) apoios (financeiros) diretos do Estado para compensação dos prejuízos e auxílio à recuperação (sujeitos, ou não, à verificação de determinados pressupostos).

Não obstante cada uma destas alternativas não apresentar o mesmo grau de eficiência na realização do fim visado pelo legislador, nem a mesma dimensão do prejuízo infligido aos promotores e gestores dos centros comerciais, é possível demonstrar que era possível ao legislador, no contexto económico e social em que produziu a norma sindicada, escolher uma medida menos lesiva e tão eficaz na prossecução do fim como aquela que foi efetivamente escolhida - a isenção da retribuição fixa.

Em primeiro lugar, no quadro da responsabilidade social da comunidade, o recurso ao auxílio económico (financeiro ou fiscal) às empresas especialmente atingidas pelos efeitos da pandemia, na medida em que onera todos, produziria a mesma finalidade, sem agravar o património dos promotores e gestores dos centros comerciais. Com efeito, num Estado Social os "ónus sociais" devem ser suportados por esse mesmo Estado, ou seja, pela comunidade em geral, e não por um determinado grupo - os proprietários ou gestores dos centros comerciais. A pandemia e as medidas de proteção sanitária adotadas pelas autoridades públicas, para além de afetarem o modo de vida das comunidades, tiveram impacto na vida das empresas, quer nas dos proprietários e gestores dos centros comerciais, quer nas empresas comerciais de que os lojistas são titulares. Ora, na hipótese destes ou alguns destes serem os mais prejudicados, as obrigações de auxílio ou socorro económico pelo risco da pandemia (um risco natural) pertencem a toda a comunidade e não a um determinado grupo. Por isso, na determinação do conteúdo e limites da propriedade, sacrificando direitos patrimoniais privados, o legislador, ao abrigo do n.º 1 do artigo 62.º da CRP, tem que tomar em consideração o princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, através de previsão de mecanismos de compensação financeira de tal sacrifício. Só assim é que é possível conformar simultaneamente o interesse geral e o interesse do proprietário. O que significa que a inclusão de um dever de compensação naquela determinação é suscetível de ser menos lesiva do que a exclusão desse mesmo dever. Mas, ao decidir isentar os lojistas do pagamento da retribuição fixa, a norma questionada acabou por transferir para as entidades privadas a responsabilidade social do Estado por aquele risco. É evidente que neste domínio, o princípio da solidariedade impõe-se como um princípio constitucional conformador que obriga o legislador a adotar medidas de ajuda económica e social aos mais prejudicados (artigos 1.º e 9.º, alínea d), da CRP). Porém, quando essas medidas limitam direitos patrimoniais de outros indivíduos ou grupos de indivíduos, o legislador tem o dever de não os sujeitar a especiais sacrifícios, que não atingem a generalidade das pessoas ou, pelo menos, o dever de lhes atribuir compensações adequadas. Concluímos deste modo que, perante um encargo que onera todos os cidadãos, o legislador poderia ter adotado medidas menos restritivas do que transferir esse encargo apenas para os proprietários dos centros comerciais.

Em segundo lugar, certamente que a agressão ao património do proprietário do centro comercial seria menor se a supressão da componente fixa da contraprestação apenas beneficiasse os lojistas cujos estabelecimentos tivessem sofrido uma quebra do volume de vendas mensal (ou uma quebra do volume de vendas mensal superior a x). Não consta expressamente da norma questionada que a mesma se destina aos lojistas de centros comerciais que sofreram perdas (os destinatários naturais da medida), ao invés, o seu teor literal abrange todos os lojistas instalados em centros comerciais que tenham celebrado o tipo social de contrato que vimos analisando. Ainda que se pudesse presumir que, no contexto pandémico, todos os lojistas sofreram prejuízos (maiores ou menores), mesmo aqueles - independentemente da sua dimensão e robustez económica - cujos estabelecimentos se mantiveram abertos, quer por força da redução dos horários de funcionamento, quer por força da menor afluência das pessoas aos centros comerciais, não há dúvida de que a norma abrange indistintamente os lojistas que efetivamente tiveram prejuízos e os que não tiveram. Ora, recordando o objetivo imediato da norma sindicada, que acima descrevemos como a prestação de apoio aos lojistas instalados em centros comerciais afetados pela crise sanitária, compensando-os pelas perdas em que incorreram por causa dela, temos que uma medida de menor alcance pessoal - aplicável apenas a quem teve prejuízos efetivos - assegura a prestação de apoio económico aos lojistas nessa situação. Daí que se possa dizer que estamos perante uma via alternativa menos agressiva capaz de alcançar o fim almejado pelo legislador. E, bem assim, de o fazer com o mesmo grau de intensidade (ou um grau de intensidade muito próximo), expresso pela supressão da componente fixa da contrapartida devida pelos lojistas de centros comerciais que o legislador visou proteger. Pode-se, pois, dizer que, numa perspetiva concreta, há outra medida que, além de menos lesiva, é eficaz em medida idêntica à que resulta da norma sindicada. Por outro lado, ao abranger lojistas instalados em centros comerciais que não tenham sofrido prejuízos em resultado da pandemia, a norma fiscalizada confere uma proteção excessiva face ao resultado pretendido pelo legislador e, como tal, desnecessária.

Em terceiro lugar, no contexto em que norma sindicada foi aprovada, o legislador acabou por reconhecer que a isenção do pagamento da retribuição fixa não é uma medida estritamente indispensável. Com efeito, para a maioria dos titulares dos estabelecimentos comerciais afetados pelos efeitos da pandemia, que têm o mesmo tipo de dificuldades que os lojistas dos centros comerciais, o legislador criou um regime de moratórias no pagamento das rendas devidas, sem as consequências legalmente associadas ao não cumprimento pelo arrendatário (artigos 7.º e 8.º da Lei 4-C/2020, de 6 de abril). Aliás, a moratória no pagamento de rendas foi também aplicada a estabelecimentos comerciais instalados em centros comerciais de tendência descentralizadora - em que são os lojistas quem gere os serviços comuns -, assim como aos lojistas de centros comerciais de tendência centralizadora - caraterizados pela unidade de gestão -, mas não vinculados ao tipo de contrato previsto na norma impugnada. Significa isto que para a grande maioria dos estabelecimentos comerciais que sofreram os efeitos da pandemia, o próprio legislador considera a moratória legal do pagamento de rendas uma medida eficaz à recuperação da atividade económica. Resta saber porque é que em relação aos lojistas abrangidos pelo n.º 5 do artigo 168.º da Lei 2/2020, de 31 de março, impôs uma medida mais lesiva para atingir o mesmo objetivo.

Não parece que possa argumentar-se que a isenção da retribuição fixa não é desnecessária porque, embora mais lesiva do que a moratória, esta é menos eficaz. É que, como vimos, o contrato atípico de instalação de lojista em centro comercial tem uma "estrutura associativa" ou de cooperação que tem em vista o incremento do lucro: o lojista esforça-se por exercer uma atividade lucrativa; mas são os serviços do promotor ou gestor (promocionais, publicitários, gestão fiscalização, etc.) que captam a clientela necessária ao aumento do volume de vendas e à valorização dos estabelecimentos comerciais. De modo que, sem a parte mais substancial da retribuição, o proprietário do centro comercial pode ficar limitado na prestação dos serviços necessários ao aumento do lucro dos lojistas. E, sendo assim, a isenção do pagamento da retribuição fixa é mais restritiva do património dos gestores dos centros comerciais, mas também pode revelar-se menos eficaz na recuperação económica dos lojistas.

Concluímos, pois, que a restrição prevista na norma fiscalizada não supera o teste da necessidade: num juízo negativo, a isenção da retribuição fixa devida pelo gozo de um espaço no centro comercial não se apresenta como a menos lesiva, e pode não ser a mais eficaz.

22 - A constatação de que neste tipo de contratos a isenção do pagamento da retribuição fixa pode não otimizar o grau de eficácia ou de realização dos interesses em causa - o património do proprietário do centro comercial e a recuperação económica do lojista - põe em luz a falta de equilíbrio entre custos e benefícios. De facto, esses interesses não são potencialmente conflituantes: a recuperação económica do lojista tanto pode ser iniciada pelo lado da despesa - como pretende a norma sindicada - como pelo lado da receita; a uma diminuição do encargo do lojista com a retribuição fixa corresponde necessariamente uma diminuição equivalente na receita do gestor do centro comercial; com menos receita, menor capacidade tem o gestor para prestar os serviços que valorizam e aumentam o lucro do lojista. Portanto, o custo imposto ao promotor ou gestor pode não estar numa proporção aceitável ou tolerável com o benefício concedido ao lojista.

Tudo está em saber, ao fim e ao cabo, se a norma sindicada viola o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, ao implicar uma ablação integral, ainda que transitória, dos créditos sobre os lojistas relativos às respetivas contraprestações pecuniárias fixas. Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros «a máxima de proporcionalidade em sentido estrito convola-se na exigência de que o sacrifício imposto a uma das partes não vá além de uma justa medida, daquilo que é ordenado e legitimado pela referência reconhecida à posição da outra parte ou ao interesse constitucionalmente tutelado. Aliás, de acordo com a denominada lei da ponderação, quanto maior for a intensidade e a premência da realização do direito ou bem constitucional que justifica essa mesma intervenção - e vice-versa [...]. A ideia de proporcionalidade em sentido estrito vela pela necessidade de evitar soluções legais demasiado desequilibradas, em que a justa cedência de um direito em face de outro se transforme, por falta de contenção do legislador, numa verdadeira capitulação» (Constituição Portuguesa Anotada - Vol. I, 2.ª Ed. revista, Lisboa, 2017, pp. 277-278).

Ora, a lei que determina a eliminação pura e simples da componente básica da retribuição devida nos termos dos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais tem uma consequência óbvia: permite que o lojista não cumpra aquilo a que se autodeterminou ou autovinculou. Daí que uma regra excecional à autonomia das partes, justificada na maior vulnerabilidade do lojista, não pode deixar de considerar a equação económica do contrato. Com efeito, para haver justa medida na distribuição de benefícios e sacrifícios na relação contratual afetada ou perturbada pela pandemia, não pode deixar de se considerar a função económico-social do contrato e o equilíbrio contratual assumido pelas partes. Para saber em que medida a recuperação económica dos lojistas pode determinar a limitação da posição jurídico-patrimonial que o gestor do centro comercial tem na relação que mantém com os lojistas, no tocante à exploração comercial do estabelecimento, é necessário averiguar o equilíbrio inicial da relação contratual. Só desse modo se consegue um mínimo de justiça no conteúdo de medidas cujos efeitos interferem no equilíbrio contratual.

