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Acórdão 143/85, de 3 de Setembro

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea i) do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, na parte em que considera incompatível com o exercício da advocacia a função docente de disciplinas que não sejam de Direito.

Texto do documento

Acórdão 143/85

Processo 139/84

Acordam no Tribunal Constitucional:

1 Relatório

O Presidente da Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma da alínea i) do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo Decreto-Lei 84/84, de 16 de Março), o qual determina que o exercício de advocacia é incompatível com a actividade de funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos, com excepção dos docentes das disciplinas de Direito. Alega que, abrangendo a incompatibilidade todos os funcionários e agentes públicos, com excepção dos docentes de Direito, tal preceito estabelece uma situação discriminatória em relação a todos os demais docentes (os que leccionam outras disciplinas), infringindo, por isso, o princípio da igualdade, consignado no artigo 13.º da Constituição da República.

Solicitado a pronunciar-se sobre o assunto, o Primeiro-Ministro veio juntar um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, no qual se defende a opinião de que a norma questionada não é inconstitucional, designadamente por a incompatibilidade estabelecida dever entender-se fundada no interesse em garantir o bom exercício dos cargos públicos, à luz do artigo 269.º da Constituição, justificando-se a excepção justamente porque o exercício da advocacia por parte dos docentes de direito poderia enriquecer o exercício da sua função docente, o que se não verificaria nos demais casos.

Submetida a questão à apreciação do Tribunal, houve que proceder a mudança de relator, por o relator originário ter ficado vencido quanto à decisão.

Com efeito - importa desde já dizê-lo -, o Tribunal pronuncia-se pela inconstitucionalidade do mencionado preceito, na parte em que, no entendimento do Tribunal, ele vem questionado.

Cumpre dar conta dos termos da decisão alcançada e da respectiva fundamentação.

2 - O pedido e os seus fundamentos

2.1 - Delimitação do âmbito do pedido

O requerimento do Presidente da Assembleia da República refere-se à alínea i) do n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados. Diz esse preceito:

Artigo 69.º

(Enumeração das incompatibilidades)

1 - O exercício da advocacia é incompatível com as funções e actividades seguintes:

...

i) Funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, com excepção dos docentes de disciplinas de Direito;

...

No enunciado e na conclusão dos seus requerimentos - pois de dois requerimentos se trata, embora com a mesma data e com objecto e fundamentos substancialmente idênticos, pelo que foram incorporados num só processo -, o Presidente da AR limita-se a mencionar a referida norma, sem qualquer restrição quanto ao âmbito do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade. Todavia, o Tribunal entende que, considerados os requerimentos no seu todo, o pedido não abrange a norma em toda a sua extensão, mas apenas uma parte dela, a saber: a parte em que ela considera incompatível com o exercício da advocacia a função ou a actividade de funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos que sejam docentes de outras disciplinas que não as de Direito.

Com efeito, é essa a melhor interpretação que decorre do teor dos requerimentos, e com a razão de ser e motivação do pedido, afigurando-se ser seguro que eles questionam a incompatibilidade, não em relação a todos os funcionários e agentes públicos - que tal é o âmbito da norma, com a excepção nela contida -, mas apenas em relação à categoria dos docentes.

Existem dois elementos que, em conjunto, são decisivos para se alcançar esta conclusão. Em primeiro lugar, o pedido do Presidente da AR tem origem em duas petições que lhe foram dirigidas por dois cidadãos que, tendo requerido a inscrição na Ordem dos Advogados, a viram recusada com fundamento na questionada norma do Estatuto, por serem professores de disciplinas não jurídicas (um deles, numa escola preparatória; outro, numa escola secundária). O Presidente da AR não só assume como seus os fundamentos das aludidas petições, como faz instruir os seus requerimentos com uma cópia delas, significando assim a identidade de temas entre umas e outros.

Ora em qualquer das petições pedia-se, que o Presidente da AR requeresse a apreciação e declaração da inconstitucionalidade do referido preceito do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas «no que concerne à discriminação entre docentes que leccionam disciplinas de Direito e outras disciplinas».

Em segundo lugar - e sobretudo -, é o próprio Presidente da AR que explicitamente restringe o âmbito da questão por ele trazida ao Tribunal. Num dos requerimentos, depois de enunciar o teor do preceito em causa, acrescenta logo que «esta norma estabelece uma situação discriminatória [...] em relação aos docentes de quaisquer outras disciplinas», para, depois, argumentar que, «se a lei abre uma excepção para o exercício da advocacia para uma certa categoria de docentes, deveria alargar tal excepção a todos eles, sob pena de se violar o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei» (itálicos acrescentados).

É lícito, pois, concluir que, quando requer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade da norma da alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, o Presidente da AR pretende apenas que esta seja apreciada à luz da questão por ele mesmo delimitada, ou seja, a que tem a ver apenas com a categoria dos docentes.

Sendo este o âmbito real do pedido, cumpre ao Tribunal respeitá-lo.

2.2 - Estrutura e alcance da norma questionada

A norma da alínea i) do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece uma regra com uma excepção. A regra é a de que é incompatível com o exercício da profissão de advogado o desempenho de qualquer função ou actividade de funcionário ou agente de qualquer serviço público: a excepção é a de que a incompatibilidade não afecta aqueles funcionários ou agentes que sejam docentes de disciplinas de Direito.

É óbvio que o pedido de declaração de inconstitucionalidade não se dirige contra a excepção, pois não é posta em causa a inexistência de incompatibilidade da advocacia com a docência de disciplinas de Direito. Do que se trata não é de saber por que é que os advogados podem ser professores de Direito, mas sim por que é que, desde logo, não podem ser professores de outras matérias. De outro modo: não se questiona por que é que os docentes de Direito podem obter a inscrição na Ordem dos Advogados, mas sim por que é que os demais docentes não podem. Enfim, o que está em causa é a regra, ela mesma, na parte em que abrange os demais docentes (ou seja: os que leccionem outras disciplinas que não de Direito).

Sucede que essa parte da norma não possui autonomia no enunciado semântico do preceito, pois, ao exprimir a regra da incompatibilidade, ele refere os funcionários ou agentes em geral, sem discriminar as várias categorias deles, designadamente sem autonomizar a categoria dos docentes.

Todavia, a falta de uma correspondência literal, através de um segmento semântico «palpável», não impede que o preceito seja dividido em tantos segmentos normativos ideais quantos aqueles que sejam relevantes de acordo com o ponto de vista adoptado. De resto, a autonomização da categoria dos docentes é feita de forma implícita, pois a excepção à regra (a dos docentes das disciplinas de Direito) destina-se justamente a uma espécie (os docentes de Direito) dessa categoria (os docentes em geral).

Tudo se passa como se a norma devesse ser lida assim: «funcionários e agentes de quaisquer serviços públicos, de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, incluindo o pessoal docente, com excepção dos docentes das disciplinas de Direito».

Esta autonomização da categoria dos docentes de entre o universo dos funcionários e agentes públicos implica que o Tribunal se vai debruçar sobre a norma apenas na parte em que contempla aquela categoria. Mas desta redução do espaço de incidência da apreciação do Tribunal não pode, obviamente, deduzir-se nenhuma posição quando à norma na sua parte restante.

