Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Requerente e objecto do pedido
O Procurador-Geral da República, de acordo com os artigos 281.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa (CRP), 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), e 12.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 60/98, de 27 de Agosto, vem pedir a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma contida no n.º 9 do artigo 8.º da Portaria 431/2006, de 3 de Maio (diploma regulamentar que estabelece os requisitos, prazos e termos do procedimento administrativo a seguir nos processos relativos a zonas de caça municipais, associativas e turísticas), na medida em que, prescrevendo que a falta de pagamento pontual das taxas devidas pela concessão e manutenção das zonas de caça implica que o valor das mesmas seja agravado em 10 % por cada mês ou fracção, até ao pagamento ser efectuado, viola os princípios da proporcionalidade, da primariedade ou precedência da lei sobre o regulamento, decorrente do artigo 112.º, e da natureza bilateral ou sinalagmática das taxas, ínsita nos artigos 103.º e 165.º, n.º 1, alínea. i), todos eles da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A norma em causa, cuja epígrafe é "Taxas devidas pela concessão de zonas de caça", dispõe nos seguintes termos.
"Artigo 8.º, n.º 9:
'Sempre que o pagamento da taxa tenha lugar fora do prazo referido na alínea b) do n.º 2, o valor da mesma é agravado 10 % por cada mês ou fracção até o pagamento ser efectivado'."
A alínea b) do n.º 2 dispõe da seguinte forma.
"Artigo 8.º, n.º 2: "- O pagamento da taxa acima referida efectua-se em duas fases:
a) (...);
b) Anualmente, de 1 de Janeiro a 31 de Maio e correspondente ao valor de (euro) 1,20 por hectare ou fracção, sendo calculado em função da área total à data de pagamento".
2 - Fundamentos do pedido
Para fundamentar o seu pedido, o Procurador-Geral da República alegou o seguinte:
- A norma a que se reporta o pedido em apreço, incluída na portaria acima assinalada, prescreve que 'a falta de pagamento pontual das taxas devidas pela concessão e manutenção das zonas de caça implica que o valor das mesmas seja agravado em 10 % por cada mês ou fracção, até ao pagamento ser efectuado'. A mesma norma ' - desprovida de carácter sancionatório e, portanto, insusceptível de ser incluída no âmbito das contra ordenações - prossegue uma finalidade claramente agravatória da responsabilidade patrimonial do devedor, visando alcançar um ressarcimento acrescido para a mora, relativamente ao que decorreria da aplicação do regime geral referente ao vencimento e cômputo dos juros de mora, no caso de incumprimento de débitos ao Estado e demais entidades públicas'. Efectivamente, partindo da conjugação do artigo 44.º do Decreto-Lei 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária - de ora em diante LGT), com os artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei 73/99, de 16 de Março (que estabelece o regime jurídico dos juros de mora por dívidas ao Estado), resulta 'que a taxa de juros moratórios devidos seria de 1 % ao mês'.
- Sucede que, antes de mais, a disciplina relativa aos efeitos da mora do devedor constitui matéria de lei, não podendo "um diploma de índole regulamentar [...] legitimamente inovar" neste domínio. No que se refere à fixação das taxas de juros de mora, vale o princípio "da primariedade ou precedência da lei sobre o regulamento, decorrente do artigo 112.º da Constituição".
- Para além disso, o agravamento do valor da taxa estabelecido pelo diploma regulamentar em análise foi "determinado exclusivamente em função da mora do devedor" - passando o "valor da taxa devida pela concessão e manutenção das zonas de caça" a resultar "não apenas da ponderação da área total da zona de caça concessionada [...], mas também do âmbito temporal da mora do devedor, com directa e drástica incidência na determinação do montante da taxa devida". Ora, "tal agravamento do valor da taxa, exclusivamente fundado na mora do devedor, é inconciliável com a estrutura bilateral ou sinalagmática das taxas (...)".
- Não pode, assim, "considerar-se como enquadrável na figura jurídico-constitucional de «taxa» o segmento ou parcela de débito, na parte em que visa tão-somente ressarcir a Administração pelas consequências da mora no pagamento do valor da taxa originariamente devida". Pela razão simples de que um dos elementos caracterizadores da figura tributária das taxas é a sua estrutura bilateral, unanimemente afirmada pela doutrina e pela jurisprudência constitucional, a qual implica que "o pagamento de uma qualquer taxa tem necessariamente como contrapartida os custos globais da actividade administrativa - consubstanciados, no caso, na fiscalização subjacente à concessão ou manutenção de uma zona de caça - bem como a utilidade daquela contraprestação para o respectivo beneficiário". Como se revela evidente, "a problemática do ressarcimento da Administração Pública pelos danos associados à mora do devedor no pagamento da quantia pecuniária de vida a título de taxa extravasa totalmente aquele plano de «cobertura de custos» de uma actividade administrativa e do «valor de utilidade» alcançável pelo respectivo beneficiário, não se destinando a satisfazer nenhuma das finalidades típicas que a Lei Geral Tributária assinala às taxas no n.º 2 do respectivo artigo 4.º".