O que há de singular no contrato de utilização de loja em centro comercial, já o referimos várias vezes, é a ligação do promotor ou gestor ao processo dinâmico da atividade negocial nele exercida. O gestor não se limita a conceder o gozo de um espaço; presta todo um conjunto de serviços com importância decisiva no rendimento da atividade dos lojistas. De facto, pesam na valorização de cada uma das lojas do centro uma série de fatores externos que nada têm a ver com a iniciativa do lojista, mas sim com a conceção e a gestão do centro. Daí que nesse tipo de contratos seja vulgar que a retribuição exigível do lojista inclua uma parte variável, consoante o rendimento bruto ou líquido da loja em cada mês, e uma parte fixa que garante um montante mínimo de retribuição, de modo a acautelar a álea da parte variável. Decorre daqui, por um lado, que a componente mais relevante da remuneração para o proprietário ou promotor do centro comercial assenta na renda fixa mínima, a qual, pelo seu caráter certo e determinado, não pode deixar de constituir o elemento fundador do interesse daquele em contratar, e, por outro, a renda variável é somente um acrescento à verdadeira contraprestação dos serviços prestados pelo centro comercial e que, nalguns casos, pode nem sequer existir.

A retribuição fixa tem assim que ser considerada no contexto do programa obrigacional e em função deste. Se o gestor for privado da parte mais substancial da retribuição corre o risco de ser incapaz de implementar tal programa, de cumprir o plano de maximização dos lucros e de proporcionar aos lojistas as vantagens económicas que esperam obter com os seus serviços. De tal modo que, feitas todas as contas, a supressão da retribuição fixa representa um sacrifício patrimonial particularmente grave para o promotor ou gestor do centro comercial, ao quebrar ou comprometer seriamente o vínculo sinalagmático, tornando mais evidente o desequilíbrio entre as partes contratantes a que se aludiu.

A verdade é que o contrato de instalação de lojista em centro comercial reflete ideias de interligação, complementaridade e coesão no funcionamento do complexo comercial que o legislador não pode deixar de ter presente quando pretende atuar restritivamente no âmbito dessa relação. Com efeito, à decisão de restringir subjaz um contrato que une duas partes - lojista e gestor - na prossecução de um objetivo comum: obtenção de um elevado volume de negócios. Assim, a partilha do risco do negócio e o fim comum impõem que a resposta a uma situação perturbadora do programa prestacional, como é o caso da pandemia Covid-19, não deva ser aproveitada por uma das partes à custa da outra.

Mas é isso o que se verifica com a isenção do pagamento da retribuição fixa: todo o peso da ajuda concedida aos lojistas é suportado unilateralmente por um dos direitos e interesses em ponderação. À luz da justiça contratual, o sacrifício que a supressão da retribuição fixa causa aos promotores ou gestores dos centros comerciais não está numa proporção aceitável com a eventual retoma económica dos lojistas e consequente satisfação do interesse geral da recuperação da economia. Nestas circunstâncias, em que o apoio económico que é dado a uma das partes contratantes assenta integralmente no ónus que é imposto à outra parte, torna-se evidente que não é observado o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito.

Acresce, por fim, que a norma fiscalizada prescindiu, em absoluto, de qualquer pressuposto de facto ou indicador económico para atribuição de apoios económicos destinados a compensar ou atenuar os efeitos da crise sanitária, aplicando-se a todos os lojistas de centros comerciais, independentemente de terem tido proveitos ou prejuízos e da sua situação financeira. Ao invés, optou o legislador por um critério eletivo de natureza estritamente jurídica e, portanto, indiferenciado, que torna cega a norma sindicada. Há, nessa medida, um excesso de proteção dos lojistas instalados em centros comerciais, a que corresponde um excesso de sacrifício das respetivas contrapartes contratuais, que se revela, assim, ainda mais injustificado e desproporcionado.

De resto, talvez por estar ciente dessa desproporção, o legislador viria a abandonar uma solução normativa alheia a qualquer critério ou pressuposto de facto concreto - nomeadamente, no que concerne à efetiva situação económica do lojista instalado em centro comercial - e a supressão integral do valor da remuneração do valor da remuneração fixa ou mínima. Na verdade, e conforme já se referiu, o artigo 439.º da Lei 75-B/2020, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2021), aditou à Lei 4-C/2020, de 6 de abril, o respetivo artigo 8.º-D, em cujo n.º 1 se estatuiu que «a remuneração mensal fixa ou mínima devida pelos lojistas de estabelecimentos abertos ao público inseridos em centros comerciais é reduzida proporcionalmente à redução da faturação mensal, até ao limite de 50 /prct. do valor daquela, quando tais estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019 ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos últimos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, ou de período inferior, se aplicável».

23 - Todavia, cabe ainda ponderar, atenta a finalidade da norma e o vício de que esta padece, a possibilidade de o Tribunal Constitucional formular um juízo de inconstitucionalidade parcial - o mesmo é dizer, não da norma em toda a sua extensão, mas desta na medida em que exceda o limiar constitucionalmente conforme de intervenção do legislador na distribuição de vantagens e encargos entre as partes do contrato. Com efeito, a circunstância de a violação do princípio da proibição do excesso se prender com a medida concreta da distribuição de sacrifícios operada pela norma sindicada, que onera exclusivamente o gestor através da supressão da componente fixa da remuneração, aponta em termos genéricos no sentido de que a mitigação ou moderação desse efeito seria suficiente para que se pudessem dar por observadas as exigências constitucionais, destacando-se a este respeito o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida. A questão que se coloca é a de saber se tal hipótese é praticável e legítima, ou seja, se é possível resgatar na norma sindicada uma justa medida, sem que, ao fazê-lo, o juiz constitucional se substitua ao legislador - violando dessa forma o princípio da separação de poderes.

A admissibilidade das chamadas decisões redutivas, através das quais é julgada ou declarada inconstitucional apenas uma parte da norma sindicada, encontra-se há muito firmada na jurisprudência do Tribunal Constitucional (v., entre muitos, os Acórdãos n.os 24/83, 12/84, 143/85 e 336/86), que distingue a este respeito duas modalidades: a inconstitucionalidade parcial horizontal ou quantitativa - quando se trata de amputar um segmento sintático do enunciado legal; e a inconstitucionalidade parcial vertical ou qualitativa - quando se trata de eliminar uma dimensão ideal do objeto normativo. A propósito desta distinção, ainda que sem o maior rigor terminológico, lê-se no Acórdão 143/85 que «a falta de uma correspondência literal, através de um segmento semântico "palpável", não impede que o preceito seja dividido em tantos segmentos normativos ideais quanto aqueles que sejam relevantes de acordo com o ponto de vista adoptado» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1985, 6.º vol., p. 157). No mesmo sentido, o Acórdão 12/84 refere o seguinte: «[é] certo que não estamos, neste caso, perante preceito com partes nitidamente distintas. Se assim fosse, era fácil dizer-se que uma delas era inconstitucional e a outra não. Tratar-se-ia de uma inconstitucionalidade parcial "horizontal", perfeitamente legítima. Mas a inconstitucionalidade parcial "vertical" também não é teoricamente inadmissível, e se entendermos, como se admitiu, que a alínea pode ser cindida em várias normas, poderá então sustentar-se, só estar afectada de inconstitucionalidade naquela parte em que ela abrange categorias de funcionários que têm hipóteses de influir no eleitorado» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1984, 2.º vol., pp. 318-19).

Na jurisprudência mais recente, merece destaque o Acórdão 318/2021. Tendo sido requerida a apreciação da constitucionalidade da norma constante da subalínea iii) da alínea b) do n.º 1 do artigo 112.º do Código do Trabalho, na redação dada pela Lei 93/2019, de 4 de setembro, nos termos da qual «no contrato de trabalho por tempo indeterminado, o período experimental tem a duração de 180 dias para os trabalhadores que estejam à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração» - um alargamento para o dobro, em relação ao regime anterior, do período experimental aplicável a estas categorias de trabalhadores -, entendeu o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade de uma parte ideal do primeiro segmento desta norma. A decisão foi formulada nos seguintes termos: «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma [...] na parte que se refere aos trabalhadores que "estejam à procura do primeiro emprego", quando aplicável a trabalhadores que anteriormente tenham sido contratados, com termo, por um período igual ou superior a 90 dias, por outro(s) empregador(es)». Decidiu-se ainda «não declarar a inconstitucionalidade da norma [...] na parte remanescente». Trata-se, como é bom de ver, de uma decisão redutiva, na modalidade de inconstitucionalidade parcial vertical ou qualitativa, uma vez que se conservou a norma expurgada da dimensão viciada.

Nos processos de fiscalização abstrata sucessiva, as decisões redutivas ou de inconstitucionalidade parcial repousam em dois fundamentos indeclináveis: por um lado, se o Tribunal tem o poder de declarar a inconstitucionalidade de toda a norma objeto do pedido, pode bem fazê-lo em relação a apenas uma parte da mesma (a maiori, ad minus); por outro lado, se a inconstitucionalidade atinge apenas uma parte da norma, a eliminação da totalidade desta não é indispensável, podendo mesmo, nos casos em que a possibilidade de redução seja evidente, ofender um imperativo de conservação das leis recondutível ao princípio democrático. Certo é que as decisões redutivas têm como pressuposto necessário a cindibilidade da norma; como se observou no citado Acórdão 12/84, «a nulidade parcial de uma norma é possível quando ela não seja incindível ou indivisível. A divisibilidade da norma não terá necessariamente de ser expressa; basta que resulte claramente da lei, podendo funcionar tanto no plano horizontal, como no vertical». A cindibilidade em causa é de natureza complexa, compreendendo necessariamente três dimensões: uma de ordem lógica, que é a possibilidade de a parte da norma não declarada inconstitucional vigorar sem a parte eliminada; uma de ordem teleológica, que é a vigência da norma parcial concordar com o pensamento legislativo que resulta da interpretação da lei; e uma de ordem isonómica, que é a vigência de uma parte da norma não ofender o princípio da igualdade, designadamente na vertente de proibição do arbítrio.