3 - A solução

3.1 - O sentido da norma questionada

O referido artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados integra-se no capítulo das «incompatibilidades» e «impedimentos», sendo o preceito que contém a «enumeração das incompatibilidades» (tal é a sua rubrica), estando inserido logo após a disposição introdutória desse capítulo (o artigo 68.º), que define o «âmbito das incompatibilidades», determinando que «o exercício da advocacia é incompatível com qualquer outra actividade ou função que diminua a independência e a dignidade da profissão» (itálico acrescentado). É neste contexto, e incluída num vasto elenco de incompatibilidades, que aparece a norma segundo a qual não pode exercer a advocacia quem seja funcionário ou agente de qualquer serviço público, incluindo o pessoal docente, salvo o que o for de disciplinas de Direito.

Destas considerações é lícito extrair três conclusões: 1.ª, a incompatibilidade em causa tem a ver com a protecção do estatuto do advogado, e não com a função ou actividade que é declarada incompatível com a advocacia; 2.ª, a incompatibilidade há-de justificar-se, ao menos quanto à sua extensão, à luz da defesa da independência e da dignidade da profissão, e não de outros valores, pois são esses os fundamentos legalmente invocados para elas (e não se vê que outros valores da profissão é que haveriam de merecer protecção através deste meio); 3.ª, a incompatibilidade atinge apenas o pessoal docente que seja funcionário ou agente público (ou sejam os professores das escolas públicas), e não o das escolas privadas (ou cooperativas).

A partir destas conclusões é possível afastar imediatamente certas formas de abordar o problema que, aparentemente, poderiam apresentar alguma relevância, mas que na verdade a não possuem.

Assim, na avaliação da norma em causa não pode entrar-se em linha de conta com nenhum interesse constitucional sob o ponto de vista do estatuto da função pública. Recorde-se que é esta a linha de raciocínio que informa o parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros. A verdade é que o objecto da norma é estabelecer uma incompatibilidade do exercício de outras actividades (incluindo as funções públicas) com a advocacia, e não de outras actividades (incluindo a advocacia) com a função pública.

O sentido da norma é proteger a advocacia, e não a função pública; visa defender a advocacia contra a função pública, e não a função pública contra a advocacia.

A incompatibilidade em causa pertence ao estatuto da advocacia, e não ao estatuto da função pública.

É evidente que o estatuto da função pública não está impedido de estabelecer incompatibilidades com o exercício de outras actividades (cf. o artigo 269.º, n.º 5, da Constituição), para protecção dos interesses e valores próprios da função pública. Mas não é disto que se trata aqui. No caso de se verificar o exercício de funções públicas por parte de um advogado, o preceito aqui em causa dá à Ordem dos Advogados o poder de o suspender da actividade de advogado, mas não dá à Administração Pública o poder de o suspender da sua função pública.

Em segundo lugar, devendo ser vista exclusivamente sob a perspectiva da protecção da independência e da dignidade da profissão de advogado, a incompatibilidade em análise só pode ser avaliada à luz de outros valores eventualmente julgados dignos de protecção - como será o caso da garantia da disponibilidade e da dedicação do advogado à sua profissão, ou até da sua competência e reputação profissional -, na medida em que tais valores possam ou hajam de ser considerados como requisitos ou garantias integrantes da independência e da dignidade da profissão. Mas torna-se evidente que nem nessa perspectiva alargada se lograria justificação para o regime em análise, pois a incompatibilidade só abrange as funções docentes de disciplinas não jurídicas apenas quando aquelas sejam desempenhadas na qualidade de funcionário ou agente público. Ora seguramente que não é menos dispersante para um advogado ser professor, por exemplo, de Matemática ou de Medicina numa escola privada do que numa escola oficial.

3.2 - A incompatibilidade e o princípio da igualdade

3.2.1 - Significado da incompatibilidade. - O significado jurídico da incompatibilidade em apreço analisa-se em duas vertentes: por um lado, quem for advogado não pode passar a exercer qualquer actividade docente pública (salvo a de disciplinas de Direito), sendo suspenso da advocacia se o fizer; por outro, quem for docente de uma escola pública (salvo de disciplinas de Direito) não pode exercer a advocacia, devendo deixar aquela actividade se quiser passar a exercer esta.

O Estatuto da Ordem dos Advogados é claro. A quem, sendo advogado, exercer cargo ou função incompatível com a de advogado, é-lhe suspensa a inscrição na Ordem (artigo 156.º, n.º 2); a quem pretender ser advogado e exercer cargo ou função incompatível com a advocacia, ser-lhe-á mesmo recusada a inscrição, como determina a alínea d) do n.º 1 do mesmo preceito.

Portanto, quem for advogado não pode passar a exercer qualquer função pública, designadamente a actividade decente (com a excepção assinalada);

quem for funcionário ou agente público (designadamente se for docente de disciplinas que não sejam de Direito não pode passar a exercer a profissão de advogado sem deixar de exercer aquelas funções públicas.

É esta norma, com este alcance, que importa confrontar com a Constituição.

3.2.2 - Incompatibilidades e igualdade. - Na apreciação constitucional do problema assume imediata relevância a consideração do princípio da igualdade, consignado no artigo 13.º da Constituição. Por dois motivos essenciais: primeiro, por ser esse o fundamento invocado no requerimento que pede a apreciação e declaração da inconstitucionalidade; depois, porque, tratando-se de uma norma que manifestamente estabelece uma diferenciação de regimes em matéria que contende com direitos ou interesses pessoais com evidente conexão constitucional, importa desde logo saber se é fundada essa diferenciação, independentemente de saber se a própria incompatibilidade é ou não materialmente legítima em si mesma.

Com efeito, mesmo que se admita que é inatacável, sob o ponto de vista constitucional, o estabelecimento de incompatibilidades com o exercício da advocacia, uma vez que o artigo 47.º da Constituição as não proíbe; mesmo que se tenha por inquestionável que são claramente «admissíveis» as «restrições [...] que visam limitar o exercício simultâneo de várias profissões» e que «a lei pode estabelecer incompatibilidades que obstem a que uma profissão seja exercida cumulativamente com outra» (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., 1984, nota v do artigo 47.º, p. 271), nada disso é relevante para afastar a questão da inconstitucionalidade, quando vista à luz do princípio da igualdade. Pelo contrário: este princípio só ganha relevo autónomo quando se admita (ou, pelo menos, quando se pressuponha) que o legislador gozava de discricionariedade legislativa quanto ao estabelecimento da incompatibilidade em si mesma. Nessa altura - i. e., pressupondo que o legislador não estava, à partida, impedido de criar incompatibilidades (desde que observados os princípios gerais da necessidade e da proporcionalidade) - é que se põe a questão de saber se ele o fez sem discriminações, i. e., de acordo com o princípio da igualdade. Não basta que o legislador não esteja impedido de criar incompatibilidades; torna-se necessário, entre outras coisas, que elas não sejam discriminatórias, tratando designadamente situações iguais (ou vice-versa), afectando com a incompatibilidade categorias de pessoas que, sob o ponto de vista do fundamento da incompatibilidade, se encontram em igualdade de situação com outras que não são atingidas por ela.