- Por último, "não se vislumbra fundamento material bastante para tão drástico agravamento da responsabilidade patrimonial do devedor em mora, no âmbito de uma determinada e peculiar taxa". A medida adoptada pelo diploma regulamentar em apreço, manifestamente agravadora da taxa de juros de mora, configura-se como violadora do "princípio constitucional da proporcionalidade, no que toca à determinação do seu valor".
3 - A resposta do órgão autor da norma
Tendo sido o autor da norma notificado do pedido de fiscalização, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional - LTC), não se obteve qualquer resposta.
Elaborado o memorando a que se refere o artigo 63.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate, cumpre agora decidir de acordo com a orientação que o Tribunal fixou.
II - Fundamentação
a) Questão prévia
4 - A norma objecto do pedido de fiscalização - constante do n.º 9 do artigo 8.º da Portaria 431/2006 - foi, num momento ulterior ao da interposição do pedido em análise, expressamente revogada pela 1239/93, de 4 de Dezembro, 123/2001, de 23 de Fevereiro, 1194/2003, de 13 de Outubro, 431/2006, de 3 de Maio e 1509/2007, de 26 de Novembro e fixa os montantes das taxas devidas por serviços prestados pela Autoridade Florestal Nacional.">Portaria 1405/2008, de 4 de Dezembro, mais concretamente por força do seu artigo 3.º (Alteração da Portaria 431/2006, de 3 de Maio). Diga-se que a norma sindicanda, por sua vez, tinha revogado o n.º 11 do artigo 10.º da Portaria 1391/2002, de 25 de Outubro, também ele objecto de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, tendo, no entanto, reproduzido na íntegra a disciplina jurídica dele constante (ver Acórdão 497/2007 (publicado no Diário da República, 2.ª série, a 21 de Novembro).
A nova portaria introduz uma norma em larga medida idêntica àquela que agora constitui objecto de controlo. O seu teor é o seguinte:
"Artigo 8.º
1 -
2 -
e) Sempre que o pagamento não se efectue no prazo referido no n.º 3, pelo pagamento das taxas referidas nas alíneas c) e d) ao valor indicado acresce 10 %, por mês ou fracção até efectivo pagamento".
Por força do princípio do pedido, consagrado no artigo 51.º, n.º 5 da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), e de acordo ainda com a jurisprudência firme e constante do Tribunal Constitucional, não pode operar-se a convolação do objecto do processo - o mencionado n.º 9 do artigo 8.º - nas normas do diploma revogador que tenham um conteúdo normativo correspondente ou semelhante ao da norma que constitui objecto do presente controlo da constitucionalidade (cf. Acórdãos n.º s 57/95, 140/00, 531/00, 404/2003, 19/2007 e 497/2007, publicados, no Diário da República, 2.ª série, respectivamente a 12 de Abril, 26 de Outubro, 9 de Janeiro de 2001, 20 de Novembro, 14 de Fevereiro e 21 de Novembro). Não pode, deste modo, o Tribunal Constitucional apreciar idêntica norma contida no artigo 8.º, n.º 2, alínea e), introduzida pelo artigo 3.º da 1239/93, de 4 de Dezembro, 123/2001, de 23 de Fevereiro, 1194/2003, de 13 de Outubro, 431/2006, de 3 de Maio e 1509/2007, de 26 de Novembro e fixa os montantes das taxas devidas por serviços prestados pela Autoridade Florestal Nacional.">Portaria 1405/2008.
Não obstante, o facto de a norma em causa ter sido revogada não é condição suficiente para se concluir de imediato pela inutilidade do pedido.
No que respeita aos efeitos temporais das declarações de inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização abstracta sucessiva, rege o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição da República, o qual estabelece, como regra, os efeitos retroactivos (ex tunc) deste tipo de decisões, ou seja, os efeitos da decisão do Tribunal Constitucional retroagem à data da entrada em vigor da norma que agora se pretende declarar inconstitucional.
Já a revogação de uma norma tem, em princípio, eficácia prospectiva (ex nunc) - eficácia para o futuro - , pelo que os efeitos que produziu enquanto esteve em vigor não serão eliminados da ordem jurídica.