A legitimidade da decisão redutiva de natureza qualitativa é incontestável naqueles casos - de que o Acórdão 318/2021 é paradigmático - em que a inconstitucionalidade incide sobre uma parte cindível do seu âmbito de aplicação. Ora, não é esse - apenas ou sobretudo esse - o tipo de redução que a norma sindicada nos presentes autos reclama, de forma a que seja posta de acordo com o princípio da proibição do excesso. Como o principal vício da norma é a intervenção desequilibrada no programa contratual, é o próprio conteúdo da medida que tem de ser modificado, no sentido de uma mitigação do sacrifício imposto aos gestores - da redistribuição entre as partes, quer isto dizer, da componente fixa da remuneração. Em casos desta natureza, a admissibilidade de uma decisão redutiva, que atingirá inevitavelmente a substância da solução legal, não pode bastar-se com a mera verificação da cindibilidade da norma - a possibilidade de desagregação da medida -, nem valer-se simplesmente da cobertura dada pelos princípios gerais de que «quem pode o mais, pode o menos» e da conservação dos atos legislativos, pois em causa está precisamente a questão de saber se, sob a aparência de uma mera redução, o juiz constitucional não se arvora em colegislador, atuando ultra vires. Só razões ponderosas, devidamente traduzidas em pressupostos rigorosos, podem legitimar o recurso a uma decisão de inconstitucionalidade parcial nessas circunstâncias.

São quatro os pressupostos cumulativos de uma tal decisão. Em primeiro lugar, quando, atenta a ratio legis, é evidente a preferência do legislador por uma medida parcial ou uma intervenção mitigada face à pura e simples eliminação da norma sindicada; a redução corresponde então ao pensamento legislativo, uma vez considerada a alternativa única da inconstitucionalidade total. Em segundo lugar, quando a eliminação integral da norma geraria, no domínio em que o legislador interveio, um vazio de legislação especial de que possa resultar a ofensa aos princípios da proibição do défice ou da proibição do arbítrio; a conservação parcial da norma procede, nessas condições, de um imperativo constitucional. Em terceiro lugar, quando o critério e a medida da redução - determinantes do conteúdo da norma expurgada do excesso inconstitucional - são dados por uma norma subsequente aplicável no mesmo domínio ou por uma norma contemporânea aplicável num domínio contíguo, preferindo-se a alternativa que implicar menor modificação do conteúdo da norma sindicada; o desenho da solução é, assim, de origem legislativa. Em quarto e último lugar, deve tratar-se de um domínio de vida em que os modos de preenchimento judicial de vazios de legislação especial - como sejam, por ordem tendencialmente crescente de abstração, a aplicação de regimes de direito comum, a concretização de cláusulas gerais, a integração de lacunas por analogia, a mobilização de institutos residuais ou a aplicação de princípios gerais - se revelem insuficientes, inconvenientes ou inoperativos; nestes casos, a decisão redutiva é indispensável para se evitar um risco sério de tutela deficitária de direitos ou interesses com dignidade constitucional.

Estes pressupostos exigentes verificam-se no caso vertente. É inequívoco que as finalidades de justiça distributiva e política social prosseguidas pela norma sindicada são melhor servidas por uma isenção parcial do pagamento pelos lojistas da componente fixa da remuneração devida aos gestores do que pela ausência de toda e qualquer proteção legal específica; o pensamento legislativo favorece, pois, uma decisão redutiva. Por outro lado, pese a proteção dos lojistas se reconduzir primariamente a parâmetros constitucionais, como o princípio da solidariedade, a promoção do desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida, sob os quais o legislador goza de ampla liberdade de conformação política, nem assim se pode negar o dever constitucional de proteger os sujeitos mais vulneráveis em circunstâncias de crise aguda; a eliminação integral da norma implicaria, assim, um défice de proteção constitucionalmente relevante. Acresce que o legislador veio a abandonar a medida consubstanciada na norma sindicada e a adotar uma medida diversa, que compreende a redução da renda fixa na proporção da quebra de faturação e a fixação do limite máximo de metade do valor daquela (v. o citado n.º 1 do artigo 8.º-D da Lei 4-C/2020, na redação dada pelo artigo 439.º da Lei do Orçamento do Estado para 2021); esta pode e deve servir como bitola da decisão redutiva, poupando o juiz constitucional a ter de desempenhar o papel de legislador. Finalmente, sem prejuízo de as questões de justiça contratual geradas pela crise sanitária poderem em tese ser resolvidas pelos tribunais comuns nos quadros do direito civil - através de regimes como a impossibilidade temporária de cumprimento não imputável ao devedor, a redução proporcional da contraprestação nos contratos sinalagmáticos, a modificação judicial do contrato por alteração das circunstâncias ou o apelo a figuras como o abuso de direito e a boa-fé na conduta das partes -, é claro que se trata de uma solução onerosa, morosa e incerta para os interessados, além de manifestamente desadequada ao cenário de massificação e aos objetivos sociais que reconhecidamente informaram a intervenção do legislador; o risco de tutela deficitária é, por isso, muito significativo, o que recomenda vivamente que os efeitos jurídicos da norma sindicada sejam conservados numa medida consentânea com a exigência constitucional de proporcionalidade.

III - Decisão

Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 2/2020, de 31 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redação que lhe foi dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de julho, que aprovou o Orçamento do Estado Suplementar, na medida em que determina, a respeito das formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, a isenção de pagamento da remuneração mensal fixa ou mínima devida pelos lojistas além de uma redução proporcional à redução da faturação mensal, até ao limite de 50/prct. do valor daquela, quando os estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019 ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, ou de período inferior, se aplicável.

Atesto o voto de conformidade do Conselheiro Presidente João Pedro Caupers, do Conselheiro Vice-Presidente Pedro Machete (com declaração quanto aos pontos 16 e 18), e do Conselheiros Afonso Patrão (com declaração), Teles Pereira, José Eduardo Figueiredo Dias e Joana Fernandes Costa; tem votos de vencido dos Conselheiros Gonçalo Almeida Ribeiro, José João Abrantes, Mariana Canotilho, António Ascensão Ramos, Benedita Urbano, e Assunção Raimundo, que apresentaram as respetivas declarações; e tem declaração de voto do relator quanto ao ponto 23.

Lisboa, 28 de junho de 2022. - Lino Rodrigues Ribeiro.

Declaração de voto

Votei a declaração de inconstitucionalidade da norma sindicada - extraída do n.º 5 do artigo 168.º -A da Lei 2/2020, de 31 de março - pelos fundamentos constantes dos pontos 6 a 22 do acórdão. Mas não acompanho o ponto 23, com o reflexo que o mesmo tem na parte dispositiva do acórdão, relativamente à possibilidade de o Tribunal Constitucional fazer incidir o juízo de inconstitucionalidade apenas numa "parte ideal" da norma, pela seguinte ordem de razões.

Em primeiro lugar, o enunciado normativo inserido no n.º 5 do referido artigo 168.º-A compreende apenas uma norma jurídica e não duas normas ou dois segmentos ideais da mesma norma, autonomizáveis. A norma que corresponde ao texto enunciativo determina, sem ambiguidades, a isenção de «quaisquer valores» devidos a título de retribuição mínima e não uma «redução proporcional» do valor dessa retribuição. O discurso diretivo da norma ali contida, e que lhe dá sentido jurídico, é a isenção da renda fixa e não a redução proporcional até certo limite e segundo determinadas condições. De modo que não há qualquer correspondência entre a formulação normativa e uma norma que tenha por efeito jurídico a redução proporcional da renda. Só é possível chegar a este efeito de direito alterando o enunciado formulado no n.º 5 do artigo 168.º-A, como acaba por se fazer no ponto 23 do acórdão. De facto, a alteração, nos termos descritos, modifica o sentido da norma alojada naquele artigo, na medida em que permite a redução da retribuição mínima, verificadas determinadas condições e limites, implicando assim alterações relevantes no enunciado normativo, com novas condições de interpretação. Não há uma redução do âmbito de aplicação da norma sindicada, mas sim a «criação» de uma nova norma com elementos estruturais - previsão e estatuição - que se correlacionam de modo completamente diferente. Com efeito, as condições ou pressupostos cuja ocorrência permite a realização do efeito da norma («quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019, ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, e 18 de março, ou de período inferior, se aplicável») e os efeitos jurídicos que nela estão contidos (««redução proporcional à redução da faturação mensal, até ao limite de 50/prct, do valor daquela») delimitam um campo de incidência bastante diferente daquele em que opera a norma sindicada. Do ponto de vista dos lojistas, o apoio económico assume um âmbito de aplicação subjetivo e objetivo diferente da norma sindicada: (i) é concedido apenas aos lojistas que têm determinada quebra de faturação; (ii) e a renda mínima é reduzida proporcionalmente à redução da faturação mensal, até ao limite de 50/prct. do valor daquela. Não se pode defender, porque nenhum elemento hermenêutico o permite, que este recorte material da norma já estava na intenção inicial do legislador. Se assim fosse, não se compreende porque é que o legislador não impôs efeitos retroativos ao artigo 8.º-D, aditado à Lei 4-C/2020, de 6 de abril, pela LOE para 2021, preceito que introduziu pela primeira vez uma norma de conteúdo igual.

Em segundo lugar, a "decisão redutiva" que se tomou assenta num juízo de proporcionalidade da redução das rendas mínimas que se traduz numa reavaliação da otimização do fim da medida através da aptidão, indispensabilidade e razoabilidade do meio utilizado. Na averiguação da conformidade com o princípio da proporcionalidade, pode entender-se que a isenção da retribuição fixa devida pela ocupação de um espaço no centro comercial não é a medida menos lesiva, nem a mais eficaz. Mas considerar que a redução das rendas é a melhor solução possível é já uma ponderação que só o legislador pode fazer. Na verdade, o facto de se concluir no acórdão que há soluções alternativas menos onerosas do que a isenção de rendas, não exclui a possibilidade de existência de outras ainda mais convenientes. Porém, a adoção das alternativas possíveis é uma escolha política que só o legislador pode realizar. Como se refere no ponto 21 do acórdão, «o juízo de indispensabilidade implica a ponderação dessa medida com soluções alternativas, mas não impõe necessariamente uma delas». Ora, ao considerar que a redução das rendas é a solução indispensável, a que melhor satisfaz o objetivo pretendido, o Tribunal acaba por fazer um juízo positivo da medida, bem diferente do controlo negativo da relação fim-meio em que se cristaliza a proporcionalidade. A redução proporcional das rendas pode ser uma das alternativas de restrição ao direito constitucional de propriedade (direito de crédito) que, com o mesmo grau de eficiência na realização do fim, causa menor prejuízo; mas a sua escolha não deixa de envolver juízos de valor concorrentes e eventualmente divergentes com os que foram realizados pelo legislador através da norma sindicada. Ora, a proporcionalidade dita critérios - adequação, indispensabilidade, justa medida, razoabilidade - na determinação autónoma das soluções legislativas, mas não dita as soluções. Há aqui alguma incoerência no juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade: por um lado, considera-se que a isenção de rendas é uma medida desproporcional, porque frusta a finalidade que se visa atingir; por outro, considera-se que a redução das rendas é uma medida proporcional, porque satisfaz essa mesma finalidade. Mas afinal o controlo da proporcionalidade é um controlo de satisfação do fim ou de frustração do fim?