Ora é isso o que ocorre no caso em apreço. Ao abranger na incompatibilidade o pessoal docente que seja funcionário ou agente público, a norma questionada estabeleceu uma dupla discriminação: por um lado, em relação aos docentes de disciplinas de Direito, que não são atingidos pela incompatibilidade; por outro, em relação a todos os docentes que não sejam funcionários ou agentes públicos, que estão igualmente fora do seu alcance.

3.2.3 - A discriminação entre o pessoal docente público. - Sob o ponto de vista dos factores que relevam para efeitos de incompatibilidades com a advocacia, não existe qualquer razão para diferenciar, no âmbito do pessoal docente público, entre os que leccionam disciplinas de Direito e os demais. Estes não são menos independentes do que aqueles; e a leccionação de outras disciplinas que não as de Direito não afecta de modo diverso a dignidade da profissão de advogado, seja no sentido positivo ou negativo. Importa sublinhar que, no plano aqui analisado - o da discriminação apenas ao nível dos docentes que sejam funcionários ou agentes públicos -, é irrelevante a consideração de certos elementos dos conceitos de independência e de dignidade (como sejam a garantia da disponibilidade e a dedicação do advogado à sua profissão e até da sua competência ou reputação profissional), visto que esses não dependem da natureza pública ou privada da função docente, sucedendo, aliás, que a lei não estabelece incompatibilidades com a função privada (v. supra, 3.1, in fine).

Quanto à independência, afigura-se ser inquestionável que nenhuma diferença de situações existe que justifique uma diferença de regimes no que respeita à incompatibilidade. Todo o pessoal docente está na mesma situação perante as escolas e o Estado quanto às suas relações funcionais (consoante as suas categorias profissionais), independentemente das disciplinas leccionadas;

quanto à sua actividade docente, todos gozam da liberdade de ensino, constitucionalmente garantida. Não se vislumbra qualquer diferença em qualquer dos aspectos.

O mesmo sucede, porventura com menor nitidez aparente, quando encaradas as coisas sob o ponto de vista da dignidade da profissão de advogado. É certo que, tomando em conta apenas certos modelos estereotipados e tradicionais do perfil cultural da advocacia e da escala de prestígio dos saberes e das disciplinas científicas, poderia pretender algum respeito o argumento de que poderia não «ficar bem» a um advogado dar aulas de Química ou Geografia, de Educação Física ou de Contabilidade, etc. Mas, para além de que, como se verá, a lei não veda aos advogados tais funções docentes, quando privadas (o que prova que a incompatibilidade não tem nada a ver com o conteúdo da matéria ensinada), acresce que o argumento nem sequer é coerente, mesmo que considerado apenas no plano em que neste momento importa considerá-lo (i. e., no âmbito do pessoal docente público). Pois afigura-se ser evidente que não afecta mais a dignidade da profissão de advogado, por exemplo, exercer actividade docente em qualquer disciplina numa prestigiada faculdade (por exemplo, de economia, de letras, de ciências sociais, para só falar das dedicadas aos saberes humanistas) do que leccionar disciplinas elementares de Direito em qualquer escola do ensino secundário ou do ensino médio ou superior não universitário (v. g., nos institutos superiores de contabilidade e administração, etc.).

Também não é de considerar procedente qualquer justificação da diferenciação que recorra a uma suposta tradição jurídica para explicar a excepção apenas dos docentes de Direito em relação à incompatibilidade. A verdade é que não existe nenhuma tradição dessas. Com efeito, na legislação anterior ao actual Estatuto da Ordem dos Advogados não se estabelecia nenhuma incompatibilidade genérica do exercício da advocacia, nem com a função pública em geral, nem com a função docente em particular. A esse respeito, o artigo 591.º do Estatuto Judiciário, que enunciava as incompatibilidades, referia apenas «os funcionários das administrações-gerais, direcções-gerais e inspecções-gerais de todos os ministérios e, bem assim, de serviços centrais, ainda que autónomos, de todos os ministérios», o que estava longe da abrangência do actual preceito (basta comparar a respectiva redacção) e que deixava fora da incompatibilidade numerosos sectores de funcionários e agentes públicos, designadamente o dos serviços e organismos autónomos (desde que não integrados nos «serviços centrais dos ministérios»). Acresce que não se consignava sequer nenhuma excepção quanto aos docentes de disciplinas de Direito, como agora. Portanto, não existe qualquer tradição, nem quanto ao âmbito geral da incompatibilidade, nem quanto à excepção dos docentes de disciplinas de Direito, só por o serem.

O que existia era a dispensa do estágio de advocacia (tirocínio) em relação aos «professores e antigos professores das faculdades de direito e os doutores em Direito» (artigo 558.º do Estatuto Judiciário). É fácil ver que, para além de esta prerrogativa ser totalmente alheia à questão da incompatibilidade profissional, a sua razão de ser tem a ver, não com o facto de se ser docente de disciplinas de Direito, mas sim com a elevada qualificação jurídico-académica dessas categorias. De resto, uma tal prerrogativa - que, essa sim, pode considerar-se tradicional - encontra-se igualmente prevista no actual Estatuto, noutro lugar (artigo 171.º), o que prova que se trata de figuras jurídicas completamente distintas. Sucede, mesmo, que a conjugação dos dois preceitos pode configurar situações algo bizarras. Assim, qualquer licenciado em Direito, uma vez obtido o estágio, pode advogar, mesmo que seja docente, desde que leccione disciplinas de Direito, qualquer que seja a categoria da escola; ao invés, um antigo professor de uma faculdade de direito ou um doutor em Direito, apesar de estarem dispensados do estágio para poderem advogar, não poderão, todavia, fazê-lo, se leccionarem outras disciplinas que não Direito! Finalmente, é de afastar também todo e qualquer argumento que se pretenda retirar do artigo 221.º, n.º 3, da Constituição, que estabelece a regra da incompatibilidade dos juízes e que, vedando aos juízes em exercício o desempenho de qualquer outra função pública ou privada, ressalva as funções docentes e de investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas. É que são muitas as diferenças entre este regime de incompatibilidades e o dos advogados, no aspecto que aqui importa. Primeiro, trata-se de incompatibilidades em relação a um cargo público e em relação a titulares de soberania, e não a uma actividade privada (ainda que de interesse público);

depois, a incompatibilidade dos juízes é geral e abrange quer as actividades públicas quer as privadas (e não apenas as públicas), e a excepção visa apenas o exercício não remunerado, não só das funções docentes, mas também das de investigação (o que não sucede com a dos advogados);

finalmente, e decisivamente, a diferenciação de tratamento é estabelecida pela própria Constituição, o que, se a põe a coberto de qualquer acusação de inconstitucionalidade, significa também que não teria de ser necessariamente assim, se, no silêncio da Constituição, a diferenciação fosse estabelecida por lei.