Dito isto, decorre com clareza que pode haver interesse ou utilidade na eliminação dos efeitos produzidos pela norma revogada enquanto esteve em vigor. Isso mesmo foi já por diversas vezes afirmado pelo Tribunal Constitucional, o qual sustenta, em termos genéricos, que se mantém o interesse na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas revogadas na medida em que, "por alguma específica razão relativa à aplicação da lei no tempo, seja de esperar que a norma em causa venha a aplicar-se ainda a um número significativo de casos, ou quando «tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar efeitos por elas entretanto produzidos durante o período da respectiva vigência»" (ver Acórdão 525/2008 e, ainda, os Acórdãos n.º s 497/97, 531/00, 32/2002, 404/2003, 76/2004, 19/2007 e 497/2007 (publicados, no Diário da República, 2.ª série, respectivamente a 28 de Novembro, 10 de Outubro, 9 de Janeiro de 2001, 18 de Fevereiro, 20 de Novembro, 6 de Março, 14 de Fevereiro e 21 de Novembro).
Haverá, então, e antes de mais, que averiguar se subsiste interesse ou utilidade no conhecimento do mérito do pedido de fiscalização abstracta sucessiva da inconstitucionalidade da norma em apreciação, entretanto, como se viu, revogada.
5 - Na esteira do que tem sido a jurisprudência constante e uniforme do Tribunal Constitucional relativamente ao conhecimento de pedidos de fiscalização que tenham por objecto normas já revogadas, a declaração com força obrigatória e geral das mesmas só se justificará quando for evidente e manifesta a sua indispensabilidade.
Mais concretamente, podem extrair-se do Acórdão 497/97 (já citado) os termos em que o conhecimento de um pedido de fiscalização de normas revogadas se afigura pertinente:
"Com efeito, pode haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos pela norma revogada no período da sua vigência. De acordo com a jurisprudência, reiterada e uniforme, deste Tribunal, face à revogação de uma norma, manter-se-á o interesse na declaração da sua eventual inconstitucionalidade "toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado, durante o tempo em que vigorou" e essa indispensabilidade seja evidente, por se tratar da eliminação de efeitos produzidos constitucionalmente relevantes (por todos, citem-se os acórdãos n.º s. 804/93, 806/93, 186/94 e 57/95, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 31 de Março, 29 de Janeiro, 14 de Maio de 1994 e 12 de Abril de 1995, respectivamente)."
Já, todavia, não existe - neste modo de ver - interesse jurídico relevante no conhecimento de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma entretanto revogada, naqueles casos em que não se vislumbre nele qualquer alcance prático, atendendo à circunstância de o Tribunal, a declarar eventualmente a inconstitucionalidade, não dever deixar de, por razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo, limitar os seus efeitos, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da CR, de modo a deixar incólumes os efeitos produzidos pela norma antes da sua revogação. Em tais situações, como vem entendendo este Tribunal (e acompanhamos de perto o citado acórdão 57/95), "em que é visível a priori que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir, bem se justifica que conclua, desde logo, pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito".
Para além disso, como se afirmou, nomeadamente no Acórdão 413/00 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), não existe, do mesmo modo:
"um interesse jurídico relevante - um interesse prático apreciável - no conhecimento do pedido, por exemplo, quando os meios concretos de defesa postos à disposição dos interessados são suficientes para acautelar os seus direitos ou interesses, impedindo a aplicação da norma inconstitucional".
6 - In casu, poder-se-ia admitir a existência de um interesse suficientemente relevante no conhecimento do mérito do pedido de controlo, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, "se acaso se soubesse da pendência de um número elevado de processos em que esta questão tivesse sido suscitada e fosse decisiva para o respectivo desfecho" (cf. Acórdão 32/2002, já citado). Não é este certamente o caso. Efectivamente, essa aplicação não gerou grande litigiosidade, porventura, devido ao curto período de vigência da norma sindicanda.
E, de todo o modo, se ainda estiver pendente algum recurso contencioso em que a questão da inconstitucionalidade da norma a que se reportam estes autos seja decisiva, sempre restará aos interessados a via da fiscalização concreta (ver Acórdãos n.º s 531/00, 32/2002, 19/2007 e 497/2007, já citados).
III - Decisão
7 - Pelos fundamentos expendidos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento, do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 9, do artigo 8.º da Portaria 431/2006, de 3 de Maio.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2009. - José Borges Soeiro - Carlos Fernandes Cadilha - João Cura Mariano - Vítor Gomes - Maria João Antunes - Benjamim Rodrigues - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Pamplona de Oliveira - Mário José de Araújo Torres - Gil Galvão - Joaquim de Sousa Ribeiro - Maria Lúcia Amaral - Rui Manuel Moura Ramos.