Por último, a "decisão redutiva" também é problemática no confronto com o princípio da igualdade. Tal como a isenção das rendas, a redução proporcional introduz diferenciações entre os lojistas e entre os proprietários de imóveis que disponibilizam espaços para arrendamento ou utilização comercial. No período em referência - segundo semestre de 2020 - verifica-se tratamento diferenciado entre diferentes categorias de lojistas e diferente categorias de proprietários: enquanto os lojistas de rua e os lojistas dos centros comerciais não vinculados ao contrato previsto na norma impugnada pagam integralmente as rendas comerciais, embora com dilação, os lojistas a quem se aplica a norma pagam apenas uma parte da renda; e enquanto os proprietários das lojas de rua são sacrificados apenas com os prejuízos decorrentes da mora, os proprietários dos centros comerciais são sacrificados com a redução do direito de crédito sobre os lojistas. O princípio da igualdade, na vertente de proibição do arbítrio legislativo, não exclui a existência de diferenciações, desde que haja uma justificação razoável e suficiente. Mas pertence ao legislador, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elemento de referência a tratar igual ou desigualmente. Com efeito, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa. Dadas as diferenças entre os dois tipos contratuais, até se pode encontrar fundamento bastante para aquelas distinções. Mas é o legislador, e não o juiz constitucional, quem tem o ónus de justificar porque é que se concede apoios económicos aos lojistas de forma diferenciada. De qualquer modo, a "decisão redutiva" continua a manter uma situação desproporcionalmente desigual: dilação no pagamento das rendas, no caso dos arrendatários; redução da renda fixa, no caso dos lojistas instalados em centros comercial. Há um excesso de proteção dos lojistas que tenham celebrado contratos para instalação de loja em centro comercial a que corresponde um excesso de sacrifício das respetivas partes contratuais, quando confrontadas as respetivas situações com as posições relativas do arrendatário e do senhorio no contrato de arrendamento para fins não habitacionais. Não cabe ao Tribunal Constitucional criar ou manter essa desigualdade, mas apenas determinar se a medida da diferença de tratamento merce ou não censura constitucional.

Não obstante estas reservas quanto ao ponto 23, a minha declaração de inconstitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 2/2020, de 31 de março, sem qualquer redução do seu conteúdo, não deixa de se somar aos que entendem que tal norma é parcialmente inconstitucional. - Lino Rodrigues Ribeiro.

Declaração de voto

(referente aos n.os 16 e 18 do presente acórdão)

O direito de propriedade privada constitucionalmente relevante é um direito económico a que o regime dos direitos, liberdades e garantias é aplicável somente em relação às suas dimensões que tenham natureza análoga àqueles direitos (cf. o artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa). Entende-se, por isso, que a tutela constitucional desse direito se desdobra numa dimensão subjetiva - que ganha expressão na sua analogia estrutural (direito de defesa) e funcional (garantia de autonomia pessoal do seu titular) com os direitos, liberdades e garantias - e numa dimensão objetiva - enquanto garantia de instituto a que vai associada uma cláusula legal de conformação social (v. o Acórdão 421/2009).

Daí que as normas legais sobre o conteúdo da propriedade - entendida esta no sentido amplo acolhido no presente Acórdão - não representem necessariamente uma restrição, mas antes a conformação legal destinada a compatibilizar o instituto da propriedade com outros interesses constitucionalmente relevantes. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão 374/2003, citando o Acórdão 517/99: «"apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias", apenas fazendo parte dessa reserva "as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias", pelo que então se concluiu que já não se incluíam "nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa".».

Esta função conformadora, sem prejuízo dos limites impostos pelo Estado de direito, é conatural ao conceito de Estado social e indispensável à promoção de reformas tendentes a modelar a sociedade num sentido mais consonante com os programas político-sociais democraticamente sufragados em cada momento. Por isso, a Constituição não pode deixar de se opor a uma leitura da propriedade a partir do direito infraconstitucional - em especial, dos direitos subjetivos por este consagrados - e que constitucionaliza, sem mais, os poderes de uso e fruição das coisas legalmente adquiridos num determinado momento.

Por outro lado, do ponto de vista constitucional e da tutela correspondente relativa ao direito de propriedade, esta última releva sobretudo como posição patrimonial. O objeto mediato do direito - coisas ou créditos - situa-se num plano mais secundário, razão por que tenho muitas dúvidas quanto à «garantia constitucional mais forte» dos direitos de crédito. De resto, não me parece que, estando em causa no presente processo uma extinção parcial da propriedade - ou seja, o direito ao pagamento da renda fixa -, seja útil ou necessário comparar a intensidade da tutela constitucional dos créditos face à tutela do direito de propriedade sobre as coisas. - Pedro Machete.

Declaração de voto

1 - Voto de Vencido.

Não acompanho a decisão e respetiva fundamentação pelas razões que seguidamente serão expostas.

O n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei 27-A/2020, de 24.07 (que procedeu à segunda alteração da Lei 2/2020, de 31.03 - LOE 2020), estabeleceu uma medida restritiva que penaliza os promotores/gestores dos centros comerciais. E isto, porquanto, "Nos casos em que sejam aplicáveis formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais", isenta os respetivos lojistas do pagamento de "quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de dezembro de 2020, sendo apenas devido aos proprietários de centros comerciais o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista [...]".

Esta opção legislativa pode, à partida, causar alguma perplexidade, haja em vista que a entrada em vigor do diploma em que se encontra inserida a norma sindicada deu-se quando os centros comerciais já se encontravam abertos ao público e em que, portanto, já estava assegurada a cedência do gozo do espaço/loja integrado no centro comercial e haveria lugar ao recebimento da remuneração fixa a que corresponde a renda mínima. Ou seja, uma vez assegurada a prestação por parte do promotor/gestor haveria que realizar a contraprestação por parte do lojista. Como se verá seguidamente, esta possível e inicial estranheza é facilmente ultrapassável.

O argumento principal que sustenta a inconstitucionalidade da norma em apreço tem que ver com a circunstância de se considerar desrespeitado o segundo teste de proporcionalidade (a necessidade ou exigibilidade da medida adotada) por, ao ter estabelecido "uma diferenciação alicerçada, não em dados concretos relativos ao desempenho da atividade comercial dos lojistas dos centros comerciais, mas simplesmente em função do tipo contratual adotado no tráfego jurídico para instalação", o legislador impôs uma medida mais lesiva do que o necessário ("Ao invés, optou o legislador por um critério eletivo de natureza estritamente jurídica e, portanto, indiferenciado, que torna cega a norma sindicada. Há, nessa medida, um excesso de proteção dos lojistas instalados em centros comerciais [...]"). Sucede que, segundo é nosso entendimento, a desconsideração da situação concreta dos lojistas ou, se se preferir, a 'cegueira' da norma é mais aparente do que real.

Deixando de parte a problemática concernente à exata qualificação jurídica dos contratos de instalação de lojista em centro comercial, também designados de utilização de loja em centro comercial, estes preveem a existência de dois tipos de prestações: uma remuneração fixa, que corresponde a uma chamada renda mínima (prestação arrendatícia), e uma remuneração variável que é calculada "por referência a uma percentagem do valor da faturação bruta mensal que só é devida na parte em que exceda o valor da parcela fixa" (cf. Ana Isabel da Costa Afonso, Os contratos de instalação de lojistas em centros comerciais, Porto, 2003, pp. 356-7, nota 799). Por assim ser, em regra - em regra, na medida em que, em virtude da liberdade contratual, as partes podem convencionar algo de distinto -, no que respeita àqueles lojistas que têm uma faturação mais elevada, na prática, a renda mínima não chega a ser paga autonomamente, pois que o montante relativo à remuneração fixa será consumido pelo montante correspondente à remuneração variável. Já aqueles lojistas que não conseguem alcançar um determinado volume de negócios e de faturação sempre terão de pagar a renda mínima, verdadeira válvula de segurança para o promotor/gestor do centro comercial que assegurou a cedência do gozo de espaço utilizável. Ora, num contexto de retoma económica, o que temos é que os estabelecimentos mais robustos implantados em centros comerciais (as 'lojas âncora'), alguns dos quais nem sequer chegaram a encerrar totalmente, facilmente alcançam um volume de faturação bruta mensal em que, como acima assinalado, a remuneração fixa é consumida pela variável (só assim não será, reitera-se, se as partes tiveram convencionado a separação das duas prestações de modo a não ser possível uma tal consumpção). Ou seja, na realidade, eles nem chegam a ser destinatários da medida de apoio desenhada na norma sindicada. Já os lojistas mais pequenos, cujas lojas estiveram encerradas, e para quem a retoma económica será certamente mais lenta e difícil, mesmo que consigam alcançar valores positivos de faturação bruta mensal, esta será certamente bastante modesta, pelo que dificilmente deixarão de pagar a remuneração fixa/renda mínima.