3.2.4 - A discriminação entre a função docente pública e a junção docente privada. - Não menos concludente se apresenta a infracção do princípio da igualdade quando observada a discriminação que a norma estabelece, ao considerar incompatível com o exercício da advocacia a função docente pública, enquanto não considera incompatível a função docente em escolas privadas. Com efeito, a incompatibilidade só atinge o pessoal docente (de outras disciplinas que não de Direito) integrado na função pública (melhor: que seja funcionário ou agente de qualquer serviço público), não afectando os docentes de escolas privadas. Também aqui, porventura ainda mais notoriamente, não é possível encontrar motivo para a diferença de tratamento sob o ponto de vista quer da independência quer da dignidade da profissão de advogado.

Quanto à independência, por maiores que sejam as diferenças entre o regime da função pública e a relação de trabalho privada, a verdade é que os docentes das escolas públicas não são seguramente menos independentes do que os das privadas (ou cooperativas). Eles estão «exclusivamente ao serviço do interesse público», mas apenas «no exercício das suas funções» (artigo 269.º, n.º 1); o perfil funcional da sua actividade está objectivamente definido em leis e regulamentos; estão inseridos numa relação de hierarquia institucionalmente estabelecida; gozam de garantias em matéria disciplinar; beneficiam de garantias iguais ou superiores em matéria de segurança no emprego; etc. Não se vê qualquer razão para considerar mais dependente o docente funcionário do Estado do que o docente dependente de entidade privada. Por isso, se todo e qualquer docente privado, qualquer que seja a disciplina que leccione, pode começar ou continuar a advogar, não existe nenhum fundamento razoável para negar tal faculdade ao docente de escola pública.

As considerações feitas a propósito da independência valem, com as necessárias adaptações, para a questão da dignidade profissional. O mínimo que se pode dizer é que não existe um argumento sequer que leve a considerar menos prestigiante a docência numa escola pública do que numa escola privada (ou cooperativa). E se o dar aulas numa escola privada, qualquer que seja a disciplina, não belisca a dignidade da profissão de advogado, não se encontra nenhuma razão para que tenha esse resultado o facto de se dar aulas numa escola pública.

Também por esta via se tem de dar por violado o princípio da igualdade.

4 Decisão

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea i) do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei 84/84, de 16 de Março, na parte em que considera incompatível com o exercício da advocacia a função docente de disciplinas que não sejam de Direito.

Tribunal Constitucional, 30 de Julho de 1985. - Vital Moreira (relator) - António Luís Correia da Costa Mesquita - Antero Alves Monteiro Dinis (com a declaração em anexo) - Jorge Campinos - Luís Nunes de Almeida - José Magalhães Godinho - José Martins da Fonseca (vencido, de harmonia com declaração de voto que irei juntar) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Messias Bento (vencido, conforme declaração de voto junta) - Mário de Brito (vencido, conforme declaração de voto junta) - Raul Mateus (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Armando Manuel Marques Guedes - (Tem voto de vencido do conselheiro Mário Afonso, que não assina por não se encontrar presente. - Vital Moreira).

Declaração de voto

Pese embora a falta de precisão com que o pedido se apresenta

dimensionado nos requerimentos do Presidente da Assembleia da República, acabei por aceitar a delimitação do seu âmbito nos termos de que o acórdão dá notícia. Sempre acrescentarei porém que, a haver logrado vencimento a extensão do pedido à norma toda da alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Decreto-Lei 84/84, de 16 de Março, votaria a sua inconstitucionalidade global, além do mais, por força do desenvolvimento lógico do esquema argumentativo que se traçou tocantemente ao segmento sindicado.

Em verdade, as procedentes razões que se alinharam a respeito de todos os docentes integrados na Administração Pública que não leccionam disciplinas de Direito são, em sede de estatuto do advogado, e é esse o plano de inserção da norma controvertida, radicalmente válidas para os demais funcionários e agentes dos serviços públicos centrais, regionais e locais. - Antero Alves Monteiro Dinis.

Voto de vencido

Estabelece o artigo 68.º do Decreto-Lei 84/84, de 16 de Março, que «o exercício da advocacia é incompatível com qualquer actividade ou função que diminua a independência e a dignidade da profissão».

Por sua vez, o artigo 69.º dispõe: «O exercício da advocacia é incompatível com as funções e actividades seguintes: [...] i) Funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, com excepção dos docentes de disciplinas de Direito.» Não será despiciendo, também, para apreciação da questão que nos ocupa, chamar à colação o artigo 3.º do mencionado decreto-lei.

Estipula este preceito que «constituem atribuições da Ordem dos Advogados», para além de outras: «c) Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado e promover o respeito pelos respectivos princípios deontológicos; g) Promover o acesso ao conhecimento e aplicação do direito;

h) Contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e aperfeiçoamento da elaboração do direito, devendo ser ouvida sobre os projectos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e ao patrocínio judiciário em geral».

Importa reter também o disposto no artigo 83.º, n.º 1, alínea d), do citado decreto-lei.

Aí se estabelece que, nas relações com o cliente, constituem deveres do advogado. «d) Estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando, para o efeito, todos os recursos da sua experiência, saber e actividade.» Verifica-se, assim, que ao conjunto destas normas está subjacente, embora não expressamente, que o advogado deve por todos os meios desenvolver a sua competência, elevar a sua categoria profissional.

Tanto que diversas têm sido as decisões a terem em conta o nível de competência profissional e a sua reputação (neste sentido, cf. sentença do juiz corregedor da 2.ª Vara Cível do Porto de 28 de Julho de 1960 - Armando Mendonça Pais, Questões de Direito Civil e Comercial, 2.º vol., p. 249, e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 1960 e 15 de Junho de 1962, respectivamente, in Boletim do Ministério da Justiça, n.os 93, p.

322, e 118, p. 547).

Entremos agora na análise de uma outra questão, que é a de apreciar se o exercício da advocacia em acumulação com o exercício da docência de disciplinas que não sejam de direito diminui a independência e a dignidade da profissão.

Antes iremos fazer algumas considerações sobre o princípio da igualdade, relevante na matéria que nos ocupa, socorrendo-nos principalmente do Acórdão deste Tribunal n.º 44/84, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Julho de 1984.

Tal princípio não deve nem pode ser interpretado em termos absolutos, impedindo, nomeadamente, que a lei discipline diversamente quando diversas são as situações que o seu dispositivo visa regular. Inversamente, há violação do princípio da igualdade quando o legislador estabelece distinções discriminatórias. Assim é quando tais distinções são materialmente infundadas, quando assentam em motivos que não oferecem um carácter objectivo e razoável: isto é, quando o preceito em apreço não apresenta qualquer fundamento material razoável. O princípio da igualdade identifica-se com a proibição do arbítrio, quer dizer, com uma proibição de medidas manifestamente desproporcionadas, ou inadequadas, por um lado, à ordem constitucional dos valores e, por outro, à situação fáctica que se pretende regulamentar ou ao problema que se deseja decidir.

O princípio da igualdade contém uma directiva essencial dirigida ao próprio legislador: tratar por igual aquilo que é essencialmente igual e desigualmente aquilo que é essencialmente desigual.

Feitas estas considerações, de outro modo se poderá colocar a questão: será desrazoável, será puramente arbitrária, a norma que só permite ao advogado exercer a docência de disciplinas de Direito? A docência de disciplinas de Direito pode contribuir para uma valorização do advogado como tal. Pode abrir-lhe novas perspectivas naquele ramo do saber.

Não o faz perder tempo com outras matérias. Não o dispersam.

Dispersando-se, contribuem para que se não valorize. Não se valorizando tecnicamente, não se dignifica como profissional. A não valorização com o decorrer do tempo pode dizer-se que é desvalorização. A alta competência aumenta a dignidade profissional. A incompetência, embora não afectando a dignidade moral do advogado, atinge-o como profissional, diminui assim a sua dignidade. A dispersão por vários ramos pode conduzir a esse resultado. Por exemplo, um advogado que seja professor de Matemática ou de Medicina, a menos que se trate de pessoa de grande talento, prejudica-se, por isso, forçosamente, na actividade forense.

No meu projecto, referi-me ao problema da pretensa inconstitucionalidade da parte final da alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Decreto-Lei 84/84, considerando que se estavam a impor restrições a advogados enquanto tais.

Mas entendo que isso se torne natural que aconteça, não só porque o que está em discussão é uma alínea de um artigo do Estatuto da Ordem dos Advogados, implicando que se veja a questão pela perspectiva da dignidade e independência do advogado, não do funcionário público, como também porque o exercício da advocacia é incompatível com certas funções e actividades, incompatibilidade essa imposta pelo artigo 69.º e não pela legislação que regula as outras funções ou actividades.

É certo que o n.º 1 do artigo 47.º da Constituição preceitua: «Todos têm o direito de escolher livremente a profissão [...]» Isto corresponde a dizer que todos têm direito a ter uma profissão e a escolhê-la livremente. Mas não que tenham direito a várias profissões.

Canotilho e Vital Moreira escrevem (Constituição ... Anotada, vol. 1.º, 2.ª ed., p.

271):

Restrições claramente admissíveis são as que visam limitar o exercício de várias profissões (se é que a liberdade de escolha abrange o direito de ter mais do que uma ...). A lei pode estabelecer incompatibilidades que obstem a que uma profissão seja exercida cumulativamente com outra. O mesmo pode acontecer em relação ao pluriemprego. Estas medidas restritivas podem ser, de resto, concretizações de imposições constitucionais [ex.: execução de política de pleno emprego, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, alínea a)] ou de proibições expressamente consagradas na Constituição (ex.: proibição da acumulação de empregos ou cargos públicos, nos termos do artigo 269.º, n.º 4).

Desta forma, resulta do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição que, em relação a profissões liberais, o pluriemprego não é assegurado, nem garantido, nem proibido, pela Constituição. A Constituição ignora-o, deixa a solução ao legislador ordinário.

É certo que na alínea i) só se faz referência a funções públicas. Não se diz que as privadas sejam permitidas ou proibidas. O silêncio da lei não significa forçosamente permissão. Nada obsta a que outra lei ordinária venha a proibi-las. Acresce que a alínea i) respeita, tão-somente, à incompatibilidade do exercício da advocacia com o de funções públicas. Daí que não se deva considerar o que se passa com o ensino particular e cooperativo. E compreende-se que assim seja: o que se pretende, fundamentalmente, é que uma actividade eminentemente privada não esteja subordinada ao Executivo. A independência do advogado é menos afectada quando actua no âmbito da actividade privada. Basta pensar-se no imenso número de advogados que estão impedidos de exercerem o patrocínio contra o Estado.

Chegou-se à conclusão de que o único princípio constitucional que poderia ser violado seria o da igualdade.

Pretende-se que o advogado perde a sua independência tanto quando exerce o ensino de Direito como quando lecciona disciplinas de diversa natureza.

Os docentes não estão sujeitos ao mesmo regime de outros funcionários. Não estão submetidos a horários rígidos, nem os respectivos directores lhes podem determinar critérios na orientação a imprimir às suas lições.

Portanto, gozam de uma independência que os demais funcionários não têm.

Daí que se compreenda que só os docentes pudessem ser excepcionados da proibição geral estabelecida na alínea i), já mencionada.

O artigo 269.º da Constituição não deve também deixar de ser chamado à colação.

Em regra, os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado estão, em princípio, exclusivamente ao serviço do interesse público, mas a lei determinará as incompatibilidades entre o exercício de empregos ou cargos públicos e o de outras actividades.

É evidente que ao Estado não interessa que o funcionário público faça da função pública um meio apenas de auferir um vencimento e da actividade privada a sua verdadeira profissão.

Mas com a docência as coisas tomam outra feição, pelas razões já expostas e por outras que ainda se poderiam aduzir.

Mas dir-se-á: o que se passa com os docentes das disciplinas de Direito é o mesmo que acontece com os demais professores.

Não é assim, pelos motivos já atrás referidos. Já se acentuou que o ensino de disciplinas não jurídicas pode contribuir para uma desvalorização do advogado, como tal, enquanto o dispersa. Não se valorizando, perde competência, e a falta de competência acaba por traduzir-se em menor dignidade profissional.

Mas ainda que assim se não entendesse, sempre se deverá acrescentar que a enunciação feita no artigo 69.º do Decreto-Lei 84/84, de 16 de Março, não é taxativa.

A independência e a dignidade não são os únicos valores a que o legislador terá de atender.

Vivemos numa época de especialização, e não num período distante em que se pretendia que o humanista teria de abranger todo o saber humano.

Evidentemente que não estou a pretender que o jurista só deva saber Direito e nada mais. Reconheço que o jurista deve ter uma vasta cultura, mas, em princípio, não deve ter outra especialização.

Outras razões podem determinar o legislador: o que importa é que não sejam arbitrárias.

Excluir do exercício da advocacia os professores das faculdades de Direito pode traduzir-se num terrível mal para as nossas universidade oficiais.

Colocados perante o dilema de terem de optar pela advocacia ou pelo professorado, muitos dos grandes professores de Direito poderão optar pela advocacia. E então as nossas universidades, já tão desfalcadas, muito mais o ficariam. E é natural que tal aconteça, porque os vencimentos dos professores catedráticos estão muito aquém das altíssimas funções que desempenham e a tentação de mais altos proventos poderá seduzir alguns, ou, até, muitos.

O legislador não poderia ficar indiferente a uma catástrofe desse tipo.

E isso que acontece com os professores catedráticos, por maioria de razão iria verificar-se com inúmeros assistentes. Poderia então falar-se numa autêntica decapitação das faculdades de Direito, que só atingiria o corpo docente que se insere no funcionalismo.

Acresce ser geralmente defendido que os professores de certas cadeiras (Direito Civil, Comercial, Penal, Processo, etc.) devem ter larga prática de advocacia. E parece-me que com fundamento.

A teoria desacompanhada da prática, no ensino de tais cadeiras, prejudica seguramente o aluno.

O mesmo poderá ser alegado em relação a certos institutos e até no domínio do ensino liceal.

Por outro lado, a classe dos advogados seria altamente prejudicada ao proibir-se o exercício da advocacia a pessoas de tão alta envergadura.

Repete-se: basta lembrar os Profs. Antunes Varela, Fernando Olavo, Dias Marques, Raul Ventura, Palma Carlos e tantos mais. Não falando já de vultos do passado, como Afonso Costa, Barbosa de Magalhães, Alberto dos Reis, etc.