Em suma, a medida legislativa de apoio declarada inconstitucional, na realidade, acaba por se destinar apenas aos lojistas em relação aos quais se justifica a medida de apoio desenhada pelo legislador. O que, aliás, ajudará a explicar a razão pela qual o legislador ordinário optou por isentá-los do pagamento da parte fixa da remuneração, pois é esta que os pequenos lojistas sempre teriam de pagar, independentemente da sua situação financeira. A isenção/supressão de remuneração variável, em tempos de retoma económica previsivelmente modesta no que toca a valores e não de molde a consumir o pagamento da prestação fixa, teria um impacto, em termos de apoio aos lojistas mais necessitados, bem menor. Diga-se, a latere, que, verdadeiramente, mesmo em termos jurídicos propriamente ditos, há alguma base para "atacar" a parte fixa da remuneração, uma vez que, numa fase inicial da retoma - fase a que corresponderá esta medida excecional e temporalmente limitada -, mesmo não estando o centro comercial fechado e as lojas encerradas, sempre a afluência de público será menor, havendo pessoas confinadas e outras receosas de contrair COVID ao circular em espaços fechados, pois a pandemia estava, e ainda hoje está longe de estar controlada. Acresce a isto que nem todos os espaços de utilização comum foram inicialmente disponibilizados ao público. Vale isto por dizer que, mesmo havendo cedência do gozo da loja para a atividade comercial ou para a prestação de serviços, trata-se de espaço físico integrado num centro comercial, enquanto estabelecimento comercial complexo ("composto por diversas lojas com comércios e serviços variados e intercomplementares" - em que existe, portanto, uma integração empresarial - "e por espaços comuns de lazer, visando aliar prazer e consumo" - cf. Ana Isabel da Costa Afonso, idem, ibidem), em que o promotor/gestor não está apenas vinculado a assegurar essa prestação específica, antes está vinculado de forma mais ampla a assegurar a cedência do espaço em condições que permitam o exercício efetivo de uma atividade comercial normal (ou de uma atividade no âmbito de um centro comercial que está a funcionar normalmente), o que não sucedeu na fase pós-abertura dos centros comerciais, em que não havia condições para exercer normalmente o comércio, o que, há que aceitar, está para lá do risco normal do andamento dos negócios. Por outras palavras, a própria prestação arrendatícia - a prestação cujo correspetivo é a parte fixa ou renda mínima da remuneração a cargo do lojista - nem se poderá considerar como inteiramente cumprida, porquanto se trata aqui de um arrendamento para comércio, o que implica que essa prestação arrendatícia só possa ter-se como integralmente realizada se estiverem verificadas, como se disse, as condições mínimas para um exercício normal da atividade comercial por parte do lojista. E, não sendo assim possível a realização integral dessa prestação arrendatícia-comercial, tal impossibilidade deve repercutir-se, "sinalagmaticamente", na contraprestação que é a renda mínima ou fixa.

Ancorado a este fundamento, mas ainda associado à ideia de necessidade ou exigibilidade da medida contida no n.º 5 do artigo 168.º-A, objeto da declaração de inconstitucionalidade, está o argumento de que poderia ter sido encontrada, pelo legislador, uma medida igualmente eficaz, mas menos onerosa para aqueles que por ela são atingidos. Não estando convicta, pelos motivos já expostos, de que a norma sindicada seja inconstitucional porque desproporcionada, não vemos qualquer utilidade em analisar este segundo argumento.

2 - Não obstante, enquanto vencida, não ter de me pronunciar sobre o ponto 23. do acórdão, não posso deixar de manifestar a minha incomodidade pela solução encontrada para alterar o alcance da declaração de inconstitucionalidade. E isto, porque se trata, nesta parte, da prolação de uma decisão de teor manipulativo, em que o julgador corrige o legislador, in casu, acrescentando pressupostos normativos que não estavam presentes na solução prevista no artigo 168.º-A. Em meu entender, a querer reduzir-se o alcance da declaração de inconstitucionalidade, a via a seguir deveria ter sido a da convocação da figura da nulidade parcial. - Maria Benedita Urbano.

Declaração de voto

Vencido.

O juízo da maioria, de que a norma sindicada nos presentes autos é inconstitucional por violação das disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 62.º (direito de propriedade privada) e do n.º 2 do artigo 18.º (princípio da proibição do excesso) da Constituição, repousa numa premissa que não merece o meu acordo. Entende-se que, ao exonerar o lojista da obrigação de pagar a componente fixa da remuneração devida ao proprietário ou gestor do centro comercial, o legislador fez recair sobre este todo «todo o peso da ajuda concedida»; ajuda esta que, não podendo ser caracterizada como uma medida de reposição do equilíbrio contratual - «na medida em que os lojistas não foram totalmente privados do gozo do espaço cedido no centro comercial, nem esse espaço deixou de ser destinado ao fim para o qual o contrato foi constituído» - constitui exclusivamente uma medida de política social, cujos custos deveriam recair sobre toda a comunidade, através do «recurso ao auxílio económico (financeiro ou fiscal)», «sem agravar o património dos promotores e gestores dos centros comerciais». Na base deste argumento está a ideia de que «a componente mais relevante da remuneração para o proprietário ou promotor do centro comercial assenta na renda fixa mínima», em face da qual «a renda variável é somente um acrescento à verdadeira contraprestação pelos serviços prestados pelo centro comercial e que, nalguns casos, pode nem sequer existir».

Não creio que seja assim. No contrato (socialmente) típico de instalação de lojista em centro comercial, a que expressamente se dirige a norma sindicada, a contrapartida necessária da cedência do espaço, dos serviços prestados pelo promotor e da inserção da loja na unidade orgânica do centro comercial é o pagamento mensal de uma percentagem da faturação do lojista no mês anterior ao do vencimento do débito - a remuneração dita variável. É ainda comum que, se o valor em causa não atingir um limiar mínimo, o lojista tenha a obrigação de pagar tal mínimo - constituindo este, pois, uma remuneração dita fixa. Esta cláusula de remuneração fixa é um mecanismo de gestão do risco, através do qual o promotor se protege de incorrer em perdas significativas e assegura que o lojista internaliza os custos da sua inépcia como empresário ou dos humores normais do mercado. Porém, a remuneração fixa não descaracteriza o negócio entre as partes como sendo, em larga medida, um acordo de cooperação - em que ambas participam dos proveitos de uma empresa comum e assumem risco de capital em maior ou menor medida -, não sendo, por isso, um elemento essencial do mesmo.

Com efeito, um contrato em que o lojista não tem a obrigação de pagamento de nenhum valor mínimo não deixa de ser, por essa razão, «uma forma específica de contrato de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais» - subsumindo-se, como é bom de ver, na previsão da norma sindicada nos presentes autos -, ao passo que um contrato em que se prevê apenas o pagamento de uma remuneração fixa deve qualificar-se como um arrendamento comercial - em que a remuneração tem o carácter de uma renda em sentido próprio - ou, atendendo ao conjunto das prestações a que o promotor se vincula, um contrato misto de arrendamento comercial e de prestação de serviços. A especificidade do contrato de instalação de lojista prende-se precisamente com o facto de as partes contribuírem para um fim comum, que se exprime na inserção da loja no todo orgânico que é o centro comercial e que se reflete na repartição da faturação mensal. A remuneração variável inscreve-se, deste modo, na fisiologia do negócio: se tudo correr bem, como as partes desejam e projetam, a remuneração variável excede o limiar mínimo contemplado no contrato, não havendo lugar ao pagamento de nenhuma remuneração fixa. Se o contrato for amputado desta - nos casos em que as partes a tenham estipulado -, será certamente menos vantajoso para o promotor, por o expor totalmente ao risco empresarial, mas não deixa de se integrar no mesmo tipo; se for amputado daquela, converte-se num negócio de tipo diverso, com uma outra função económico-social, cujo parentesco com o arrendamento para fins não-habitacionais é inegável.

Ao intervir na relação contratual que se estabeleceu entre gestores e lojistas, o legislador teve em atenção que a crise sanitária alterou radicalmente a base do negócio que as partes celebraram e em função da qual procederam a uma certa distribuição de encargos e vantagens no programa contratual. Em particular, o facto de os centros comerciais terem deixado de operar durante uma parte do período em que a lei de que consta a norma sindicada vigorou, bem como de terem reaberto com restrições legais significativas e num contexto de retoma lenta do consumo em grandes espaços fechados, implicou uma revisão em baixa do valor esperado do negócio e retirou ao lojista boa parte do seu domínio sobre a empresa. Ora, ao contrário da remuneração variável, que por natureza se adapta ao devir das circunstâncias, a remuneração fixa prevista com base na normalidade das coisas no momento da celebração deixou, quando as circunstâncias se alteraram radicalmente, de respeitar o equilíbrio contratual que resultou do exercício da autonomia privada. Ao exonerar o lojista da obrigação de pagar um valor mínimo, por cuja realização deixou de poder de boa-fé ser responsabilizado, o legislador não operou nenhuma ablação do património da classe dos gestores com vista a subsidiar a classe dos lojistas. Ao invés, repôs o equilíbrio contratual através da flexibilidade da remuneração variável: os lojistas que não sofreram perdas ou até aumentaram os proveitos com a crise, não beneficiaram de modo algum desta medida, uma vez que o valor da remuneração variável excedeu o valor mínimo previsto no contrato; os lojistas que sofreram perdas, nalguns casos pondo em causa a viabilidade da empresa - perdas essas pelas quais não podem em geral considerar-se responsáveis -, pagaram apenas a percentagem estipulada dos proveitos que efetivamente obtiveram.

Concebida nestes termos, a medida adotada pelo legislador pode parecer censurável com fundamento diverso do invocado pela maioria. Se o seu propósito foi o de repor o equilíbrio em relações contratuais fortemente perturbadas pela materialização de um cenário imprevisível - a crise sanitária -, os mesmos efeitos poderiam em teoria ter sido alcançados através da aplicação de regimes de direito comum ou de institutos e figuras residuais do direito civil, como a redução da contraprestação nos períodos em que o gestor não prestou os serviços habituais por impossibilidade temporária devida ao encerramento forçado, a modificação judicial do contrato segundo juízos de equidade por alteração anormal das circunstâncias ou o abuso do direito de crédito do gestor do centro comercial por manifesta violação dos limites impostos pela boa-fé. Sucede que o legislador entendeu que a resolução casuística destes problemas através dos tribunais seria desadequada, por razões várias perfeitamente legítimas: a morosidade, onerosidade e incerteza da via contenciosa; a suspensão do funcionamento da justiça durante longos períodos da crise sanitária; os custos sociais imensos de um previsível congestionamento processual; e o risco sério de que as dificuldades de acesso aos tribunais pudessem provocar a destruição do tecido empresarial e do emprego neste sector. A crise sanitária não criou casos pontuais de perturbação do cumprimento como aqueles que se inscrevem na rotina da justiça comum, antes consubstanciou uma situação massificada de desequilíbrio contratual perante o qual bem se compreende a prudência - porventura mesmo a imperatividade constitucional - da intervenção do legislador.