No entanto, já se compreende que a professores que exerçam a docência de outras matérias lhes esteja vedada a advocacia. É que é muito mais fácil encontrar bons matemáticos, bons biólogos, bons físicos, bons professores de ginástica, entre os verdadeiros especialistas, do que entre os juristas.

O ensino do Direito, que é uma verdadeira ciência e também uma arte, está naturalmente indicado para os juristas. Até a dificuldade em encontrar pessoas aptas para tanto justifica a excepção à regra geral da proibição.

Finalmente dir-se-á que solução algo semelhante foi consagrada, pela Constituição, em relação aos magistrados.

Com efeito, o n.º 3 do artigo 221.º reza assim:

Os juízes em exercício não podem desempenhar qualquer outra actividade pública ou privada, salvo as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas, nos termos da lei.

Deste preceito pode extrair-se um princípio geral, donde resulta que aos profissionais do foro é vedado o exercício de outras actividades que não o ensino e a investigação de matérias de natureza jurídica.

É claro que aos magistrados se exige a gratuitidade, enquanto o mesmo se não faz em relação aos advogados.

São estatutos diferentes de actividades diversas. Uns estão integrados em órgãos de soberania, enquanto os outros exercem uma profissão eminentemente liberal. Daí a não coincidência.

Pelas razões expostas, parece evidente que são situações diferentes, havendo desta forma razões que justificam amplamente um tratamento diferenciado entre os professores que leccionam disciplinas de Direito e os demais.

Tudo isto revela que não existe violação do princípio da igualdade.

Com efeito, poderá acrescentar-se:

Todos os advogados podem exercer a docência de cadeiras de Direito.

Nenhum advogado pode exercer a docência de outras disciplinas.

Estas as razões do meu voto de vencido.

Lisboa, 31 de Julho de 1985. - José Martins da Fonseca.

Declaração de voto

1 - A minha divergência do precedente acórdão respeita logo a uma das suas premissas básicas, a saber: a de que o juízo (constitucional) sobre a incompatibilidade estabelecida na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, no que se refere a docentes de disciplinas não de Direito, se há-de aferir exclusivamente pelos valores da independência e da dignidade da profissão de advogado (quanto muito integrados por valores que se lhes subsumam).

É certo que a enumeração de incompatibilidades constante do preceito referido é antecedida pelo enunciado do princípio genérico do artigo 68.º, o qual coloca a incompatibilidade do exercício da advocacia com outras actividades e funções sob o signo da protecção da «independência e dignidade da profissão». Daqui - do facto de estes serem «os fundamentos legalmente invocados» para as incompatibilidades - não se segue, porém, em meu modo de ver, que só eles possam e devam ser levados em conta na análise da conformidade constitucional das disposições que se seguem ao artigo 68.º (ou que explicitam e regulamentam a aplicação do respectivo princípio). Limitar desse modo uma tal análise representa, no fundo, condicioná-la a uma ideia ou exigência de absoluta harmonia interna - e mesmo de absoluta completude lógica e textual - dos diplomas legais, que a Constituição de modo algum postula.

Antes, por certo, é perfeitamente lícito ao legislador perspectivar certo regime ou regulamentação à luz de determinados valores ou princípios fundamentais, expressamente recebidos no texto, e depois, no desenvolvimento e modelação mais precisa das correspondentes soluções, incorporar-lhes a consideração de outros valores ou princípios, ainda que só implícita e complementarmente assumidos.

Assim, consignada no artigo 68.º do Estatuto da Ordem dos Advogados a ideia geral sobre incompatibilidades antes citada, bem podia depois o legislador, na enumeração do artigo 69.º, combiná-la com outra ou outras ideias (não previamente explicitadas, e porventura apenas com relevo indirecto ou acessório na matéria em causa), para chegar às soluções aí definidas - soluções com um recorte eventualmente diverso do que seriam se não interviesse a justificá-las essa combinação de princípios e exigências. Ora, todas essas ideias, princípios e exigências susceptíveis de credenciarem as soluções legislativas, terão de levar-se em conta na crítica «constitucional» a que as mesmas sejam submetidas.

2 - Posto isto, não vejo razão para considerar que a alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na parte em que foi questionada e apreciada no presente acórdão, viole o princípio constitucional da igualdade.

Como tem sido frequentemente acentuado, este princípio reconduz-se à ideia geral da proibição de distinções arbitrárias, isto é, desprovidas de justificação racional (ou fundamento material bastante), atenta a natureza da matéria ou das situações em presença. É. pois, um princípio que se apresenta aos operadores jurídicos, em sede de controle da constitucionalidade, fundamentalmente como um princípio negativo - como proibição do arbítrio.

Ora afigura-se-me bem claro que o preceito em causa, ao excepcionar da incompatibilidade geral do exercício da advocacia com a função pública apenas os docentes de Direito, e não também os docentes de outras disciplinas, não estabelece uma solução em absoluto desprovida de justificação racional ou material, o que é dizer uma solução «arbitrária» (e, portanto, «discriminatória»).

Com efeito - e recordando agora o que se disse no número antecedente -, essa solução bem pode ter a justificá-la ideias como, designadamente, a da «disponibilidade» para o exercício da profissão, da «competência» profissional, da «proximidade» do conteúdo material da actividade docente com o «conteúdo» da actividade forense; ou então - por que não? - considerações como a da conveniência de permitir aos docentes das disciplinas de Direito (mormente aos docentes universitários) a experiência prática do foro, ou mesmo a de possibilitar a docência de disciplinas jurídicas no ensino secundário por licenciados em Direito. Todas estas são, na verdade, razões possíveis e suficientes para não poder considerar-se desrazoável ou absurdo que o legislador haja limitado aos «docentes de disciplinas de Direito» - expressão, aliás, que não tem de ser entendida em termos restritivos (nos termos restritivos porventura pressupostos no acórdão) - a excepção à incompatibilidade com o exercício da advocacia consignada na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

3 - E não se diga contra esta conclusão que desse modo se estabelece uma discriminação inadmissível entre os docentes de disciplinas não jurídicas do ensino público, por um lado, e do ensino particular e cooperativo, por outro. É que a situação da «desigualdade», no tocante à possibilidade do exercício da advocacia, em que uns e outros se encontram deriva de uma opção «prévia» do legislador, qual foi a de estabelecer uma incompatibilidade genérica do exercício dessa profissão com a função pública, mas não com a «função privada» ou as «funções privadas» em geral, e, nomeadamente, com o exercício de uma actividade laboral «dependente» nesta outra área. Assim, carece de sentido, a meu ver, argumentar no presente processo - em que apenas está em causa a questão circunscrita identificada no acórdão (em termos, de resto, nos quais inteiramente convenho) - com a «desigualdade» ora aludida. Tal «desigualdade» não se verifica apenas entre docentes (de disciplinas não de Direito): ocorre entre quaisquer profissionais e trabalhadores em geral, consoante exerçam a respectiva profissão ou actividade no âmbito da função pública (tomada esta em toda a extensão referida no preceito em apreço) ou fora dele. O argumento (o argumento que dessa «desigualdade» se pretende retirar) prova, pois, ao fim e ao cabo, de mais. - José Manuel Cardoso da Costa.

Declaração de voto

1 - Não estão sub iudicio todas as normas que consagram incompatibilidades com o exercício da advocacia, ou sejam, as das alíneas a) a p) d o n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados. Sub iudicio não está, sequer, toda a norma da alínea i) desse n.º 1. Sub iudicio está tão-só uma parte dela:

justamente - como se diz no acórdão - «a parte em que ela considera incompatível com o exercício da advocacia a função ou a actividade de funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos que sejam docentes de outras disciplinas que não as de Direito».

Sendo isto assim, a norma questionada, na parte sub iudicio, não estabelece qualquer desigualdade entre a função docente pública e a função docente privada.

De facto, a referida norma, no segmento em causa, considera a função docente pública incompatível, em princípio, com o exercício da advocacia, mas nada diz quanto à compatibilidade ou incompatibilidade desse exercício com a função docente em escolas privadas ou cooperativas.

Deste modo, não pode ver-se na parte da norma aqui em apreciação qualquer violação do princípio da igualdade, consistente no facto de a incompatibilidade com o exercício da advocacia atingir os docentes de disciplinas não jurídicas que sejam funcionários ou agentes de serviços públicos e não já os docentes dessas matérias em escolas privadas ou cooperativas.

Essa questão só poderia ter sentido se o pedido respeitasse a algo mais do que à parte, atrás apontada, da norma constante da dita alínea i).

2 - A única distinção que, no que à função docente concerne, o referido segmento da norma estabelece é a que diz respeito aos funcionários ou agentes que sejam docentes de disciplinas de Direito e aos funcionários ou agentes que sejam docentes de outras disciplinas: aqueles podem advogar;

estes não.

Deste modo, para decidir se o princípio da igualdade é ou não violado, o que importa é saber se a apontada desigualdade tem ou não fundamento material bastante. Se o não tiver, se for irrazoável ou arbitrária, será ela constitucionalmente ilegítima. Mas só então.

Vejamos, pois:

A experiência da vida dos tribunais ensina que o advogado que é professor de disciplinas não jurídicas não raro faz da advocacia uma actividade secundaríssima, que exerce muito de longe a longe.

Ora, quando tal sucede, é sabido que o advogado não chega a ganhar a postura e a competência necessárias para o exercício da advocacia com aquele mínimo de independência, dignidade e isenção requeridas em quem tem de ser servidor da justiça e do Direito (v. os artigos 68.º e 76.º do Estatuto).

E com isso é a administração da justiça que é afectada.

Tal, porém, já não sucede com os advogados que ensinem disciplinas de Direito. Muito principalmente se se tratar de actividade docente universitária.

Num tal caso, a docência, obrigando a investigação aumenta e aperfeiçoa o saber do advogado, que, sendo mais competente, ganha em independência e dignidade.

O exercício de funções docentes ou de investigação de natureza jurídica é, aliás, um valor com relevo constitucional tal que força uma excepção ao princípio da proibição do exercício de qualquer outra função pública ou privada pelos juízes dos tribunais judiciais (v. o artigo 221.º, n.º 3, da Constituição).

É, pois, manifesto que a desigualdade estabelecida entre os funcionários e agentes que sejam docentes de disciplinas de Direito e os funcionários e agentes que sejam docentes de outras disciplinas não se mostra arbitrária ou irrazoável, antes se apresenta com fundamento material bastante.

Tal desigualdade não é, assim, constitucionalmente ilegítima.

3 - A finalizar, dir-se-á que não se considera razoável a interpretação que no acórdão se faz da expressão «docentes de disciplinas de Direito» (3.2.3, penúltimo parágrafo).

De facto - e contrariamente ao que aí se diz -, tal expressão há-de abarcar, para o efeito de poderem advogar, qualquer antigo professor de uma faculdade de Direito ou qualquer doutor em Direito, mesmo quanto leccionem ou hajam leccionado Economia Política, Finanças, Ciência Política, etc. - Messias Bento.

Declaração de voto

O artigo 69.º, n.º 1, alínea i), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei 84/84, de 16 de Março, dispõe que o exercício da advocacia é incompatível com a seguinte função (actividade): «funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, com excepção dos docentes de disciplinas de Direito».

O presente acórdão declara a inconstitucionalidade desta norma, na parte em que ela considera o exercício da advocacia incompatível com as funções de docência em quaisquer serviços públicos de disciplinas que não sejam de Direito. Fá-lo em nome do princípio da igualdade, consignado no artigo 13.º da Constituição: por um lado, não existe razão para diferenciar, no âmbito do pessoal docente público, os que leccionam disciplinas de Direito daqueles que leccionam outras disciplinas; por outro lado, é ilegítima a discriminação que resulta do preceito, para efeito de incompatibilidade com o exercício da advocacia, entre a função docente pública e a função docente em escolas privadas.

O princípio da igualdade só exige, porém, tratamento igual para situações iguais, e já não a mesma disciplina para situações diferentes.

Ora, se, em princípio, se justifica que o advogado leccione disciplinas de Direito - pela sua especial preparação para o efeito -, já se aceita que o legislador ordinário, sem violação do princípio da igualdade, lhe vede a docência de outras disciplinas.

Menos fácil de justificar será a distinção, que resulta da norma em apreço, entre a docência em estabelecimentos oficiais de disciplinas que não sejam de Direito e a docência dessas mesmas disciplinas em escolas privadas. Mas diferença existe sempre: num caso, trata-se de escolas oficiais; noutro, de escolas privadas. Não é fatal que o regime de ensino nas duas espécies de escolas seja o mesmo. E se o advogado deve poder ensinar disciplinas que não sejam de Direito em estabelecimentos oficiais, por que não há-de poder ser - essa actividade continua a ser-lhe vedada pela norma em questão - funcionário ou agente de outros serviços públicos que não sejam o ensino? - Mário de Brito.

Declaração de voto

1 - «A norma da alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º Estatuto da Ordem dos Advogados», escreve-se no acórdão, «estabelece uma regra com uma excepção. A regra é a de que é incompatível com o exercício da profissão de advogado o desempenho de qualquer função ou actividade de funcionário ou agente de qualquer serviço público; a excepção é a de que a incompatibilidade não afecta aqueles funcionários ou agentes que sejam docentes de disciplinas de Direito.» Baseando-se em infracção ao princípio da igualdade, o Presidente da Assembleia da República apenas peticionou a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do segmento daquela regra que tornava incompatível com o exercício da advocacia a docência de disciplinas não jurídicas por parte de funcionários ou agentes de serviços públicos.

Daqui partindo, e para concluir pela violação do princípio constante do artigo 13.º da Constituição por parte do segmento normativo apontado, procedeu-se no acórdão a uma análise comparativa de base triangular. Isto é, cotejou-se sucessivamente, nesse plano das incompatibilidades, a situação do pessoal docente público de disciplinas não jurídicas, quer com a situação dos docentes, funcionários ou agentes, de disciplinas de Direito, quer com a situação de quaisquer docentes de escolas privadas. No final desse processo comparativo se concluiu pela existência de discriminações injustificadas em relação ao arco normativo cuja declaração de inconstitucionalidade era pretendida pelo Presidente da Assembleia da República.