Sempre se poderia questionar se a solução legal encontrada, de suprimir a remuneração fixa aí onde ela houvesse sido acordada pelas partes, não foi excessivamente onerosa para os gestores ou proprietários dos centros comerciais, sobretudo quando comparada com a medida posterior de redução proporcional até ao limite de metade do valor estipulado. Ao entender que, em vez de pura e simplesmente eliminar a norma sindicada, o Tribunal Constitucional deveria declará-la inconstitucional na parte ideal em que excede o limiar fixado na disposição subsequente, invocando para o efeito argumentos pertinentes a respeito do pensamento legislativo e dos deveres constitucionais de legislar, a maioria reconhece - nolens, volens - a justeza da intervenção do legislador na correção do desequilíbrio gerado pela crise sanitária neste tipo de contratos, reduzindo as suas objeções a uma questão de grau ou de medida. Não creio, porém, que um controlo de mera evidência, o único que se justifica quando se trata de sindicar opções de política económica e social que não contendem direta ou indiretamente com «classificações suspeitas» - como as que constam do elenco do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição -, autorize o juiz constitucional a comparar o mérito relativo de medidas que, em abstrato e na aparência, se devem reputar razoáveis.

Na verdade, se é certo que alguns argumentos depõem a favor de uma medida de redução ponderada e com um limite absoluto, também é ponto assente que se pode defender a sensatez da supressão da remuneração fixa, atenta a natureza desta como mecanismo de gestão do risco no quadro de um programa contratual que perdeu - sobretudo no período inicial de novidade absoluta e exigência de adaptação - toda e qualquer aderência ao mundo real. Reitere-se que, ao abrigo da norma sindicada, os lojistas que não incorreram em perdas significativas por força da crise sanitária continuaram a remunerar o proprietário ou gestor do centro comercial, através do mecanismo normal da partilha dos proveitos, pelo que os reais beneficiários da isenção concedida pela norma sindicada foram aqueles que sofreram relevantes quebras de faturação - ao ponto de o valor da remuneração variável ter sido inferior ao mínimo estipulado no contrato -, presumivelmente provocadas pelas circunstâncias anormais em que passaram a operar. Mas ainda que se entendesse que, comparando as duas medidas, a segunda é mais equilibrada ou equitativa do que a primeira, sempre seria de reconhecer que a obra legislativa do passado mais remoto não deve ser condenada pelo juiz constitucional do presente unicamente por ser menos ponderada ou perfeita do que a do passado recente. O progresso das leis, como aliás o da jurisprudência, pressupõe um processo meritório de tentativa e erro - o que é coisa bem diversa de um ritual público de castigo e contrição por falhas pretéritas só descobertas pelo julgador com o luminoso benefício da retrospetividade. - Gonçalo Almeida Ribeiro.

Declaração de voto

Votei pela não inconstitucionalidade da norma sindicada, por entender que a mesma, contendo, efetivamente, uma restrição ao direito à propriedade privada, consagrado no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, visa a prossecução de fins legítimos e fá-lo em termos que cumprem as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).

Ao prosseguir a finalidade de ajudar os lojistas instalados em centros comerciais, garantindo-lhes um apoio que, por um lado, atenuasse os prejuízos sofridos com o encerramento ou diminuição de atividade a que haviam estado sujeitos e que, por outro, ajudasse a sua recuperação, o legislador levou a cabo uma restrição de direitos que entendeu necessária à «[salvaguarda de] outros direitos e interesses constitucionalmente prosseguidos» (n.º 2 do artigo 18.º da Constituição) e com a qual, ao contrário do que é dito no acórdão, não impôs aos respetivos proprietários e gestores um encargo patrimonial excessivo.

Face à finalidade que a justificou, a norma sindicada, inserida no conjunto de medidas legislativas adotadas com vista a amortecer os efeitos económicos e sociais do Covid-19, não se revela inadequada, desnecessária ou excessiva, observando, pois, os limites a que, nos termos da Lei Fundamental, estão sujeitas todas as leis restritivas de direitos fundamentais ["limites dos limites" ("Schrankenschranken") dos direitos fundamentais].

Dizer, como faz o acórdão, que a medida quebrou «o equilíbrio de interesses refletidos no contrato, introduzindo uma profunda disrupção no vínculo sinalagmático», é esquecer a natureza assimétrica da relação entre os lojistas e os proprietários, uma relação que não é originariamente equilibrada, mas, antes, uma relação de poder-sujeição, para a qual é perfeitamente aceitável uma intervenção legislativa específica tendente à correção do conteúdo dos contratos, tornado ainda mais desequilibrado pelos efeitos da pandemia. Havendo, desde logo, à partida, um desequilíbrio contratual, que, entretanto, foi agravado pelos efeitos económicos e sociais daquela, justifica-se essa intervenção legislativa, sem com isso ferir princípios constitucionais, antes tendo aqui perfeito cabimento a ideia de proteção do contraente débil, ou, de uma forma mais geral, a proteção dos sujeitos mais vulneráveis, que é, deve ser, uma das funções do Estado democrático de direito, de cujas "tarefas fundamentais", nos termos da alínea d) do artigo 9.º da Constituição, fazem parte a promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e da igualdade real entre os portugueses, "bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais".

Perante uma situação económica e social de crise, os valores constitucionais não são menos fundamentais; antes, a crise coloca o Estado perante a necessidade de conceber políticas concretas que previnam o empobrecimento e corrijam as desigualdades sociais.

No caso sujeito à nossa apreciação, a norma sindicada foi indispensável para assegurar interesses com dignidade constitucional, cumprindo esse dever constitucional de proteção dos sujeitos mais vulneráveis em circunstâncias de crise aguda. À falta de operacionalidade dos instrumentos de direito comum, v.g., de alguns institutos civilistas que flexibilizam o princípio pata sunt servanda [como a impossibilidade da prestação (artigos 790.º a 795.º), a alteração das circunstâncias (artigo 437.º), a exceção de incumprimento do contrato (artigo 428.º), etc.], o legislador viu-se forçado a intervir, evitando assim cair-se num vazio de regulamentação, que deixasse por cumprir aquele imperativo constitucional.

A solução encontrada pelo legislador aplicou, no fundo, uma regra de repartição do risco contratual com paralelo noutras relações assimétricas, como é o caso do contrato de trabalho. Foi no domínio laboral que tiveram origem a teoria das esferas (Sphärenlehre) e a ideia de risco da empresa (Betriebsrisiko), configurando um desvio aos princípios gerais da responsabilidade civil (nomeadamente, à regra do artigo 799.º do C. Civil). Concretizações da ideia de proteção do contraente débil, conduzem à incidência do risco na esfera jurídica do empregador/credor (mesmo em casos de não prestação da atividade laboral por razões atinentes ao próprio trabalhador) como contrapartida natural do seu poder de direção (e também da ideia de que o risco deve ser suportado por quem tem uma organização ao seu serviço e dela retira o respetivo benefício).

Foi esta a mesma lógica que presidiu à mens legislatoris, ao emitir a norma sindicada, assim restringindo, efetivamente, o direito à propriedade privada, mas visando a prossecução de fins legítimos e fazendo-o em termos que, em nosso entender, respeitaram os limites a que, nos termos da Constituição, estão sujeitas as leis restritivas de direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 2).

São estas, em suma, as razões por que divergi da maioria que votou o acórdão, entendendo, ao contrário da mesma, que a norma sindicada não deveria ter sido declarada inconstitucional. - José João Abrantes.

Declaração de voto

1 - Subscrevo a decisão e a sua fundamentação.

Acompanho também o juízo de inconstitucionalidade parcial, restrita à dimensão da norma que excede a redução da renda fixa na proporção da quebra de faturação até ao limite máximo de 50 % (n.º 1 do artigo 8.º-D da Lei 4-C/2020, na redação dada pelo artigo 439.º da Lei do Orçamento do Estado para 2021). Não deixando de notar que teria sido igualmente possível ao Tribunal Constitucional atingir o mesmo resultado através da modelação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 282.º da Constituição (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, 2003, pp. 1017ss).

2 - Afasto-me, todavia, de um dos fundamentos que sustentam o juízo de desnecessidade da restrição: o argumento segundo o qual a norma que isenta o pagamento da renda mínima beneficia os lojistas cujos estabelecimentos não tenham sofrido quebras no volume de vendas. Em meu entender, a estrutura típica do contrato de instalação de loja em centro comercial implicará que tais lojistas vejam inalterado o montante da sua obrigação, mesmo em aplicação da norma fiscalizada.

No contrato de instalação de loja em centro comercial, o feixe de direitos e obrigações entre lojista e entidade gestora do centro comercial tem reflexos na remuneração devida pelo comerciante. Este não paga uma renda pelo uso do espaço, mas antes um valor correspondente ao produto de uma simbiose de interesses: uma prestação variável, indexada à sua faturação, refletindo a parceria existente entre a loja e o centro comercial - pois o volume de vendas presume-se resultar da sua atuação conjunta. Habitualmente, porém, estipula-se um valor de renda mínima, devido em substituição do montante apurado por aplicação da fórmula acordada para cálculo da renda variável, quando este fique abaixo de tal montante.

Nessa medida, o efeito jurídico da norma fiscalizada não é sempre o da ablação de uma parte da prestação a pagar: ao desobrigar do cumprimento da renda mínima, o legislador determina que a obrigação a cargo dos lojistas se calcule invariavelmente em função da sua faturação. Porque assim é, a medida legislativa só influi no montante devido quando o volume de vendas do lojista haja sofrido quebras (a ponto de o valor apurado como remuneração ao centro comercial ficar abaixo do limiar da renda mínima), mas já não quando se tenha conservado ou haja prosperado. Neste caso, o montante da obrigação será determinado, independentemente da isenção de pagamento da renda mínima, por referência ao volume de vendas. - Afonso Patrão.

Declaração de voto

Vencidos, quer quanto ao conhecimento do pedido, quer quanto ao sentido da decisão e respetiva fundamentação, pelas seguintes razões fundamentais:

1 - Quanto ao conhecimento do pedido

Entendemos que o pedido não deveria ter sido conhecido, nos termos, aliás, da jurisprudência constante e reiterada do Tribunal Constitucional. O conhecimento, neste caso, afigura-se como uma exceção, ad hoc, e insuficientemente justificada, facto que prejudica a segurança jurídica - critério fundamental que deve orientar este tipo de decisões.