2 - Todas as vezes que é posta a questão de saber se o princípio da igualdade foi ou não desrespeitado, há que preliminarmente delimitar o campo de referências possíveis. E isso é, por vezes, uma tarefa árdua e melindrosa, até porque, conforme a comparação for orientada num ou noutro sentido, assim diversa poderá ser, na sua ponta conclusiva, a correspondente trajectória do raciocínio.

Na selecção do campo de referenciais deve o intérprete considerar, em primeira linha, o próprio quadro lógico em que se moveu o legislador. Ora já se viu que na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados se estabeleceu uma regra e uma excepção, pelo que o movimento comparativo se teria de desenvolver essencialmente entre esses dois pólos.

Nesta perspectiva, se se considerar, de um lado, que o exercício da advocacia é incompatível com o estatuto de funcionário ou agente de serviços públicos (entre os quais se conta o docente de disciplinas não jurídicas) e, de outro lado, que tal incompatibilidade não se regista se o funcionário ou agente for professor de disciplinas de Direito - desenrolando-se a consequente actividade cotejante entre estes dois planos -, será possível concluir que o legislador, in specie, não exorbitou da sua liberdade de conformação do princípio da igualdade, nem contrariou abertamente os valores de justiça distributiva pressupostos pelo princípio. Com efeito, através desta comparação de base bilateral - a base em que o legislador estruturou a normação posta em causa pelo Presidente da Assembleia da República - se descortina um conjunto de razões de sólido valor objectivo, à luz das quais a distinção surge como perfeitamente aceitável.

3 - Genericamente, as funções e actividades elencadas no n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados como incompatíveis com o exercício da advocacia são-no ou porque diminuem a independência ou porque atingem a dignidade da profissão de advogado ou por ambas as causas.

A incompatibilidade estabelecida na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º não derivará, porém, do vector «diminuição de independência». Desde logo, porque o exercício da advocacia por parte de funcionários ou agentes de serviços públicos só relativamente seria atingido nesse plano, ou seja, apenas quanto às controvérsias em que eles houvessem de sustentar interesses contrários aos do Estado. Mas isto postularia a definição de um impedimento, não a de uma incompatibilidade.

Aquela incompatibilidade radica-se, sim, no outro vector contemplado no artigo 68.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, o da «diminuição da dignidade do advogado».

Cabe por regra ao advogado o exercício em exclusivo do mandato judicial ou de funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada (artigo 53.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados). É uma profissão que, quer pela sua complexidade, quer pela vertente que dominantemente a caracteriza (a da defesa, no plano jurídico, de interesses alheios, desde os mais simples aos mais complicados), exige, para ser dignamente exercida, uma dedicação por inteiro da parte do advogado. Este, na verdade, «deve, no exercício da profissão e fora dela, considerar-se um servidor da justiça e do Direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhe são inerentes» (artigo 76.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados), tendo designadamente de «estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando, para o efeito, todos os recursos da sua experiência, saber e actividade» [artigo 83.º, n.º 1, alínea d)].

Sem uma entrega total ao estudo das questões que aceite tratar não pode o advogado, reitera-se, haver-se com dignidade no desenvolvimento da sua actividade profissional, desde logo porque - a não agir assim - estará a trair a confiança que o cliente nele depositou.

Ora esta dedicação profissional dificilmente se verificará da parte de funcionários ou agentes de serviços públicos: por norma, terão de cumprir quotidianamente uma exaustiva jornada de trabalho, terão de dispersar a atenção por campos sem qualquer relação com o mundo do direito e terão ainda de concentrar-se ao longo do dia na defesa dos interesses públicos que, em maior ou menor grau, lhes estejam confiados. É assim evidente a razão de ser da incompatibilidade traçada na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º, com a qual se procura, e fundamentalmente, proteger a dignidade da profissão do advogado.

No entanto, se isto é assim para a generalidade dos funcionários ou agentes de serviços públicos, já a situação é algo diferente para os funcionários ou agentes professores de disciplinas de Direito. É que, sem embargo de também eles se terem vivamente de empenhar, dia a dia, na satisfação do interesse público que lhes está entregue, certo é que, pela especificidade do seu mister, realizam uma actividade, pelo menos no plano da preparação teórica, perfeitamente coincidente com a do advogado. Ou, ditas as coisas de outra maneira, o exercício da docência de disciplinas jurídicas, longe de os distrair por terrenos que nada têm a ver com o exercício da advocacia, permite-lhes um aprofundamento do estudo do Direito, nomeadamente no plano doutrinário, o que lhes possibilitará até, pelo maior domínio das matérias em que são especialistas, exercer nesse particular sector uma advocacia do mais alto nível.

Dada a relativa coincidência das duas profissões, não se observa aqui a dispersão que se notaria em relação aos demais funcionários ou agentes de serviços públicos, incluindo professores de disciplinas não jurídicas que exercessem cumulativamente a advocacia, dispersão que, nessa hipótese, não lhes autorizaria que se desincumbissem com um mínimo de dignidade dos casos que lhes fossem confiados pelos clientes. Não se observando, pois, tal divisão intelectiva relativamente aos funcionários ou agentes docentes de disciplinas de Direito, mas antes se descobrindo entre as duas actividades profissionais largas zonas de sobreposição, mutuamente enriquecedoras, é de concluir pela inexistência de qualquer oposição de fundo, no plano dos princípios, quanto ao exercício, em simultâneo, de uma e de outra. Mais: pela elevada competência daqueles docentes (e quase sempre ela ocorrerá), tal se reflectirá positivamente no exercício da advocacia, que, por isso, sairá dignificada.

Estas diferenças, de significativo valor objectivo, justificam, pois, num plano de razoabilidade, o diverso tratamento normativo que na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados se estabeleceu, no domínio das incompatibilidades, no item regra e no item excepção.

4 - Por estes motivos, concluiu-se pela não infracção do princípio constitucional da igualdade por parte do segmento normativo questionado.

Não se quer deixar ainda de repisar que se adoptou, ao longo de todo o procedimento lógico que conduziu a esta inferência, uma base de comparação de ordem bilateral, plenamente abrangente de todo o quadro normativo delineado na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

No acórdão, em que foi adoptada uma base de comparação de ordem triangular, «esqueceram-se», porém, e algo paradoxalmente, nesse cotejo, os funcionários e agentes de serviços públicos não docentes, expressamente referidos, aliás, na alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º, o que - se bem vi as coisas - provocou desvios significativos na linha de argumentação do aresto, que esta declaração de voto complementa. - Raul Mateus.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1985/09/03/plain-42804.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42804.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga ao seguinte documento (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1984-03-16 - Decreto-Lei 84/84 - Ministério da Justiça

    Aprova o novo Estatuto da Ordem dos Advogados, procedendo à revisão da matéria constante do capítulo V "do mandato judicial" do Estatuto Judiciário.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2022-07-22 - Acórdão do Tribunal Constitucional 468/2022 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que aprovou o Orçamento do Estado Suplementar, na medida em que determina, a respeito das formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, a isenção de pagamento da remuneração mensal fixa ou mínima dev (...)

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