Vejamos.

A norma sob fiscalização constava da Lei do Orçamento do Estado para 2020; tendo cessado a sua vigência no dia 31 de dezembro de 2020, não foi objeto de consagração na Lei do Orçamento de Estado para 2021. Trata-se, portanto, nesta sede, da fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade de uma norma cuja vigência cessou, acerca da qual o Tribunal Constitucional tem, desde sempre, afirmado que "só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade" (cf. Acórdão 238/88). Mais se acrescenta, no aresto citado, que "o fim que, em primeira linha, se visa atingir com a declaração de inconstitucionalidade, que é o de expurgar o ordenamento jurídico da norma inquinada, esse já foi conseguido com a revogação. Eliminar os efeitos produzidos por essa norma não passa, pois, de uma finalidade marginal, só se justificando, por isso, a utilização daquele mecanismo quando estejam em causa valores jurídico-constitucionais relevantes". Este Tribunal tem, pois, feito depender da existência de um conteúdo prático apreciável o conhecimento de pedidos idênticos àquele a que no presente Acórdão se atendeu, explicando que "não haverá interesse jurídico relevante ("interesse de conteúdo prático apreciável") em conhecer, em processos de fiscalização abstrata, da eventual inconstitucionalidade de normas revogadas sempre que, perante o caso, se conclua serem suficientes os meios concretos de defesa postos à disposição dos interessados, uma vez que através desses meios se pode vir a impedir, assim acautelando os direitos daqueles últimos, a aplicação da norma inconstitucional" (cf. Acórdão 466/2014).

Ora, a presente decisão não explica adequadamente, no nosso entender, em que consistiria, neste caso, tal interesse de conteúdo prático apreciável, de forma a distingui-lo das muitas situações análogas nas quais o Tribunal decidiu no sentido do não conhecimento do pedido. Na verdade, limita-se a afirmar que "subsistem situações jurídicas por ela criadas, porventura em número significativo. Isto, porque, enquanto a caducidade tem uma eficácia prospetiva (ex nunc), a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tem, por via de regra, uma eficácia retroativa (ex tunc), o que acarreta a eliminação das situações criadas, no passado, em sua aplicação (n.º 1 do artigo 282.º da CRP). Daí que possa haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos medio tempore, isto é, no período da vigência da norma sindicada (Acórdão 31/2009)".

Nestes termos, ao Tribunal bastou, no presente aresto, o reconhecimento de que subsistem ainda situações jurídicas criadas pela norma fiscalizada, apesar de não vigente, e que estas poderão (porventura) ser em número significativo - ainda que não se fundamente esta premissa (o "número significativo" de situações jurídicas subsistentes que a declaração de inconstitucionalidade permite eliminar) com qualquer dado de facto - para concluir no sentido do conhecimento do pedido. Não foi, contudo, esse o critério adotado, por exemplo, no Acórdãos n.º 154/2004 (em que estavam em causa normas relativas às condições de emissão do certificado de aptidão profissional de motoristas de veículos ligeiros de passageiros de transporte público de aluguer - táxis); no Acórdão 525/2008 (sobre normas respeitantes à suspensão da possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários da administração regional e autárquica para a administração direta e indireta do Estado); ou ainda no Acórdão 31/2009 (cujo objeto era constituído por normas atinentes às taxas devidas pela concessão e manutenção das zonas de caça), para referir apenas situações em que seria expectável ter havido um universo significativo de afetados.

Nesta sede, porém, entendeu-se desnecessária a comprovação da dimensão real do universo de casos incluídos no âmbito de aplicação das normas objeto do pedido, concluindo-se pela possibilidade de haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos durante o seu período de vigência, o que não seria possível com o recurso à fiscalização concreta da constitucionalidade, por tais decisões se encontrarem desprovidas de efeitos ex tunc, nos termos da Constituição e da lei. Ora, ainda que tal possa ser certo, sempre se dirá que esse é um interesse sempre existente e que, a aceitá-lo como justificação bastante, mal se compreende o conhecimento do presente pedido e não de outros. A verdade é que, já no corrente ano de 2022, este Tribunal optou por não tomar conhecimento do pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com fundamento na sua inutilidade, em situações em que estava até em causa a generalização de juízos de inconstitucionalidade proferidos em fiscalização concreta (em relação às quais a existência de casos concretos em juízo é, pois, uma certeza maior do que nas restantes). Vejam-se, a este respeito, os Acórdãos n.º 127/2022 e 420/2022.

Mal se entende, pois, a decisão de conhecimento do pedido aqui proferida, que se afigura em manifesta contradição com a jurisprudência constitucional. O certo é que nada impediria que a questão sob apreciação fosse ainda objeto de conhecimento pelo Tribunal, pela via dos processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, nomeadamente em caso de recusa de aplicação da norma, com fundamento em inconstitucionalidade, ou efetiva aplicação da norma arguida de inconstitucional. Deste modo, a posição dos interessados afetados pela norma estaria sempre salvaguardada, não havendo quaisquer razões de urgência, ou de especial fragilidade da posição dos lojistas, ou um interesse jurídico relevante que fundamente uma especial atenção ou preocupação por parte deste Tribunal, de forma a justificar a apreciação do pedido.

2 - Quanto ao sentido da decisão e respetiva fundamentação

Vencidos, igualmente, quanto ao sentido da decisão que, no nosso entender, deveria ter sido de não inconstitucionalidade.

2.1 - Como o próprio Acórdão reconhece (pontos 7 e 8), a norma fiscalizada enquadra-se num conjunto de medidas tomadas para minimizar os efeitos económicos e sociais gerados pela pandemia da doença Covid-19, visando, em especial, prestar apoio às partes nos contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais que foram vítimas daqueles efeitos, uma vez que «[q]uanto às rendas, ao seu valor e ao seu pagamento, importa sublinhar que as situações de perda de rendimentos por parte do inquilino devem ser respondidas não com a acumulação de dívida para o inquilino pagar mais tarde, mas sim com a redução proporcional do valor da renda. Tal realidade deverá estar presente quer no arrendamento habitacional, quer no arrendamento não habitacional, quer ainda, em contratos atípicos como os que vigoram para os pequenos lojistas nos centros comerciais» (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei 33/XVI, que esteve na génese da Lei 27-A/2020, de 24 de julho, e Nota Justificativa). A medida implementada por via da norma questionada visa, assim, minimizar os efeitos da crise económica e compensar as perdas sofridas em resultado da imposição de encerramento dos respetivos estabelecimentos ou da restrição dos horários de funcionamento dos centros comerciais. Deste modo, pretende-se estimular a atividade empresarial (evitando o encerramento definitivo destes estabelecimentos, por se encontrarem privados, ou muito limitados, (d)os respetivos lucros), promover o desenvolvimento económico e dar proteção e segurança ao emprego. Neste sentido, os fins que o legislador democrático entendeu prosseguir com a aprovação da norma sindicada correspondem, sem qualquer margem de dúvida, a interesses públicos relevantes, que também são tutelados pela Constituição (cf., designadamente, os artigos 53.º, 81.º, 86.º e 90.º da CRP).

Por outro lado, esta medida de apoio visa compensar a parte mais fraca e com menos peso negocial nos contratos de arrendamento em centros comerciais. Ora, neste quadro, o legislador entendeu ser adequado e equilibrado que os proprietários mantivessem os valores ou encargos devidos - e acordados - pela gestão destes equipamentos e ainda a componente variável da renda (calculada em função das respetivas vendas), intervindo apenas no que se refere à componente fixa da renda (ou "renda mínima").

2.2 - Nos termos do Acórdão, ao suprimir a componente em que assenta a contraprestação do lojista mais relevante para o proprietário ou promotor do centro comercial ao gozo da estrutura organizada do centro comercial e serviços associados, o legislador teria quebrado o equilíbrio de interesses refletidos no contrato, alterando, de forma inaceitável, o vínculo sinalagmático. A norma sindicada, que modifica a componente remuneratória dos contratos de instalação em centros comerciais, consubstancia, pois, no entender da maioria, uma restrição ao direito fundamental ao direito de propriedade do credor, constitucionalmente tutelado. Nesta linha, argumenta-se estar em causa o direito a não ser privado da propriedade, salvo com fundamento em razões de utilidade pública, e mediante justa indemnização, direito este que, pela sua estrutura predominantemente defensiva e por ser essencial à realização do homem como pessoa, é análogo aos direitos, liberdades e garantias, nos termos do artigo 17.º da CRP. Mais se acrescenta que "o direito de crédito, enquanto manifestação de propriedade, até pode gozar de uma garantia constitucional mais sólida que o direito de propriedade real", por estar menos subordinado a uma função social. Nesta linha, entendeu-se que a norma questionada viola o princípio da proporcionalidade, designadamente nas dimensões da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que "a supressão da retribuição fixa causa aos promotores ou gestores dos centros comerciais não está numa proporção aceitável com a eventual retoma económica dos lojistas"; isto porque quando o apoio económico dado a uma das partes contratantes "assenta integralmente no ónus que é imposto à outra parte, torna-se evidente que não é observado o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito".

Afastamo-nos, com clareza, de todas estas premissas e da respetiva conclusão.

Em primeiro lugar, levanta-nos dúvidas a construção de uma jurisprudência sobre o direito de propriedade fundada numa visão maximalista da analogia deste direito económico, social e cultural com os direitos, liberdades e garantias. Mais ainda, quando o Tribunal Constitucional é, em regra, parcimonioso na mobilização de outros direitos da mesma natureza como parâmetro de decisões de inconstitucionalidade, tendo em atenção a amplíssima margem de intervenção reconhecida ao legislador democrático em tais matérias. E, por maioria de razão, quando se alude a uma ideia de essencialidade para, pelo menos em parte, justificar tal analogia. De facto, mal se compreende a qualificação de um direito de crédito como "essencial à realização do homem como pessoa", quando essa essencialidade não é reconhecida a outros direitos fundamentais, como é, por exemplo, o caso do direito à habitação. Divergimos, igualmente, da ideia, presente na decisão, de uma espécie de "analogia reforçada" do direito de propriedade de créditos em relação ao direito de propriedade de coisas físicas, por aquele não estar, ao contrário deste último, subordinado à função social da propriedade. Não só esta afirmação corresponde a uma conceção excessivamente patrimonialista dos direitos de crédito, com este é um passo que este Tribunal não havia dado, com esta clareza, até ao momento, e do qual nos afastamos. Na verdade, esta visão constitui o aprofundamento de um processo de absolutização da analogia do direito de propriedade em relação aos direitos, liberdades e garantias, que já se notava, por exemplo, no Acórdão 299/2020, tornando difícil descortinar que dimensões deste direito fundamental restam na vertente de direito económico, nos termos do artigo 62.º da CRP. Ora, não divergindo da possibilidade e justeza desta analogia, em certos casos, a verdade é que não cabe ao Tribunal Constitucional alterar, por via jurisprudencial, a classificação - e consequente definição do regime jurídico - do direito de propriedade privada como direito económico, pois aquela cabe exclusivamente ao legislador constituinte.

2.3 - Além disso, mesmo que se admita como certo o reconhecimento do direito de crédito aqui em causa como análogo aos direitos, liberdades e garantias, não poderíamos, de toda a maneira, partilhar o juízo de inconstitucionalidade formulado. O mesmo aconteceria, aliás, se se sufragasse uma posição dogmaticamente distinta, assente na tendencial unidade dogmática dos direitos fundamentais, pelo menos quando esteja em causa a respetiva dimensão negativa, ou de proteção, quadro no qual haveria que levar a cabo análise de proporcionalidade similar à que foi feita na presente decisão.

Antes de mais, cabe assinalar que a sindicância realizada nesta sede não pode olvidar o contexto de aprovação e aplicação da norma que, como acima se recordou, foi desenhada num quadro complexo de crise, em virtude da situação de emergência sanitária. Ora, esse contexto não deixará de influenciar a ponderação a efetuar pelo juiz constitucional, nem delimitação da margem de conformação reconhecida ao legislador democrático.

Nestes termos, a intenção, muito clara, do legislador, foi a de redesenhar, por período determinado, e em circunstâncias especialíssimas, os termos de um contrato cível - o contrato de utilização de loja em centro comercial -, de forma a prosseguir objetivos de evidente interesse público e com agasalho constitucional. Teve, naturalmente, em mente que existem diferenças significativas entre estes contratos e os contratos de arrendamento com fins comerciais, cuja lógica económica e social é totalmente distinta; os contratos de utilização de loja em centro comercial configuram-se, sobretudo, como negócios de cooperação com vista a uma finalidade comum, não sendo, portanto, puramente comutativos, e sendo a remuneração variável - que se manteve intocada durante a vigência do regime jurídico em causa - e não a remuneração fixa - que funciona como mínimo garantido - o elemento fundamental a considerar.

Além disto, como o próprio Acórdão reconhece (pontos 11 e 23), não pode afirmar-se que os institutos de direito civil permitissem proteger a posição dos lojistas no contrato, pelo menos não sem um risco sério de insegurança jurídica e alterações interpretativas resultantes da sua aplicação casuística. Por outro lado, atenta a configuração jurídica dos contratos em causa, não damos por certo que as medidas alternativas aventadas no ponto 21 sejam menos lesivas, mas igualmente eficazes, na prossecução dos fins a que o legislador se propôs: salvaguardar a capacidade económica dos lojistas, com vista a protegê-los num momento de quebra acentuada e abrupta da atividade económica (designadamente, devido ao encerramento, por imposição legal, dos centros comerciais), permitindo manter níveis de solvência suscetíveis de impulsionar um retorno rápido à laboração em condições de normalidade. Assim, além da evidente adequação da norma sindicada, temos também por verificada a sua necessidade, no quadro de uma análise de proporcionalidade. Não podemos sufragar a posição segundo a qual a crise sanitária legitimaria a intervenção normativa que impôs o encerramento das lojas dos centros comerciais, mas já não a que, temporariamente, alterou os termos do contrato de forma a promover o seu equilíbrio num contexto de exceção, nem cremos que o Tribunal tenha encontrado alternativas equivalentes em termos de eficácia.

Por último, e como já se adiantou, no que respeita ao juízo de proporcionalidade em sentido estrito, também não julgamos que seja evidente que os sacrifícios impostos, por via da norma questionada, aos promotores de centros comerciais, superem os benefícios que com ela o legislador procurou alcançar. O nosso entendimento firma-se num marco em que relevam diversos fatores, designadamente, o quadro constitucional e político de produção normativa, em condições de emergência; o caráter temporalmente delimitado e excecional da medida, bem como a sua revisão e modificação pelo artigo 439.º da Lei 75-B/2020 - demonstrativas do cuidado do legislador em assegurar o cumprimento da dimensão da necessidade da restrição, de acordo com a evolução da situação de facto, e da intenção de impor o menor sacrifício possível; e os ónus impostos aos lojistas dos centros comerciais, em decorrência da imposição de encerramento das respetivas lojas, como já referimos. Tendo em mente tudo isto, e os objetivos de interesse público que se visaram, não cremos que a norma sindicada, ao impor uma alteração temporária dos termos do contrato de utilização de loja em centro comercial, possa qualificar-se como violadora do princípio da proporcionalidade.

3 - Finalmente, gostaríamos de expressar o nosso desconforto com a decisão redutiva que o Tribunal entendeu proferir. Na verdade, cremos que o Acórdão está mais próximo de uma decisão manipulativa, indo bastante mais além da eliminação de uma dimensão ideal do objeto normativo. Entendemos que, para poder apelidar-se, ainda, como declaração de inconstitucionalidade parcial vertical ou qualitativa, a decisão teria de se ter situado, ainda, no plano da limitação ou distinção entre um conjunto de situações incluídas no âmbito de aplicação da norma questionada. O que o Tribunal fez, no presente Acórdão, é algo diferente, tendo, na realidade, manipulado o objeto do pedido, e construído uma norma fiscalizada que é distinta da que consta do pedido.

Evidentemente, reconhece-se o esforço argumentativo feito no Acórdão (ponto 23), com o intuito de traçar critérios justificativos da possibilidade da suposta redução efetuada. Todavia, não partilhamos parte das premissas e respetivas conclusões. Por um lado, a afirmação de que a redução corresponde ao pensamento legislativo, ou seja, àquela que teria sido a opção do legislador para preencher o vazio legal resultante de uma declaração de inconstitucionalidade total é verosímil, mas não comprovada. Trata-se de um juízo ex post facto, levado a cabo em circunstâncias em que a informação sobre a epidemia de Covid 19 e, sobretudo, sobre a sua evolução e consequências económicas é muito distinta daquela de que o legislador de 2020 dispunha. O argumento segundo o qual a solução pela qual se optou no dispositivo tem origem legislativa não é, assim, suficiente para obstar à objeção que sustenta que, independentemente da fonte primária - que é uma norma aprovada pelo legislador num contexto não inteiramente coincidente com o da norma fiscalizada -, tal solução corresponde, nesta sede, a uma opção feita pelo Tribunal (e não pelo legislador democrático), de entre várias outras que teriam sido possíveis. Uma opção, aliás, com um nível de detalhe na definição do standard aceitável de repartição do sacrifício entre as partes do contrato de exploração de loja em centro comercial - determinando-se a percentagem concreta de redução da renda e o critério de determinação do volume de vendas mensal relevante - inédito na jurisprudência constitucional, e que estabelece um precedente difícil de justificar.

É evidente que o nosso juízo de não inconstitucionalidade da norma nos leva a partilhar a afirmação nos termos da qual o significativo risco de tutela deficitária recomenda "que os efeitos jurídicos da norma sindicada sejam conservados". Todavia, a Constituição da República Portuguesa atribui a este Tribunal poderes específicos para atender a este tipo de preocupações, permitindo, nos termos do artigo 282.º da CRP, a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Dada a latitude desta previsão constitucional, cremos que deveria ter sido essa a opção do Tribunal, permitindo obter idêntica proteção dos direitos e valores constitucionais relevantes, com evidente fundamento constitucional e sem gerar dúvidas quanto à observância do princípio da separação de poderes. - Mariana Canotilho, Assunção Raimundo e António Ascensão Ramos.

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Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5004434.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1985-09-03 - Acórdão 143/85 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea i) do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, na parte em que considera incompatível com o exercício da advocacia a função docente de disciplinas que não sejam de Direito.

  • Tem documento Em vigor 1991-04-09 - Lei 9/91 - Assembleia da República

    Aprova o estatuto do Provedor de Justiça.

  • Tem documento Em vigor 2015-01-16 - Decreto-Lei 10/2015 - Ministério da Economia

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 29/2014, de 19 de maio, aprova o regime de acesso e de exercício de diversas atividades de comércio, serviços e restauração e estabelece o regime contraordenacional respetivo

  • Tem documento Em vigor 2019-09-04 - Lei 93/2019 - Assembleia da República

    Altera o Código de Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, e respetiva regulamentação, e o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro

  • Tem documento Em vigor 2020-03-20 - Decreto 2-A/2020 - Presidência do Conselho de Ministros

    Procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março

  • Tem documento Em vigor 2020-03-31 - Lei 2/2020 - Assembleia da República

    Orçamento do Estado para 2020

  • Tem documento Em vigor 2020-04-02 - Decreto 2-B/2020 - Presidência do Conselho de Ministros

    Regulamenta a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República

  • Tem documento Em vigor 2020-04-06 - Lei 4-C/2020 - Assembleia da República

    Regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID-19

  • Tem documento Em vigor 2020-04-17 - Decreto 2-C/2020 - Presidência do Conselho de Ministros

    Regulamenta a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República

  • Tem documento Em vigor 2020-05-29 - Lei 17/2020 - Assembleia da República

    Altera o regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID-19, procedendo à primeira alteração à Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril

  • Tem documento Em vigor 2020-07-24 - Lei 27-A/2020 - Assembleia da República

    Procede à segunda alteração à Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Orçamento do Estado para 2020), e à alteração de diversos diplomas

  • Tem documento Em vigor 2020-08-20 - Lei 45/2020 - Assembleia da República

    Altera o regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda nos contratos de arrendamento não habitacional, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril

  • Tem documento Em vigor 2020-12-31 - Lei 75-B/2020 - Assembleia da República

    Orçamento do Estado para 2021

  • Tem documento Em vigor 2021-02-01 - Lei 4-A/2021 - Assembleia da República

    Clarifica o regime excecional aplicável aos contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, através de uma norma interpretativa da Lei n.º 2/2020, de 31 de março

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